Mostrar mensagens com a etiqueta Risco. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Risco. Mostrar todas as mensagens

sábado, março 06, 2010

O aterro e o dinheiro no bolso


Leio hoje no Público (de onde retirei a imagem do post) que o aterro do Caldeirão rebentou e está a afectar a ribeira do Vascão.
Ou me engano muito ou cruzei-me com este aterro lá para 1996 (provavelmente) ou 1997 (possivelmente).
O meu contacto foi relativamente breve mas foi uma das primeiras vezes que tive a noção clara da forma de trabalhar de José Sócrates, sobre a qual escrevi aqui no auge da expressão pública do processo Freeport.
Nesse post digo que "A Sócrates cabe a responsabilidade de um método de actuação voluntarista, determinado por objectivos pré-definidos mas que desconsidera a forma da decisão e a sua correcção processual. ... que cria um clima favorável à decisão ineficiente a prazo e à corrupção imediata, embora permita decisões rápidas e focadas nos objectivos"
Na altura em que me cruzei com o processo deste aterro eu era vice-presidente do ICNB e chegou um pedido de parecer à localização deste aterro, numa área que estaria para integrar a rede Natura, mas que formalmente ainda não estava designada como sítio. Estaria o processo em discussão pública e não estava transposta a directiva Habitats (reconstituindo o processo de cabeça não garanto a correcção de todos os pormenores, como datas e coisas que tal).
Entre papéis e telefonemas (portanto, não sei quanto disto está registado em documentos mas pode ler-se aqui o que penso sobre a informalidade dos processos de decisão) penso que o ICNB referiu a legislação comunitária, referiu as obrigações dos estados europeus para com os sítios potenciais rede Natura e disse que só emitia parecer no quadro de um processo de avaliação de incidências ambientais.
Mas formalmente, de acordo com o direito interno, o parecer do ICNB não era ainda obrigatório.
A actual Ministra do Ambiente (Dulce Pássaro) e a actual presidentde da ARH do Algarve (Valentina Calixto) decidiram, juntamente com o seu então secretário de Estado de tutela (José Sócrates), que o direito comunitário era uma bagatela que não deveria interferir no calendário político definido e prescindiram do parecer do ICN e da respectiva análise de incidências ambientais do aterro, a troco de umas promessas às populações mais próximas do aterro. E avançaram.
A opção pelo calendário político em detrimento da robustez do processo de decisão (a análise de incidências ambientais teria permitido discutir mais profundamente o projecto e as soluções para a sua execução) tem consequências hoje à vista, mais de dez anos passados.
Não, não é a chuva ou o azar ou o imponderável que provocam a situação actual, é a forma de decisão escolhida.
O sobrecusto que agora vamos ter de suportar, a ineficiência das decisões a prazo, os riscos patrimoniais, quer para os meus impostos, quer para os bens difusos, tudo isso não são obras do acaso, são o resultado natural (embora nem sempre verificado, felizmente) de um modelo de decisão pública, executado por gente irresponsável que nunca vai ser obrigada a repôr os custos adicionais que todos teremos de suportar com esta situação, embora em teoria seja possível ao Estado apurar responsabilidades e exigir aos responsáveis pelas decisões que assumam os pagamentos em que incorre o Estado.
Simplesmente um dos responsáveis é hoje primeiro ministro, outra é ministra do ambiente e outra a presidente do organismo de tutela da ribeira que está a ser afectada.
Já foi há muito tempo que escrevi isto, mas volto a transcrever, linkando para o post completo que então escrevi sobre o chamado interesse nacional subjacente aos projectos PIN:
E não se pense que é só pela delapidação do nosso património ambiental, é mesmo uma questão de competitividade e de eficiência no uso dos recursos, isto é, é mesmo uma questão de dinheiro no bolso.
henrique pereira dos santos

quarta-feira, janeiro 06, 2010

Como agir perante incerteza?

