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13 abril 2020

ilusões



O arquivo do facebook lembrou-me um post que publiquei há 4 anos:

Há no South West dos EUA (haverá outro South West?) um canyon muito estreito, subterrâneo, onde ao meio-dia os raios do sol entram a pique. O guia atira areia ao ar, para os turistas fotografarem melhor aqueles raios de luz (parece uma conferência de imprensa, é quase ridículo). Ora então, minhas senhoras e meus senhores, aqui vos deixo os raios de sol do meio-dia no Antelope Canyon:




Hoje - neste estranho Abril de 2020 - vou, finalmente, revelar um segredo bem guardado: isto é muito mais bonito nas fotografias que no próprio local. No local também é bonito, não nego, mas tem demasiados turistas, além dos fotógrafos parados no meio do caminho. E tem corredores estreitos, tem partes sem interesse nenhum. Mais vale ficarem quietinhos em casa, a ver pela internet mundos maravilhosos, sem ter o desconsolo de irem ver a realidade e ganharem uma decepção suplementar...

(Isto sou eu a tentar ver aspectos positivos nesta nem sei já quantésima semana de isolamento generalizado...)



02 julho 2010

Monument Valley


A aproximação mais deslumbrante a Monument Valley é pela scenic road 163, vindo de Bluff.
Ainda tentei convencer os companheiros de jornada a irmos almoçar a Bluff (tem lá um restaurante realmente agradável e com óptima cozinha - um caso raro no Sudoeste -, junto a um trading post com artesanato indígena realmente bonito e finamente trabalhado - outro caso raro no Sudoeste) mas eles estavam com pouca vontade de viajar setenta milhas suplementares. Além disso, já tínhamos feito aquele percurso em 2001, e é de supor que no entretanto a paisagem não se tenha alterado substancialmente para melhor.

Estava tudo marcado para nos encontrarmos com um guia a meio da tarde no The View Hotel. Iríamos no carro dele para o interior do parque, e lá ficaríamos acampados. Com a promessa de um pôr-do-sol inesquecível, um serão mágico sob as estrelas, uma alvorada deslumbrante. Cinco meses antes telefonara a combinar tudo (se não acreditam: tenho provas), uns dias antes telefonara de novo, tudo OK.

Chegámos ao hotel, nada. Perguntámos na recepção, não sabiam de nada. Esperámos. Perguntámos de novo. Foram muito simpáticos: telefonaram para a empresa, perguntaram. Esperámos de novo. O que não é tão trágico como parece: todo aquele hotel é uma beleza de bom gosto, cultura tradicional e conforto. A paisagem é extraordinária (não é por acaso que se chama "The View"), e tem várias lojas onde se pode gastar muito tempo como nos museus: a ver. Finalmente, apareceram dois navajos. Completamente alheios a tudo, começaram a desenrascar uma solução (aqui arrisco uma hipótese revolucionária: o seu povo não terá vindo pelo estreito de Bering, mas com os primeiros bacalhoeiros portugueses). O problema é que nós já tínhamos passado duas horas naqueles sofás confortáveis, e a última coisa que nos apetecia era sair para o meio da natureza agreste, para uma noitada que não tinha sido convenientemente preparada. Comecei a temer que nos servissem pizza congelada ao jantar, por não terem tido tempo de pedir à avó que lhes fizesse boas comidinhas tradicionais. De modo que perguntámos delicadamente se eles ficariam muito frustrados se não nos tivessem como companhia naquela noite, e a cara de alívio que fizeram deu-me vontade de correr para o psicólogo mais próximo. Combinámos que no dia seguinte nos encontraríamos às cinco e meia da madrugada para ir ver o nascer do sol nos confins sagrados do vale, e fomos a correr alugar um quarto. Conseguimos o último disponível, nas traseiras do hotel, e com apenas uma cama.

