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quarta-feira, julho 30, 2025

O encontro

     Trazia a loucura escondida nos bolsos, nas pregas da roupa, um pouco espalhada nos cabelos, loucura que se ia desprendendo ao soprar da brisa, semeando terra que a isso estivesse disposta. Avançava feliz e confiante nas coisas boas que aquele dia haveria de trazer consigo. Ah, quanta pureza no ar, o perfume, a luz, a ausência de lamentos a ondular entre as copas das árvores que se contorciam lentamente, como se dançassem, como se estivessem a espreguiçar-se com volúpia. Que manhã gloriosa!

    Avançou pelo trilho. Árvores majestosas projectavam pequenas sombras dada a posição do sol lá no alto. O ruído provocado pelas solas dos sapatos, cada passo esmagava sempre qualquer coisa que não conseguia identificar, começou a inquietá-lo. Não havia naquele som nada de extraordinário, não era assustador, não tinha nada de especial. Simplesmente não conseguia perceber se pisava apenas gravilha ou também ramos secos ou ervas mortas ou algum insecto menos capaz de escapulir. 

    Instalou-se uma certa angústia. O ar ficou pesado, o perfume transformou-se num odor desagradável, uma nuvem escura atravessou-se entre o sol e a terra. Um pássaro piou tristemente, como se lhe tivesse morrido alguém na família.Mesmo as copas das árvores pareceram enlouquecer de súbito, sopradas e cuspidas de um lado para outro numa sarabanda aérea descontrolada.

    O homem enfiou as mãos nos bolsos tentando desajeitadamente libertar-se da loucura que transportava. Desatou a correr esbracejando gestos desconexos. Caíram pedaços aqui e ali, a loucura ia-se espalhando no caminho, ele ofegante, aos tropeções até que avistou a senhora ao fundo do trilho. 

    Magnífica no seu vestido branco, imaculado. Brilhava sob o sol como se fora uma aparição. Vinha de outro mundo, de um mundo livre desta loucura, desta desorganização, um mundo livre desta angústia que apertava a gorja ao maluquinho que estacou como uma lebre ao aperceber-se da presença da raposa que irá colocar em perigo a sua integridade física.

    A mulher não reparou nele de imediato o que permitiu ao homem recompor-se um pouco, alisar o cabelo com a palma da mão direita enquanto enxotava com a esquerda os restos de loucura que tinha ainda agarrados às pernas das calças. Abrandou o passo, recuperou alguma graça, sentiu de novo a brisa suave e o canto dos passarinhos. Teve presença de espírito suficiente para colher uma margarida na berma do caminho. Aproximou-se e soltou um "bom dia" na voz mais melodiosa que aquele dia haveria de ouvir fosse aqui ou em qualquer outro lugar do planeta.

domingo, setembro 24, 2023

Loucos como passarinhos

     Algumas pessoas enlouquecem para dentro de si próprias, outras disparam loucura em todas as direcções, como metralhadoras. Há ainda aquelas que derramam a doidice nas fronteiras dos seus corpos, suave e discretamente. Cada vez mais tenho a sensação de que a loucura, nas suas variadíssimas formas, não admite aos seres vivos grandes excepções. Nem mesmo a racionalidade escapa.

sábado, janeiro 04, 2020

Ejaculação precoce

Apercebo-me agora de que acreditava na capacidade das Democracias para se protegerem dos desvarios de putativos malucos que viessem a ser eleitos. Temo estar enganado.

Um maluco maldoso, narcisista, ignorante, boçal, gordo, falso careca e falso cabeludo, tem tudo para fazer merda. E, sentindo-se apertado, é merda da grossa que faz.

Quando Clinton foi acusado de mentir por não admitir que uma tal de Monica lhe tinha feito umas cenas demasiado íntimas na própria sala oval e se viu enredado num processo de impeachement, catrapunfas, vai de bombardear a Jugoslávia para vergar as maléficas forças sérvias. É um exemplo do chamado "efeito borboleta".

Ontem foi a vez de Trump ejacular sobre o Iraque, matando um general iraniano no aeroporto de Bagdad.Apesar de todas as previsões as consequências são imprevisíveis.

quinta-feira, agosto 06, 2015

Trampa

Imaginemos que Donald Trump chega a Presidente dos Estados Unidos da América. Estamos a imaginar...? Vá lá, só mais um bocadinho, um pequeno esforço de imaginação... pois é, a coisa não gera imagens particularmente agradáveis, pois não?

Que sociedade é capaz de gerar um candidato ao mais alto lugar da sua organização política com as características do descabelado Trump? Que doença, que droga, que alucinação colectiva pode fazer com que este homem seja levado a sério por uma parte significativa dos seus concidadãos?

