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sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Mandabi (1968) de Ousmane Sembène



por João Palhares

Percorrendo toda a história do cinema, se é que isso é possível, não se encontram muitos casos de realizadores cujos filmes tenham sido escritos por eles adaptando os seus próprios romances. Houve muitos romancistas que se tornaram argumentistas, houve muitos realizadores que escreveram os próprios argumentos, ainda há, mas a combinação romancista-argumentista-realizador é rara. Elia Kazan, com America, America e The Arrangement, adaptações dos seus livros homónimos dos anos sessenta, terá sido um dos primeiros, se descontarmos Marcel Pagnol e Jean Cocteau, que adaptaram algumas das suas peças ao cinema. Samuel Fuller escreveu e realizou os seus filmes, também escreveu romances, mas não realizou nenhuma adaptação de um romance seu, fez o contrário, novelizou uma obra que fez para a televisão (Morte na Rua Beethoven, editado pela Círculo de Leitores em 1989) e fez o mesmo com O Sargento da Força 1. Marguerite Duras é uma escritora muito conhecida, mas também realizou e adaptou para cinema várias das suas obras, como La Musica, Détruire, dit-elle, Jaune, Le Soleil ou India Song. Gordon Parks e Dalton Trumbo adaptaram The Learning Tree e Johnny Got His Gun, respectivamente, em 1969 e 1971, sendo o de Trumbo o único filme que realizou. E Catherine Breillat tem vindo a adaptar bastantes das suas obras para o cinema desde 1975, a última das quais em 2013, Abus de faiblesse

Nascido em 1923 em Ziguinchor, no sul do Senegal, Ousmane Sembène fez um pouco de tudo. Expulso da escola na sequência de uma disputa com o director, mudou-se para o Dakar aos dezasseis anos. Trabalhou como pescador, mecânico, pedreiro, foi mobilizado pelo exército francês e integrou os atiradores senegaleses, experiência traumática que incorporou num dos seus livros e que o tornou num anti-colonialista convicto. Foi estivador em Marselha durante dez anos e membro activo do partido comunista francês. Interessando-se pela escrita e pela literatura, começou a frequentar as bibliotecas da Confederação Geral do Trabalho e a seguir cursos oferecidos pelo partido comunista, publicando o primeiro romance, Le docker noir (“O Estivador Negro”), em 1956. “O partido comunista tinha muita força,” disse Sembène numa entrevista de 2004 a Michèle Levieux[1], “e o velho militante que há em mim deve dizer que foi o que me fez descobrir a literatura com os Cahiers du Sud, que se situavam em frente ao La Marseillaise[2]. Os meus primeiros textos foram editados pela Action poétique, que tinha publicado os poemas de Kateb Yacine e depois pela Présence africaine.” Da sua obra literária, foram publicados em Portugal Os pedaços de madeira de Deus, de 1960, pela Editorial Caminho em 1979, que foi reeditado pela Biblioteca Avante! em 2010, Xala, de 1974, pelas Edições 70 também em 1979, e O harmatão, de 1964, outra vez pela Caminho em 1983 

“Voltei a Dakar e viajei pela África,” contou Ousmane na mesma entrevista. “Queria conhecer o meu próprio continente. Fui a todo o lado ao encontro de povos, etnias e culturas. Tinha quarenta anos e vontade de fazer cinema. Queria dar outra impressão de África. Como a nossa cultura é oral, eu queria mostrar a realidade através das máscaras, das danças e da representação. A publicação de um livro escrito em francês chega apenas a uma minoria, enquanto que com um filme se pode fazer como Dziga Vertov, "Kino Pravda", cinema ambulante que permita discutir com as pessoas, debater ideias. Os melhores críticos são os do próprio povo.” Depois deste périplo africano, que durou um ano, Sembène foi ter com Georges Sadoul a Paris, conseguindo ingressar no Studio Gorki de Moscovo por intermédio de André Bazin. O cineasta soviético Mark Donskoi, conhecido pela trilogia de filmes que dedicou ao escritor Máximo Gorki, era o director da escola e foi também seu professor, junto a Serguei Guerassimov e Serguei Bondarchuk. Sarah Maldoror, realizadora do belíssimo Sambizanga, foi sua colega. “Todos me ensinaram que nada se consegue sem trabalho. Os melhores cineastas africanos, até hoje, foram formados na escola de cinema de Moscovo."