O The View Hotel foi construído em 2008 sobre uma plataforma natural, em frente às duas formações Mitten (as duas luvas mais fotografadas do mundo inteiro, depois das do Michael Jackson). Procurou-se integrar o edifício na paisagem, dando-lhe a mesma cor das rochas adjacentes, e fazê-lo reflectir a cultura navajo, para o que usaram na decoração os seus elementos estilísticos e artesanato. Quase todos os quartos são virados para aquele espectacular cenário. Nas traseiras, ao lado do parque de estacionamento, tem alguns quartos mais pequenos, apenas com uma cama - ao contrário do habitual em hotéis americanos, que é duas camas de casal -, por metade do preço. Tendo em conta que (1) nós queríamos o quarto para dormir e não para ver a paisagem, (2) metade do preço é sempre uma vantagem e (3) era o único que havia, aceitámos muito contentes e aliviados o que nos deram. Tanto mais que não se importavam que trouxéssemos do carro os colchões de campismo dos miúdos para eles dormirem no chão.

Junto ao hotel inicia-se um percurso panorâmico pelo vale, com 17 milhas, que pode ser feito sem guia, mas exige carro adequado: as estradas são meros caminhos de terra batida, esburacados e cheios de pedras. Resolvemos aproveitar as últimas horas de luz para fazer esse passeio.
As formações mais interessantes têm nomes para turista ver: Titanic, Elefante, Três Freiras, Polegar. Mas os navajos não esqueceram os nomes antigos, e o carácter sagrado daquelas pedras. Esta é terra tocada pelos Entes Sagrados, que no princípio do mundo nela abriram os seus caminhos.



As "luvas" (The Mittens), por exemplo: são duas mãos adormecidas, deixadas pelos Sagrados como promessa de que um dia regressarão e governarão o mundo a partir de Monument Valley. Nelas mora o Talking God que, a cada amanhecer, surge da terra e abençoa todas as rochas e mesas do vale.
Mau grado o insigne inquilino, a formação da direita, Merrick Butte, é assim chamada em memória de um soldado que tentou arrancar prata desta terra, e foi morto e enterrado ali mesmo, juntamente com um amigo que empresta o nome a outra butte famosa, a Mitchell Butte.








No meio de tantas rochas e areia, uma surpresa: vida.
Árvores, e um verde fascinante, muito vivo no contraste com a terra avermelhada.




Ao anoitecer fizemos esta fotografia. Claro que o que se vê é só resultado de uma incompetência fotográfica teimosamente cultivada. Mas podemos inventar, e garantir que em Monument Valley vimos os Espíritos sair da terra ao anoitecer - para abençoar as pedras, e talvez até o que resta de orvalho nas estrelas.

O jantar, no restaurante do hotel, foi memorável: uma interpretação moderna da culinária navajo. Tudo muito saboroso. E um fry bread com mel que era de comer e engordar por mais. Um músico da região fazia música ambiente numa flauta tradicional, o que, sendo muito bonito, não nos dava jeito nenhum: temos a mania de conversar enquanto comemos.

A seguir ao jantar, passaram um filme ao ar livre. Tudo perfeito: a temperatura amena, as estrelas, os famosos maciços rochosos recortando-se contra o que sobrava de luz, um western filmado naquele local. De John Ford, obviamente - que, em troca do uso daquele cenário, decidiu deixar aos navajos os vestígios da sua passagem, e por isso lhes ofereceu os edifícios que tinham sido construídos para fazer os filmes. Revelando rara intuição, os navajos agradeceram penhorados, e a seguir mataram dois coelhos de uma cajadada só: desmantelaram tudo, levaram os materiais para melhorar as suas casas, e livraram-se do risco de ver nascer nas suas terras uma espécie de Westernland com shows variados, montanhas russas e hot-dogs.



Pois, o filme. "She Wore a Yellow Ribbon", com as trapalhadas da cavalaria, uma história de não-amor mal-amanhada, e índios ameaçadores: uma gente muito má, muito má, muito má. Não sei que me parece passarem aqueles filmes numa reserva navajo - para nós foi muito penoso. Aproveitei estarmos no terraço, ao ar livre, para virar a minha cadeira na direcção das estrelas. O John Ford que me perdoe.