Aqui está um artigo clarividente sobre riscos e como actuar perante a incerteza. Subscrevo o artigo na sua quase totalidade. Apenas acrescentaria dois pontos. Primeiro que sem existência de cenários e projecções, não seria possível mobilizar agentes económicos e políticos para empreender as reformas necessárias para a redução da vulnerabilidade social face à instabilidade climática (seja ela qual for). Por outras palavras: sem 4 relatórios de síntese, promovidos pelo IPCC, de excelente qualidade, sobre o clima do planeta, não teriamos chegado a Copenhaga onde, apesar das contradições inerentes a um processo com estas características, se congregaram mais chefes de Estado na mesma cidade do que em qualquer ocasião da História recente.

Segundo, ainda que concorde que deve ser dada maior enfase na implementação de medidas de adaptação (a conclusão do artigo mas também do IV relatório do IPCC), também é verdade que se medidas de mitigação (das alterações climáticas) não forem tomadas, o custo social e económico da adaptação será, se as projecções estiverem (mesmo que qualitativamente) correctas, incomensuravelmente mais elevado. Portanto, faz sentido actuar em ambas as direcções.

Mas é bom não perder de vista que as projecções - com os seus graus variáveis de incerteza - devem servir para identificar tendências e vulnerabilidades que, por sua vez, deveriam orientar decisões proactivas de redução do risco. A tentação de interpretar as projecções como se providenciassem previsões precisas sobre um futuro necessariamente incerto (ver crítica aqui) deve ser evitada na mesma medida como se deve evitar que o diletantismo intelectual e ignorância prevaleçam sobre a racionalidade inerente à utilização do melhor conhecimento científico actual para auxiliar o processo de decisão.

Science should focus more on understanding the present and less on predicting the future, argues Daniel Sarewitz.

Artigo completo aqui.

(...) In February 1997, the weather service predicted that the Red River would reach a record flood crest of 15 metres in Grand Forks, North Dakota. The town prepared for that height, but in April the crest passed 16 metres, and the result was US$1.5 billion in flood damage. The prediction was within the historical range of forecast accuracy (R. A. Pielke Jr Appl. Behav. Sci. Rev. 7, 83–101; 1999), but information providers, communicators and users lacked the experience and judgement to respond appropriately to the prediction.

In the wake of the disaster, residents were willing to abandon low-lying areas of town as part of a new $409-million flood-control system for floods of up to 19 metres. What had they learned from their experience? Not to depend on predictions. And when high floods struck again last March, the town stayed dry.

False belief

Predictions are not instructions that people simply follow to make better decisions. They are pieces of an intricate puzzle that may sometimes contribute to improved decisions. For complex, long-term problems such as climate change or nuclear-waste disposal, the accuracy of predictions is often unknowable, uncertainties are difficult to characterize and people commonly disagree about the outcomes they desire and the means to achieve them. For such problems, the belief that improved scientific predictions will compel appropriate behaviour and lead to desired outcomes is false.

This conclusion flies in the face of the instincts and interests of scientists and decision-makers. Scientists are attracted to the intellectual challenge of making predictions, and recognize that promising to provide predictions appeals to the interests of the policy-makers who fund them. And decision-makers would prefer to hand over responsibility for the future to scientists — who would also take the blame when wrong.

For example, regional climate predictions are now being offered by scientists as a next logical step in applying science to the global-warming problem. As explained on the website of the Climate Variability and Predictability project of the World Climate Research Programme: "The increased confidence in attribution of global scale climate change to human induced greenhouse emissions, and the expectation that such changes will increase in future, has led to an increased demand in predictions of regional climate change to guide adaptation." The seductive but dangerous logic is driven by the confluence of the "increased demand" of decision-makers, and the high-prestige science of climate modellers who believe that society needs more of what they've been doing anyway (see Nature 453, 268–269; 2008). But this logic confuses the distinct tasks of bringing a problem to public attention and figuring out how to address the societal conditions that determine the consequences of the problem.

