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15 março 2014

um catraio anda com o mundo nas palminhas

Um texto de Wladimir Kaminer:



O meu país, a União Soviética, era não apenas uma ditadura totalitária mas também uma união voluntária de muitos povos, que deviam coexistir de forma pacífica e solidária. O rapazinho gostava disso. Só não sabia até que ponto essa aliança era autêntica. Em 1991, a aliança desfez-se. “Não perdem pela demora, traidores!”, pensou o rapazinho, que entretanto crescera e se tornara presidente. “Ou voltamos a ficar amigos, ou verão com quantos paus se faz uma cangalha. Vamos começar pela Crimeia.” Na realidade, conseguiu que todos se zangassem. Parentes, amigos, colegas de trabalho. Operários e camponeses, pensadores e poetas, o mundo inteiro. Algumas barricadas surgiram no meio das cozinhas, o homem a favor, a mulher contra. Uma parte da sociedade sente vergonha, outra rebenta de orgulho e, com tanto patriotismo, mal consegue andar. A maioria acha bem, o país vai ficar maior, a Crimeia é nossa. O referendo de domingo é à prova de bala, nove em cada dez balas vão ser a favor, calculo eu.  


08 março 2014

a propósito da Crimeia

(foto)

I.
Cada país possui uma região de férias muito elegante, da qual se orgulha particularmente. Para a população soviética, essa região ficava na península da Crimeia, um lugar fantástico onde os sonhos se tornavam realidade. Visitar a Crimeia pelo menos uma vez na vida era obrigatório para praticamente todas as pessoas do país. Como Maiorca para os alemães ocidentais e Hiddensee para os alemães orientais. Com o passar do tempo, a Crimeia tornou-se uma metrópole independente, adornada com toda a espécie de lendas. Era o lugar onde o sol brilhava sempre e em cujas praias as mulheres mais belas de todo o país se passeavam dia e noite, escassamente vestidas. Os mais famosos poetas, artistas, cientistas e generais russos procuraram lá inspiração – e em vez dela encontraram uma casa com jardim e barco. Posteriormente, as suas propriedades foram todas convertidas em museus. As casas de Tchékhov, Pushkin, Kutusov, Suvorov, Aivazovskii e outros contribuíam assim para a oferta cultural da península.
A história pós-soviética do país também deixou as suas marcas na região. Gorbachev, o primeiro presidente russo, esteve preso em Faros, às mãos de militares conspiradores. E Ieltsin, o segundo presidente russo, gostava muito de lá ir a banhos. Entre as atracções da Crimeia contam-se ainda: o maior jardim zoológico do país, a maior queda de água, o maior campo de férias dos pioneiros e a maior pintura da Rússia. Trata-se do quadro panorâmico de F. J. Rubo, com mil seiscentos e dez metros quadrados: “A defesa da cidade Sebastopol contra os exércitos inglês, francês e turco”. Olhando para a imagem, pode-se concluir que desde sempre todos os governos do mundo tiveram inveja desta pérola do mar Negro, e já no terceiro século antes de Cristo tentavam conquistar a península. Até os genoveses e os mongóis se lançaram nessa aventura.
A Crimeia já não pertence oficialmente à Rússia há mais de dez anos, o que irrita valentemente a maior parte dos meus compatriotas. O que exércitos inimigos não conseguiram ao longo dos séculos, foi despachado ao pequeno-almoço pelos políticos russos. Durante a desintegração da União Soviética, quando o país foi retalhado como uma tarte, o presidente russo da altura, Ieltsin, provavelmente não estava atento: de um momento para o outro, já não havia Crimeia. Presentemente, esta preciosidade pertence à República Ucraniana. Talvez mais tarde a vendam de volta à Rússia, quando não conseguirem pagar as facturas da energia.

Wladimir Kaminer, Viagem a Tralalá, Tinta-da-China 2012



II.
Ontem, no noticiário da noite da ZDF, mostraram uma reportagem feita na Ucrânia, perto da fronteira russa. A capital fica a apenas 700 km de distância, diziam, mas, para os habitantes desta região, Kiev pertence a um mundo diferente, que eles não compreendem e do qual desconfiam. Entrevistaram mulheres ucranianas, que responderam assim à pergunta sobre preferirem a aproximação à Rússia ou à Europa:
- A Rússia é um país estável. Lá pode-se ganhar dinheiro. Aqui não há trabalho. E se entrássemos para a UE, isso é que era o fim - mais valia enterrarem-nos logo.
- Queremos continuar a ter uma relação amigável com os russos. Sempre foi assim, não nos podemos separar. Não vemos nenhuma perspectiva na Europa. Em especial aquelas ideias que eles têm, o casamento de pessoas do mesmo sexo...

III.
Para quem vive em Berlim: hoje à noite há Russendisko com o Wladimir Kaminer, e vai ser só com música ucraniana.



04 março 2014

"Mein Kampf für mein Land"

(Estava eu aqui a tentar lembra-me das referências irónicas que há na Viagem a Tralalá aos tártaros da Crimeia, e eis que descubro que o Kaminer escreveu no seu blogue, muito a sério, a propósito da crise da Crimeia. O que se segue é uma tradução, rápida como de costume, desse texto)



A minha luta pelo meu país




Envergonho-me do meu país que, seguindo irresponsavelmente aquele que se diz presidente, está a conduzir o mundo para uma guerra. Não, nem todos os russos rejubilam com a invasão russa da Ucrânia, é óbvio que as pessoas na Crimeia não querem ser governadas por uma unidade armada. Dificilmente se encontram dois povos mais próximos que os russos e os ucranianos.

Ando há anos a lutar, aqui na Alemanha, para defender o bom nome da minha gente. Não, repito eu nas entrevistas, nem todos os russos são homofóbicos, nem todos são racistas, nem todos apoiam os jogos de guerra do presidente. Os anos passam, e torna-se cada vez mais difícil defender a Rússia.

Sempre que vou à Rússia, pergunto aos meus amigos: "que se passa aqui? Como é que vocês conseguem viver assim? A liberdade de expressão, melhor dizendo, qualquer tipo de liberdade é reprimido, na televisão mentem com quantos dentes têm na boca, vocês não vêem como as pessoas andam nas ruas, olham em volta a cada cinquenta metros para verificar se não estão a ser seguidas?" "Sim, isso vemos nós, não somos parvos", dizem os meus amigos. "Mas porque pensas tu que a liberdade iria salvar estas pessoas? Que liberdade? E de quê? As pessoas daqui não precisam de liberdade, precisam de créditos baratos e apartamentos que consigam pagar, e o Putin dá-lhes isso. Tudo o resto são valores ocidentais, que nos são impostos para confundir os espíritos fracos. Ninguém precisa de liberdade aqui, a não ser os homossexuais, os menores e um par de jornalistas. Nunca foi de outra maneira, e nunca será de outra maneira. Só assim é que este país pode funcionar, com um tirano em vez de um governo, com uma burocracia corrupta, preparada para pisar os fracos e lamber as botas aos fortes, e um povo pensativo, que tudo vê, mas nada diz contra isso. Os Estados não têm de se desenvolver todos da mesma maneira. Esta também pode ser uma possibilidade, ou não?

A amarga experiência tem mostrado que quando um povo renuncia à sua liberdade, mais tarde ou mais cedo acaba em guerra, e no caixote de lixo da História. O tirano actual não foi eleito, foi apresentado há 15 anos ao povo como "sucessor". Desde então fez-se eleger algumas vezes e, pelo sim pelo não, faz ele próprio a contagem dos votos. Um homenzinho educado na escola do KGB soviética, sem mulher nem amigos, afastado do mundo, atormentado por complexos de inferioridade, dirige um país gigantesco cujos habitantes já perderam há muito qualquer esperança de fazer uso dos seus direitos de cidadãos e de elegerem eles próprios o presidente. O Ocidente esforça-se para entender o que se passa na cabeça daquele homem, os russos nem se dão a esse trabalho. Limitam-se a segui-lo. Se ele é homofóbico, eles saem às ruas para fazer manifestações contra os homossexuais; se ele não gosta de arte moderna, eles saqueiam galerias. Se ele deixa o exército invadir o país vizinho, eles gritam "a Crimeia é nossa". E não pensam na vida depois de Putin, que virá daqui a alguns anos. Se ele um dia se despenhar durante um voo com cegonhas, ou mergulhar a demasiada profundidade, ou for comido por um leopardo - o que é que vão fazer?


P.S. No próximo sábado, na Russendisko só haverá música ucraniana.

P.P.S. O homem da fotografia está a ser preso porque tem um cartaz onde se lê "Paz para o Mundo".



12 agosto 2013

deste lado do Éden




Comecei a ler o novo livro do Wladimir Kaminer, e fiquei espantada: ele estava a contar histórias que eu já conhecia! Às vezes, reconhecia até a construção das frases. Como foi possível acontecer-lhe uma coisa destas? Como é que o editor não reparou? Parecia que, por engano, todo o primeiro capítulo era igual a um texto já publicado.
Entrei no segundo capítulo: idem. Ai!
Foi então que o Joachim perguntou se desta vez podia ser ele a ler primeiro o livro - e tinha-o na mão. Eu estava a ler o livro novo do ano passado.