Mandabi é uma adaptação do romance do mesmo nome, também escrito por Ousmane Sembène. Descreve os muitos problemas que um vale postal de 25.000 francos enviado de França causa a Ibrahim Dieng, à família e à pequena comunidade que passa a depender do patriarca e a visitá-lo regularmente assim que sabe da notícia. Gradualmente, esse vale postal vai despertando a inveja e a mesquinhez de todos, facilitando muito a vida dos que menos escrúpulos têm em espezinhar os outros no processo, como os vários interesseiros que se oferecem para ajudar Ibrahim. Como disse Sembène noutra entrevista, “a corrupção não nasce com as pessoas. São as pessoas que cultivam a corrupção.”[3] O filme mostra-nos as consequências de um sistema burocrático herdado da França colonial, terrivelmente desenquadrado com as circunstâncias de vida de uma comunidade que se tem de endividar para comer todos os dias. O ritmo do filme, muito bem conseguido, permite-nos reparar em pequenos rituais como os cortes de cabelo na rua ainda no genérico inicial, as orações que todos proferem como vírgulas no seu discurso, mas que nenhum deus parece ouvir, os problemas que Ibrahim tem com a roupa que veste, ajeitando-a com as mãos a cada passo do caminho, ou os vários planos de pessoas com as mãos em colares de contas, subindo e descendo as pequenas esferas possivelmente para saber se o dinheiro vai chegar até ao final do dia. Um dos resultados de todo o processo é a encenação defensiva de um pequeno teatro das aparências, de se fingir que se é rico quando se é pobre, de “mentir para unir em vez de dizer a verdade para dividir,” de tirar um bocado aqui para pôr ali quando se tiver e esperar que ninguém repare no que quer que seja. E o vale postal revela-se mais caro do que aquilo que vale, levantá-lo equivale à penúria, portanto estamos com Ibrahim até ao fim e concordamos com ele quando diz que “vou deixar de ser decente. E também me vou converter num ladrão e num mentiroso.” Sobretudo depois de ver o engravatado mentir-lhe com todos os dentes quando ele está de joelhos a pedir-lhe o dinheiro que não lhe pertence. E, por fim, não resistimos a citar O harmatão, quando a páginas tantas se lembra que “(...) os ratos trabalham aos pares quando roem o pé da pessoa adormecida: um sopra e o outro rói. (…) O rato que sopra é a religião. O que rói é o imperialismo.”

[1] Publicada in «L'Humanité», 15 de Maio de 2004. 
[2] O Cahiers du Sud e o La Marsellaise são dois jornais de Marselha. O primeiro foi fundado pelo dramaturgo e cineasta Marcel Pagnol, com o nome de Fortunio, em 1914. 
[3] in «Rencontre avec Sembène Ousmane, écrivain-cinéaste sénégalais», publicado no Weekend, suplemento semanal do jornal senegalês Le Quotidien. Disponível no blog CinéAfrique.org: "https://archive.wikiwix.com/cache/index2.php?url=http%3A%2F%2Fblog.cineafrique.org%2F2009%2F08%2F27%2Frencontre-avec-sembene-ousmane-ecrivain-cineaste-senegalais%2F#federation=archive.wikiwix.com&tab=url" (consultado a 22 de Outubro de 2024).



sexta-feira, 6 de outubro de 2023

2001: A Space Odyssey (1968) de Stanley Kubrick



por Jacques Lourcelles

Como disse Jacques Goimard (cf. Biblio.): «2001 é o primeiro filme desde Intolerância que é simultaneamente uma superprodução e um filme experimental». Ao contrário de várias produções holywoodianas, esta, quanto ao sentido e à forma, emana de um homem só e não passou de mão em mão, apesar de ter uma génese bastante longa (1964-1968), durante a qual o orçamento inicial aumentou de seis milhões para dez milhões e meio de dólares. No entanto não é de modo nenhum a obra de um só homem e, em primeiro lugar, a contribuição do argumentista e escritor de FC Arthur C. Clarke foi muito importante. No início de 1964, Kubrick propôs a Clarke escrever um argumento tendo em vista um filme de FC que ao princípio tomaria a forma de um romance escrito a duas mãos. O ponto de partida do romance e do filme foram as novelas de Clarke The sentinel (escrita em 1948), bem como Encounter in the Dawn (1950) e Guardian Angel (1950). O trabalho de escrita e a preparação do filme duraram até 29-12-1965, data do primeiro dia de rodagem. A própria rodagem estendeu-se por cerca de sete meses (nos estúdios Boreham Wood, na Inglaterra), e a pós-produção (mais de duzentos planos do filme precisaram de efeitos especiais) só chegou ao fim no início de 1968. O trabalho e a inspiração de Kubrick visavam dois objectivos em paralelo: realizar o filme de FC mais espectacular feito até à data (com as maquetes e os efeitos especiais mais esmerados e sofisticados, especialmente graças ao talento de Douglas Trumbull) e oferecer uma espécie de poema filosófico sobre o destino do Homem na sua relação com o Tempo, com o progresso e com o universo. Esta dupla ambição resulta numa obra de construção muito original e muito arriscada, feita de quatro blocos relativamente autónomos, o que faz também realçar o virtuosismo de Kubrick e a sua vontade em percorrer o campo quase completo do género (como nota Bernard Eisenschitz in Cahiers du Cinéma 209: «A mestria de Kubrick aparece na justaposição e na combinação de quatro grandes motivos característicos: FC pré-histórica, antecipação a curto prazo, viagens interplanetárias e por fim as grandes galáxias, mutantes no hiperespaço»). Basicamente, 2001 é um filme de angústia – uma angústia difusa, como que glacial, cuja substância é por assim dizer consubstancial à existência do homem no universo. É a angústia – física e metafísica – do homem perdido nos espaços infinitos, mas também velado, em todas as épocas, pela próxima etapa – inelutável – do progresso científico, que não deixará de ser ainda mais destrutivo que construtivo para ele. Mas 2001 também é um filme de especulação: a influência dos extra-terrestres (que se manifesta pelo monólito) e a mutação final do herói vão gerar talvez uma forma de vida e de desenvolvimento menos decepcionante e menos imperfeita que a que conhecemos. A este respeito, o filme pode ser julgado optimista. Mas enquanto o pessimismo de Kubrick é sentido como uma evidência durante a maior parte do filme (onde mesmo a vida quotidiana dos personagens, tornados simples servos das máquinas e do cérebro que as comanda, cria uma monotonia deprimente semelhante ao «tédio mortal da imortalidade» referido um dia por Cocteau), o seu «optimismo» permanece puramente especulativo e, enquanto tal, existe apenas como um imenso ponto de interrogação. Optimismo muito relativo, a bem dizer, uma vez que tudo o que poderia acontecer de melhor ao homem viria de outro sítio, e sem que este o tivesse decidido. Kubrick parece difundir mesmo a hipótese de que toda a evolução científica do homem pode ser determinada pela intervenção de extra-terrestres. No plano formal, Kubrick alterna com uma plenitude maravilhosa o aspecto contemplativo (a progressão das naves pelo espaço) e o aspecto dramático (vide o extraordinário duelo entre Keir Dullea e o computador Hal 9000, que não terá a última palavra). Salpica os vastos espaços de angústia disseminados pelo filme com zonas estreitas de humor. Humor ora relativamente secreto (troca de banalidades entre os astronautas), ora mais evidente (utilização da música de Johann Strauss). Tudo o que se sabe da elaboração do filme, das hesitações e tentativas de Kubrick mostra que ele quis ir cada vez mais longe na direcção do silêncio, da economia, do segredo e do mistério. Suprimiu assim o comentário off do início, reduziu ao mínimo o número de membros da equipa da Discovery e renunciou a mostrar os extra-terrestres. Esta direcção foi muito benéfica para o filme. Estimulou, como nunca se tinha ousado fazer num filme com este orçamento, a imaginação do espectador. (E é significativo que a maioria dos comentários escritos sobre 2001, tanto na Europa como nos Estados Unidos, sejam no geral de um nível altíssimo). Teve igualmente como efeito apagar no estilo a tendência de Kubrick em sublinhar de forma pesada os seus efeitos e as suas intenções: de todos os seus filmes, 2001 é o mais sóbrio, o mais completo e o mais bem conseguido. No que diz respeito à história da FC cinematográfica, 2001, que na sua estreia criou um choque cujo eco ainda hoje não se extinguiu, situa-se na crista de uma década em que o género se ia tornar predominante, depois de ter sido minoritário e marginal durante cinquenta anos em Hollywood. 