Hurricane Katrina in 2005 provides cautionary insight. The likelihood of such a storm had been appreciated for decades and, in the days leading up to the disaster, the storm's path was accurately predicted. But New Orleans's fate had long been sealed by a lethal combination of socioeconomic and racial inequity, regional environmental degradation, unwise development patterns and engineering failure. Science had delivered ever more knowledge about regional climate behaviour and ever more accurate hurricane-track predictions, but this was not what the city needed to avoid catastrophe.

In contrast, from a societal perspective, perhaps the best thing that ever happened in the field of earthquake research was the recognition that earthquake prediction was likely to be impossible. In recent decades, the priorities of the US Geological Survey's earthquake-hazard programme have moved away from prediction and towards the assessment, communication and reduction of vulnerabilities. This evolution has demanded closer collaboration between scientists and diverse regional and state decision-makers, to provide information that can help improve construction practices, land-use decisions, disaster-response plans and public awareness.

If wise decisions depended on accurate predictions, then in most areas of human endeavour wise decisions would be impossible. Indeed, predictions may even be an impediment to wisdom. They can narrow the view of the future, drawing attention to some conditions, events and timescales at the expense of others, thereby narrowing response options and flexibility as well.

This difficulty is on spectacular yet unacknowledged display in the climate-change arena. The recently concluded United Nations climate-change conference shows that the world's attention is focused on global warming, but also that clear progress towards addressing the problem is incredibly difficult to achieve. A central obstacle is that predictions of long-term doom have created a politics that demands immense costs to be borne in the near term, in return for highly uncertain benefits that accrue only in a dimly seen future.

Science could help untangle this politically impossible dilemma by moving away from its obsession with predicting the long-term future of the climate to focus instead on the many opportunities for reducing present vulnerabilities to a broad range of today's — and tomorrow's — climate impacts. Such a change in focus would promise benefits to society in the short term and thus help transform climate politics. Strange as it may seem, the right lessons for the future of climate science come not from the success in predicting thunderstorms, floods and hurricanes, but from the failure to predict earthquakes.

