Mostrar mensagens com a etiqueta Phil Karlson. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Phil Karlson. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Thunderhoof (1948) de Phil Karlson



por António Cruz Mendes

Thunderhoof é um western bastante atípico. Não vamos nele encontrar nenhuma referência à saga da “conquista do oeste”, a essa epopeia lendária onde se confrontam o bem e o mal, a lei e a desordem, a civilização e a selvajaria, que o cinema divulgou e ainda hoje informa o olhar dos EUA sobre o seu passado e explica algumas posturas presentes. 

Em vez disso, num território desolado, paisagens agrestes, terras áridas apenas percorridas pelo vento, onde condições mínimas de sobrevivência parecem permanentemente ameaçadas, desenrola-se um drama edipiano. 

Em cena, apenas três actores. Quatro, talvez, se considerarmos o protagonismo de Thunderhoof, um magnífico cavalo selvagem, um dos poucos que ainda percorrem aquelas terras de ninguém, figura de um simbolismo complexo que terá um papel determinante na trama da narrativa. 

Kid precisa de “matar o pai”, o velho Scotty que, há muitos anos, lhe salvou a vida quando o retirou das areias movediças onde se afundava. Uma história mais do que uma vez evocada, mas que é também uma alusão à pobreza e ao desamparo em que, presumivelmente, se encontrava the kid, “o miúdo”, quando Scotty o colocou sob a sua protecção. 

Mas, Scotty é ele próprio a areia movediça que impede Kid de se libertar e de se realizar como homem. A fuga é a sua primeira opção. Ela parece-lhe imperiosa, tanto mais que Scotty se encontra agora casado com Margarita, o seu amor de juventude. Contudo, essa saída está-lhe vedada. Scotty obriga-o a ficar, precisa dele para capturar Thunderhoof. 

Por ele, Scotty está disposto a arriscar a vida. Aquele cavalo que “meio México” tenta em vão capturar é a pedra basilar sobre a qual assentará o rancho onde vai construir um lar na companhia de Margarita. 

Margarita, também ela resgatada por Scotty de uma situação de pobreza, vê-se assim no centro de um triângulo amoroso. Não saberá Scotty da paixão de Kid? Com certeza que sim mas, em face disso, confiante no seu poder, adopta uma atitude sarcástica e desafiadora. O desejo do rapaz de nada vale ao lado da sua vontade. A tensão existente entre os dois rapidamente se exacerba, levando-os a confrontar-se numa luta travada à beira de um abismo. 

Numa cena ocorrida na casa abandonada, milagrosamente encontrada no meio de nenhures, equipada com tudo o que poderiam almejar, Kid, agora limpo e barbeado, toca guitarra e Margarita canta. Ambos fantasiam uma futura existência, longe de Scotty, de ranchos e de cavalos, numa idealizada Nova Orleães, cenário de festas e alegria. Scotty, no quarto ao lado, doente e com uma perna partida, ouve-os. Os seus sonhos e os de Kid só se poderão realizar com a morte de um deles. 

O final, muito deus ex machina, parece-nos forçado. Mas, em 1948, num filme produzido nos EUA, um desfecho menos conforme com a moral dominante teria que se confrontar com sérios obstáculos. Phil Karlson não soube ou, mais provavelmente, não quis travar essa luta. Ainda assim, deixou-nos a história magnífica de um “desejo selvagem” que, como os cascos de um cavalo que resiste a ser domesticado, ressoa “como um trovão” nas terras áridas e desertas do México.



quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Black Gold (1947) de Phil Karlson



por José Oliveira

Black Gold, o filme que hoje iremos vez, inaugura um ciclo programado em conjunto com o historiador e programador Andy Rector, idealmente concebido para se realizar em zonas rurais e preferencialmente ao ar livre. Filmes rurais americanos, assim chamamos aos quatro filmes do ciclo, realizados no período clássico do cinema por dois realizadores injustiçados porque ultra-talentosos: Phil Karlson e Budd Boetticher. 

Andy Rector define o ciclo assim, referindo-se somente a Karlson: «Ao fazer filmes no escalão económico mais baixo dos estúdios de Hollywood dos anos 30 e 40, com a Monogram Pictures e depois com a Allied Artists, Phil Karlson redescobre os chamados Great American Outdoor Film, numa certa linhagem com D.W. Griffith, Allan Dwan, Francis Ford e William S. Hart, filmando em locais reais e com um público rural em mente...» 

