Da lista de discussão que partilha a sua gestão com este blog, retirei o título deste post.
A frase completa era "assumo o meu interesse em preservar a fantástica paisagem natural do vale do Tua, independentemente de qualquer consideração de ordem económica".
O contexto da frase era o da discussão sobre comboios e fecho de linhas, no qual me cabe a mim o papel desagradável de falar de dinheiro, essa coisa suja, que anda nas mãos de todos e que às vezes, no calor da defesa das grandes causas nobres do mundo, parece ser uma coisa irrelevante e repugnante.
No fundo nada de novo, como escrevia Suetónio há dois mil anos: "Seu filho Tito censurava-o um dia por ter lançado imposto até sobre a própria urina; Vespasiano chegou-lhe ao nariz o primeiro dinheiro cobrado por esse imposto e perguntou-lhe se cheirava mal. Respondeu-lhe Tito que não: "No entanto", tornou-lhe, "provém da urina"."
Não consigo deixar de me identificar com o mesmo Vespasiano quando alguns deputados lhe foram anunciar que os seus concidadãos lhe queriam erigir uma estátua colossal de muito valor, ao que lhes respondeu, estendendo a palma mão, que a pusessem, ali que o pedestal já estava pronto.
Tudo a propósito do excelente post do Henrique Miguel Pereira (como se não me chegassem os insultos que eu mesmo provoco, de vez em quando ainda apanho com alguns que são dirigidos a este Henrique, que não sou eu) ao qual me parece faltar um módico de economia (do que resultam os comentários do Luís, Henk e Jaime na respectiva caixa de comentários).
Os cenários de que fala o Henrique são cenários possíveis, claro, mas cenários possíveis não quer dizer cenários verdadeiros.
Por isso convém ser muito claro no fundamento das coisas, para que a incerteza dos cenários, que lhes é inerente, não se dilua na lógica do argumento.
Se é verdade que partilho parte da esperança do Henrique Miguel Pereira de que a recuperação dos sistemas é uma boa notícia para a biodiversidade, três aspectos merecem-me comentários:
1) A escola de arquitectura paisagista é agnóstica em relação às questões relacionadas com a wilderness. A opção por modelos de gestão sem intervenção é uma opção de gestão tão sólida como qualquer outra e, desse ponto de vista, a escola de arquitectura paisagista não é responsável pela falta de uso dessa opção em Portugal. Bem pelo contrário, sempre defendeu essa opção em algumas circunstâncias, mas sempre como opção de gestão que não se dirige a valores imanentes mas ao serviço do homem e determinada pelos interesses de gestão das pessoas. Quando no livro que escrevi chamei "paisagens artificiais" às áreas protegidas era exactamente a isso que me referia: retirar áreas do processo económico com base na autoridade do Estado é criar uma linha de evolução artificial para essas paisagens. Mas nada contra essa opção;
2) Dizer que há 10 000 anos quase todas as espécies europeias já existiam o que invalida a ideia de que co-evoluíram com a evolução dos sistemas de exploração e de construção das paisagens parece-me uma enorme falácia. Na apresentação que fez do livro que escrevi, Humberto Rosa usa exactamente o mesmo argumento para dizer que lhe parece que o capítulo sobre biodiversidade lhe parece o menos conseguido do livro: a especiação é uma processo lento, com um ritmo que não é compatível com o ritmo, muito mais frenético, da alteração da paisagem. Onde é que eu acho este argumento errado? É que se o processo de especiação é lento, o processo de extinção ou o processo de adaptação de populações a condições concretas pode ser muito rápido. Ou dito de outro modo, se em dez mil anos as espécies presentes ou se extinguiram (e muitas de facto extinguiram-se) ou se adaptaram, nada nos permite prever que as populações resultantes desse processo, mesmo sendo das mesmas espécies existentes há 10 000 anos, sejam capazes de rapidamente se adaptarem à rápida mudança de condições (que em qualquer caso nunca serão um retorno mas uma nova construção). Nada contra modelos de gestão orientados para a wilderness, mas não vale a pena fazer batota e diminuir os riscos reais de perda de património genético;
3) "como aproveitar esta oportunidade para evoluir para florestas auto-sustentáveis (evitando os ciclo curtos de recorrência do fogo)", ou seja, como poderemos ter sol na eira e chuva no nabal? Este é um atalho, que é uma cedência dos defensores do wilderness, para fugir a um problema social relevante: as políticas de não gestão têm de implicar a não gestão do fogo e as consequências daí decorrentes. Por uma razão simples: não é possível gerir combustiveis na fase de transição, entre o que hoje existe e o que virá depois, sem violar os princípios de uma gestão orientada para obter resultados de processos naturais. Nada contra, mais uma vez, mas é uma fraude pretender que é possível deixar de gerir sem aceitar um longo, muito longo período de fogos cada vez mais severos, antes que o desenvolvimento dos sistemas reponha os seus mecanismos de defesa (sempre temporária) face ao fogo.
O posto do Henrique Miguel é importante, a discussão sobre o assunto também.
E essa é sempre uma discussão sobre economia.
henrique pereira dos santos