sábado, janeiro 02, 2010

O DDT, a malária e os adolescentes inconsequentes


A propósito das alterações climáticas, um comentador anónimo (ou se se preferir, um comentador que usa um pseudónimo) resolveu fazer um violento ataque a Rachel Carson e à irresponsabilidade dos ambientalistas, que acusa de criminosos.
O nível da argumentação e a violência do ataque merecem resposta, sobretudo porque pessoas bem intencionadas mas sem tempo para verificar o que se sabe sobre o assunto podem ficar seduzidas pela segurança das afirmações feitas, confundido preconceitos com factos.
"Objectivamente a interdição de uso do DDT matou +50 milhões de pessoas" diz-se, com absoluta segurança. (ver aqui a perfeita desmontagem desta estupidez)
Não sei qual é a fonte para esta afirmação tão taxativa, nem sei como se faz a contabilidade, sobretudo sabendo que o DDT foi proibido em muitos países mas continuou a ser usado em muitos outros, em especial naqueles onde a malária (ou paludismo) é endémica e ataca mais fortemente, até porque as restrições ao seu uso sempre incluíram excepções para o controlo de doenças.
Nem sei como se chega a conclusões destas sabendo que um dos problemas principais do uso de pesticidas como o DDT é a bioacumulação ao longo da cadeia trófica, que tem efeitos especialmente graves nos predadores, muitos deles predadores dos mosquitos veículos de malária.
Uma coisa é discutir seriamente qual é a utilidade do DDT no controlo da malária, discutir os custos e benefícios do seu uso apesar dos efeitos secundários, discutir os mecanismos alternativos de controlo da malária, discutir o desenvolvimento de resistências ao DDT nas populações de mosquitos e por aí fora (um link equilibrado para a discussão).
Outra coisa é agir como um adolescente inconsequente, esquecer os efeitos de longo prazo do DTT, considerar que é possível erradicar a malária matando todas as populações de mosquitos que lhe servem de veículo.
Esta ideia de interferir nas cadeias tróficas de forma drástica tem sido trágica e ao longo da história causou desastres ambientais de que resultaram milhões de mortes, como no mais que conhecido caso chinês com o controlo dos pássaros para aumentar as culturas, ou, em muito menor escala, na secagem das zonas húmidas, quer para as reconverter para a agricultura, quer exactamente para diminuir as sezões (outro dos nomes dados ao paludismo e malária).
Querer resolver problemas complexos, num mundo complexo, com ideias simples é muitas vezes desastroso.
Acusar de criminoso quem simplesmente se limita a pôr em cima da mesa as limitações dessas ideias simples, querendo levar essas pessoas a tribunal em vez de demonstrar onde estão erradas é infame e ultrapassa o direito à asneira de que todos somos detentores.
henrique pereira dos santos
Adenda: Deixei de responder ao comentarista que fez este ataque de baixo nível sobre o DDT quando percebi que as suas referências sobre as alterações climáticas eram risiveis, sendo o seu valor inversamente proporcional à arrogância das suas certezas e à agressividade face a quem se limita a pensar de forma diferente. Para se perceber melhor a indignação que me fez escrever este post aconselho a leitura integral do artigo da Wikipedia em inglês sobre o DDT, com dezenas de referências bibliográficas, discutindo equilibradamente a sua relação com o controlo da malária, bem como todo o processo que levou à proibição do seu uso na agricultura (e nunca foi banido no combate ao vector da malária, ao contrário do que foi afirmado). Este blog preza a liberdade de expressão e o contraditório, mas o que foi dito sobre Rachel Carson e o movimento ambientalista a propósito do DDT é de facto inaceitável, não por ser uma opinião divergente sobre o DDT mas por, à falta de factos, se usar uma mentira evidente com o único objectivo de atacar quem pensa de maneira diferente.

domingo, dezembro 13, 2009

Incerteza e política


A questão de fundo, de um ponto de vista político, é como gerir o risco associado às alterações climáticas mesmo aceitando que existem incertezas sobre as projecções oferecidas pelo IPCC. Se traduzirmos a incerteza em probabilidade e assumindo, por hipótese, que os cépticos estão correctos, estariamos perante um cenário de elevado impacte mas baixa probabilidade. Assumindo que damos igual crédito a cada um dos lados, teriamos elevado impacte e probabilidade intermedia. Na prática, a balança da evidência favorece claramente as projecções (e observações) disponíveis pelo que estamos perante um cenário de elevado impacte e alta probabilidade.

Mas deixemos as probabilidades de lado e pensemos nos custos de tomar uma decisão errada num contexto de alterações climáticas. Se os cépticos estiverem correctos e as alterações climáticas não forem mais do que variabilidade natural, em breve a tendência de aquecimento registada durante o século 20 seria revertida e entrariamos um ciclo de arrefecimento ou estabilização das temperaturas. As políticas que entretanto tivessem sido tomados, no sentido de "descarbonizar" a economia, teriam sido precipitadas mas não teriam sido erradas pois, mais tarde ou mais cedo, deveriam ter sido implementadas. Portanto, no pior dos cenários, o erro político teria consistido em gastar recursos que poderiam ter sido gastos noutras actividades mas que teriam ajudado a precipitar mudanças estruturais na economia que são praticamente inevitáveis. Em contraste, os custos sociais, económicos e políticos de nada fazer no caso das projecções disponíveis serem correctas são extremamente elevados. Por exemplo, o desaparecimento de nações insulares e o aumento de aridez em zonas que já de si são áridas provocariam migrações em massa e situações de instabilidade política sem precedentes na história recente.