Muito falamos dos líderes perigosos que governam partes deste mundo. Kim Jong-un, Maduro, Obiang, Eduardo dos Santos, ditadores mais ou menos populares nos seus países, a loucura e a ausência de direitos civis, caricaturas de democracias, tudo isto nos faz tremer um pouco. E se Trump vier a chefiar os EUA? Uma trampa!


quinta-feira, fevereiro 05, 2015

Personagem

Todos somos potenciais personagens literárias mas muitos não têm consciência desse facto. Ou porque não sabem ler, ou porque, sabendo ler, não lêem, ou porque lendo não sabem o que lêem, ou ainda porque, apesar de lerem e compreenderem o que lêem, não querem acreditar que a sua carne pode tornar-se papel, folhas de um livro, imaginação de um autor ou retrato, produto da argúcia de alguém que nos observa e podemos nem sequer conhecer.

Esta constatação poderá ser de extrema utilidade. Em caso de necessidade podemos poupar no psicanalista se analisarmos com calma e cuidado a evolução da nossa personagem ao longo da narrativa que é a vida que vivemos.

Em momentos de tédio podemos distrair-nos passando para o papel a descrição do momento que a nossa personagem viveu ou está a viver (descrever o próprio tédio). Podemos imaginar algo para lá do papel grosseiro com que a realidade embrulha a nossa existência, rasgar o embrulho, sair da escuridão para a luz, viver na imaginação, na nossa própria imaginação... mas... que digo eu? Que escrevo eu?

Será que existo? Ou este texto, este computador, esta mesa, a sala onde estou, o edifício que envolve este momento e este meu corpo, será tudo isto por mim inventado? Ou... ou... ou serei eu invenção de algum autor, algum escritor que perdeu o juízo e me deixou (mera personagem literária) tomar consciência da minha condição de ser imaginário, tomar consciência da minha carne de papel?

Alguns de nós são, na verdade, personagens literárias mas não têm consciência desse facto.

quinta-feira, junho 27, 2013

Uma questão de Fé?

Vi-a hoje pela manhã. Estava numa loja de telemóveis, aguardando pacientemente a minha vez de ser atendido. Ela estava lá. Velhinha, meio curvada, bem vestida, bem calçada, bem arranjada, óculos escuros redondos. Segurava na mão esquerda uma revista. Não reparei logo mas segurava a revista com um guardanapo de papel a proteger os dedos.

O tempo continuou a passar daquele jeito que passa nesses lugares de atendimento ao público. Muito devagar, um toque sonoro a marcar um novo número. Uma coisa tediosa. A senhora continuava sentada, segurando a revista mais ou menos à altura da face. Tirara os óculos escuros e olhava a página aberta à sua frente. Murmurava qualquer coisa... ou seria impressão minha?

Passado algum tempo voltei a reparar na mulher. Estava encostada ao balcão e trocava algumas palavras pouco amigáveis com o rapaz que a atendia. Ele falava de modo ríspido, parecia alterado. A mulher não olhava para ele, continuava concentrada na revista como se esperasse que do seu olhar pudesse resultar alguma coisa de especial. Era estranho.

Voltei a distrair-me com outra coisa qualquer. Até que a senhora se afastou do balcão e começou a falar alto. Agora estava próxima de mim e pude ver que a revista estava aberta numa página que exibia uma foto do Papa João Paulo II, o santo. Era essa fotografia que a mulher fitava insistentemente. Apercebi-me de que nunca virava a página. Quase pude sentir a presença do defunto Papa.

Todas as pessoas dentro da loja tentavam ignorar a mulher e a sua santa companhia. Ela saiu para a rua. Pude vê-la através da vitrina. Estava especada no passeio a conversar com a fotografia. Passados alguns minutos regressou. Voltou a dizer qualquer coisa (as minhas dificuldades auditivas não me permitiam compreender o que ela dizia por estar um pouco distante). Dirigiu-se à máquina que distribui as senhas de atendimento e retirou uma. Voltava à carga.

Reparei que os empregados da loja não estavam particularmente preocupados nem lhe davam muita atenção. O que estava mais próximo de mim, ao notar que eu olhava a velhinha, ofereceu-me um sorriso muito suave, como quem diz "não faz mal". Compreendi que se tratava de um episódio frequente. Ao sair olhei a mulher uma última vez. Conversava com a fotografia de João Paulo II. Dizia algo e esperava uma resposta em silêncio reverencial.

Vim embora a pensar em questões de Fé. Questões de Fé e de loucura.