Ele queria encomendar um ou até mesmo comprá-lo, mas o velhote da loja da esquina não estava disposto a vendê-lo. Era dele, desde o alvorecer até ao pôr-do-sol. Não havia maneira de fazê-lo compreender que os sonhos não estão sujeitos às leis da oferta e da procura. O velhote quis explicar-lhe que aquilo era o que ele tinha de realmente seu na vida...
A cadeira almofada, protótipo dos tronos modernos, aguenta o peso das banhas flácidas, enquanto ele passa os dias inventando que faz, numa simulação absurda da utilidade das suas funções. Ele não sabe escrever e socorre-se do computador, que se nega a compreendê-lo. As teclas são pressionadas com uma velocidade domingueira. Os ficheiros são guardados sem saber como ou onde. Quando precisa de ajuda,...
Ken Browne A estrada mal se vê. As luzes estão desanimadas. O carro avança pela estrada estreita. Chove devagarinho para que o pára-brisas possa ensaiar um vaivém vagaroso. As tuas palavras, vindas de longe, foram mais céleres e sucintas. Na cabeça, imagens em volúpia. No mapa das lembranças vivas, sobressaem as partilhas conjuntas. Havia tanta simplicidade nos nossos gestos, tanta beleza nas nossas...
Sois uns vendidosRenegais os princípios estruturantes com uma leviandade plasmadaNão vos interrogaisSó vos preocupais com as contrapartidas financeiras ou estatutáriasSubestimais a dignidade (a vossa e a dos outros)Quereis as palmadinhas nas costas e as mãos recheadasOrgulhais-vos dissoPreocupava-os tudo aquilo que não é essencial.Tentais passar a perna aos pouco entendidos, mas com dinheiro no bolso Levantar o rabo para ir ter com o entrevistado?...
Aquele último jantar, com risos forçados entre as garfadas de uma refeição rápida, obrigou-me a ver o quão injusto foi colocar um ponto final necessário para tudo ter algum sentido para ambos. Sei que te disse o que era duro de ouvir. Sem adequar o tom de voz, como se falasse naturalmente, rasguei a ferida aberta. Vi a dor estampada num rosto bonito....
Norberto Nunes Gosto do cheiro e do ar ultrapassado que a contemporaneidade lhe impregnou. São espaços, na maioria das vezes, exíguos e acolhedores. Em todas as frentes, há livros empilhados, numa ordem aparente. Gosto também dos recantos improváveis onde eles se escondem. Vivem ali todos, em comunhão pacífica, num silêncio que me apraz. Gosto do papel amarelado, do pó fino, das lombadas gastas,...
Alguém lava a loiça suja, numa cozinha próxima. Atravessam sons em fúria da parede ao lado. Estou deitada sobre a cama pequena. Tenho frio e preparo-me para uma árdua tarefa. Tenho que encaixotar mais uma desilusão, daquelas que já duram há demasiado tempo e insistem em se perpetuar. Já lhe aplicaram explicações científicas como “defraudar expectativas”, “desencontros pontuais”, etc. Meros eufemismos. Isto que...
Vicent Van Gogh Eles já se cansaram do amanhecer sucessivo e querem, tão-somente, esse anoitecer conjunto, tardio e vagaroso. Há nisso um pretexto subtil e inconfessado. Eles gostam de ir ver o pôr-do-sol, em passos cruzados e acertados. Vivem nessa paz discreta, de silêncios sossegados e palavras mansas. E é bom observá-los. No finar da luz de cada dia, eles continuam com os...
Está marcado, previamente, um encontro feliz. À mesa, flui uma conversa natural, rica, espontânea. Existe entre nós uma irmandade que exclui distâncias e mágoas idas. Gosto deste convívio como se estivesse em família. Ele nasce da cumplicidade de olhar para a vida e para os semelhantes pela mesma lupa. Ele dá-nos o gozo de estar aqui sem agenda para cumprir. Entre nós, há...
Cliff Smith Há dois ou três dias que a solidão voltou, essa antiga companheira de estrada, que sempre fez questão de ser uma constante fiel na minha vida. Não lhe escrevi cartas nem fiz telefonemas urgentes a meio da madrugada, ou quando as fraquezas não encontram esconderijo, a pedir que regressasse. Ela nunca me permitiu ser feliz e só na sua ausência percebi...