Vem este razoado a propósito de um artigo da revista "The Economist" que recomendo e que pode ser lido na íntegra aqui. Em baixo segue um trecho que me parece particularmente relevante:

"Some scientists think that the planet is already on an irreversible journey to dangerous warming. A few climate-change sceptics think the problem will right itself. Either may be correct. Predictions about a mechanism as complex as the climate cannot be made with any certainty. But the broad scientific consensus is that serious climate change is a danger, and this newspaper believes that, as an insurance policy against a catastrophe that may never happen, the world needs to adjust its behaviour to try to avert that threat.

The problem is not a technological one. The human race has almost all the tools it needs to continue leading much the sort of life it has been enjoying without causing a net increase in greenhouse-gas concentrations in the atmosphere. Industrial and agricultural processes can be changed. Electricity can be produced by wind, sunlight, biomass or nuclear reactors, and cars can be powered by biofuels and electricity. Biofuel engines for aircraft still need some work before they are suitable for long-haul flights, but should be available soon.

Nor is it a question of economics. Economists argue over the sums, but broadly agree that greenhouse-gas emissions can be curbed without flattening the world economy.

A hard sell
It is all about politics. Climate change is the hardest political problem the world has ever had to deal with. It is a prisoner’s dilemma, a free-rider problem and the tragedy of the commons all rolled into one. At issue is the difficulty of allocating the cost of collective action and trusting other parties to bear their share of the burden. At a city, state and national level, institutions that can resolve such problems have been built up over the centuries. But climate change has been a worldwide worry for only a couple of decades. Mankind has no framework for it. The UN is a useful talking shop, but it does not get much done.

The closest parallel is the world trading system. This has many achievements to its name, but it is not an encouraging model. Not only is the latest round of negotiations mired in difficulty, but the World Trade Organisation’s task is child’s play compared with climate change. The benefits of concluding trade deals are certain and accrue in the short term. The benefits of mitigating climate change are uncertain, since scientists are unsure of the scale and consequences of global warming, and will mostly accrue many years hence. The need for action, by contrast, is urgent.

The problem will be solved only if the world economy moves from carbon-intensive to low-carbon—and, in the long term, to zero-carbon—products and processes. That requires businesses to change their investment patterns. And they will do so only if governments give them clear, consistent signals. This special report will argue that so far this has not happened. The policies adopted to avoid dangerous climate change have been partly misconceived and largely inadequate. They have sent too many wrong signals and not enough of the right ones.

That is partly because of the way the Kyoto protocol was designed. By trying to include all the greenhouse gases in a single agreement, it has been less successful than the less ambitious Montreal protocol, which cut ozone-depleting gases fast and cheaply. By including too many countries in detailed negotiations, it has reduced the chances of agreement. And by dividing the world into developed and developing countries, it has deepened a rift that is proving hard to close. Ultimately, though, the international agreement has fallen victim to domestic politics. Voters do not want to bear the cost of their elected leaders’ aspirations, and those leaders have not been brave enough to push them.

Copenhagen represents a second chance to make a difference. The aspirations are high, but so are the hurdles. The gap between the parties on the two crucial questions—emissions levels and money—remains large. America’s failure so far to pass climate-change legislation means that a legally binding agreement will not be reached at the conference. The talk is of one in Bonn, in six months’ time, or in Mexico City in a year.

To suggest that much has gone wrong is not to denigrate the efforts of the many people who have dedicated two decades to this problem. For mankind to get even to the threshold of a global agreement is a marvel. But any global climate deal will work only if the domestic policies through which it is implemented are both efficient and effective. If they are ineffective, nothing will change. If they are inefficient, they will waste money. And if taxpayers decide that green policies are packed with pork, they will turn against them."

quinta-feira, maio 04, 2006

Nuclear e a percepção do risco

Existe um argumento pró-nuclear, muito utilizado recentemente, e que parece à primeira vista, um argumento absolutamente racional: o facto de, até ao momento, não existirem vítimas mortais de acidentes nucleares ou de exposição a produtos radioactivos decorrentes da exploração de centrais nucleares, e o contraste com um conjunto de situações quotidianas que provocam muito mais vítimas do que o nuclear terá alguma vez produzido. Alguns exemplos:

