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06 abril 2024

a Páscoa do futuro

 

„O que é a Páscoa? Sei que morreu alguém – mas quem era essa pessoa?”

Quem fazia tais perguntas era um jovem inglês, finalista do liceu na Escola Europeia de uma cidade do sul da Alemanha, em finais do século XX. Depois de superar o meu próprio espanto, falei-lhe do Natal (um Deus que se faz humano), de Jesus (“oh, esse era um tipo cool, toda a gente o conhece”, comentou ele com um sorriso enorme) e por fim narrei a traição, a morte na cruz e a ressurreição. Olhou-me como se tivesse acabado de lhe contar uma história delirante. “Vocês acreditam nisso?!”, perguntou ele, e no seu rosto espelhou-se uma tolerância benevolente. 

Transmitir a alguém a fé cristã é uma tarefa muito difícil. Especialmente quando os valores e os simbolismos são transportados por uma Igreja que se revela de mãos sujas ao longo da História – e, por desgraça, também no presente. A sede de espiritualidade e transcendência continua a existir no ser humano, mas os caminhos dessa busca são cada vez mais diversos e, nomeadamente no contexto social europeu, deixaram de ser um monopólio das Igrejas. Ao mesmo tempo, a cultura e os valores mais essenciais da nossa Europa assentam no Cristianismo. Sem um conhecimento básico da tradição cristã, ninguém entenderá o essencial de muitas obras de Bach ou Da Vinci, por exemplo. E, no que diz respeito aos valores, reconhecemos a maior grandeza àqueles que agem movidos por imenso amor aos outros – o que é, afinal de contas, o essencial da mensagem de Jesus Cristo.

Num mundo onde convivem cada vez mais o ateísmo, o agnosticismo e múltiplas espiritualidades alternativas, qual será o lugar do Cristianismo e da sua interligação com a nossa cultura? Será que, em algum momento, as imagens da cultura cristã passarão a ser vistas e entendidas do mesmo modo que as da antiguidade clássica? “A Anunciação” equiparada a “Leda e o Cisne”? “O Rapto das Sabinas” ao lado de “A Matança dos Inocentes”? Será que frases como “atire a primeira pedra” e “mais facilmente passa um camelo pelo buraco de uma agulha...” serão usadas com a mesma ignorância sobre o contexto original com que hoje em dia dizemos “o dinheiro não tem cheiro” ou “in vino veritas”? 

E se outra fé vier ocupar o lugar do Cristianismo, e se sociedades futuras misturarem novos simbolismos às nossas datas maiores: quem ressuscitará no domingo de Páscoa? 

Não sei, mas estou certa de que se tratará sempre de um Ser que apela ao melhor que há em nós, e que nos convida a ir para além da nossa imperfeição humana, com vista à construção de um mundo melhor para todos. O que quer que seja que isso significa: caberá sempre a nós descobrir.  



12 abril 2022

maus caminhos

 

Aconteceu no princípio da Semana Santa: dei comigo a imaginar que o mundo parasse durante um minuto para que cada um rogasse uma praga ao Putin.

E logo a seguir imaginei-me na pele do Putin tomando consciência de ser o epicentro de milhares de milhões de ondas negativas, carregadas de ódio, em todas as línguas do planeta. Caí em mim: não se pode fazer isto.

Como é possível que me tenha ocorrido um gesto de tamanha violência simbólica? Porque não me ocorreu, em vez disso, pedir ao mundo que parasse um minuto para enviar ondas positivas ao Putin, para ele ganhar juízo e desistir da invasão da Ucrânia?

Isto: estamos na Semana Santa, e não me ocorreu rezar pelo Putin.

Se calhar já entregava o "cartão do clube" - o documento do baptismo? - e aceitava que o meu cristianismo se perdeu algures por maus caminhos.


26 maio 2020

"paciência"

A frase de um colega da Enciclopédia Ilustrada sobre a #paciência de Job, que foi "testado por Deus, que se aliou ao Diabo para confirmar a sua fé", é uma excelente síntese do que me incomoda no Livro de Job.

Bem sei que este texto marca uma evolução importante na intuição do divino, deixando para trás a ideia de um Deus da lógica simples ("se te acontece alguma coisa má, algum pecado grande hás-de ter feito", ou o seu inverso, nas palavras irónicas de um amigo: "o Deus no qual nem sequer acredito gosta muito de mim") e passando para um Deus de misteriosos desígnios que não podemos entender nem devemos ter a veleidade de tentar interpretar.
Ou seja: um Deus independente das mesquinhices dos humanos.

Mesmo sabendo isso, e mesmo sabendo que se trata de uma construção literária, o início do livro irrita-me: Deus a fazer apostas com o diabo?! Arre!

Descobri um valor mais profundo para esta paciência de Job ao ler o cartão que informava sobre a morte de um tio do meu marido. Quando soube que tinha um cancro fez ainda com a mulher todas as viagens que pôde, lutou contra a doença e ao mesmo tempo preparou-se para morrer. Foi ele quem preparou o seu próprio cartão, no qual se vê uma pintura de um artista alemão contemporâneo: Job, de costas, com a pele coberta de pústulas, erguendo os olhos e os braços para o alto. E a pergunta sobre o sentido do que lhe acontece: "porque me envias este sofrimento, meu Deus?"

Não sabes. E nunca saberás. É essa a mensagem do Livro de Job (esquecendo a parte da aposta): a vida é isso mesmo - em algum momento seremos apanhados por um sofrimento que sentimos não ter merecido nunca. Não é Deus a ajustar contas connosco, é simplesmente o imprevisível, o inexplicável e a parte mais cruel da nossa condição de vivos a acontecer.

Fazer o quê? Em certos casos, o único paliativo é a paciência.

E porque é que Deus criou um mundo onde há sofrimento inexplicável?, perguntarão. Ora bem: ninguém se lembrou ainda de escrever esse livro, que provavelmente é o mais difícil de todos.
Mas escreveram o segundo mais difícil, o que nos dá a regra para estar no mundo tal como ele é: "ama cada um dos outros, certo de que ele é, como tu, um filho de Deus"
(hã? que me dizem desta síntese?)
O terceiro livro mais difícil é este de Job: perante aquilo que não compreendes e não podes mudar, só te resta a paciência.

(Ultimamente, a paciência tem sido trocada pelas teorias da conspiração: perante aquilo que não compreendes e não podes mudar, aderes a uma teoria qualquer que identifica um culpado simples e te dá, por consequência, a sensação de que tens a chave para a resolução do problema. Mas isso seria tema para outro post.)


15 maio 2020

Fátima 2020


 (Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo) 



(Foto © Renascença)

Provavelmente fui a última pessoa a dar-se conta desta entrevista excelente com o D. António Marto (aqui), mas paciência: quando é para ter alegrias, mais vale tarde que nunca. E esta entrevista só me deu alegrias: o cuidado que ele teve de, ao falar sobre as celebrações em Fátima, reconhecer que há uma diferença entre estas e as comemorações do 25 de Abril e do 1º de Maio; a preocupação de garantir o pagamento dos salários dos funcionários; a firmeza com que assumiu que a Igreja tomou as suas decisões sem ser pressionada pelo governo; a simplicidade com que explicou a sua posição: "Eu não queria ficar na história como o bispo responsável pelo agravamento da pandemia a nível nacional".

Aqui está, em toda a sua grandeza, um exemplo do que deve ser um cristão: o respeito pela vida humana e o uso da palavra para construir a paz entre as pessoas.

Impedidos de ir a Fátima, muitos católicos acenderam velas junto às janelas da sua casa, ou acenaram com lenços brancos à imagem da Virgem que algumas paróquias levaram em carrinhas pelas ruas do bairro. Não é o mesmo que ir a Fátima e tomar parte num momento de transcendência com muitos milhares de pessoas. Mas é, ainda assim, participar numa ponte entre a vivência pessoal da Fé e um espaço simbólico de celebração comunitária.

Por sua vez, os muçulmanos também tiveram de tomar decisões muito difíceis. Como informa o Sete Margens, a mesquita de Lisboa decidiu permanecer fechada mesmo no período do Ramadão - o mês sagrado dos muçulmanos. 

Infelizmente assistimos - e não apenas em Portugal - a alguns episódios entre o triste e o ridículo: reacções com tiques de luta de poder nuns casos, egoísmo puro e duro noutros casos, e ainda algumas situações nas quais a empatia e a atenção às necessidades das pessoas levou alguns responsáveis a perder a noção do risco em que estavam a colocar terceiros.

Mas o panorama geral que o mundo religioso português me dá durante esta crise é o da grande maturidade dos crentes e dos representantes das organizações religiosas, bem patente nas decisões que tomam e nas declarações que fazem.
E isso tem de ser dito.


14 maio 2020

"dogma"

Durante muito tempo pensei que #dogmas eram pedaços da doutrina decididos há mil anos, quando ainda era preciso fazer ajustes ao edifício católico. Por isso fiquei muito surpreendida ao dar-me conta de que o dogma da Imaculada Conceição só foi estabelecido em 1854. Ora, isso é quase na altura em que os meus bisavós estavam para nascer, ou seja: ali à esquina da minha própria história.

Sim: em 1854 a teologia da Igreja Católica ainda andava a discutir se a mãe de Jesus tinha nascido sem mácula. E não pensem - como outras pessoas que eu cá sei... - que com isso quer dizer que também a mãe dela, aquela santa mulher, não andou a fazer malcriadices com o santo do seu marido. Não, senhores. Imaculada Conceição quer apenas dizer que Maria nasceu, ao contrário de todos nós, sem pecado original. Porque parecia mal o filho de Deus encarnar no corpo de uma mulher em pecado. Involuntário, pois claro, porque já vimos ao mundo com ele, mas pecado na mesma.

