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quarta-feira, 5 de maio de 2021

Down by Law (1986) de Jim Jarmusch



por Luc Sante

Vencidos pela Lei, estreado em 1986, era o terceiro filme de Jim Jarmusch. Ao contrário dos seus antecessores, Sempre em Férias (1980) e Para Além do Paraíso (1984), não arrancou de uma vista semi-documental da baixa de Manhattan. Foi totalmente rodado em exteriores no Louisiana, o que, no contexto do cinema de baixo orçamento da cidade de Nova Iorque, era exótico, ainda mais que as incursões dos filmes anteriores pelos arredores abandonados de Cleveland e fosse qual fosse a extensão de autoestrada negligenciada que fazia as vezes da Flórida. Aqui, o local é anunciado e reforçado durante os créditos. Passam em revista Nova Orleães e as suas imediações, da esquerda para a direita, gravadas num preto e branco cristalino pela câmara de Robby Müller: mausoléus, varandins de ferro forjado, bairros sociais de estatura baixa, barracas em estacas. Depois disso, as cenas desenrolam-se no meio de uma arquitectura semi-tropical e nos pântanos; ouvem-se sotaques cajun e Irma Thomas a cantar, mas por todo o aroma a gumbo filé, o cenário verdadeiro não é mais o Louisiana do que o cenário de Macau é Macau. Vencidos pela Lei tem lugar na terra da imaginação, na província dos filmes. 
 
O Jack de John Lurie, um chulo, parece vir do film noir. Ao vê-lo nos seus preparos de trabalho com fato, camisa preta, e gravata brilhante, imagina-se que nasceu algures nas bordas do enquadramento de The Big Combo de Joseph H. Lewis e conseguiu a sua cara a estudar Jean-Paul Belmondo em O Acossado de Jean-Luc Godard. O facto de Lurie ter usado exactamente as mesmas roupas no seu papel fora da tela, como líder dos Lounge Lizards, uma banda post-punk que explorou e despedaçou as convenções do jazz post-bop dos anos 50, e apareceu pelos lábios dele a tocar saxofone, importa apenas na medida em que a sua actuação era perfeita. John Lurie inventou “John Lurie,” uma figura de uma calma inatacável que, no entanto, é capaz de executar trambolhões, um bebedor de highballs e condutor de Cadillacs que recebe o correio num apartamento cheio de crude e não no Eden Roc, e que quase nem precisa de uma mudança de antecedentes para se tornar Jack. 
 
O Zack de Tom Waits, um locutor da rádio que trabalha sob a alcunha de Lee “Baby” Sims, é um bocado mais difícil de situar. Colidem tons de Expresso Bongo com imagens de acampamentos de vagabundos e arenas de lutas de galos e Okies a impulsionar calhambeques mortos pelo deserto com a força de vontade. É o hipster solitário, sem cena tirando para o seu público invisível das ondas sonoras—ele e Jack, naturalmente, são como água e azeite. O cabelo dele, um emaranhado de ervas daninhas, é desenhado pela natureza; afundou a fortuna toda nos sapatos, canhoneiros rockabilly que accionavam detectores de metais. Nada disto está em desacordo com a persona que Waits construiu ao longo dos muitos anos da sua carreira musical, e que, na altura em que o filme foi feito, tinha recentemente feito uma viragem da sua base de número de bar beatnik para uma lógica de sonho. A personagem é tão imediatamente evocativa e em última análise obstinada como as duas canções do álbum de Waits, Rain Dogs, que encerram o filme. 

Jarmusch, como Para Além do Paraíso demonstra amplamente, adora o número três. (A certa altura, considerou fazer um trio de filmes ambientados em cidades cruciais para a música americana, mas depois de Vencidos pela Lei e O Comboio Mistério de 1989, ambientado em Memphis, nunca se materializou um terceiro filme, a ambientar-se Kansas City.) O número de Jack e Zack precisava de um terceiro elemento, que só podia ser uma carta de fora do baralho, e esse requisito foi preenchido para além de todas as expectativas por Roberto Benigni. Jarmusch, que tinha conhecido Benigni—famoso como comediante em Itália mas desconhecido em qualquer outro lugar—num festival de cinema, escreveu o papel para ele numa altura em que nenhum deles falava a língua do outro. Benigni, como a sua personagem, Roberto, mantinha um bloco de notas dos idiomas americanos; a linguagem tornou-se o adereço da personagem. Espírito da floresta ou talvez Pinóquio, faz pender a balança do filme, sabotando a competição de talentos entre Jack e Zack e admitindo o maravilhamento puro e descomprometido. Conduz os hipsters para fora da prisão e para a floresta, e eventualmente para o céu, embora seja o único que consiga lá ficar. 
 