(Lembram-se daquela vez que comprei uma balança na IKEA, e depois a fui devolver porque me dava demasiados quilos, e portanto só podia estar estragada? Pois...)

"Deste Lado do Éden" está óptimo. Vou lendo, e a cada página dá-me vontade de desatar a traduzir para vocês. Mas de momento não dá mesmo - a minha lista de to-dos já vai na quarta folha A4.

(E por falar em balança: fui comprar uma nova balança à IKEA. Custava 14 euros, achei demasiado. Assim como assim, era mesmo só para controlar o peso da mala antes de sair para o aeroporto. Depois de muito pesar os prós e os contras das minhas escolhas de consumo, fui comprar uma nos chineses. Custou 6 euros, e parece um thriller: a minha mala tinha ora 35 kg, ora 21. Quis crer que 21 fosse o mais provável. No aeroporto, eram 27 kg. Além da confusão que foi abrir a mala para levar metade do recheio em saquinhos do Expresso como bagagem de mão, ficou a zanga: seis euros tão mal gastos! A ver se aprendo: o barato sai caro, etc., e a minha mala nunca tem apenas 21 kg.)

Parece que o próximo livro do Wladimir Kaminer vai ser sobre a adolescência. Já conheço uma das histórias, e mal posso esperar pelas restantes.

12 junho 2013

mudança de ramo



Recentemente dei um salto brutal na minha carreira: agora trabalho na caixa da Russendisko, a original, no Café Burger. Sou a que põe carimbos no pessoal - eu bem digo que o céu é o limite!

Passam-me todos pelas mãos: os casais, as mulheres sozinhas, as mulheres em pares, os homens sozinhos e os homens em pares, os grupos, os bêbedos, os que se atiram a tudo o que mexe (inclusivamente a desgraçada que só mexe o suficiente para lhes pôr o carimbo no braço, "ah, aí não, tenho uma ideia melhor" - e levantam a t-shirt, para eu os carimbar no peito, hahaha, exibicionistas de plano B, coitados)
É impressionante a quantidade de casais em que cada um paga a sua entrada. As minhas colegas da caixa tentam reeducar o povo, viram-se para o homem que estende uma nota e perguntam: "paga para os dois?" Mas por essa altura já a mulher está numa agitação febril a tentar encontrar cinco euros nos confins da sua bolsa.

No intervalo vou conversando com as colegas. Uma é russa de uma ilha mais ou menos japonesa, a outra é russa do Azerbaijão. São muito divertidas, eu distraio-me com as conversas, troco tudo e carimbo as pessoas erradas.

É um carimbo de tinta transparente, visível com luz negra. Eu carimbo, eles olham para a pele, põem cara de não percebo, já eu estou de lanterna apontada para lhes mostrar as estrelinhas e a palavra "Russendisko". Alargam os olhos, exclamam "ah", "oh", "wow" ou o que calhar, alguns riem, outros sorriem - parecem crianças, e é bom vê-los assim.
Duvido que mais alguém leve tantos sorrisos por minuto como eu, nesses sábados.

Gosto muito da política da discoteca: entram todos, menos os demasiado bêbedos. Nada de fitas por causa da roupa e do estilo, da idade, do aspecto físico, sei lá quê. No sábado passado houve duas despedidas de casamento (já vinham alegrotes) e vários aniversários. Estava um ambiente óptimo.

Os seguranças são simpáticos. Um deles consegue algo prodigioso: sem tirar os olhos da rua, repara em quem está a tentar entrar sem pagar e vai atrás dessa pessoa. Além disso, não sei se já disse, é muito simpático. Sim: precisei de chegar a esta idade para achar graça a seguranças russos com cara de serem capazes de fazer mudanças de pianos atirando-os da rua para a varanda do andar certo... (ainda estou para saber se é a famosa sabedoria que vem com a idade, se é senilidade precoce)

Infelizmente não me pagam, mas posso entrar de graça e dançar quanto me apetece. Também me dão bebidas se eu quiser, mas como depois tenho de levar o carro para casa bebo apenas água.

19 janeiro 2013

a visita do tio Vânia (2)



Tradução rapidíssima (rapidíssima!) de um excerto do livro "A Visita do Tio Vânia" (Onkel Wanja kommt), de Wladimir Kaminer:

Eu nem sequer sabia se aquela igreja ainda estava a funcionar, ou se era um museu. Hoje em dia, muitas igrejas oferecem programas culturais: nelas podem actuar bandas punk, artistas usam o espaço para fazer exposições. Os padres modernos apoiam todos os tipos de fé. Tentam atrair os poucos crentes, os que têm outras crenças, e até começaram a tolerar os não-crentes praticantes. Estão dispostos a fazer tudo para que a igreja não fique vazia.
Muitas vezes sou convidado para um evento numa igreja: para ler, ou até para fazer a russendisko no altar. Já aceitei algumas vezes, sentindo-me mal. Sentia vergonha. Em particular por causa do público. Se eles decidiram ir a uma igreja, pensava eu, será para estar perto de Deus, ou ao menos do padre, e não da russendisko. Recentemente voltei a pensar nisso, em Hannover, na antiga Igreja de Lutero, agora Igreja da Juventude, e falei com os meus anfitriões sobre essa preocupação.
"Queremos ter esta igreja aberta à vida. Aqui dentro deve ser como lá fora", foi a resposta da pastora.
E um jovem teólogo, cujo nome, a crer no crachat que trazia, era Thorsten, abanava a cabeça em sinal de assentimento. Por isso mesmo tinham à venda não apenas chá de frutas, mas também álcool. O álcool é uma droga socialmente aceitável, o que quer dizer que é uma parte da vida, diziam eles. Atormentado pela minha consciência, pedi logo uma aguardente. Mas a pastora só tinha cerveja e vinho no bar da igreja - pelos vistos, aguardente ainda não era socialmente aceitável que baste. O jovem teólogo foi-me buscar ao quiosque do lado uma grande garrafa de Brandy. O público começou a encher a igreja; a pastora, o teólogo e eu ficámos à porta a fumar um cigarro.
"Há muito tempo que não tínhamos aqui tanta gente", congratulavam-se os meus anfitriões. Apesar do Brandy, eu ainda sentia escrúpulos.
"Será que é correcto dançar na casa de Deus", murmurei indeciso.
"Olhe, não se preocupe mais com isso", interferiu o jovem teólogo. "Nós assumimos a responsabilidade. Jesus também fez festas. Sim, senhor! Expulsou os vendedores do templo e organizou festas."
"Mas eu não sou Jesus", retorqui.
Aquele evento parecia-me algo como uma cantina vegan a oferecer um belo lombo de porco assado para angariar clientes. A ténue fronteira da tolerância eclesial parecia desenhar-se entre o vinho e a aguardente, entre a russendisko e um festival gothic. Nessa noite, em Hannover, tentei pôr música suave - folk, reggae, baladas. O público teve várias reacções: uns foram-se logo embora, outros ficaram imóveis num canto, à luz das velas, alguns saltavam como doidos no estrado de dança da igreja. A pastora e o teólogo estavam bem-dispostos, radiantes. No escuro, três jovens russas disparavam o flash das suas câmaras fotográficas. De lá de cima, pareceu-me, da alta cúpula da igreja, chegavam sinais amáveis: que cada um seria perdoado, que para cada um haveria risos, lágrimas e luto - e mais não era preciso. Naquela noite a igreja funcionou, penso eu. Mas como se distingue uma igreja que funciona de uma igreja-museu? A cidade de Colónia ofereceu às comunidades estrangeiras muitas igrejas que estavam abandonadas - croatas, polacos, búlgaros e outros imigrantes. Em troca de cuidarem da igreja, tinham o direito de celebrar semanalmente um serviço religioso na sua língua materna. Num abrir e fechar de olhos aquelas igrejas tornaram-se pequenos guetos onde se reuniam as pessoas de uma tradição, uma língua, um país.
Enquanto criança e jovem, vivi completamente à margem desta problemática das religiões. Não tive qualquer educação religiosa, e começo a gaguejar quando me fazem perguntas sobre judaísmo, cristianismo ou qualquer outro -ismo. Os meus pais nem ateístas eram. Estavam demasiado ocupados com as questões quotidianas do ser, e faltava-lhe tempo para pensarem a sério no crer. O que lhes permitiu irem vivendo sem depressões, felizes e confiantes.
Em contrapartida, os nossos vizinhos em Moscovo, os Morsin, eram muito religiosos. Tinham dois filhos, André e Alexandre. O André morreu num acidente de carro que ele próprio provocou, estava a conduzir embriagado; o Alexandre trabalhava no Ministério da Energia. Um dia foi para o Afeganistão, para ajudar o governo, comunista nessa época, a construir uma central de alta voltagem, mas esqueceu-se de avisar os pais da data certa da viagem. Um dia, a mãe recebeu um telegrama: "finalmente cheguei, horrivelmente quente aqui. A. Morsin"  A mãe terá concluído que o filho que morrera mandara essa mensagem do inferno, e teve uma crise séria. Desde então, a família é crente.
Os meus pais não conheciam as religiões mais importantes, mas não eram descrentes - pelo contrário, acreditavam em tudo. Acreditavam que era possível ganhar no Loto contra o Estado soviético. Acreditavam nos poderes curativos da aguardente de tramazeira, o meu pai até a produzia. Durante algum tempo, chegaram a acreditar num futuro brilhante no seio do socialismo. E acreditavam em todas as histórias que eu trazia da escola, qualquer uma. Hoje, diria que os meus pais eram um caso grave de crença fácil. Só na área das questões religiosas é que mantinham um certo distanciamento, e optavam por uma grande desconfiança em relação a qualquer tipo de iluminação espiritual ou salvação. Só a contragosto aceitavam a vaga possibilidade da existência de um ou mais deuses. E rejeitavam liminarmente a ideia da vida depois da morte.
No decorrer da evolução da religião na Rússia, que tem tido os seus altos e baixos como uma autêntica montanha russa, nos anos noventa apanhámos com uma fase de renascimento religioso. Para começar, enterraram o ideal de uma sociedade humana e justa, e muitos antigos comunistas ingressaram na Igreja. As pessoas procuravam com maior ou menor desespero um apoio espiritual, e todos encontraram algo - excepto os meus pais. Nos anos noventa, centenas de religiões desabrocharam na Rússia, destacando-se o cristianismo para os mais velhos e o budismo para os mais novos. Às vezes as duas religiões coexistiam na mesma família.
Os nossos vizinhos moscovitas, os pais do Alexandre e do falecido André, tornaram-se cristãos ortodoxos. O pai, um major reformado, que tinha cometido muitos pecados na vida profissional e com certeza também na privada, deixou crescer a barba, mas por precaução não se baptizou logo. Na realidade, como contou ele ao meu pai num ataque de sinceridade, um cristão ortodoxo deve baptizar-se o mais tarde possível, de preferência pouco antes de morrer. Segundo a crença cristã, antes do baptismo és invisível para Deus, pelo menos não como cristão, pelo que só contam os pecados cometidos depois do baptismo. Em contrapartida, tudo o que se fez de errado antes do baptismo, depois deste deixa de contar. Seguindo esta lógica, o major sonhava com a continuação da sua carreira no céu. O seu objectivo era deixar-se baptizar no leito da morte, e seguir para o céu como o mais puro cristão. Nada podia correr mal, tinha pensado em tudo muito cuidadosamente. Só havia um ponto fraco: o risco de uma morte súbita, como no caso do seu filho mais novo, que até mandou do inferno um telegrama de advertência. O que se pode fazer para evitar a morte súbita? Um carro que faz uma curva demasiado depressa, uma pedra que cai do telhado - estes acidentes, que não eram de esperar mas, em teoria, possíveis, envenenavam a fé do major e obrigavam-no a olhar nervosamente em volta a toda a hora. Era extremamente cuidadoso, andava lentamente, concentrava-se quando atravessava a rua, e por sistema não saía de casa depois das seis da tarde.
O seu filho, que entretanto tinha perdido o emprego no Ministério da Energia, não partilhava esta fé - era budista. Não um membro qualquer de uma seita, ou um seguidor de Krishna, como os que nessa altura apareciam em muitos cantos de Moscovo, a desfilar pelas ruas com a cabeça rapada e panos coloridos, entoando um cântico de louvor a Krishna. O filho do major era um budista normal, um budista tradicional a caminho da iluminação do espírito. Para a atingir, tinha de se libertar de todo o stress, bem como do sofrimento, do prazer e das confusões. Um trabalho infernalmente complicado, que tomava todo o tempo daquele homem. Pelo que o filho do major perdeu o trabalho e a namorada.

**

Por mim, continuava a traduzir isto até ao fim do livro (daqui a nada o filho do major vai começar a tricotar na varanda por motivos religiosos) mas o Fox está a pedir para ir à rua, e tenho aí mais uma ou duas coisitas para fazer. Paciência.

a visita do tio Vânia



Estou a ler o livro mais recente do Wladimir Kaminer. Volta e meia largo uma gargalhada: "Eh, pá, isto é tão bom! Hahaha!"

Deu-mo há tempos, dizendo que estava muito satisfeito com o resultado. Razões para isso não lhe faltam, e para que ninguém me chame egoísta e torturadora de Tântalos, resolvi traduzir para os clientes deste blogue um pequeno excerto. Quando se traduz, nota-se ainda mais os pequenos detalhes. Por exemplo, a gracinha sobre hoje em dia ser permitido que bandas punk actuem em igrejas. No meio da frase parecia um exemplo como outro qualquer, e só ao traduzir reparei na soda cáustica. Hehehe.
Escolhi um excerto sobre a Fé. O Kaminer, com aquela carinha de "eu?! eu só cá vim ver a bola", consegue em meia dúzia de frases pôr o dedo em algumas feridas interessantes do nosso tempo. E pelo meio faz-nos rir. Não é qualquer um.

Portanto: me aguardem. Daqui a nada, senhoras e senhores, terei o prazer de vos apresentar o mais novo do Kaminer.

18 agosto 2012

Wladimir Kaminer, sobre as Pussy Riot

Ontem, para o noticiário da noite, a ZDF convidou Wladimir Kaminer, o escritor russo que vive em Berlim, a comentar a notícia da prisão das Pussy Riot. Para ver o vídeo, gravado ontem em São Petersburgo, carreguem na imagem.


Tradução (rapidíssima, que hoje é sábado e está um sol fantástico):

"Dois anos de prisão por cantarem durante trinta segundos numa igreja - foi o que deram hoje às três miúdas do Pussy Riot. De mais a mais na Rússia, cujo povo se considera o último mensageiro do cristianismo, o último povo do mundo a ser cristianizado - é pena que seja justamente Putin quem vai agora neste barco. Mas pelo menos a partir de hoje ficámos a saber de que é que este regime tem medo: não é da oposição política, não é da opinião do Ocidente - este regime só tem medo de raparigas que sabem cantar. Esta sentença deixou-me furioso. Contava com uma sentença muito mais leve. Para ser sincero, acreditei que as três sairiam hoje em liberdade. Penso que era a última possibilidade para o governo russo conseguir sair deste beco sem saída. Eles não aproveitaram essa oportunidade, e a consequência é que os protestos passam para um patamar mais elevado. Cada vez mais jovens vão para a rua manifestar-se, muitos dos que até agora não se interessavam por política foram despertados por este caso. As miúdas do Pussy Riot levaram a política para dentro de cada casa, de cada apartamento - e por isso deviam receber os maiores elogios. Só é pena que, em vez de voltarem para casa, para os seus maridos e filhos, têm de ir para a cadeia. Mas a última palavra ainda está por dizer."

***

"Sabem cantar", bom, é como quem diz...
Parafraseando a tão célebre tirada sobre liberdade de expressão: não gosto do modo como cantas, não gosto dos sítios que escolhes para cantar - mas seria capaz de dar a vida para que tu possas continuar a cantar.

"Dar a vida", bom, é como quem diz...
E no entanto, se não nos empenharmos a fundo na denúncia de atropelos destes, estamos a abrir mão da nossa dignidade - e o que vale a vida, se a vivemos como ratos?
Isto não é só a Rússia, e não é só Putin. O Kaminer começa por lembrar a responsabilidade dos cristãos: é inadmissível que em nome dos sentimentos religiosos feridos se mandem estas mulheres para a cadeia. Será que o Vaticano e os bispos das igrejas protestantes já tiveram uma conversa fraterna sobre o assunto com o patriarca de Moscovo? E nós, cristãos de todo o mundo: qual é a nossa posição pública perante esta traição à mensagem de Jesus Cristo?


(foto encontrada aqui)

20 junho 2012

o expresso do paraíso (5)


O pequeno-almoço na Pousada de Cascais foi excelente - o melhor que tive nos hotéis do grupo Pestana. Com o mar à minha frente. Só era pena chover tanto, e eu estar atrapalhada por causa de uma entrevista que ainda faltava fazer, mesmo antes de sairmos para o avião.

A entrevista resumiu-se a uma sessão fotográfica, e à promessa de que o Wladimir Kaminer escreveria um pequeno texto sobre Portugal para a revista Wink.
Saímos para o aeroporto, debaixo de chuva torrencial. Não sei como, ainda não tínhamos saído de Cascais e já estávamos embrenhados numa conversa profunda sobre religião. Falámos de Taizé (mais umas frases dessas, e ainda combinamos uma visita à Borgonha...) e da fé. O Wladimir entendia que a fé se vive a título pessoal - ninguém entra no céu num autocarro de excursões. Eu ia falar da diferença entre misticismo e religião, mas chegámos ao aeroporto e fomos atropelados pela vida real.
Despedimo-nos. Voltei para o centro da cidade com os meus trinta pacotes. Entre eles as gadanhas e as empadas de galinha compradas em Estremoz, já um bocado amassadas por terem servido inadvertidamente de almofada num power nap durante uma travessia do Alentejo.

Encontrei-me com amigos.
Melhor dizendo: encontrei-me nos amigos.

Terminei o dia num sofá confortável, debaixo de uma manta partilhada, numa conversa entremeada dos "entãos" que me desatam. Quando algum dia escrever uma definição de lar-doce-lar, não me posso esquecer disto: uma manta partilhada, "entãos", confidências e sorrisos.

Foi o quinto dia.

O sexto continuou tão bom como o anterior. Regressei à Alemanha, e a partir do sétimo dia descansei.
Que bem precisava.

***

Uma semana mais tarde fomos jantar com os Kaminer. Enquanto eu tentava recuperar do cansaço da viagem, o Wladimir já tinha ido a Estrasburgo, a Praga, e a uma conferência de imprensa por causa do Matthias Rust que ele deixara chegar à Praça Vermelha, vinte e cinco anos antes.
Havia que preparar o grande projecto para o Verão de 2013. Ao fim de uma hora, o Joachim já estava a apostar com o Wladimir a sua melhor garrafa de vinho. Tive de intervir: o Chateau Latour do ano do nascimento da Christina?! Apostaram a segunda melhor garrafa de vinho. Já não sei em quê, e eles provavelmente também não.
A meio do serão o Matthias e o Wladimir começaram uma enorme discussão sobre fé. Com quem o Wladimir se foi meter... O Matthias não cede, continua a argumentar, a desmontar os argumentos contrários. Quando é comigo, para não dar o braço inteiramente a torcer, costumo acabar a discussão com um "ah, cala-te cala-te, não me lembro de te ter perguntado a opinião...". Ele ri-se, e eu preservo algum amor-próprio.
O Wladimir Kaminer não conhece este truque, pelo que continuava a discutir com ele. Já estávamos em frente ao táxi, já bocejávamos desesperadamente, mas eles: ora um ora o outro. Até que pedimos que acabassem a discussão por esse dia, e o Wladimir começou a sorrir como quando se lembra de uma história. Era uma história: perguntaram a um filósofo, um russo que foi para Inglaterra, o que mais temia. Ele respondeu: o fim da conversa.

19 junho 2012

o expresso do paraíso (4)




Ao pequeno-almoço, o Wladimir Kaminer pôs-se a ler uma folha com notícias frescas da Rússia. "Olhem para isto", dizia ele, "tudo a correr às mil maravilhas, tudo sob controle, um povo feliz, um país fantástico." Contra tudo o que seria de esperar, perante notícias tão positivas, estava visivelmente preocupado. Imaginei que o jornal seria escrito pelo próprio Putin, que bem conhece o registo certo para contar a verdade ao povo. Mas há gente assim, que nunca se dá por satisfeita, por muito que os políticos do seu país se esforcem.

O director do Pestana Palace tinha-me mostrado o hotel com todo o detalhe, e eu fiz o mesmo para o casal Kaminer. Contei-lhes a história do cacau mais valioso que o ouro, mostrei-lhes os salões que o cacau pagou, a capela com uma passagem secreta para as cavalariças (depois da capela da quinta do Carmo, ocorreu-me que em Portugal, pelos vistos, as capelas não são apenas ponto de chegada, mas também e sobretudo de partida - e cada qual sabe de si e onde tem o seu amor), a cozinha tradicional, a sala de jantar feita com madeiras preciosas de importação proibida, que chegaram a Portugal por meio de um ardil: mandou-se fazer um navio no Brasil, e quando chegou a Portugal foi desmantelado para fazer aquela sala... (porque é que eu me rio com estas artimanhas, quando devia era ficar chocada?)
À saída, o director apareceu para cumprimentar os hóspedes, saber da estadia, oferecer um livro com a história do hotel (e a mim um das pousadas, ai, agarrem-me! que tem lá pousadas tão bonitas). Talvez o fizesse por profissionalismo, mas pareceu-nos genuinamente simpático - a um domingo de manhã! Abençoada empresa que conta com tal director. 

Partimos para Óbidos. Ao chegar à vila, o telefone tocou: era o Paulo Almeida, que estava por ali, e tinha uma horinha para passear connosco. Se isto não é sorte! De modo que subimos à Pousada guiados pelo Paulo, que falou da Óbidos das rainhas, e especialmente da rainha Santa Isabel.
No restaurante, tinham reservado uma mesa junto à melhor janela para nós - o Kaminer diria mais tarde: "trataram-nos como reis, e ainda nos mostravam que se sentiam honrados pela nossa presença!"




Serviram-nos um excelente almoço. A Olga pediu-me para fotografar o polvo no prato dela.
Como habitualmente, o escritor sublinhava o tema da conversa com um brinde a propósito. As entradas vieram, deliciosas, e com elas o primeiro brinde, "- Ao cozinheiro!", falámos do que ainda queríamos fazer nesse dia e brindámos à nossa viagem, depois às auto-estradas vazias, e por aí fora.
Em algum momento contei o comentário de um músico polaco, que toca numa orquestra berlinense, o tipo de comentário que é sempre recebido em silêncio pelos alemães: "o Hitler, em comparação com o Estaline, era um menino do coro". Falámos da guerra, da crueza de Estaline ao mandar os rapazes para a carnificina, e o Kaminer ergueu o seu copo: "A essas vítimas, impedidas de estar aqui connosco". Ia tocar o meu copo no deles, mas travaram-me, e em vez disso deixámos cair algumas gotas de vinho na toalha. A sala encheu-se do silêncio de muitos milhões de russos.

Estávamos atrasadíssimos para o concerto em Mafra, pelo que não pudemos visitar a Pousada com calma. O director, de uma extrema amabilidade, levou-nos até à porta, e pelo caminho ia apresentando o edifício e a sua história. O inevitável aconteceu: chegados ao pátio, ficámos na conversa. As janelas namoradeiras, por cima do portão, interessaram a Olga. Queria saber se a rainha namorava ali, se era o rei.
- O rei, explicou o director, costumava ter os seus arranjos fora do castelo. A rainha lá teria de se arranjar com a prata da casa...
- O rei por fora, repetiu a Olga, e a rainha em casa, entretida a transformar pão em rosas e rosas em pão, pão em rosas e rosas em pão.
Nunca me tinha ocorrido que aquele milagre também se podia fazer em inversão de marcha.

O director falou ainda dos quartos nas torres do castelo, que desta vez não nos pôde dar porque já estavam reservados. Mas que se combinarmos com tempo... Pouco depois, no carro, combinámos com tempo: marcámos a data para a próxima viagem a Portugal, no verão de 2013.
Saímos a toda a velocidade pelas calçadas da vila - ou seja, saímos à velocidade possível para os sapatos de salto alto da Olga. O director resolveu acompanhar-nos até ao carro. Apontava os monumentos, as características particulares da arquitectura das casas, contava as histórias da terra. Eu traduzia, ofegante.

Na auto-estrada, enquanto eu lutava contra o atraso (sempre a 120 km/h, claro), o Kaminer contava histórias. Por exemplo, a daquele czar sanguinário, que ao ver aproximar-se a morte se encheu de medo das contas que teria de prestar do lado de lá, e deu ordens para que nas igrejas se rezasse por alma das suas vítimas. O problema é que as orações pelas almas precisavam de um nome, e ele perdera a conta até ao número daqueles que mandara matar, quanto mais ao nome deles. Pelo que mandou que se redigisse uma nova oração, "Senhor, pedimos-te por aqueles que Tu bem sabes."
Descontando a parte de desresponsabilização do homem, que não se dá ao trabalho de detalhar o seu exame de consciência, e manteve as almas das vítimas no mesmo registo de indiferença com que lhes roubou a vida, gosto da formulação, porque também eu rezo assim: "Olha, meu Deus, só sei que nada sei, e que tudo isto é muito maior que eu. Por isso te peço que faças o que achares melhor. Só isso."

O programa da visita em Mafra foi organizado pela Leonor Barros. Logo à saída da auto-estrada confirmámos que estávamos em boas mãos: o marido da Leonor estava à nossa espera, para nos indicar o caminho mais rápido para o centro da cidade. E no parque de estacionamento, completamente cheio, a mãe da Leonor ofereceu-nos o seu próprio lugar. A generosidade das pessoas que nos ajudaram durante esta viagem não pára de me surpreender. "Is this real life?"
Entrámos na igreja, para assistir a um concerto dos seis orgãos. Já ouvi muitos concertos de órgãos, mais ou menos potentes, mais ou menos antigos. Mas nunca assistira a um concerto em que o órgão soa ora mais longe, ora mais perto, ora em diálogo com outros. Quem se terá lembrado de fazer uma igreja em sistema de áudio multi-canal no séc. XVIII?



No fim do concerto, Dinarte Machado, o organeiro que recuperou os seis órgãos históricos, contou as trocas e baldrocas que os adormeceram no tempo, fazendo com que apenas um deles tivesse sido objecto de modernizações. À volta dele juntou-se um grupinho de pessoas a ouvir, muito interessadas. É pena não se contarem estas histórias. Procurei na internet, e só encontrei menções superficiais, "órgãos históricos", "premiados", "concerto de seis órgãos". Mas porque não contam eles o que é realmente interessante, os órgãos desmontados e esquecidos, o trabalho de refazer o puzzle, o beijo do organeiro que os desperta cem anos depois, ainda na flor da idade e por descobrir?

Seguimos para as entranhas do palácio, subimos ao topo da igreja, onde eu mostrei que não olho a meios quando se trata de tentar uma boa fotografia:


E acabo por fazer esta porcaria que mais parece uma sonda de Marte:






Para nossa grande surpresa, levaram-nos até ao terraço sobre a igreja. 
Os Kaminer repararam mais uma vez nas flores que nascem das pedras. Hei-de mostrar-lhes certos caminhos da minha aldeia, ladeados de muros de pedra cheios de margaridas.




Passeámos pelo palácio (o Lutz e o Wladimir sempre sempre sempre em animada conversa), entrámos na biblioteca.   

Não, tenho de escrever isto melhor: entrámos na Biblioteca.






Mostraram-nos livros de horas com belíssimas iluminuras, livros da alta Idade Média com gravuras de paisagens de vários países europeus - todos iguais. Extraordinária sabedoria dos antigos, que souberam ver a monotonia da Europa muito antes de se inventarem os regulamentos da União Europeia.



Perdido no meio daquela sala enorme, o Wladimir comentou que esse espaço o enchia de tristeza, porque imaginava quantas pessoas teriam ali trabalhado tanto, e delas já nem o pó restava. Respondi: às tantas, ainda vamos descobrir que estão muito melhor agora...
Olhou-me sem chão. "És uma fundamentalista do optimismo!", disse em tom quase zangado, e virou costas.

A fotografia de grupo revela algo que os antigos clientes do Quase em Português já sabem há muito: o Lutz é um iluminado.



Mais tarde, no restaurante da Ericeira, sobre o pôr-do-sol no mar, o Wladimir Kaminer voltaria a falar da igreja, do palácio e da biblioteca.
- Aquela biblioteca lembrou-me uma que não lhe fica atrás, comentou. A de St. Gallen.
O Lutz riu-se:
- Não lhe fica atrás, é uma bela maneira de dizer...
- Uma vez, continuou o Kaminer, visitei essa biblioteca com o director. As salas iam ficando cada vez mais pequenas, e as chaves cada vez maiores. Ele perguntou-me se eu queria ver algo realmente especial, e eu, que não acreditava que houvesse alguma coisa ainda mais especial para ver, anuí. Entrámos numa salinha pequena, e ele pôs-me na mão um dos primeiros manuscritos de um evangelho.

Foi nesse momento que eu caí das nuvens. No meu entusiasmo, pensara que o poderia levar a encontrar em Portugal os lugares encantados que sonhara quando vivia ainda preso na União Soviética. Pensara levá-lo muito além de Tralalá. Nem me ocorreu que algum director de biblioteca tivesse tido essa ideia antes de mim. É muito triste ter nascido assim demasiado tarde.

Nessa noite fomos dormir à Pousada de Cascais. Era tarde, estávamos muito cansados, chovia torrencialmente. Mas mal entrámos na Pousada, sentimo-nos a salvo: foram buscar as nossas malas ao carro, estacionaram-no, levaram a nossa bagagem para o quarto. Enquanto avançávamos pelo corredor, fui trocando algumas frases com o desgraçado que puxava o carrinho com as minhas vinte malas (não perguntem, nem eu entendo).
-  O que é que tu fazes às pessoas, que elas ficam todas com um ar radiante?, perguntou o Wladimir.
- Eu?!
- É, pois!, corroborou a Olga. Tão sorridentes, tão amáveis. Nunca vi empregados de hotel tratarem uma pessoa com tanta simpatia.
- Na Alemanha também te tratam assim?
Caí outra vez das nuvens. Nunca me tinha ocorrido que fosse possível ser tratada de outra maneira. Mas ele tinha razão: não é normal um empregado puxar um carrinho tão carregado como aquele e continuar todo sorridente a fazer conversa, para mais àquela hora tardia.
Dizem que viajar alarga os horizontes, mas falta acrescentar que é quando se viaja com a Olga e o Wladimir Kaminer. Capazes de ver o surreal que há na vida dos outros, na minha.

Do corredor dos nossos quartos via-se a piscina coberta, que parecia ao ar livre por cima do mar. Hei-de lá voltar para perceber melhor o fenómeno. Hei-de lá voltar porque a Pousada é linda, e a cama era boa para um sono de mil anos.

Foi o quarto dia.

**

Algumas destas fotografias são minhas, outras da Margarida Parente, outras da Leonor Barros. 

01 junho 2012

havia os fortes, havia os bonitos, e havia...

Finalmente a entrevista do José Riço Direitinho ao Wladimir Kaminer está disponível online.
Copio-a para aqui, só porque gostei muito de tudo: de assistir à interacção entre o entrevistador e o entrevistado (traduzidos pelo Lutz e por mim), e do resultado final que aqui repasso.
Não vou chover no molhado elogiando o trabalho deste entrevistador, mas apetecia-me.

Para terem algum valor acrescentado - porque tenho a certeza que já todos leram o texto e como sempre eu sou a última a saber das coisas - conto um momento especial desta entrevista.
Quando o Wladimir Kaminer contou a sua para nós já famosa alegoria do paraíso perdido, das pessoas que tentam recriar o paraíso de memória e acabam a construir pequenos infernos todos diferentes uns dos outros, o José Riço Direitinho disparou "qual é a diferença entre o português e o alemão?"
O Wladimir saiu-se com aquela síntese de Ulisses e Penélope (impressionante para quem não tem como conhecer bem o nosso país), e a mim, apanhada em falso de extraordinária surpresa, e com o à-vontade acumulado por vários copitos de tinto bebido a desoras com aquele grupinho, escorregou-me um thumbs up com ambas as mãos. Um autêntico "YES! Granda golo!"
Ele riu-se.


Havia os fortes, havia os bonitos, e havia Wladimir Kaminer





16.05.2012 - José Riço Direitinho
Primeiro criou as Russendisko, festas que quase 20 anos depois se tornaram míticas em Berlim. Depois começou a contar histórias e passou-as para livro. O escritor russo passou por Lisboa para apresentar Viagem a Tralalá
Vindo de Moscovo, onde estudou engenharia de som para teatro e rádio, o russo Wladimir Kaminer (n. 1967) conseguiu que, poucos meses antes da queda do Muro de Berlim, a RDA lhe concedesse asilo humanitário e lhe desse um passaporte. Com a reunificação alemã, manteve a nova nacionalidade. Tornou-se conhecido em Berlim quando, nos anos 90, começou a organizar as Russendisko, festas bastante animadas em que, como DJ, passava música pop russa e ucraniana. Durante anos, manteve numa rádio alemã um programa popular, Wladimirs Welt [0 Mundo de Wladimir]. Entretanto, e desde 2000, publicou 18 livros de histórias - em que o burlesco e o pícaro das sociedades da antiga União Soviética, da Rússia e das comunidades dos emigrantes de Leste são retratados com ironia e muito humor. Com eles, tornou-se um dos autores de língua alemã mais lidos.

Kaminer passou por Lisboa para apresentar o livro Viagem a Tralalá (Tinta-da-China) e, claro, também para uma das suas míticas Russendisko, desta vez na Pensão Amor. Umas horas antes, falou com o Ípsilon.



Qual foi a importância das histórias na sua vida? Havia a tradição familiar de contar histórias?
A arte de contar histórias foi para mim uma estratégia de sobrevivência desde a escola, desde o jardim infantil. Havia crianças mais fortes, outras mais bonitas, e eu, que contava histórias. Nessa altura, cheguei a inventar a existência de um tio que eu dizia ser um apresentador de filmes ocidentais em sessões muito restritas para os membros do partido. E eu contava, esses filmes, inventados, aos meus colegas.

Quando decidiu ser escritor?
Com toda a honestidade: nunca quis ser escritor. Nem hoje [risos]. Mas tudo começou com um convite, em 1998, por parte de um grupo alemão, para eu fazer uma conferência num café sobre os cosmonautas russos, que eram milhares, apesar de terem sido poucos os que foram para o espaço. Eles tinham cidades só para eles e para as suas famílias, podiam fumar cigarros ocidentais, e tinham direito aos melhores enchidos [risos]. Os meus pais tinham uma casa de férias perto de uma dessas cidades, e em criança eu e outros trepámos a vedação e fomos ver como eles viviam. Foi essa história que eu contei na conferência, e as pessoas gostaram, acharam graça. Então o líder do grupo, e dono do café, que me tinha contratado, pediu-me para eu fazer outras conferências. Perguntei: e o assunto? E ele respondeu-me: não interessa. Foi assim que comecei a escrever.

Nos seus três livros publicados em Portugal [Militärmusik, Russendisko, e Viagem a Tralalá], escreve sempre sobre a realidade, sobre a sua vida ou a daqueles que se relacionam consigo. O que é que há de ficção naquilo que escreve?
Agora já me arrisco a exagerar, a modificar um pouco as histórias. Mas no início nem me atrevia a mudar os nomes. Tenho muitas vezes a sensação de que a realidade tem traços tão surreais e fantasmagóricos que não é preciso inventar nada. Não preciso da ficção. Vivemos todos numa grande história, que começou antes de nós e que se vai prolongar para além de nós. O meu papel como escritor - como contador - da minha pequena história é encontrar o meu lugar nessa história grande. Recorrendo a uma metáfora: quando no Éden as pessoas quiseram conhecer o mundo, foram expulsas para terem esse conhecimento que tanto ambicionavam; ao mesmo tempo tentaram fazer no mundo jardinzinhos à semelhança do Éden, mas o que conseguiram criar, em cada canto, foi sempre um pequeno inferno, com alguns traços paradisíacos, é certo. Mas não se podem confundir os infernos, não se pode confundir o inferno português com o alemão.

Quais são as diferenças?
O inferno alemão é um bocadinho como nas festas da Russendisko, escuro, apertado, cheio de gente suada. O inferno português é mais poético, é como a história de Ulisses e de Penélope: uma parte dos portugueses saiu do país e a outra parte ficou à espera. Portugal descobriu o mundo mas perdeu-se nele.

A sociedade russa tem mais histórias burlescas do que as outras?
Eu não queria generalizar. A Rússia é um país que se enfeitiçou a si próprio. Como a Bela Adormecida, que dorme, dorme, e não quer acordar. A Rússia tem uma história complicada. Enquanto outros países, como Portugal, se abriram ao mundo, a Rússia ficou a cozer no seu próprio caldo, e isso deu um resultado estranho.

Há já muitos anos que escreve em alemão. Alguns psicanalistas dizem que a nossa verdadeira língua é aquela em que sonhamos. Já sonha em alemão?
Se sonho com os impostos, sonho em alemão. Mas se sonho com o socialismo, só pode ser em russo [risos].

O humor é uma forma de disfarçar a melancolia?
É uma maneira de ultrapassar o trágico da vida.

A ideia de querer ser presidente da Câmara de Berlim, em 2006, foi séria ou uma brincadeira?
Não foi uma piada, foi uma provocação política consciente da impossibilidade. Queria chamar a atenção para algumas coisas, sobretudo o facto de que Berlim não pode ser apenas uma cidade para turistas.

Como é que vê a Berlim actual comparada com a dos anos 90, altura em lá chegou?
Há algo naquela cidade que faz com que ela se consiga reinventar quase permanentemente. Já mudou muitas vezes desde a queda do Muro. O próprio centro está em mudança constante, de um bairro para outro. Só uma comunidade humana flexível e aberta é capaz de sobreviver bem a isto.

Vive no bairro de Prenzlauer Berg quase desde que chegou a Berlim. Na altura, esse era o bairro dos artistas underground, da música, dos bares. Hoje é o mais trendy e um dos mais caros da cidade. Aqueles que na altura tocavam em bares ilegais hoje chamam a polícia se houver barulho depois das 10h da noite. Os artistas aburguesaram-se?
Os artistas que continuaram artistas, os verdadeiros, os que quiseram manter-se jovens, que recusaram ser adultos, mudaram-se para outros bairros. Quem ficou foram os outros, os que se tornaram advogados, professores, engenheiros. E isso, para além da intolerância e da arrogância, trouxe um aumento exponencial de restaurantes indianos no bairro [risos]... e de restaurantes mexicanos, cujos empregados indianos são os mesmos dos [restaurantes] goeses, mas usam agora bonitos sombreros.

22 maio 2012

o expresso do paraíso (3)



Acordar no meio do silêncio do Chora Cascas, abrir a porta do quarto para o exterior, descobrir este pátio só meu, deslumbrante,

(eu sei: devia ter acendido as luzes dentro do quarto, etc. etc.)

chegar à sala do pequeno-almoço, dar com um buffet principesco e um sumo fresco de melão e menta daqueles de ficar ali para o resto da vida.


E encontrar ao lado do prato um chocolate russo:


Imaginei que seria mais um detalhe de hospitalidade do Chora Cascas, mas não: era delicadeza do Wladimir Kaminer, que trouxera os chocolates da Rússia para nos surpreender ali, no meio da planície alentejana, com aquele olhar angélico e ostálgico dos filhos da utopia (não muito diferente, convenhamos, dos anúncios americanos da mesma época - de onde mais uma vez se prova que os comunistas amam os seus filhos da mesma maneira que os capitalistas, e os idealizam talqualzinho e tudo).

No meio da sala decorada no melhor estilo country living, olhando a abundância de croissants e brioches pequeninos e deliciosos, a variedade de queijos e enchidos, as frutas, o bolo de chocolate com nozes, e tudo tudo tudo, o Lutz referiu os resultados de um estudo americano: afinal, a ideia de que o dinheiro não traz felicidade é errada, dizem eles. Durante os primeiros seis mil euros mensais ajuda, e muito; a partir daí é que o acréscimo de felicidade já não é tão grande. O Wladimir Kaminer rebateu. Estava aberto o debate, sobre muitos e variados temas. Ao fim do pequeno-almoço a conversa já era sobre arquitectura moderna e a antiga arte dos artesãos. Mais tarde, em Évora, a Olga havia de comentar, exasperada: "estes homens não conseguem falar enquanto andam?". Não conseguiam. Paravam a cada dois passos, procuravam argumentos, refutavam. O Lutz bem podia reabrir o Quase em Português, tenho a certeza que juntou material para um ano de posts.

(foto da Margarida Parente)



Chovia, o dia estava feioso. Uma sorte, uma sorte: pelos olhares que o Wladimir e a Olga deitavam à piscina e às camas à sua volta, dei-me conta que seriam bem capazes de ficar ali o dia todo. Nem Évora, nem lançamento na Feira do Livro, nem Russendisko - só Chora Cascas forever.

O monte é uma espécie de montra. Quase tudo o que lá está é para venda. Por mim, comprava logo esta obra de um português (hei-de descobrir-lhe o nome, que me disseram mas eu, para variar, esqueci) feita com lã de Arraiolos e muita maestria, de cores bem mais bonitas que as mostradas nas fotografias.






A saída atrasou um pouco, porque a Olga Kaminer queria comprar a sua toalha de banho, que era linda: de espesso algodão, com uma barra enorme de renda. Mas o monte não vende toalhas usadas, pelo que a dona há-de trazer um conjunto novo da próxima vez que vier a Berlim. Já temos um cafezinho apalavrado. Que ninguém diga que eu não contribuo para o entendimento internacional e a construção da Europa e o aumento do valor das acções das companhias de aviação! 

A primeira paragem do dia era no Cromeleque dos Almendres. Aquele conjunto deixa-me sempre sem palavras, presa de uma enorme admiração pelos egrégios avós que se lançaram à conquista da matemática do universo antes ainda de saberem com quantos paus se faz uma canoa.






(fotos da Margarida Parente; a última é uma cena típica desses dias: o Lutz e o Wladimir a falar um com o outro, nós a observar, à espera)

Seguimos para Évora. No caminho, quase apostei com a Olga que o lilás que se via nos campos não era alfazema. Mas depois lembrei-me de uma passagem do Viagem a Tralalá, de como o Wladimir se queixa de perder todas as apostas com a mulher, e tratei de mudar de assunto. Porque um livro é um bom amigo, e quem te avisa amigo é, e além disso o ar seguro da Olga deixou-me muito desconfiada.

Como não conheço bem a cidade, pedi ajuda ao Daniel Carrapa - pelo que tivemos o gosto de o conhecer, e à sua Dora, ao cão de três patas mais famoso da internet e aos restantes arranhadores de sofás. Passeámos pelo centro histórico, tentámos até entrar na Capela dos Ossos (sim, que eu ainda insistia em tornar a viagem inesquecível, e pelos motivos mais díspares). A capela tinha acabado de fechar para almoço. O porteiro estava lá, e eu bem lhe expliquei o meu abre-te sésamo do costume (o escritor alemão, os seus textos lidos por centenas de milhares de pessoas, o vai vir charters de alemães) mas nem pensar em abrir a porta. Volte daqui a bocadinho, dizia ele. Daqui a bocadinho era daí a duas horas, quando já devíamos ir a caminho de Lisboa para as entrevistas aos jornais, mesmo antes do lançamento do livro. Ora, acho muito bem: se as igrejas em Roma fecham quando lhes apetece, porque é que as de Évora haviam de fazer um jeitinho aos turistas de que a cidade vive?
O Wladimir Kaminer estava aliviado. "Sei lá se depois de ver isso continuava a dormir bem", rematou ele, enquanto virávamos costas à Igreja de São Francisco e nos dirigíamos ao centro da cidade.





Ao almoço, falou-nos sobre um curioso empreendimento. Um amigo dele, alguém importante no mundo das editoras (mais um VIP cujo nome esqueci) é casado com uma mulher com raízes na Croácia. Há anos decidiram ir conhecer a terra dela, e apaixonaram-se por uma ilha. Juntaram entre os amigos - do mundo das artes e da literatura - dinheiro para fazerem um hotel sem terem de se endividar nos bancos. Em troca, ficam com direito a ocupar o hotel gratuitamente duas semanas por ano. O resultado é que os proprietários (escritores, músicos, editores, publicistas, actores, etc.) passam duas semanas juntos numa ilha paradisíaca a trocar ideias e a dar-se mutuamente força e apoio nos projectos de cada um. Entretanto iniciaram um segundo projecto: a população da ilha vivia muito da construção de barcos de madeira, que agora já quase ninguém compra. Para reavivarem essa arte, foram buscar um antigo veleiro ao museu, e estão a pagar a sua recuperação, outra vez com capitais próprios. O veleiro permanece propriedade da população e, uma vez recuperado, durante vinte anos cada um dos investidores poderá usar o veleiro gratuitamente durante uma semana por ano, pagando apenas o salário do capitão. Quando não for usado pelos "capitalistas", a aldeia pode alugá-lo a turistas.
Esta história deixou os portugueses daquela mesa muito pensativos. Parece um ovo de Colombo, porque será que não nos lembrámos antes? Porque será que não tentamos isto no nosso país?

Partimos para Lisboa a toda a brida. Ia começar o trabalho: três entrevistas com jornalistas, lançamento na Feira do Livro, russendisko. Antes fomos deixar as malas no hotel. Quis surpreendê-los com o hotel Pestana Palace, gozava antecipadamente a cara que fariam ao entrar no palacete - mas quem acabou por fazer cara de surpresa fui eu. Ao virarmos para a rua Jau, a Olga disse que conhecia aquele lugar. Anos antes, tinham visto uma reportagem sobre esse hotel no jornal FAZ, tão interessante que decidiram ir a Lisboa experimentar. Foi justamente durante essa estadia que aconteceu o furto de que fala no livro Ich bin kein Berliner. Eu a pensar que lhes ia mostrar algo nunca visto, e afinal eles já conheciam o hotel muito antes de mim!

As entrevistas foram morosas. A pergunta era feita em português, o Lutz e eu traduzíamos para alemão, o Wladimir Kaminer respondia, nós traduzíamos para português. Isto, quando corria bem. Porque às vezes o Wladimir esquecia-se que estava numa entrevista, e começava a contar mais uma história ao Lutz. A Olga interrompia-o, chamava-o à razão. Outras vezes, e isso era muito divertido, o Lutz esquecia-se em que língua estava a falar, e repetia em português, para o russo, o que o entrevistador tinha acabado de perguntar. Ou respondia em alemão, para o entrevistador português, o que o escritor tinha dito. Em alemão, sim, mas - honra lhe seja feita! - com outras palavras. Perante as perguntas, sempre as mesmas (porque decidiu escrever? porque escreve em alemão? etc.), tive de conter o impulso de dizer toda contente "deixem-me responder a mim, eu essa resposta sei!", em vez de as traduzir mais uma vez para o Kaminer. E ainda bem que me contive, porque ele punha um ar radiante, tipo "fico muito feliz por me fazer essa pergunta", parava um bocadinho para pensar, e dava uma resposta diferente da que dera ao jornalista anterior, mas igualmente autêntica.
Uma horas mais tarde, a caminho do hotel depois da russendisko, comentei esses episódios com ele. "Descobri já há vários anos que uma pessoa muito cheia de si não vai a lado nenhum. O melhor caminho é o da humildade." - foi a resposta.

Foi um prazer assistir ao trabalho do José Riço Direitinho. Repetiu algumas das inevitáveis perguntas, mas foi muito além. Nomeadamente quando o Kaminer conta, pela - para mim - quarta ou quinta vez, aquela sua teoria das pessoas expulsas do paraíso tentando recriá-lo de memória, e desembocando sempre em infernos todos diferentes uns dos outros, e o entrevistador dispara: qual é a diferença entre o inferno alemão e o português?
O Kaminer parou para pensar, e desta vez era a sério. E saiu-se com uma resposta surpreendente em alguém que não conhece muito bem o nosso país: "O inferno alemão é um bocadinho como nas festas da Russendisko, escuro, apertado, cheio de gente suada. O inferno português é mais poético, é como a história de Ulisses e Penélope: uma parte dos portugueses saiu do país, e a outra parte ficou à espera. Portugal descobriu o mundo mas perdeu-se nele."

Sobre o lançamento na Feira do Livro, já escrevi aqui e aqui.

Sobre o jantar, no Pharmácia, vou primeiro averiguar quanto é que a Editora está disposta a pagar pelo meu silêncio. Adianto apenas que muitas vezes surpreendi o escritor com cara de pré-nirvana e acção de graças, por conta da equipa que lhe tinha produzido o livro em português.

Sobre a Russendisko, escrevi aqui, aqui e aqui. Acrescento ainda que as minhas patroas da Editora estavam com cara de pré-nirvana e acção de graças por conta do escritor que lhes saiu em rifa, e da sua mulher - que fez da russendisko na Pensão Amor algo realmente extraordinário.
Para terminar, uma informação devida: os vídeos dos Kaminer a dançar foram feitos pela Carla R., e o de uma tonta que ouve música russa e acha que é árabe foi feito pelo Paulo Almeida, que felizmente veio à Russendisko num pé e saiu noutro - sabe-se lá que provas materiais viria ainda a coleccionar na Pensão Amor, se tivesse mais tempo.

(foto da Carla R.)

A Russendisko acabou à uma da manhã.
Descemos a rua da Alegria a conversar, apanhámos um táxi para o hotel. Eles estavam simplesmente esgotados. O que ninguém diria, se os visse momentos antes na Pensão Amor. Suspeito que a Russendisko não dure muitos mais anos, e congratulo-me por ter acontecido ao menos uma vez em Lisboa.

Foi o terceiro dia.

o expresso do paraíso (2)


Ao pequeno-almoço, falei como uma gralha. Contei as histórias da rainha Santa Isabel e da sua tia-avó da Turíngia, outras da cidade. Eles ouviam, muito calados. Nada que eu não conheça: em casa, acordam todos como se ainda estivessem a dormir, só eu me levanto com a bateria já no máximo. Eles pareciam preocupados, e pediram desculpa por me deixarem a comer sozinha. Percebi uma hora mais tarde, quando finalmente chegaram ao salão de entrada da pousada: o Wladimir Kaminer tinha estado a telefonar para Berlim, a pedir à sogra os CDs de que precisava para a russendisko, para os levar ao vizinho, para este mandar as músicas pela internet.

Antes de sair da pousada, levei-os à torre. Subimos os degraus de mármore, parámos na sala grande que fica a meio da escalada. Cantei-lhes a canção que andava a preparar há semanas no duche (mas com outra cadência - só eu sei como é que isto se canta...):



Queria que se tornasse um momento inesquecível - a beleza da melodia, a voz enchendo aquela sala de formidável acústica - e tornou-se inesquecível, mas pelos motivos errados: eu estava tão ofegante de todos os degraus que acabara de subir, que a voz me saía nem firme nem cheia.
O Wladimir Kaminer disse: agora tu, Olga. E ela cantou, lindamente. Depois cantaram os dois.
Fiz fotografias, quase com vergonha de lhes devassar aquele momento de beleza.



Pensei que o Wladimir iria desafinar à grande, como conta no Viagem a Tralalá. Em vez disso, cantou um lindo dueto, muito certinho. Talvez seja mesmo como diz no livro: um desafinador profissional - nos momentos de lazer deixa-se disso, e canta naturalmente afinado.

Pedi autorização para publicar estas fotos. Provavelmente nem era preciso pedir. Durante a entrevista da tv, ele deu uma resposta surpreendente: deve haver milhões de fotos dele espalhadas por aí, mas não se importa, porque elas se diluem na internet. Nós a pensar que elas ficam para sempre gravadas como em pedra, e ele - fotografado centenas de vezes todos os dias - sente que se soltam dele e se perdem.



Demos um passeio pela cidade. No mercado do Rossio comprámos nêsperas e nozes. Na pastelaria em frente comprámos doces de ovos variados, que parti aos bocadinhos para provarmos todos. Adoro ter parceiros de viagem que ainda não conhecem o meu país, para lhes poder impingir estas minhas sessões de gastronomia da saudade. Como ainda estávamos no princípio da viagem e eu era muito nova, comprei também gadanhas e empadas de galinha, "para o caso de termos fome a meio da tarde".
Passeámos pelo Rossio, eles partiam as nozes umas contra as outras para as comer a cada passo. Apreciámos as janelas todas diferentes do café Águias d'Ouro, e a orgulhosa fonte do Gadanha. "Não é o mármore a maior surpresa desta cidade", revelei, "é esta água".
Também fomos à pedreira de mármore, mas estava fechada. Certa de conseguir um milagre, levei-os pelo meio do cemitério até ao muro. O meu anjo, desta vez, estava preguiçoso: em vez de uma abertura no muro, deixou apenas umas palettes empilhadas, às quais subimos (e das quais, milagre!, não caímos). Infelizmente, nem assim deu para ver o fundo daquele monumental vazio.
No caminho de regresso, não queriam acreditar que nos jazigos os caixões estavam expostos em prateleiras. Bem lhes expliquei que por dentro são de metal e estão soldados, mas puseram outra vez cara de surrealismo.



A filha deles telefonou, queria saber onde estavam. "Não faço ideia", disse a Olga, "estamos numa cidade toda feita de mármore!" A miúda largou um "Ooooh!" como se nos imaginasse na Bagdad da Sherazade. "Também quero ver isso!"

Mostrei-lhes o pátio da quinta do Carmo, a capela por onde o rei se esgueirava em busca de um amor menos místico. Seguimos para uma herdade nas imediações. Contei-lhes alguns episódios da reforma agrária, a ocupação das herdades. A ordenha mecânica oferecida pela RDA aos trabalhadores daquela herdade, que nunca foi usada, excepto quando as terras foram devolvidas aos anteriores proprietários, e a cena anedótica que se seguiu:
- Então porque é que não usaram a máquina?
- Porque dá mau sabor ao leite.
- Isso é o que se vai ver. Vamos lá passar as vacas todas pela ordenha.
Meu dito, meu feito.
- Então, prove lá - desafiaram os trabalhadores.
- Hiii, que porcaria!
- A gente bem avisou!
Pois avisou, avisou. Só ninguém se lembrou de informar que algumas das vacas tinham acabado de parir, e se tinha misturado leite com colostro. A máquina da RDA foi usada essa única vez, e nunca mais. Mais uma das tantas e tão boas intenções socialistas que se perderam por problemas de comunicação.

A herdade produz agora nozes, amêndoas e avelãs. Deram-nos uns saquinhos. As nozes, de casca fácil de partir e deliciosas, nem chegaram a ver Lisboa, excepto uma que se perdeu entre os bancos do carro.



Queríamos ir ao Marvão, mas o tempo não chegava para tanto, e as nuvens escuríssimas que nos perseguiam não convidavam a grandes passeios. Ficámo-nos pelo restaurante Tomba Lobos, na companhia de um alemão que vive há muitos anos em Portalegre.
Algumas semanas antes tinha combinado com o chefe José Júlio Vintém um menu degustação surpresa. Foi um almoço memorável, numa mesa redonda junto à janela enorme sobre o parque. Os pratos eram postos na mesa, sem nome. Perguntámos ao empregado o que era um deles, particularmente bom. Ele sorriu com ar de mistério: "daqui a bocadinho o chefe vem cá explicar tudo". O chefe apareceu, e revelou que aquilo que nos tinha sabido tão bem eram túbaros. Por uns momentos lembrei-me do Armin Meiwes (o maluco que convidou outro maluco para de comum acordo lhe comer os, ahem, túbaros - um caso tão louco, que a justiça alemã não previa - o que tornou o julgamento muito difícil) mas foi só por uns momentos. Os pratos continuavam a suceder-se, todos deliciosos ex aequo e muito bem apresentados. Hei-de lá voltar no próximo Verão, quero que a minha família experimente aqueles sabores. E, a avaliar pela maneira como três dias depois a Olga e o Wladimir ainda falavam desse restaurante, parece-me que eles levarão lá os filhos quando lhes forem mostrar a vizinha Bagdad.
No fim, fizemos fotos com o chefe (o casal Kaminer comentava que o ar do José Júlio Vintém inspira confiança: vê-se que está satisfeito com o que faz)


e com o empregado, que parece inventado de propósito para trabalhar naquele lugar: simplesmente perfeito de delicadeza, simpatia e bom humor


Já na rua, o nosso conviva perguntou se no caminho para sair da cidade podíamos parar por uns momentos na casa dele, para a sua mulher, que ajudara a preparar a ida a Portalegre mas ficara retida em casa com a filha doente, conhecer o casal. Pareceu-nos bem, e fomos. Agora, à distância, parece-me que andei a fazer entrega de escritores ao domicílio. O problema (será problema?) é que vejo nas pessoas as pessoas que são, e me esqueço muitas vezes do status que trazem consigo. As pessoas que são gostaram de parar para conhecer aquela portuguesa simpática e a miúda amorosa que os observava com olhos enormes de curiosidade.

Parámos uns momentos em Estremoz para comprar garrafões de azeite. Convenci-os a levar também um, Vila Nova. Que comprei para mim, juntamente com outro de Estremoz, o Lavrador. O Wladmir protestava: "levar três garrafões de azeite para a Alemanha? Isso é contrabando!" - parece-me que tivemos aqui um pequeno choque cultural.
Antes, ao entrar no supermercado, tínhamos tido um grande choque cultural. Eu pedira a umas miúdas ciganitas se nos trocavam uma moeda de dois euros por duas de um. "Eu tenho, mas não troco", disse uma delas, e largou um chorrilho de provocações. Mais uma cena surreal: eu tratava-as com delicadeza, elas respondiam com agressões. "Os sapatos dessa mulher são de velha", dizia uma, "e o cabelo dela, parece um homem!", acrescentava outra. "Eh, pá, vocês hoje estão mesmo simpáticas...", respondia eu. O encontro acabou com elas de olhar desafiador a espetar o pai-de-todos na nossa direcção, e nós a virar costas.
"O que é que elas têm contra mim?", perguntava a Olga.
"Aquilo é mesmo o dedo médio espetado, o que estamos a ver?", surpreendia-se o Wladimir.
E eu a tentar explicar-lhes que isto são muitos séculos de segregação e humilhações, eu a pensar se devia ter gritado, insultado e ameaçado, para elas sentirem que o mundo continuava com todas as gavetas no seu lugar certo.

Seguimos para Montemor-o-Novo, para apresentar o livro na Fonte de Letras. A sala estava cheia de gente interessante, realmente cheia, com pessoas em pé e tudo, e vou omitir agora comentários sobre o deserto a sul de Lisboa e outros temas afins. As fotografias que se seguem são do António P., a segunda está tremida por causa, provavelmente, de um terramoto que se sentiu há anos em Arraiolos. No Alentejo, como é sabido, o tempo de reacção é um pouco mais lento.




A apresentação correu bem (no blogue da Fonte de Letras há um bom resumo: a festa de babel), e o debate foi muito divertido, porque o Wladimir Kaminer, em vez de entrar em discussões do género "análise comparativa do realismo de Tralalá com o surrealismo do Daniil Harms " (isto sou eu a inventar) dá uma gargalhada, diz "outro dia estive ao telefone com a mulher do Daniil Harms" e depois conta a história milaborante da vida daquela mulher, uma permanente fuga em frente casando com quem a ajudava em cada etapa da jornada - uma espécie de síndroma de Estocolmo com sintomas Tralalá.

A Olga apareceu muito sorridente, com um copo de Hefeweizen quase cheio de vinho branco alentejano. Não compreendia aquele mundo, mas estava-lhe completamente rendida: tinha ido ao café ao lado pedir um copo de vinho branco, porque na Fonte de Letras só havia tinto, e ofereceram-lhe aquele copázio.

A seguir, juntou-se no restaurante um grupo amável, e brindámos variadíssimas vezes a tudo o que a conversa sugeria. Comer com o Wladimir Kaminer tem esse detalhe divertido: cada novo assunto da conversa merece-lhe um brinde, "aos queijos portugueses", "ao entendimento entre os povos", "às mães", ao que calhar - como se quisesse sublinhar o tema do momento. Ah, cronista.  

Nessa noite, ficámos no monte Chora Cascas. Inicialmente estava previsto irmos dormir ao Pestana Palace, em Lisboa. Mas houve uma mudança de planos, a apresentação do livro em Montemor foi mudada de quinta para sexta, e era um disparate ir dormir a Lisboa para regressar a Évora na manhã seguinte. A dona do Chora Cascas, mesmo ao lado de Montemor-o-Novo, ofereceu-nos guarida. "Ofereceu guarida", é como quem diz: alojou-nos sumptuosamente. Aquele monte é indescritível.



O meu quarto era tão perfeito que quase me tentei a dormir no chão, para não quebrar o encanto do espaço. Antes de me deitar, fiquei a olhar o linho italiano dos lençóis - parecia-me um desperdício dormir nele. Devia antes ficar acordada a noite inteira, a saborear o luxo. Mas meti-me na cama, adormeci imediatamente, e foi de rajada até à manhã seguinte. Mal aproveitado linho...

Foi o segundo dia.