Para começar, fixemo-nos nesta jóia preciosa de 1947, que só precisa de ser mais vista para ser considerada um dos grandes filmes da história do cinema americano. 

A história: Charley Eagle, um nativo americano, adota um rapaz chinês logo depois dos brancos matarem o seu pai. Chegados ao rancho de Charley e da sua mulher, formam uma família. Pai e filho criam um cavalo, que se volve um grande cavalo de corrida, e a princípio são enganados pelos brancos. É então descoberto petróleo nas terras de Charley. Ele vende-as, fica aleijado num acidente industrial, fica rico e odeia ser rico. O rapaz chinês torna-se jóquei para que possam correr independentes. A partir daí, buscam uma redenção superior. 

Andy deixa-nos muitas dicas que permitem iluminar este filme tão simples e cristalino, abrindo ao mesmo tempo para toda uma complexidade e riqueza inomináveis: 
 
  • Trata-se de uma obra do chamado período progressista de Karlson, que inclui outros títulos complicados de ver, como The Big Cat ou Louisiana; o aspecto multicultural é sublime e em acordo com a vida; toda a história que acompanhamos é baseada no famoso cavalo de corridas dos anos 1920, chamado Black Gold e criado por Rosa M. Hoots, um membro da nação Osage, essa mesma que se tornou multimilionária depois da descoberta de petróleo nas suas terras, e que é a mesma nação (com a mesma história central do petróleo) do último filme de Martin Scorsese, Assassinos Da Lua Das Flores; Anthony Quinn, que por causa do petróleo fica aleijado, tem uma atuação lenta, com um falar estranho, «afetando um inglês estranho»; e Katherine DeMille, que faz de esposa deste, filha adotada de Cecil B. DeMille, entrega-nos uma atuação contida, como se estivesse a carregar a dor de uma vida, neste filme de órfãos errantes; e num período e num contexto em que os cineastas aceitavam muitos trabalho por dinheiro, indiferentes, Black Gold foi para Karlson um dos seus filmes mais pessoais, tendo filmado pelas diversas estações do ano, com interrupções para fazer outros seis filmes!, captando assim a mudança da paisagem e da natureza. E termina com um detalhe grandioso e fulcral: «um dos únicos filmes com crédito para um "Consultor Índio Americano": Nippo T. Strongheart.» 


Estamos perante um conto de bons sentimentos, onde se aprende muitas coisas, nomeadamente coisas práticas, e também a ver as coisas e os acontecimentos de diferentes perspetivas, de um ponto de vista outro que não o moldado pela cultura nefasta, apressada e argentária. Entre infinitas maravilhas, destaco: 