* problemas respiratórios causados pela exploração dos combustíveis fósseis. Basta pensar na “black lung disease” associada à mineração do carvão, ou à mais alta incidência de cancros de pulmão associada à poluição atmosférica nas cidades;

* mortes provocadas por medicamentos mal testados ou insuficentemente testados, como foi o caso da Talidomida, nos anos 60;

* as mortes provocadas pelo tabaco.

É indiscutível que todos estas causas de morte são muito mais mortíferas do que a indústria nuclear civil, até ao momento. Então, porquê não aceitar o risco nuclear, se podemos viver bem com todos estes outros riscos

Seguindo um cálculo supostamente “objectivo”, baseado por exemplo na probabilidade estatística de casos mortais, é óbvio que a resposta só pode ser, em quase todos os casos, pró-nuclear. Basta pensar nas mortes causadas pelo cancro de pulmão na população de fumadores (activos e passivos) compará-la com Chernobyl, para termos um cálculo irrefutavelmente pró-nuclear.

A questão é outra, contudo, e não pode ser colocada em aritmética simples. Em primeiro lugar, as mortes são, na maior parte dos casos, referidas a situações com graus de certeza substancialmente maiores do que aqueles que dizem respeito à indústria nuclear. Mesmo as mortes por poluição atmosférica são, por assim dizer, mais "certas" do que as da indústria nuclear.

Em segundo lugar, na maior parte das situações, o indivíduo pode subtrair-se à causa da morte, apenas a grande custo pessoal. Por experiência própria, deixar de fumar não é fácil, e não "comer" com a poluição atmosférica implica, na maioria dos casos, mudar de cidade. No segundo caso, existem mesmo assim, estratégias de controlo do risco - não andar em ruas poluídas, usar os transportes públicos. Ambas as situações, apesar de tudo reflectem uma medida de controlo sobre o risco. No caso da indústria nuclear, a sensação de cada indivíduo é de que o risco, mesmo que seja mínimo, não é controlável. E para qualquer indivíduo, por irracional que pareça, um risco controlável é mais tolerável do que um risco, mesmo que com uma probabilidade baixa, incontrolável. Dezenas de estudos de psicologia social do risco indicam isso mesmo. Obviamente, muitos técnicos defendem que as decisões devem ser tomadas com base em medidas objectivas de risco, em vez das percepções de risco, ditas "subjectivas". Por isso vemos normalmente mais físicos nucleares a reclamarem contra o alarmismo social em volta do nuclear, para imediatamente a seguir alarmarem-se eles com um outro perigo social. Essa "dissonância cognitiva" está amplamente documentada (por exemplo, estudos mostram repetidamente que a obrigação de usar cinto de segurança nos automóveis alterou substancialmente a percepção de risco e modificou o comportamento dos automobilistas) No caso do nuclear, ela é, aliás, a razão pela qual a população junto de instalações nucleares muitas vezes defende a manutenção da instalação, ou mesmo a sua expansão – seria possivelmente doloroso admitir o risco. Simultaneamente, estudos de psicologia têm também revelado que a mesma dissonância cognitiva faz com que sistematicamente, os técnicos das indústrias com riscos ambientais subestimem esses mesmos riscos. Os riscos da indústria nuclear têm sido sistematicamente subavaliados (e os custos também).

Em terceiro lugar, o nuclear coloca questões de limite à nossa noção de responsabilidade colectiva. Obviamente existem muitas mortes derivadas da poluição automóvel, mas de alguma forma toleramos melhor essas mortes, porque sabemos:

* que há poucas alternativas ao transporte individual;

* que a nossa contribuição individual para o mal colectivo, de cada uma das milhentas decisões que tomamos, é razoavelmente insignificante.

