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Saturday, November 17, 2012

incidentais #9 -- demasiado bom para ficar esquecido

Do «Pórtico» original de A Selva, datado de Fevereiro de 1930

*Parto-o em três: o primeiro fragmento será a reflexão sobre o efeito que a vivência na Amazónia (1911-1914) teve em si, fazendo jus a todo o romance.

*«É bem certo que conduzimos ao longo da vida muitos cadáveres de nós próprios.» -- assim se inicia este preâmbulo, remetendo ora para o pavor da criança afastada da aldeia natal e desterrada naquela brenha, ora para os traumas persistentes no agora escritor, que ali chegou menino e se fez homem antes de a idade e os documentos lhe certificarem a adultez: «A minha vida tem andado cheia dêste pesadelo. Esqueço-me de mim, mas não me esqueço da selva. Dominou-me com o seu mistério e com a sua soberania; não a evoco sem um estremecimento de pavor. Cá a tenho, cá a tenho a romper o optimismo com que procuro cobrir, para menor sofrimento, o pessimismo e a morbidez que ela me deu.»

*Uma explicação possível para a eliminação deste trecho, demasiado bom para ser esquecido: a vontade de afastar o mais possível uma conotação autobiográfica.

*Elejo um segundo fragmento, que grosso modo persiste até hoje: «Eu devia êste livro a essa Amazonia longínqua e enigmática [...]», evocando em seguida os «anónimos» cearenses e maranhenses, os retirantes nordestinos que saíam em desespero da sua terra pobre e parca para um território desumano e desmesurado.

*Um último trecho, também retirado posteriormente: uma parte é transferida para o prefácio da 4.ª edição de Emigrantes; a outra alude à polémica que este romance já suscitara nos meios nativistas brasileiros. Castro espera que o mal-entendido se houvesse desvanecido: «As gentes do Ceará e do Maranhão, que trocam a sua terra pela Amazonia, não são menos desgraçadas que os nossos camponeses, que trocam Portugal pelo Brasil.»

* Enganara-se: A Selva suscitaria ainda mais a fúria dos nacionalistas de vistas estreitas e prosápia incontinente, dos verde-amarelistas cretinos, como, na ocasião, os qualificou José Lins do Rego.

Thursday, October 11, 2012

castrianas - "El horror es civilizado, y la belleza, natural.": «A Selva», segundo R. Cansinos Assens

«Esqueço-me de mim, mas não me esqueço da selva», escreveu Ferreira de Castro na 1.ª edição do seu romance, frase que  o escritor, crítico e erudito espanhol Rafael Cansinos Assens -- que Jorge Luis Borges considerou seu mestre -- destacou em La Libertad, de Madrid (1930), para salientar como a floresta amazónica, na qual Castro mergulhara com 11 anos, se constituíra como parte integrante da sua personalidade.
Entre outros aspectos, analisa o gesto apocalíptico e final do negro Tiago (que o articulista compara ao Macambira de O Rei Negro, de Coelho Neto (1914): para Cansinos, o antigo escravo configura uma némesis, instrumento de vingança com intuito justiceiro: «Su reacción vindicativa los comprende a todos en su agresividad; es personal y solitaria, aunque asuma incidentalmente un sentido social y pueda parecer el desquite que por su mano se toma sobre el común expoliador esa casta inmensa de explotados que abarca hombres de todas razas y colores.»
Tiago está, portanto, distante de Alberto, cuja tomada de consciência da desumanidade, da iniquidade com que são tratados os seringueiros, leva a uma alteração de ponto de vista ideológico, em que a sociedade deixa de se justificar na sua arrumação classista e hierárquica, inconsistente com a dignidade intrínseca de cada homem e de todos os homens. El horror es civilizado, y la belleza, natural. -- foi a forma lapidar como Rafael Cansino Assens se referiu à monstruosidade concentracionária dos seringais.
No "Paraíso" (a ironia...) que Ferreira de Castro nos retrata, e em todos os outros, os homens não estão só manietados pelas dívidas contraídas, como se reduzem eles próprios à desumanização quando, pela quase inexistência de mulheres, se permitem violar uma criança, ou, animalizando-se recorrem a práticas de zoofilia. Os castigos corporais infligidos aos seringueiros fugitivos (sem haverem liquidado a dívida que tinham para com o dono do seringal), capturados pelos sicários de Juca Tristão, desencadeiam o gesto de Tiago -- a eliminação do opressor pelo fogo. Recurso que R. Cansinos Assens vê não apenas como um desenlace lógico da narrativa, como uma própria exigência estética dela: «Etica y Estética van más unidas de lo que se cree.»
Castro tinha uma relação próxima com muitos escritores espanhóis, em especial na década de 1920 (um aspecto por historiar). Com Cansinos ela foi intensa do ponto de vista espistolar, enviando-se mutuamente os livros, mais espaçada no pós-guerra (os espólios de um e de outro poderão testemunhá-lo com maior precisão). A forma como o escritor espanhol, inicia esta importante crítica no jornal madrileno* denota uma proximidade mais além da simples relação literária e epistolar: «Mientras Ferreira de Castro pasea por las Azores su neurosis litteraria y el pabéllon de «O Século», el gran periódico que le tiene por su insustituible cronista, nos llega de Oporto esta novela suya, «A Selva», que se inscribe en el ciclo iniciado por «Emigrantes» y que puede considerar-se auspiciado por una alta intención social.»

* coligida por Jaime Brasil, Ferreira de Castro e a Sua Obra, Porto, Livraria Civilização, 1931.

Sunday, April 08, 2012

Três escritores em tempo de catástrofe: Castro, Zweig e Eliade (4)



Escritor que se fez a si próprio, foi no Brasil que Ferreira de Castro se auto-revelou, no meio adverso de um seringal da Amazónia, entre 1911 e 1914. Será, contudo, em Belém, capital do estado paraense, que vivia ainda sob os efeitos da ressaca de uma rubber-rush -- onde permaneceu até 1919, ano do regresso a Portugal --, que o jovem literato, entretanto trabalhando na imprensa local, editará os seus dois livros iniciais (Criminoso por Ambição e Alma Lusitana, ambos de 1916). Na Biblioteca Pública da cidade, bem fornecida de literatura portuguesa e francesa, Castro tomará contacto, pela primeira vez, na maioria dos casos, com os grandes escritores das duas línguas (2), muitos dos quais permanecerão como referências sua. Falamos, naturalmente, de Zola (1840-1902), mas também de Balzac (1799-1854) e Victor Hugo (1802-1885) ou Camilo (825-1890) e Eça (1845-1900).



(2) Ver Bernard Emery, L'Humanisme Luso-Tropical selon José Maria Ferreira de Castro, Grenoble, Ellug, 1992, pp. 120-121; id., «Ferreira de Castro et la culture française», Miscelânea sobre José Maria Ferreira de Castro, Grenoble, Centre de Recherche et d'Études Lusophones et Intertropicales, 1994, pp. 53-65.


Boca do Inferno #3, Cascais, Câmara Municipal, 1998, pp. 92-93.
(também aqui)