Pode-se abrilhantar o filme de muitas maneiras. É uma fábula de final aberto que tanto convida a interpretações como as frustra alegremente. Desta e doutras formas, o filme justifica o rótulo batido de “cinema poético.” Jarmusch tem qualquer coisa do químico amador dentro de si—gosta de juntar diversos ingredientes num frasco e de ver como vão interagir. Isto surge de forma mais óbvia na escolha do elenco. Nos seus primeiros filmes, especialmente, ele procurava intérpretes que se tinham estabelecido a si próprios em meios de comunicação não-cinemáticos, e dentro destes justapunha os estilos mais amplamente contrastantes. Aqui como noutros lugares, construiu personagens à volta dos actores em vez de os calçar à força dentro dos papéis, escreveu guiões detalhados mas incorporou improvisações pelos intérpretes, deleitou-se com acidentes felizes. Depois lançou as personagens para terra desconhecida; por sua própria admissão, escreveu o guião de Vencidos pela Lei antes de visitar sequer o Louisiana. Arrancou o enredo da fuga da prisão do armazém dos lugares comuns cinematográficos (We’re No Angels vem à cabeça) e encontrou exteriores simples e eloquentes que combinavam um génio orçamental com um olho certeiro para arquétipos americanos. Contratou Robby Müller, cuja sensibilidade holandesa se podia considerar como estando no pólo oposto do rococó dos pântanos, e atribuiu-lhe película a preto e branco, que não era mais corrente em 1986 do que é agora. Depois Jarmusch abanou e mexeu os seus ingredientes. O resultado é irredutível, um filme auto-contido como um ovo. 
 
in «Down by Law: Chemistry Set», The Current, Criterion, 17 de Julho de 2012.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

The Color of Money (1986) de Martin Scorsese



por José Oliveira

Martin Scorsese chegou a filmes como este The Color of Money ou o anterior After Hours passados os anos setenta da autodestruição e da penitência, cargas e voltagens Fullerianas, como quem expurga os pecados pessoais inconfessáveis ou é obrigado a redimir toda uma nação da qual se faz parte inelutavelmente. Salvo uma ou outra excepção – o sonho da magia de Hollywood mesmo que bastante trilhado em Alice Doesn't Live Here Anymore, por exemplo – as batalhas do cineasta e da câmara unos, da montagem visível, dos seus actores e da música como coro – as suas entidades indissociáveis num só ritmo – travaram-se entre as ruas, o lixo mesmo e a sujidade que passa dos passeios ao humano e regressa a eles, e o sagrado, Deus, a fé, a transcendência sempre possível até ao último fôlego – logo desde Who's That Knocking at My Door. Passada a fina linha que separa os sãos dos loucos, os acomodados dos que vão até ao fim do poço, teve, à imagem de Francis Ford Coppola, de fazer supostas encomendas de estúdio para sobreviver e ganhar prestígio. E foi nesse período que utilizando o seu temperamento destravado noutras cambiantes dramáticas e zonas de luz, supostamente mais coloridas e festivas, revelou da complexidade e subtileza das suas preocupações e recursos, chegando mais uma vez à questão do eterno retorno, centro e borda para onde concorrem sempre as quatro entidades referidas. 

«Approach every shot in the same way. Give every shot the same respect. Give every shot your full attention.» Tom Simpson (frase afixada na academia Dynamic Pool, a melhor sala de jogos de Braga e arredores). 

The Color of Money é uma continuação do filme de Robert Rossen que vimos no nosso cineclube aquando dos anos 60 do cinema americano, The Hustler chamado, e é a mais estranha e por isso mesmo plausível das sequelas. Logo na abertura, de rajada seca como as aberturas de Cruise na bola 9, e logo depois da voz de Scorsese enunciar as regras da perdição, damos literalmente de frente com Paul Newman, o Fast Eddie Felson que noutra vida, no filme de Rossen, flirtou com a tragédia e foi engolido com ela, aprendendo o que não se quer nem se deve aprender; no filme que não foi feito, onde passaram esses anos que transformaram um jovem sedento e apaixonado numa raposa cínica, outro tanto se passou, e tudo nos chegará desses anos do meio do caminho nesta obra condensada e faiscante como o jogo oficial em causa, onde Newman se vai tornar Cruise e Cruise se tornará Newman, onde a bela rapariga aprenderá demais, onde o velho e o novo trocam as voltas como a epígrafe Scorcesiana: «Beginning of the beginning of the end of the beginning». 

Então Newman, que certa vez foi como o inocente e soberbo Vincent Lauria de Cruise, metamorfoseou-se num psicólogo de laivos Frankensteineanos, uma espécie de vampiro magnético e de verve irrefutável, caçando esse sangue efervescente no intuito de cozinhar e de apurar o elixir da juventude eterna. Contrabandista de corpo e alma, eterno hustler da vida, planante entre bebidas, fumos vários, mulheres e jovens promessas, utiliza o charme e os infinitos percalços e golpes acumulados para atingir o mais quimérico dos desejos puramente humanos. «Para alguns jogadores a própria sorte é arte», foi a derradeira frase da voz-of de Scorsese, e a sorte é o indefinível que Newman também trata por tu para o desequilíbrio da balança a seu favor. 