N.B. Arthur Clarke escreveu uma continuação ao seu romance de onde foi extraído um filme, 2010 (título português idêntico), realizado por Peter Hyams (1984). Keir Dullea reencontrou o seu papel. Desenvolvendo sobretudo um tema político, encorajando uma aliança entre americanos e russos, a obra tinha pouca envergadura e era mesmo muito inferior a alguns dos outros filmes de FC de Hyams como Capricorn One (1978) ou Outland (1981). 

BIBLIO. : alguns meses depois da estreia de 2001 saiu o livro (homónimo) do filme, assinado apenas por Arthur C. Clarke, Nova Iorque, New American Library, 1968 (traduzido pelas Publicações Europa América). A planificação do filme (643 planos) apareceu na L'Avant-Scène no 231-232 (1979), antecedida de um prefácio importante de Jacques Goimard de quem também recomendamos a crítica escrita a quente para a Fiction de Novembro de 1968: o autor confessa aí a sua perplexidade e a sua admiração diante de uma obra que, não o esqueçamos, pareceu à época, mesmo aos olhos dos especialistas, muito esotérica. Sobre a rodagem e as trucagens, ver Jerome Agel: The Making of 2001, Nova Iorque, New American Library, 1970. (Para esta recolha de textos e de documentos, o autor teve acesso aos dossiers de Kubrick. Obra considerada até há pouco tempo como o campeão de vendas dos livros americanos sobre cinema.) Também leremos Arthur C. Clarke: The Lost Worlds of 2001, Nova Iorque, New American Library, 1972 (diário de bordo do argumentista); Carolyn Geduld: Filmguide to 2001: a Space Odyssey, Indiana University Press, 1973 (estudos, cronologia e bibliografia); Jean-Paul Dumont e Jean Monod: Le Foetus astral, Christian Bourgois, 1970 (sem dúvida o primeiro estudo estruturalista sobre um filme). 

in «Dictionnaire des films. **De 1951 à nos jours Suivi d’Écrits sur le cinéma», Robert Laffont, Paris, Novembro de 2022.
Tradução: João Palhares



domingo, 11 de março de 2018

Louis Lumière (1968) de Éric Rohmer



por João Palhares

Devido à existência de várias versões das chamadas “vistas cinematográficas” dos irmãos Lumière e devido às grandes diferenças entre elas, aliadas às cronologias estabelecidas pelos historiadores para encontrar as versões oficiais das mesmas, às vezes delineadas por meras flutuações no clima registadas na altura, a idade dos intervenientes nas imagens dos Lumière ou pequenos apontamentos em artigos dos jornais da época, tornou-se imperativo apelidar os Lumière de cineastas e deixar de repetir a história dos técnicos ingénuos que fizeram curiosidades históricas, simples documentos da viragem do século. O assombro causado por muitas das curtas dos Lumière é um efeito a que eles não eram de todo inconscientes, porque reparavam erros durante a captação das suas “vistas”, intuitivamente, e na procura desse mesmo efeito. As correcções feitas a La sortie de l’usine Lumière à Lyon (nas três versões que se conhecem) são por isso reveladoras: nas primeiras duas versões, os trabalhadores levam muito tempo a sair da fábrica e as carroças puxadas a cavalo atrapalham-lhes os movimentos, por isso Louis Lumière decidiu retirar a carroça totalmente e apressar os seus trabalhadores, conseguindo a fluidez e a ideia de início e de fim (aqui marcadas pelo abrir e fechar dos portões) que estão presentes em tantas das suas curtas. 