  • Charley Eagle, um ser selvagem, um puro índio, equiparável aos possantes cavalos e às forças intraváveis e intratáveis da natureza, desculpa-se assim à sua esposa, Sarah Eagle, por muitas vezes abandonar o lar comum: «as paredes encolhem e sinto necessidade das estrelas e do vento da noite.» 
  • Um ser puro que viu a família dizimada e que mesmo assim esqueceu a raiva, expurgou-a do seu coração; e que acredita que o seu país, os Estados Unidos da América, é grande e que nele podem viver brancos, índios, chineses... 
  • O mundo idílico no rancho que nos é apresentado logo após o índio Charley conhecer o chinês Davey, que também acabou de perder o pai e logo toda a família nuclear: os dois agacham-se para beber água puríssima de um charco luminoso, a esposa adivinha o regresso do marido muito tempo depois dele ter partido e tem a comida ao lume, os dois adultos percebem que adotaram um filho, e a mulher, na anuição final e uterina, confirma a decisão ao universo. 
  • Seguidamente o Pai ensina o Filho a perseguir o rasto dos animais e a reconhecê-los, faz-lhe saber da diferença entre formigas de montanha e formigas do pátio da escola, retirando uma moral primeira, mostra-lhe como funciona o exato relógio do sol, e transmite-lhe a importância fundadora das plantas; ensina-o ainda que o medo deve ser sempre olhado de frente. 
  • E, no seguimento disto, mostra-lhe um grande e esquecido segredo: a terra onde incontáveis índios foram dizimados e enterrados, fazendo-lhe ver que não há que sentir tristeza, num espaço que é tão sagrado como uma igreja, uma catedral. 
  • Charley é um inocente, um selvagem inocente, como Nicholas Ray percebeu ao ver este filme, chamando-o depois para a sua “obra homónima” (The Savage Innocents), alguém que consegue transformar o mal e a sua potência nefasta em bem, como no caso da ameaça do petróleo ou das falcatruas dos apostadores de cavalos, que facilmente o enganam. 
  • O caso da escola, da educação, e os procedimentos: a professora é tão boa, tão tolerante, tão disponível, que vai buscar Davey a casa, convence-o da necessidade da educação, do convívio e da fraternidade; tão boa que ama o magnata do petróleo que vai furar a quinta idílica de Charley, e que tal como o amado acredita que o dinheiro pode ser bom para essa família; e assim Phil Karlson, o realizador, não julga ninguém. 
  • Nesse encontro em casa está presente um juiz tão severo como compreensivo, muito parecido com esse interpretado por Spencer Tracy em Young America de Frank Borzage; e em Black Gold conheceremos imensos seres Borzageanos; juiz esse que esquece burocracias e constitui uma família que já o era e será para sempre, percebendo a total harmonia entre eles e o mundo harmónico em que se encontra. 
  • Inevitavelmente, o mal: o petróleo que suja as plantas selvagens e livres e as janelas do lar, e que só se torna aceitável para Charley por que lhe permitirá comprar outro cavalo, um puro-sangue, que permitirá perpetuar a têmpera de Black Hope. 
  • A nascença do potro redentor que permitirá a Charley vencer a “corrida das corridas”, não para contentamento seu, mas para redimir todos os nativos; e, nessa cena transcendente, com a morte de Hope, nasce e renasce outra esperança, Black Gold, e novamente o mal é transformado em bem. 
  • Cena que rima com a morte de Charley, no vislumbre e no sentimento da continuidade de todas as coisas, de uma inevitabilidade natural que tem de ser vista positivamente, em sereno estado de graça: outra morte sacra, enleada por cânticos além-túmulo, de todos os índios que passaram por aquela terra e dos que possivelmente passarão; morte vivida entre estrelas e ventos da noite. 
  • O efeito dos nomes dos cavalos em consonância com os acontecimentos, e em relação ao poder e ao mundo do dinheiro causado pelo petróleo: a esperança que é negra (Black Hope) e o ouro que é negro (Black Gold), e como tudo isso se interlaça, cruza, liga, religa, desfaz e refaz com os sucedidos e o significativo. Novamente, o nome a perdoar ao adjetivo, a qualidade a desculpar o facto, a reversibilidade que se gera conforme o olhar. Uma pedagogia da dialética.
  • A comicidade da grande festa em que Charley, a mulher e o filho são reis. A cumplicidade com a empregada indígena, os cinquenta anos que um homem tem de esperar para se habituar a sapatos de luxo, a vergonha e a dignidade tanto dos donos da casa como dos outrora rivais. 
  • A corrida final, em que de uma só vez se redime as muitas mortes dos protagonistas, dos seus povos, das diferentes raças, crenças, credos, unificando-se tudo na nação dos sentimentos elevados; e onde outra pessoa extraordinariamente boa, o treinador dos cavalos e amigo primário de Charley, diz ao miúdo que quando o animal estiver a ficar com medo, só tem de falar com ele, ternamente, com confiança. 
  • «Quero agradecer a todos os que estão aqui... ...e àquele que aqui não está.», é o discurso da esposa depois da vitória. Um mundo perfeito.



quarta-feira, 20 de julho de 2016

Hell to Eternity (1960) de Phil Karlson



por José Oliveira

Vale sempre recordar a doutrina de Phil Karlson, homem do lixo dos passeios comuns e de muitos palcos baixos e altos, cineasta, artilheiro da chamada série-b do cinema clássico americano, fascinante e atormentado artesão: veracidade, natureza, osso, implicação. Trabalhando com nada ou com milhões, o que lhe interessou foi a forma certa a cada caso, a cada enquadramento ou respirar, sempre a rasgar normas, sempre novo. Fez os mais acossados noirs, acompanhado e protegido pela sombra dura e magnética de John Payne, como 99 River Street; filmes de género variado, tipo assalto: 5 Against the House, obliqua aventura pelos mecanismos dos anseios e dos brilhos sem moral ou com ela dinamitada; Westerns não pretos e brancos: Gunman's Walk é um dos becos da luta entre o incondicional e o imperdoável; ou as vinganças finais já nos anos 70 (o companheiro já é o arcanjo e mostrengo Joe Don Baker, ainda vivo, façam retrospectivas!) que puseram em sentido as revoluções e as ruínas da nova Hollywood, como que apelando aos velhos escritos e ao inaceitável. E foi, como tinha de ir, compulsão sem escape, à guerra. 