Cruise, ele e personagem, produto típico dos anos oitenta e da era Ronald Reagan, coberto de brilhantina como de show-off, é o tipo do salão de jogos que tanto pode arriscar tudo num só golpe como jogar à borla, o jogo pelo jogo, a emoção a jorrar; Newman reconhece esse perigo, o perigo dos desalinhados ou dos não-razoáveis, e começa a deslindar sobre a mente humana, a necessidade de estudar o próximo, os movimentos cruciais e reveladores, enfim, a doutrina dos novos tecnocratas, ultra-sofisticados profetas de um mundo novo porque calibrado infalivelmente pelos números e mercados. E atira ao par – atenção pois a personagem de Mary Elizabeth Mastrantonio não é para preencher a quota sexual feminina mas é o terceiro vértice essencial do estudo sobre o vislumbre e teia do poder e da ganância – que é o dinheiro que conta, que é o melhor quem o tiver mais: A Cor do Dinheiro, a lei do dinheiro. A moral em explanação. O mundo pós-clássico. Da concentração e tensão de Rossen para os raides e flipanços do cineasta e da câmara, da montagem intempestiva, dos seus actores e do coro musical. 

Não há como sair dessa abertura de golpe seco onde o pop multi-estereofónico de Phill Colins transforma o ar do tempo ainda mais rarefeito e confuso, Cruise a confessar que para ele esse jogo são apenas bolas e tacos e Newman a espetar que quem tiver uma especialidade, um dom, como ele, no álcool ou na bola 9, fica rico. E é Newman a estudar Cruise depois de rapidamente ter conquistado a namorada. E daí brotam os jogos de dominação e do ciúme, a perturbação e ânsia sexual, a dependência infantil ou terminal, a ganância e o poder, a escravidão e humilhação, o jogo panorâmico da vida – A Cor do Dinheiro. Jogados tais jogos, esses outros jogos sem desportivismo que aguentam a condição humana e suspendem paradoxalmente a descrença, jogos do namoro ou da guerra do negócio, partem estrada fora para estudarem os movimentos humanos e testarem a paciência, tendo em vista que quem ri por último ri ou enriquece melhor. O dom natural, o intrínseco, prestes a ser dominado e sugado por quem tudo diz saber - The Color of Money é uma tragédia pois no speed e no espectáculo continua a escancarar a nossa corrupção ancestral. E é lá para o meio da viagem que Newman vai revelar que parece que está a ver um filme que já viu – como a pescadinha de rabo na boca. 

E Newman, a máquina, só vai voltar a descarrilar, a sangrar, a ser uma pessoa de carne e osso, no episódio com Forest Whitaker, onde tudo começa a resvalar e onde o filme vira; aí descobre que também pode falhar, ser enganado, volvendo-se e volvendo a narrativa ainda mais complexa – ou decide tornar-se o hustler absoluto ao ser comido por outro, ou finalmente recuperou o prazer de jogar por jogar, abrindo já para o último plano. Essa foi a derradeira lição que entregou ao casal, a partir dessa brecha, cada um sabe de si. E o filme vira mesmo, a moral vira a estética e escuta-se Giuseppe Verdi, os movimentos desenhados pela câmara começam a ser harmónicos e gerais, grandiosos, a começarem do céu para aterrarem na mesa da obsessão, muito lentamente; a namorada vira Newman, entre empresária como os do futebol de hoje e conselheira surda, e o divino parece vir observar momentaneamente o palco, a arena dos duelos à Western que supostamente Scorsese nunca fez, preparando tudo mais uma vez para o fechamento final. 

O que Forest Whitaker proporcionou foi a ascensão, a ressurreição de uma alma penada e vingativa em vida, o Newman que nos anos 60 se perdeu entre anjos trágicos com o olhar preso à morte e o mundo a seus pés, e que na era do Circo ainda aprendeu a última lição e trouxe para junto de si, sem pedir nem comprar, a mulher ideal e o prazer total da fruição de um dom. E Cruise, talvez ainda novo demais, torna-se o pior Newman, o cínico vampiro e escabroso psicólogo, mentindo ao brilho e sensibilidade do seu olhar. Mas Newman é Newman e de novo no auge chama Cruise e a namorada perdida para uma sala íntima, deserta, escondida do mundo, como a casa da paz e do sossego que cada um poderá merecer. O jogo sem o dinheiro nem a sua cor e cheiro. Ambos entregues à sua natureza, ponto de chegada essencial de um road movie que jamais o foi. Eterno retorno e salvação no inferno. Todo e o melhor Scorsese no «I'm back» que fecha outra vez fulgurante para os créditos. Sem dissimulação, nem que seja só nesse pedaço de tempo que não veremos mais. Jovens para sempre. A sagrada frase de Tom Simpson lapidada.