“Quando se olha com muita atenção para os filmes de Lumière”, diz Langlois neste filme, depois de Rohmer ter dito que não havia mise en scène nos filmes dos irmãos, “parecem muito espontâneos, que só puseram as câmaras na rua e que é a rua a desfilar, e se é bom, se nos impressiona, dizemos que foi sorte. Mas não é sorte, porque há planos dos Lumière que são evidentes. Por exemplo, quando se vê num filme de Louis Lumière– e isto é uma questão de tempo, temos um filme e ele dura tanto e o plano dura outro tanto – mas por exemplo, o filme começa com um eléctrico que entra em plano pela direita, depois há uma série de movimentos, e acaba com outro eléctrico que entra em plano pela esquerda. Acha que é sorte? Não é sorte, de todo. Eles procuraram locais, eles viram como é que as coisas se passavam durante algum tempo, escolheram o melhor ângulo e conseguiram a coisa mais extraordinária (e que costumamos esquecer) que foi inserir na imagem, durante esses poucos segundos, o máximo de planos, sem mudar o lugar da câmara. Temos o grande plano, o plano médio, o plano americano e temos o plano de conjunto com um movimento que os liga a todos. E isso não é sorte. É ciência.” 

É a partir deste momento que o que achávamos ir ser só uma conversa com belos testemunhos, um mero registo de uma conversa feito para a televisão, se transforma no equivalente cinematográfico para a obra de Platão ou de Xenofonte, filósofos gregos que documentaram não só a existência como o pensamento de Sócrates, o mais famoso dos filósofos. Tal como Renoir e Langlois dão testemunho do génio de Lumière e tal como Rohmer documenta o pensamento de Langlois. Louis Lumière, o filme, o episódio da série « Aller au cinéma », como lhe quiserem chamar, faz-nos ver a fragilidade dos meios que albergam o conhecimento, das dificuldades físicas da sua transmissão, das barreiras temporais e das circunstâncias que se batem com ele de forma impiedosa e tantas vezes nos conseguiram impedir de lhe aceder. Podíamos ter perdido Sócrates, podíamos ter perdido Lumière e perdemos muita coisa, sem dúvida, do incêndio de Alexandria à chegada do cinema sonoro aos Estados Unidos da América, que condenou 90% do cinema mudo à destruição. Langlois, que com Lotte Eisner salvou centenas de bobines durante o flagelo da segunda Guerra Mundial, sabe do que fala quando menciona essa fragilidade, ainda muito real. Como quando descreve feitos que ainda não eram conceitos, por parte dos operadores dos Lumière, ou quando descreve o cinema como o objectivo e a meta do impressionismo. 

É pelas palavras de Langlois que as curtas ou “vistas” dos Lumière se vão transformando em cinema à frente dos nossos olhos, numa viagem de descobertas infindáveis, um caleidoscópio ilimitado que contém toda a gramática do cinema. Rohmer terá percebido isso durante a fase da montagem (crença minha) e o cepticismo inicial deu lugar à fé absoluta, seleccionando a melhor ordem de imagens para nos causar essa sensação maravilhosa de descoberta, sem dúvida semelhante à sua: dos primeiros movimentos em diagonal (ou em triângulo, como diz Langlois) à abstracção pura dos aquários inundados de luz e das imersões na escuridão de túneis que testam os limites da sensibilidade dos obturadores. E se o melhor filme de Éric Rohmer é uma pequena conversa feita para a televisão em 1968? Cinema são sons e imagens, orquestrados para produzir um efeito, mil sensações. Grande parte das vezes (para não dizer sempre, que não é isso que nos toca, é o jogo que isso potencia) não são precisos heróis nem vilões, suspensões da descrença, três actos ou morais da história, basta uma câmara apontada a um homem que não para de fumar e que fala do que gosta. Depois mostra-se do que é que ele gosta e na acepção dos russos cria-se essa terceira imagem que nos deixa atónitos e em busca de palavras para a descrever (os tratados imersivos e utópicos de Eisenstein, os aforismos em formas de perguntas de Jean-Luc Godard). O concreto e o material do cinema entram no domínio do metafísico, no mundo invisível que perfaz os sonhos e o conhecimento e nos ajuda a reagir ao mundo visível e material. 

Que é como quem diz, dos Lumière para esta sala.