Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

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quarta-feira, abril 27, 2011

ATO DE CONTRIÇÃO (memória, em três gavetas)

Salvador Dalí - 1936


























1 (Vodu)

De há muito que vem sendo entretecida
essa urdidura, pespontada em vincos sensíveis,
lembranças,  gritos remotos, palavras-farpas.

Sim, existem, palavras-farpas,
feito alfinetes acutíssimos,
(injunções, diriam os médicos da alma)
que marcam dentro, desde a mais tenra infância;


2 (Sulcos)

De há muito que entrevejo essas ranhuras,
dolorosas dobraduras, na tênue
película em que se (a)gravam
os danos d'alma.

Existir é como a terra sulcada,
a eira,
que  (con)sente,
os rasgos do arado,
resolvendo em adubo, os detritos,
curando a aridez do solo.
Dessa terra lavrada desabrocham grãos.
Fruteiras também brotam do monturo.


3 (Contrição)

Claro que já pensei em amarrar rojões nos rabos dos gatos.
em atirar pedras nos santos,
por vezes, pensei até em morrer de tanta tristeza, sem saber por quê.

Não morri.
Mas, trancado em meu quarto, tinha surtos poéticos.

(Naqueles dias aziagos, lembro de que havia uma capela,
onde se ia recitar um incompreensível Ato de Contrição.
Percebia-se alguma poesia no olhar das catequistas.)

Não morri, tenho quase certeza disso.
E estou quase sempre mentalmente sadio.
Mas quando em surto,
cometo poemas inúteis e sem sentido, como este,
que mais parece uma afiada faca japonesa.





Eurico,
com a ressalva de que aqui fala um eu-lírico, rsrs


Fonte da imagem:
http://rita.com.sapo.pt/imagens/girafa_em_chamas.jpg

quarta-feira, março 23, 2011

TAIPA


















Minh'alma
uma velha casa de taipa encardida
num perdido rincão
esses sertões...
a minha alma deserta e milenária.


Paredes rubras, a minh’alma,
barro curtindo ao sol
e uns oleiros ébrios à sombra do poente...


Ó minha alma, soçobro!
O balido dos rebanhos de cabras nos terreiros
e eu, ainda sóbrio.
A minh’alma sedenta, sem Deus.


E te ausculto, minh'alma
E te oiço, minh'alma
de alhures, te miro
na pátina de nossas construções exteriores...
os dedos demiurgos na lama avermelhada
essa argila descorada,
a minh’alma de taipa

Um oleiro ébrio brinda ainda,
nos debruns da tarde,
a casa erguida com as próprias mãos: 
A Deus!

Há Deus?
Minh'alma esboroa-se...
Frágil e deserta.
Adeus.



Fonte da imagem:
http://fatosefotosdacaatinga.blogspot.com/2010/08/seca-e-os-animais-na-caatinga_08.html

domingo, dezembro 12, 2010

NOITES DE PAZ (presépio interior)




















É quase Natal.
Vou fugindo por essa estrada sertaneja, feito rês desgarrada.
As alpercatas ressecadas
pisam pedregulhos,
os santos pedregulhos desse sertão profundo.
Mas e o Oriente?
Pra que lado fica?

Sei que nada é assim tão fácil de crer...
Há um centro de convergência dos sentidos,
das significações dessa existencia.
Isso que Adélia Prado chama de Deus.
Isso: essa experiencia poético-pensante do Ser.
Isso me entusiasma.
Logo, o que não me entusiasma, não é Deus...

Num radinho de pilhas, um homem
anuncia, com voz bela e empostada
:
"As vendas devem aumentar de 12 a 13%,
em relação ao ano passado.
A economia cresceu e o povo está feliz."

Eu não estou feliz.
Nem sei porque.
Minhas emoções estão impermeabilizadas.
Nenhum desses produtos me agrada.
Sou o 0% do consumo.
Sou o nada.

E por isso mesmo tomei o rumo dessa estrada interior.
Busco algo instintivo, algo sagrado em mim,
um religare introjetado em um gene qualquer.
O tal grão de mostarda.
A fé.

Mesmo que seja a fanática fé dos habitantes do arraial de Canudos,
ou dos que davam suas crianças em sacrifício, na Pedra Bonita.
A Fé.
Deve habitar em algum lugar psíquico.
Mas, sem essas luzes piscando.
Sem essa saturação de cores.
Sem esses monótonos clichês.

Fechar os olhos.
Retornar à estrada empoeirada.
Quem sabe pousar numa estrebaria.
Deitar entre a forragem de palmas, de mandacarus.
E achar ali um místico presépio,
um centro de irradiação de Deus.
Um delírio. Um desdobramento.
Algo menos ridículo que os feéricos presépios , nos centros de compras.

Por quem morreu o beato Antonio Vicente?
Por quem sangraram as mãos de Francisco Bernadoni?
Pela fé, pela loucura, por nada?
Há um centro de convergencia das significações do ser,
disse Adélia Prado.
Dolorido, difícil de achar, mas, verdadeiro.

Guardo-o aqui,
em meu ser tão profundo,
num aboio distante,
na noite que cai,
no zurrar de um jumento,
e no chocalho dos bois.

Tenho aqui uma manjedoura verdadeira,
onde comem as cabritas e as ovelhas,
e em que acredito,
vejo e apalpo como o bom Tomé.
Ouço-as até ruminar e balir.

Seria esse meu centro de sentido?
O meu nervo do divino?

Estaria aqui, também escondido, o Menino-deus,
com pavor dos fogos de artifício
e fugindo daquele obeso senhor de agasalho vermelho,
que sempre lhe rouba o dia natalício?

Não sei.
Sei que eu estou fugindo.
E aqui já é quase Natal...
Silencioso natal das solidões ancestrais.
Nos sertões, nas estepes, nos desertos há noites de paz...




Fonte da imagem:
Magos e Estrela

quinta-feira, março 19, 2009

Cais da Lingüeta (autopsicografia)



















Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz.
Se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso.

Mt 6:22,23



Revejo, à flor das águas, em rota dolorosa e fronteiriça,
Naufrágios
E os destroços submersos de mim.

Braçadas, diz-me a Razão.
Braçadas!
O mar é alto.
E a alma é apenas perspectiva.

Volto os olhos, e contemplo o precipício.
Pélago.
Ó Tenebroso Mar que jaz em mim!


Ide, frágil nau!

(Id):
Homem sem bússola.
Um escaler à deriva e sem chinelos ao pé do leito.


Não há pessoa e o rio que vejo
Também não é o Tejo.

Mas o que resta aqui de tudo o que já fui:
Embarcações/embarcadiços;
Lares/velas triangulares;
Lábios/astrolábios;
A goga/a sinagoga.

O antigo Cais da Lingüeta.

Tudo me faz pejo.
E o rio que vejo, deveras, não é o Tejo.