Também nos foi muito penoso levantar às cinco da manhã, para nos encontrarmos com o nosso guia. E subir para o seu pequeno camião do "shake and bake tours". Mas valeu a pena.




Passámos por um regato de prata e fomos para uma planície junto de Yeibi’chei e do Totem Pole, onde vimos nascer o sol na mais absoluta tranquilidade.
Reza a lenda que Yeibi’chei são seres sagrados petrificados. Nós vimos sentinelas atentas à primeira luz da madrugada. A seu lado, o Totem Pole, uma das pedras mais sagradas do vale. Junto à coluna fazem-se oferendas e rezas para que os deuses enviem a tão almejada chuva.
(Os miúdos interessaram-se muito por esta formação, mas não conto porquê)





O mais fascinante, para mim, era a luz rasa da manhã que mudava a substância de tudo o que tocava.



O guia era homem de poucas palavras - uma experiência bem diferente da que tivéramos em Canyon de Chelly. Mesmo assim, conversámos um pouco. Contámos-lhe do nosso desconforto ao ver o filme do dia anterior, onde os índios apareciam sempre de perfil e com ar selvático e ameaçador. Ele riu-se, e comentou com um certo desprezo: "o John Ford filmava sempre em frente às mesmas rochas".
Depois levou-nos a passear pelo vale.

À Eye of the Sun,




e à Ear of the Wind,







e a ver vestígios dos antigos.


Dizia-nos: "venha para aqui, para fazer uma boa fotografia", e nós íamos e fazíamos como ele mandava.
Os miúdos, que sabiam bem que pisávamos solo sagrado, perguntavam: podemos ir até ali? podemos ir até acolá?
Ele ria-se: se acham que conseguem, podem.

Ele próprio subia aos sítios mais incríveis. Contou-nos que ninguém do seu povo sofria de vertigens. Nós muito admirados, e os de Manhattan ainda mais: eles pensavam que eram só os mohawk...



De novo na carrinha, de regresso ao hotel, o guia estacou de repente e saltou para a estrada. Começou a andar de um lado para o outro, olhando para o chão. Saímos também. Mostrou-nos marcas na areia: "passou por aqui uma cobra". Seguia-lhe o rasto. Cumpria na perfeição o seu papel de índio, e nós o de turistas satisfeitos: fizemos fotografias, procurámos a cobra com ele. Finalmente, apontou para um buraco: "deve ter-se metido por ali".
Regressámos ao carro sentindo uma enorme admiração por ele. Das duas, uma: ou combinou previamente com a cobra, ou tem olhos de lince para conseguir distinguir, àquela distância, o rasto dos diferentes animais no caminho.





Já perto do hotel, vimos um balão junto a The Hub. Para os turistas, é uma roda e o seu eixo. Para os navajos, é um hogan que se transformou em pedra, rodeado de bisontes, também eles petrificados.

Despedimo-nos do nosso guia, fomos tomar o pequeno-almoço, depois o Joachim foi correr um bocado porque se andava a preparar para a maratona de Setembro, em Berlim. Chegou passada meia-hora, esgotado de calor. Aplaudimos muito o nosso herói. Uma última fotografia das residências do Talking God, e zarpámos.


Etapa seguinte: Lake Powel e Antelope Canyon. E ainda: travessia do Grand Canyon para os homens, Las Vegas para as mulheres (poupem-me às piadinhas, por favor). E Coral Pink Sand Dunes. E Bryce Canyon. E a scenic route 12.
Em Setembro conto o resto. De momento não posso, porque tenho compromissos importantes e inadiáveis.

28 junho 2010

Canyon de Chelly


O nome deste canyon e a sua pronúncia (də·shā′) são um bom reflexo da história conturbada das culturas que aqui se sucederam e combateram. Os diné chamam-lhe „Tséyi’“, desfiladeiro - literalmente: dentro das rochas. Os espanhóis optaram por escrever "de Chelly". Os americanos leram o nome, e acharam que era francês. Em suma: para pronunciar "de Chelly" segundo o uso actual, basta imaginar um americano a tentar falar francês - é mais ou menos por aí.