Na abertura de Hell to Eternity, o paraíso, crianças à bulha no pátio da escola, nostalgia. Paraíso que configura e adivinha a vida adulta – americanos no seu país contra um mexicano nascido americano que é amigo de Japoneses. A situação evidentemente que se resolve, as tragédias “normais” batem à porta ou estalam os dedos - Guy Gabaldon (Jeffrey Hunter como o aço de Payne), o herói que iremos seguir fica com a casa vazia, sem pai e com a mãe às portas da morte – e outra girândola do destino voa sem lógica alguma: o miúdo perdido é recebido de braços abertos pela família japonesa e logo se torna um deles, aprendendo a língua alheia e ensinando a sua. É a felicidade clássica, essa ordem arrancada à dor que se impõe e mantém, mesmo no aparentemente extraordinário. No diálogo fundamental desta odisseia, Mama-San, estátua vigilante e criadora, transmite ao filho adoptado que o cimento das gerações é o mais alto a alcançar. Os velhos devem cimentar os novos para depois os novos cimentarem os seus, e deixando-o boquiaberto ainda lhe abre os olhos para o ilógico natural da humanidade – fazendo-o ver a guerra como mais uma coisa de entre tudo o que a nossa raça criou, sem espanto. Diálogo que abraça com a história ancestral do amor e da falta dele que uns reconhecem e outros não. Todas as coisas se vão transformando no seu semelhante, serenamente, todas as coisas que são coisas. 

América contra Japão ou vice-versa, Pearl Harbor. A mão da tragédia a virar-se, os velhos acomodados e anafados a matarem os novos e os esqueléticos, uma relação de corpo-a-corpo ou de amor entre um soldado sem terra nem língua esventrada pelos campos de batalha esmifrados a grão descarnado de película de cinema e pela montagem mais do que dialéctica, corpos a caírem ao deus-dará, sem rosto ou fala, e uma das panorâmicas (fundida a ferro escaldante com o bailado Wagneriano de Apocalipse Now) mais cruéis e lúcidas de todo o cinema: vejam bem o que os irmãos ou simplesmente o que homens fazem uns aos outros, carne da mesma carne, sem irmos à alma, estátuas petrificadas no mesmo solo dos cadáveres em estertor, sangrados, logo descansados. Todos iguais no lado de lá e no lado de cá. Para o drama perene se rasgar e complexificar ainda mais: o soldado Gabaldon que ama os japoneses na sua casa a ter de enganar e matar os mesmos Japoneses na ilha do diabo, para os salvar a seguir, lhes indicar o caminho e ver o suicídio em prática fatal. Os americanos que têm um japonês no seu grupo a dependerem dele e do seu suposto heroísmo. Na guerra é matar ou morrer, diz um deles, contando com instinto e contradição, sabendo que aquele jogo indefinível jamais os irá definir. 

Sem comentários. Gabaldon a ler uma carta da sua mamã, palavras impressas que no inferno metem a tal ordem de cepa na ordem do dia. Tudo continua e há missões como valores que resistem a todos os números e actos oficiosos. No crepúsculo o dito americano ou mexicano amado e criado por japoneses pega numa criança pelos braços para de certeza a oferecer a Mama-San e para cimentar os alicerces genuinamente humanos como devem ser cimentados. Hell to Eternity é um petardo universal e aglutinador, onde perfeições cavam pelas vias do inferno, aparecendo japoneses estúpidos como americanos estúpidos, americanos mais do que perfeitos e japoneses como esses. Em Hell to Eternity pode-se amar e detestar sem lei, credo ou religião a servir de cobarde caução, conforme justiças e paixões, ordens e atalhos superiores, animalidade e beleza, tal como na bulha infantil ou na argamassa da composição final. Catártica e silenciosa oração para o purgatório da violência aleatória dos campos de batalha sem campo de hoje.