Por contraste, apenas tomamos uma opção normalmente em relação à industria nuclear, mas essa decisão única acarreta consequências, potencialmente, ainda que insignificantemente em termos probabilísticos, catastróficas. E a maioria de nós, racionalmente, decide-se pelo não.

Acresce a isto tudo, um conjunto de razões mais "prosaicas" e "tecnocráticas" para não considerar o nuclear como uma opção no mix energético, e que já expus noutro lugar. A indústria nuclear é cara, é altamente subsidiada, é desnecessária para cumprir com o Protocolo de Quioto, emite dióxido de carbono, não reduz a dependência do petróleo, é uma tecnologia particularmente inadaptada ao mercado liberalizado

Apenas uma "working question": se os estados europeus se desvinculassem das Convenções que limitam a responsabilidade civil dos operadores nucleares, existiria alguém interessado em operar uma central, em condições puras de mercado? Conseguiria esse operador financiamento e seguro para um eventual acidente nuclear? Porque será que a indústria nuclear vive há 50 anos debaixo de uma limitação de responsabilidade civil dada às indústrias nascentes?

Todas estas razões "prosaicas", "tecnocratas" e "economicistas" já deveriam ser suficientes, sem entrarmos em exposições éticas e considerações sobre o risco nuclear.

quinta-feira, novembro 17, 2005

A propósito do terramoto de 1755

Reproduzo aqui um texto publicado no público pelo Presidente da Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas
Ainda a propósito do Terramoto de 1755 e das suas consequências em Lisboa quanto tempo mais será necessário para aprendermos que se deve ter cuidado com as construções em zonas de risco. A aprovação de grandes projectos imobiliários como o Alcântara XXI, numa zona classificada em cartografia da própria Câmara Municipal de Lisboa como de forte vulnerabilidade à inundação e de intensidade sísmica escala 10 (Mercali modificada) em terrenos lodosos e arenosos dá que pensar. É preciso convidar arquitectos de renome para tentar dissimular este erro monumental? Espero que não morra ninguém, mas julgo que a natureza e a Ribeira de Alcântara vão um dia mostrar que aquele espaço lhes pertence. Veja-se o exemplo de Nova Orleans, a natureza reclamou de novo para si o seu espaço. Para quando uma cidade de Lisboa à escala humana bem ordenada, com espaços verdes de qualidade e não a caricatura que fazem deles, com passeios para as pessoas e não para os carros, pistas de bicicletas e um excelente sistema de transportes urbanos que desincentive o uso de veículo próprio? Os lisboetas merecem uma cidade construída com o respeito e manutenção dos ciclos naturais e não uma das cidades mais poluídas da Europa. O incentivo a políticas baseadas na construção civil não desenvolveu o país, antes pelo contrario continua a asfixiar o seu desenvolvimento sustentável. Como os fundamentalistas do betão continuam a vencer em todas as frentes e por todo o lado, para reconhecer este facto basta andar pelo país, muitas vezes os projectos não são pensados devidamente quer ao nível da arquitectura e da arquitectura paisagista e como o interesse é o lucro imediato e máximo, esquecendo-se a qualidade, não são equacionadas as diferentes opções nem são realizados com profundidade e rigor os necessários estudos. A preservação do perfil tradicional da cidade de Lisboa, que considero um património paisagístico de interesse mundial, não obstante erros do passado como as torres das Amoreiras, que um dia serão provavelmente implodidas como um qualquer prédio Coutinho, é um valor essencial a ser defendido pelos alfacinhas. As boas noticias para Lisboa deviam ser as relacionadas com a construção de mais espaços públicos, verdes ou outros, da criação de corredores verdes, de novos Monsantos, da diminuição da poluição atmosférica e não das sempre renovadas e sem imaginação noticias de novos empreendimentos imobiliários fomentando a continuada política do betão.
Henrique Tato Marinho Presidente da Direcção
APAP - Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas