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quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Abrir Monte (2021) de Maria Rojas Arías



por Alexandra Barros

Em 1926, foi criado, na Colômbia, o Partido Revolucionario Socialista (PRS). O seu objectivo era começar a preparar uma revolução nacional para transferir o poder das mãos dos grandes proprietários de terras e meios de produção para o proletariado e camponeses, à semelhança do que se passara na União Soviética, em 1917. No início de 1929, os líderes do PRS acordaram que nesse verão tomariam o poder, actuando conjuntamente nas respectivas regiões. Numa povoação da região de Tolima, denominada Líbano, um grupo de revolucionários, auto-intitulado Los Bolcheviques del Líbano, em Tolima, prepara-se para participar no golpe. Por fim, o PRS decide que a revolução se iniciará no final de julho. Vem, no entanto, a saber que as autoridades nacionais estão ao corrente dos planos e a postos para neutralizar a insurreição; então, decide suspendê-la. O grupo de Líbano, Tolima é supostamente avisado, através de um telegrama, mas nunca chega a recebê-lo. Trezentos homens avançam para os principais postos do poder local, em 29 de julho, crendo que movimentos semelhantes estão a ocorrer em todo o país. Acto isolado, a rebelião não dura mais que um dia, logo vencida pelo poder vigente e dela “não reza a História”. Maria Rojas Arías fez este filme para resgatá-la do esquecimento e dar-lhe a relevância que acredita merecer. Foi a primeira guerrilla da América Latina de inspiração comunista, e além deste valor histórico, a realizadora considera que essa revolução seminal prossegue ainda o seu curso. 

Além de não haver um arquivo oficial sobre a insurreição, a população de Líbano, Tolima parece ter feito um pacto de silêncio sobre a mesma, na sequência do falhanço. Maria Rojas tenta descobrir os factos a partir de actas de reuniões do grupo de guerrilheiros e das memórias fragmentadas de quem viveu esses tempos. 
 
No filme, imagens de arquivo cruzam-se com imagens a preto e branco captadas pela realizadora em locais de alguma forma relacionados com o golpe. Mas ao transfigurar inusitadamente as imagens que captou - ora aplicando um intenso filtro vermelho (evocando as lanternas vermelhas usadas pelos revolucionários para se reconhecerem); ora introduzindo movimentos trepidantes ou giratórios; ora dando a ver apenas “pedaços” de imagens, descontextualizados; ora abstratizando as imagens (contraste de claros e escuros levados ao limite, por exemplo); ora recorrendo a enquadramentos tão fechados que deixam praticamente tudo fora de campo, ... - Maria Rojas constrói uma obra expressionista, em lugar de uma peregrinação guiada a lugares emblemáticos. Na impossibilidade de reconstituir de forma clara os acontecimentos, Maria Rojas criou uma colagem caótica de imagens obscuras que, na forma, reflecte as dificuldades da sua pesquisa e os resultados, necessariamente nublados, da sua investigação. Quando as imagens são acompanhadas por música, esta é áspera, dissonante, estranha, acentuando o carácter inquietante, fragmentário e impenetrável das composições visuais. A banda sonora é maioritariamente da responsabilidade de Sara Fernández, com contribuições de Lucrecia Dalt, duas artistas colombianas que fazem arte sonora e música experimental. 

As declarações que se ouvem em voz-off, foram escritas por Maria Rojas, entrelaçando testemunhos que recolheu in loco e dados recolhidos nas já referidas actas de reuniões. As palavras são ditas por vozes femininas para assinalar que as mulheres, geralmente omitidas das narrativas das revoluções, desempenham nelas imprescindíveis e meritórios papéis[1]. 

A simultaneidade de tempos que advém da forma como Maria Rojas mistura os seus diversos materiais (visuais, orais, auditivos, textuais, ...) é significativa. Através dela ressoa a convicção da realizadora: a revolução continua. Alexandra Barros 
 
[1] Fonte: entrevista a Maria Rojas Arias conduzida por Raquel Schefer, para DAFilms Conversations, 13/4/2023, https://www.youtube.com/watch?v=O2N2TyFsDrs



segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Nós (2021) de Nelson Fernandes



por Mário Fernandes

«A animação trata problemas sérios, convida à meditação como qualquer filme de Antonioni ou Buñuel.» 

Vasco Granja 
 
«Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de quartos, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto.» 
 
“O Fazedor”, Jorge Luis Borges 
 
Milhares de desenhos, rostos a gerarem-se e a desfazerem-se no desconhecido, cenários fantásticos e mágicos, figuras atormentadas e irónicas: é este o pano de fundo de uma vida a saltar os muros das percepções comuns. Anos de labor incansável de um fazedor discreto, que não integra os circos merdiáticos, no país das galerias ocupadas por quem tem mais padrinhos que talento, no país das rotundas assinadas pela gorda dos Galos de Barcelos. 
 
Nas mãos que pensam deste fazedor, a animação está pelas horas da poesia, sem lucro material, apenas com a satisfação de gerar vida e movimento, frame a frame, num ofício de amor e paciência, demorado e atento. Falo obviamente de Nelson Fernandes (Zina), um artífice refinado em contra-corrente, cuja animação nada tem que ver com exércitos de assalariados, bonecas, hologramas, afterefects, estúrdia de coloridos do milionário Wes Anderson. 
 
Zina, nos antípodas, afirma a veia orgânica dos materiais e da matéria, e logo a poesia, fiscalidade metafórica, que deles retira. Não o mundo cor-de-rosa e postiço do guloso americano, mas o desenho genuinamente animado, na sua concretize e abstracção, a expressão plástica da condição humana e o respirar de uma íntima verdade, que se inscreve na arte moderna, tal como a definiu Baudelaire: «Criar uma magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o objecto e o sujeito, o mundo exterior do artista e o artista ele próprio.» 
 
Em Nós, que tanto remete para o “nós” como inquietação colectiva como para os “nós” da solidão que este filme tenta desatar, nada pousa tranquilamente, em descanso; tudo é interrogação muda aos céus, aos mares e aos desertos. Estamos perante a recordação de um sonho catastrófico, em “plano-sequência”, do Homem emparedado na sua loucura? Uma metáfora do artista martirizado, Ícaro de asas cansadas que cai no real quotidiano, e do silêncio a que são votados os proscritos? Uma casa de imagens saqueada, destroçada, simbolizando o drama cósmico do Homem? Um requiem pelo frágil bote da humanidade, afundado nos abismos de plástico (materialmente, literalmente) do oceano? A estupefacção do Homem face à sua circunstância e ao momento histórico? Uma viagem à procura de um outro mundo? 
 
Neste filme sobre a incomunicabilidade, a angústia face ao insondável e a incapacidade humana de lidar com o desconhecido sem causar destruição, a fronteira muda constantemente entre a vida normal e um pesadelo que parece ser mais real. A textura dramática de papel, pele convulsa do filme, é a sagração trémula da ruína, miséria e solidão, união frágil da perenidade e da morte. 
 
No cimo do campanário, força cósmica, um sino plangente (por quem dobra?) expande-se, desce, ecoa, leva a notícia aos confins do silêncio. Uma delicada flor perde as pétalas a um sopro de vento, inocência massacrada por um tanque de guerra. Os relógios interiores do Homem e da flor batem em uníssono com o relógio exterior da torre sineira. O Homem, como a flor no deserto, um ponteiro de sombra. Da raiz ao frutificar das chamas. 
 
Cenas que exemplificam o poder da perfuração desta animação dramática, explosiva, um universo de agitação e malogro, e que projectam as ansiedades comuns desde que o homem é homem, as calamidades domésticas, colectivas e planetárias feitas a mesma carne, o mesmo papel, num preto-e-branco que deflagra como um grito queimado. 
 