É uma pena decidirem estas coisas sem me perguntarem a opinião. Dizia-lhes logo: tirem daí a ideia, porque essa jogada é desmoralizadora: se tiram o pecado a Maria, dizendo que era tão pura que até foi concebida sem pecado original, afastam-na dos comuns mortais, transformam-na numa extraterrestre mais para lá que para cá. Deixa de ser uma de nós, deixa de ser como nós: não precisa de se debater quotidianamente - como nós - para se erguer acima da lama da qual nasceu. E criam um problema à figura de Jesus Cristo, que passa a ser humano só por parte dos avós maternos. 

Como se não bastasse, em 1870 o Vaticano ainda se saiu com o dogma da infalibilidade papal, que quer dizer: em caso de dúvida, o papa tem a última palavra.

Mas o que é realmente grave é isto: no século XIX, quando a classe operária - um grupo cada vez maior de pessoas a viver em terríveis condições decorrentes da revolução industrial - se estava a afastar a passos largos da Igreja, em Roma discutiam-se bizantinices como o pecado original da mãe de Jesus e os critérios para estabelecer as verdades da Fé naquelas partes mais complicadas que os mandamentos de Cristo.

Será que o Vaticano aprendeu com o estrondoso falhanço junto da classe operária do século XIX, e, já agora, com o falhanço junto da classe intelectual do século XVIII? Pois parece que não: em 1950, cinco anos depois de Auschwitz, e pouco antes de eu nascer, ainda se saíram com o dogma da ascensão de Maria ao céu não apenas em alma, mas também de corpinho bem feito.

Mas escusam de se rir: por causa disso têm um feriado em Agosto. Respeitinho, vá.

(De repente lembrei-me de um padre da minha comunidade, a da Serra do Pilar, a desancar o pessoal que enchia a igreja no dia 15 de Agosto: "Porque é que nunca vos vejo aqui ao domingo? Que religião é a vossa, que só vos traz à missa neste dia?")


20 abril 2020

ai, e tal, os cristãos não puderam celebrar a Páscoa mas o Parlamento pode celebrar o 25 de Abril...

Um dos argumentos mais usados por quem critica as celebrações do 25 de Abril é o da Páscoa: então os cristãos não puderam celebrar a festa maior do Cristianismo, e o Parlamento pode celebrar o 25 de Abril? Então as regras não são iguais para todos?

Facto é: o Parlamento não deixou de trabalhar. O que seria estranho era o Parlamento abrir todos os dias para legislar, mas fechar no dia 25 de Abril.

Imaginem que a Igreja Católica tinha continuado a ter missas diárias, cumprindo determinadas regras de segurança, durante todo o mês de Março e no princípio de Abril, mas na Semana Santa suspendiam tudo por causa da covid-19. Qual era a lógica disto? Nenhuma. Ninguém aceitaria fechar as igrejas justamente na Páscoa, caso tivesse havido missas nas semanas anteriores.

A mesma lógica se aplica ao Parlamento: porque é que devia fechar no dia maior da Democracia portuguesa, se tem estado a trabalhar todos os outros dias?

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Podíamos discutir os critérios para fecharem as igrejas e manterem o Parlamento aberto.
Boa questão - houve até uma paróquia berlinense que levou o caso a tribunal, alegando que o fecho das igrejas era um atentado à liberdade religiosa. O tribunal não lhe deu razão, e as igrejas permanecem fechadas.

No que diz respeito ao Parlamento, parece-me que ninguém põe em causa a sua importância: é essencial à sociedade e deve ser equiparado aos serviços fundamentais que não podem ser suspensos.

No que diz respeito à religião: por um lado, não é possível garantir que todas as pessoas das assembleias comunitárias tenham um comportamento rigoroso de prevenção de contágio (se nos supermercados já é o que se vê, quanto mais em lugares que são, por excelência, espaços de proximidade); por outro lado, pergunto se a celebração em comunidade é essencial para os cristãos sentirem a presença do Espírito Santo.

Desenvolvo um pouco mais: um padre meu amigo comentou recentemente que ouviu muitos católicos afirmarem que nunca viveram a Páscoa de modo tão profundo como em 2020. Aqueles para quem a Páscoa é realmente a festa maior do Cristianismo foram capazes de a recriar no confinamento do seu lar. A Igreja saiu dos templos, e entrou na casa das pessoas; em vez de decorrer como tradicionalmente na comunidade, este ano a celebração da Páscoa nasceu do coração e dos gestos de cada crente que a quis celebrar com verdade. Essas pessoas sentiram a presença do Espírito Santo nelas, e por isso disseram que nunca tinham vivido uma Páscoa de forma tão intensa.
 
Esta enorme crise, que tanto sofrimento tem causado, pode oferecer às Igrejas algo muito positivo: a oportunidade para os crentes se reinventarem como sujeitos da sua própria Fé e para, quando melhores tempos vierem, regressarem ao seio da comunidade revestidos de uma nova consciência de si próprios e da sua responsabilidade na casa comum.