Pedro Besugo O sentido das coisas fica entre nós. No espaço que vai entre a intenção e o pós-concretização. O sentido das coisas deixa nós. No tempo que nasce do primeiro contacto àquele que será perene. O sentido das coisas vence, paulatinamente, a consciência entorpecida e esmorece, abruptamente, perante os dias pares. O sentido das coisas acontece de mansinho, num silêncio aconchegante. Sem ninguém perceber. ...
Hoje foi como se tivesse sido tarde de fim-de-semana. Houve leite sem nata, mas com chocolate e o lanche espalhado em cima da manta do escano. Como sempre, tu ficaste do lado esquerdo, quase entalado entre a parede branco sujo e a chaminé. Mas hoje não fez frio e não precisaste de mexer no lume. “O que queres?”, perguntei-te, conhecendo já a resposta....
Já passaram uns meses desde o começo dessa viagem sem mapa ou GPS. À frente, todo um caminho para percorrer, à velocidade do desejo, da energia ou da hora do dia. Pelo retrovisor chega a imagem daquilo que não levamos na mala. Seguimos pela mesma estrada, mas creio que em sentido contrário ou, pelo menos, com coordenadas completamente diferentes. Não penso nos lugares...
De manhã, nunca tomo. Por hábito ou falta dele. Não lhe aprecio o aroma, a textura, se é servido curto ou cheio, em chávena escaldada ou com gelo. Basicamente, gosto dele como pretexto. A título dele, combinam-se encontros, marcam-se reuniões, travam-se contactos, aproximam-se pessoas. Gosto dele por ser a evocação desse costume do início de tarde. Na altura, era o passaporte para a...
Ontem, ela não sabia que seria a última vez. Terá refilado por causa de uns chinelos dispersos, escondidos sorrateiramente pelo mais pequeno. Terá acordado, à pressa, despejado uns cereais nas tigelas e exigido celeridade na ingestão. Terá pegado neles, um ao colo, o outro pela mão. Pela última vez, sem saber. Ontem, ela nem desconfiava que não voltaria a ver o sol no...
É difícil travar um diálogo quando o nosso interlocutor se mostra tão reticente, tão distante e tão desinteressado. Mendigar pela sua atenção integral é tarefa árdua. É quase como um trabalho arqueológico, das pistas aos achados. Quando, não raras vezes, acaba infrutífero. Depois, há os que falam de mais. E demasiado alto. O ruído que causam provoca-me um desconforto mais do que auditivo,...
Os corredores à mercê da penumbra. As portas cerradas ou a roçar a soleira. Os corpos estendidos, em repouso aquecido pelos cobertores. Nos móveis, fotografias de uma vida, desde os tempos de meninice (nascimento, baptizado, aniversários) e a terminar nos casamentos. Subitamente, o telefone toca. Estridente e intrusivo. Um despertar em sobressalto. Os sentidos em alerta. Do outro lado, uma voz a pedir...
Ela queria sempre perceber a raiz das intenções. Depois, bastava-lhe o que surgia com espontaneidade. Sem data marcada e sem circunstâncias planeadas. A outra nunca se questionava sobre aquilo que era óbvio para os seus olhos. Não fantasiava. Achava que tudo o que acontecia era opaco, como as meias de Inverno. Ela queria mergulhar conscientemente nas coisas emotivas para, depois, vivê-las desenfreadamente. Sem...
Donald Zolan Este cheiro que fica depois da chuva cair na estrada deixa-me a lembrança do teu riso quando ecoava nessa praça das pombas. Espenicavam os paralelos desaustinadas. Sem tino nem norte, desejávamos poder voar como elas. Naquele tempo, havia brio de sermos diferentes das mentes amorfas que nos rodeavam. Questionávamos muito. Sorríamos demasiado, mesmo nas manhãs nebulosas. Cultivávamos essa humilde ingenuidade. Hoje, haverá algum...
Christina Kerr Compreendo-te, bom amigo. Os teus olhos, incrédulos, antecipam-se às palavras de indignação indomável. Estou do mesmo lado da barricada: daqueles que acreditam afincadamente que ainda não é o momento de entregar as armas e assinar a rendição. Para eles, basta tão pouco. Sabemo-lo e condenamo-lo. Querem só os dias encaixados numa rotina que os poupe a uma panóplia de inquietações e...