Neste filme de destroços e detritos, de cosmos e intimidade, de voos e quedas, a várias mudanças, vertiginoso até à morte em lume brando, sem apelo, o Homem tanto pode ser levantado do chão como esmagado sob o peso de acontecimentos que fazem tremer o mundo. 
 
Chegamos ao dilacerante momento final. Caído dos astros, janelas vazadas pela câmara pergunte , o Homem vinga-se cortando a planta que regara e, já um outro (castigo?), prostra-se no deserto. Da escuridão mais funda da condição humana, sobe uma árvore. Ecce Homo. Pièta. Irrupções de fumo. Sinais de fumo. Veladas cintilações. Ao regaço do fim. No estertor do fim. 
 
P.S.: 24 de Dezembro. Estou a vê-lo na Rua da Cale, nº 82, ao lume de uma mesa de luz onde nascem as formas cinematográficas, como se fosse o seu presépio. Aí está Zina (até quando este país vai ignorá-lo?), recortando as chamas, desafiando a noite, para um clarão breve.

in «Jornal dos Encontros Cinematográficos» de 2021



quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Vieirarpad (2021) de João Mário Grilo



por João Mário Grilo

A “coisa” deste Vieirarpad já se vislumbrava, em boa verdade, em Ma Femme Chamada Bicho, belíssimo filme que José Álvaro de Morais realizou entre 1976 e 1978. Filmado em vida do par Maria Helena Vieira da Silva / Arpad Szenes, é um filme que faz parte, ainda e plenamente, do dispositivo pelo qual o casal construiu a sua vida e o seu amor, enquanto componentes essenciais da sua própria obra, abrindo-a a um campo performativo que, dada a disparidade dos materiais, só o cinema e a montagem poderiam verdadeiramente resgatar. 
 
Ora, é neste contexto “performativo” que a publicação da correspondência entre os dois – trocada nos breves períodos em que foram forçados a viver longe um do outro -, bem como a iconografia do casal, que se deixou abundantemente fotografar ao longo de toda a vida - até numa fotonovela! –, para além, evidentemente, dos muitos desenhos e pinturas “biográficas” que, entre ambos, produziram, vem dar luz a essa cena amorosa enquanto verdadeiro ponto de encontro e fusão entre as obras de ambos, numa mise en scène recíproca e interminável. 

Assim, para o projecto inicial de Vieirarpad, estes materiais sobreviveram ao tempo para desempenhar uma missão: a de tornar visível a particularidade de uma vida em comum totalmente significativa e que se procurou que tomasse no filme a forma de um último legado do casal. 
 
Uma última obra, mas que é, ao mesmo tempo, a mais inicial e a mais radical de todas as obras: a construção de uma (duas vidas), na forma de uma obra de arte. Para mim, tudo estava ali, portanto, à espera de ser filmado e montado! E o cinema, arte dos fantasmas, por excelência, foi para mim, ao mesmo tempo, a linguagem e a esperança para esta derradeira revelação humana e artística. Procurando perpetuar esta tão feliz frugalidade em algo realmente exemplar. 

nota de realização do dossier de imprensa do filme.



domingo, 3 de abril de 2022

Tre piani (2021) de Nanni Moretti



por António Cruz Mendes

Hoje, vamos ver “um Nanni Moretti” diferente daquele que conhecemos melhor. Julgo que podemos observar, sobretudo nos seus primeiros filmes, um registo quase documental. De forma alguma o tipo de documentário que se apresenta como uma apresentação da “realidade tal qual ela é”, mas antes aquele que se revela claramente como “um discurso sobre”. Em Palombella Rossa, Querido Diário ou Abril, havia uma personagem-guia, uma espécie de narrador, no qual éramos tentados a ver o próprio realizador, que nos conduzia através do seu mundo particular, a Itália contemporânea e a sua realidade política, convidando-nos a conhecer e a partilhar as suas próprias angústias e perplexidades. Três andares não nos fala de Itália, os seus temas são universais: as dificuldades da vida em comum, as responsabilidades que resultam da parentalidade e das consequências das nossas acções. A justiça e a culpa. E nele não temos sequer uma personagem-âncora em torno da qual se construa uma narrativa, mas três diferentes histórias, ainda que unidas por temas, um espaço físico e personagens comuns. Um filme-mosaico, portanto, um complexo de histórias sobre as quais nenhuma das personagens tem uma perspectiva privilegiada. 

Numa entrevista recente, Moretti defendia o seu direito de não fazer apenas comédias. É certo que Três andares não é uma comédia, tal como também não o eram O quarto do filho e Minha mãe, melodramas dominados pelo tema da morte. Mas, na verdade, também nunca entendi como verdadeiras comédias Palombella Rossa, onde Moretti, na pele de Michele Apiccena, é um ex-dirigente do PCI que, depois de um acidente, perdeu a memória, ou Querido diário, filme onde ele personifica um realizador de cinema que, nas palavras de João Lopes, “filma na primeira pessoa, não para afirmar a verdade da sua visão, antes sublinhando a singularidade do seu ‘eu’, desse lugar a partir do qual ele adquire os contornos de uma solidão irredutível” (Expresso). De Abril, poder-se-ia dizer o mesmo. Nesses filmes, o exercício de auto-ironia é por demais evidente e as situações cómicas apenas disfarçam uma amargura latente. 
 
“Mostrai que mostrais”, pedia Bertold Brecht aos seus actores. E não será, afinal, isso que Margherita, a realizadora de Minha mãe, um alter ego de Moretti, pretende quando diz aos seus actores que não precisam de encarnar a sua personagem, mas de “estar ao seu lado”? Este efeito brechtiano de distanciamento sempre me atraiu nos filmes de Nanni Moretti e é isso que, antes de mais e na minha opinião, fazia deles, tão claramente, objectos políticos. 

Três andares não é certamente uma comédia, mas não é apenas isso que o destaca das primeiras obras de Moretti, mas sobretudo a renúncia àquele distanciamento irónico que se interpunha entre o realizador e a matéria dos seus filmes. Agora, o espectador é convidado a observar, aparentemente sem filtros, a vida das três famílias que habitam um prédio burguês, numa cidade qualquer. É claro que já em O quarto do filho e Minha mãe, Moretti tinha abdicado dos temas explicitamente políticos presentes nas suas primeiras obras mas, neles, havia ainda um fundo autobiográfico: a primeira, reflecte a sua angústia diante de uma eventual perda do seu próprio filho, que tinha então cinco anos; a segunda, tem como pano de fundo a morte da sua mãe. Em Três andares, Moretti, ele próprio está, por assim dizer, “ausente”. Pela primeira vez, o realizador adaptou uma história criada por outro, o romancista israelita Eshkol Nevo. 

É claro que isto não nos impede de reconhecer em Três andares um certo “ar de família” que o liga a outros filmes de Nanni Moretti. Desde logo pela sua presença como intérprete, mas sobretudo pela forma como questiona, sem nos propor respostas terminantes, os dramas íntimos que habitam a vida interior das suas personagens. Lucio e a sua cega obsessão; Monica, a sua solidão e os seus medos; Vittorio e a sua moralidade intolerante; e Dora (a magnífica Margherita Buy), confrontada com o vazio da sua existência, entre as perdas do marido e do filho Todas elas, apesar e herdadas do romance de Eshkol Nevo, são personagens bem “morettianas” que procuram, com passos incertos, uma saída no labirinto dos erros e das dúvidas onde se perderam. 

Passada a experiência traumática do fim do PCI e das esperanças de um mundo novo que ele transportava, da subida ao poder de Berlusconi e do que ele representa, a Itália parece ter caído numa ordinária e desesperançada “normalidade”, onde até um ataque xenófobo a um centro de apoio a imigrantes pobres pode caber. Embora os dramas íntimos não deixem de ocorrer em contextos sociais precisos, a política cedeu-lhes, então, o protagonismo que teria tido noutros tempos. Quem pode, portanto, condenar Nanni Moretti por passar da “comédia” ao melodrama? Afinal, a qualidade dos seus filmes permanece intacta e, no final (um episódio que não se encontra no romance adaptado), dança-se o tango e todos sorriem.

quarta-feira, 16 de março de 2022

Benedetta (2021) de Paul Verhoeven



por André Miranda

Foram quarenta anos a percorrer o deserto, passando fome e sede, queimando a sola dos pés na agrura quente da areia. Quarenta anos até alcançar Israel. Moisés à frente, desde o Egipto, atravessando mares, combatendo povos inimigos. Até o dia em que foi avistado o rio Jordão. Do lado de lá, a Terra Prometida. O alívio e esperança que deve ter enchido todos aqueles corações. O povo escolhido cumpria o destino, assim como Moisés cumpriria o seu. Deus tomou forma e anunciou o que Moisés já sabia: que só com o olhar tocaria Israel, aguardando-lhe a morte do lado de cá do Jordão. 
 
A travessia de Benedetta é mais simples. Acompanhada pela família, viaja ao convento de Pescia, onde se devotará a uma vida casta de oração. Pelo caminho, a caravana é interrompida por um bando de homens de índoles pontiagudas. Vorazes, ameaçam e exigem ouro a troco de nada. Excitam medos nas pobres almas. Exceto na alma de Benedetta, que avança sem temor e, com ajuda divina, comanda um pássaro a defecar no olho do líder dos gatunos. Este desbraga-se a rir, encantado com tão curioso feito. Abandona os melífluos intentos. Deus vence mais uma vez. 
 
É Benedetta já adulta, quando entra no convento Bartolomea. Esta, noviça, não conhece os cantos à casa e precisa da ajuda da experiente Benedetta para encontrar a latrina. As duas aliviam-se em conjunto e, pouco depois, trocam um beijo. Fruto ou não da culpa e da avidez reprimida, Benedetta é acometida de visões. Jesus chega-lhe de várias formas e clama-a esposa. Este não lhe é casamento muito favorável, pois a violência das aparições e exigências é tal que a lança sobre a cama, doente. As mãos e os pés abrem-se como se a houvessem crucificado. Só pode ser milagre. Quem não vai na cantiga é a madre superiora. É verdade que as chagas existem e vertem continuamente, mas faltam as marcas na testa da coroa de espinhos. Não seja por isso, poucos momentos depois as feridas aparecem, não se sabe se por intercessão divina ou hábil mão terrena. 

A madre é deposta. É por demais evidente que a escolhida do céu é Benedetta. Eleita líder do convento, depressa extingue o calor há tanto contido. Deleita-se com Bartolomea em deflagrações carnais. Até figura santíssima, depois de lhe ser dada forma apropriada, colabora na satisfação do desejo. No entanto, o paraíso é de pouca dura. A ex-madre, ressentida pela usurpação, encontra-se com o núncio, convence-o a viajar até Pescia e impor ordem em convento tão transviado. Mas é tarde demais. A peste ronda. Os gânglios incham de pestilência e a morte canta. A vida purifica-se em estertor de chama.

quinta-feira, 10 de março de 2022

Gûzen to sôzô (2021) de Ryûsuke Hamaguchi



por Alexandra Barros

O efeito borboleta foi uma metáfora utilizada pelo meteorologista Edward Lorenz, para explicar a impossibilidade de prever fenómenos atmosféricos para além dos dias mais próximos. A imagem do bater de asas de uma borboleta como origem de um tornado no outro lado do mundo serviu para ilustrar a descoberta que levaria à formulação da Teoria do Caos. Variações pequeníssimas, e aparentemente insignificantes, nas condições iniciais, geram cadeias de acontecimentos muito diversas entre si, tornando impossível prever o comportamento de sistemas dinâmicos. 

Roda da Fortuna e da Fantasia é o efeito borboleta de Ryûsuke Hamaguchi para ilustrar a imprevisibilidade das relações afectivas. Reúne três histórias de (des)amores, que afinal são quatro. Logo no primeiro conto, um duplo final mostra que, para estas histórias serem completamente diferentes, bastaria introduzir pequenas alterações na corrente de acontecimentos. 

Tsugumi conta a Meiko um encontro com um rapaz por quem se apaixonou e por quem supõe ser correspondida. Meiko percebe tratar-se de Kasuaki, um ex-namorado que ela traiu, provocando o fim da relação. Meiko nada revela à amiga acerca desta coincidência inusitada. Decide no entanto visitar Kasuaki para perceber o que sente(m). Fica claro que ainda se amam apesar dos dois anos de separação. Kasuaki não consegue decidir com quem quer ficar, Meiko não consegue decidir se quer ficar com Kasuaki. O que impede duas pessoas que se amam de se amarem? 

Um encontro fortuito de Kasuaki com as duas amigas acaba de forma desastrosa para todos, quando Meiko reagindo de forma impulsiva à reunião inesperada do triângulo amoroso, faz um ultimato a Kasuaki. Ou então não. Afinal Meiko toma outra decisão e o final é um agridoce happy end

Na segunda história, uma aluna, Nao, tenta seduzir o professor Segawa a pedido de Sasaki, um colega com quem mantém uma relação extraconjugal. Movido por um desejo de vingança, suscitado por uma suposta injustiça, Sasaki pretende envolver Segawa num escândalo sexual. Mas Nao, intrigada com a indiferença do professor face à tentativa de sedução, acaba por revelar as suas intenções. 

Cartas postas na mesa, começam as autênticas seduções e Nao e o professor chegam a um feliz entendimento secreto. Todavia os segredos e as mentiras têm perna curta, de acordo com a sabedoria popular. Num momento de grande tensão, Nao distrai-se e comete um erro que torna o envolvimento público. Esses breves segundos têm consequências desastrosas para os dois. 

Na terceira história, duas mulheres encontram-se na rua e julgam reconhecer-se. Afinal, nenhuma é quem a outra julga ser. Há no entanto uma simpatia e compreensão mútua tão natural que, logo nesse primeiro encontro, uma relação profunda nasce entre as duas. Confessam pesos de consciência e exorcizam acontecimentos do passado. Finalmente um final gracioso e ternurento. O tríptico fecha assim em contraponto às angustiantes reviravoltas ditadas pelas ocorrências improváveis e imprevisíveis das primeiras histórias. Os acasos também podem ser felizes. 

Na complexa teia das relações humanas, amores e solidões dependem tanto ou mais de acontecimentos fortuitos do que dos próprios sentimentos. Erros e mal-entendidos conduzem ao afastamento de quem melhor estaria acompanhado do que só. Coincidências, actos falhados, acasos ditam os nós que se desfazem e os laços que se atam. Este universo tem semelhanças com o de Hong Sang-soo[1] , além do mais pelos seus duplos, trocas de lugar e substitutos, triângulos amorosos, segundas oportunidades, destinos ditados não se sabe bem pelo quê. 

Einstein terá afirmado que Deus não joga aos dados. Desta forma expressava a sua rejeição do indeterminismo e incerteza inerentes às leis da física quântica que regem o mundo subatómico. Ryûsuke Hamaguchi, por sua vez, parece querer dizer-nos que o indeterminismo e a incerteza são as forças motrizes das interacções humanas, que a natureza dessas ligações é indecifrável e que o respectivo sucesso ou fracasso é ditado por uma roda da fortuna e fantasia. 

[1] Realizador sul-coreano a quem o Lucky Star já dedicou um ciclo (Mulher na Praia, O Filme de Oki, O Dia Em Que Ele Chega, O Dia Seguinte, A Mulher Que Fugiu)