O nosso primeiro contacto com a paisagem de Canyon de Chelly foi o mais difícil: o miradouro de Massacre Cave, no North Rim. A paisagem é deslumbrante, mas é impossível ignorar a cena que no inverno de 1805 ali se desenrolou: fugindo a uma expedição militar espanhola, que vinha retaliar um ataque navajo, um grupo de famílias refugiou-se numa reentrância da falésia. Os soldados descobriram o seu esconderijo, vieram para o ponto da orla do desfiladeiro onde existe hoje o miradouro, e começaram a disparar para os navajos completamente expostos, matando 115 pessoas. Ainda hoje se podem ver as marcas das balas na parede de pedra. Os sobreviventes foram feitos escravos. Muitos navajos daquela época foram obrigados a trabalhar em condições desumanas nas minas de prata mexicanas.
É verdade que também os navajos raptavam pessoas de tribos inimigas para as escravizar e até vender - os pobres paiutes, mais ao norte, que atravessavam o Inverno em estado de semi-hibernação porque quase não tinham o que comer, eram raptados no início da Primavera, época em que estavam tão debilitados que não se conseguiam defender; seguia-se um tratamento de engorda, e o trabalho forçado nos campos dos navajos, ou a venda. Os espanhóis não estavam a inventar nada de muito novo quando escravizavam os navajos - mas, convenhamos: ladrão que rouba ladrão, não deixa de ser ladrão.

Um pouco mais à frente, fica um dos melhores miradouros, de onde se pode ver o grande complexo de Mummy Cave - assim chamado porque se encontraram lá duas múmias. Esta povoação, abrigada sob a massa monumental do paredão, foi habitada continuamente durante mil anos, de 300 a 1300. O conjunto arquitectónico mais recente foi construído por volta de 1280 por pessoas provenientes de Mesa Verde.

Mais dois miradouros (Antelope House e Ledge Ruin), e chegámos a Chinle. Fomos imediatamente ao centro de informações marcar uma visita guiada, dado que, à excepção do White House Trail, a entrada no canyon só é permitida a pessoas acompanhadas por um ranger ou guia navajo autorizado.

Em seguida fomos à procura de um hotel que nos confortasse os ossos e limpasse da alma o desconsolo que foi a experiência do campismo em Chaco. Encontrar um hotel em Chinle não é difícil: só há três. Optámos pelo Holiday Inn, que tem uma pequena piscina ao ar livre. Ah, poder tomar um duche! Ah, poder lavar a louça na casa de banho sem letreiros a dizer "arreda"!
Os miúdos desapareceram para os lados da piscina, e nós fomos explorar o hotel, e verificar a hora dos nossos relógios. É que a reserva navajo adopta o horário de Verão, ao contrário da prática no Arizona e nas regiões dos hopi. Em viagem por aquela área, o turista desprevenido nunca sabe a quantas anda. Um fenómeno que tem ocupado bastante a ciência, e foi magistralmente explicado por Einstein: tempo e espaço estão interligados.

À hora certa (confirmámos várias vezes) para a visita guiada, dirigimo-nos de novo ao centro de informações. A guia, uma navajo sem trança e com ar muito simpático, já estava à nossa espera. Na caixa, perguntaram-nos se tínhamos um veículo com high clearance. Temos um SUV, dissemos nós, todos ufanos, porque o tínhamos alugado propositadamente para as estradas de Chelly e Chaco. Mas tem high clearance?, insistiram eles. Bem, é um SUV..., retorquimos hesitantes. Um SUV com high clearance? - pareciam obcecados. Não sabemos..., respondemos nós, e era verdade: não sabíamos o que é que eles queriam dizer exactamente com aquela expressão.
Impaciente, a guia afirmou que sim, que a nossa high clearance era suficiente, e entrámos no canyon. Percebemos logo o motivo da obsessão: os caminhos são arenosos, e em alguns pontos têm sulcos profundos. Em parte, anda-se no leito seco dos aluviões. O Joachim precisou de toda a sua habilidade (e é muita) para conseguir fazer avançar o SUV naquele terreno sem deixar lá o pára-choques.


Durante as quatro horas que a visita demorou, a guia foi incansável a explicar o que víamos e a responder às nossas perguntas.


Logo no início apontou a bela mancha verde que se estende ao longo do rio e se tornou uma imagem distintiva de Chelly: uma catástrofe ecológica, disse ela. Estas árvores - tamarisco e oliveira-do-paraíso - não são naturais daqui. Foram introduzidas artificialmente, são invasivas, esgotam a nossa água e destroem a nossa biodiversidade. Começaram a ser arrancadas, mas a substituição de espécies é um processo caro, e tem de ser feito com muito cuidado, para evitar um aceleramento da erosão.

Um camião de caixa aberta com bancos corridos passou por nós, levantando uma nuvem de poeira. Os turistas, fortemente sacudidos pelo terreno irregular, acenaram na nossa direcção. A nossa guia soltou uma gargalhada:
- Ali vai um camião do "shake and bake tours"...

Mais à frente, os primeiros petróglifos. O canyon é habitado há quase 5000 anos. Ao longo desse tempo, os diferentes habitantes foram inscrevendo na pedra os seus símbolos religiosos e históricos. Não se conhece o significado de muitos deles.


- Aquela cruz ali, estão a ver? Pode ser um símbolo das quatro direcções dos diné, ou então das quatro montanhas sagradas que marcam os limites dos nossos territórios, ou talvez até das migrações periódicas: os povos iam para leste, e regressavam; para oeste, e regressavam; para sul e para norte, e regressavam.




Outros conjuntos de imagens são extraordinariamente fáceis de entender. Como esta de cavalos, cavaleiros com chapéus, um padre. Pensa-se que descreve a expedição de Antonio Narbona, que terminou com a tragédia de Massacre Cave.


- Ali, aquela cabeça de cavalo, é mais recente. Talvez tenha sido feita por um inglês. E a parede branca da White House Ruin está cheia de inscrições, várias delas datadas de fins do séc.XIX.
- Apesar de tudo, tiveram sorte - comentámos nós. Junto ao rio San Juan vimos uma parede enorme coberta com símbolos dos anasazi, onde alguém escreveu "fuck!" com tinta de spray. Milhares de anos de cultura profanados por alguém cuja inteligência não permite ir mais longe que uma ordinarice pintada à pressa na rocha.
- Também temos tido esse problema neste canyon. Há muito grafitti. Alguns jovens pensam que são engraçados, e não fazem ideia do erro que estão a cometer. Temos aumentado a vigilância, e vamos removendo na medida do possível.


Na povoação seguinte, um grande choque, ao ver na pedra, por trás das casas, uma cruz suástica branca (clicar na fotografia para ver melhor). Graffiti de neonazis em Canyon de Chelly?
A guia ri-se:
- Todos os alemães que vêem isto ficam incomodados, mas não é nada disso. Provavelmente é um símbolo das migrações segundo os pontos cardeais.

Nova etapa, nova paragem. Desta vez, para ver as pulseiras e os colares que a nossa guia faz ao serão, e que o marido está a vender junto a uma carrinha - essa sim, de high clearance. Ora aqui está uma família com apurado sentido empresarial.
A Christina e eu procurámos brincos de prata e turquesa como os da navajo de Chaco, mas não tinha nada do género. Apenas pulseiras e colares com lindas combinações de pedras. Mal sabíamos nós que a cada pedra é atribuído um poder diferente. O que para nós são combinações de cores, para os navajos tem significados profundos. A turquesa, por exemplo, é uma pedra sagrada, capaz de aumentar a fertilidade dos rebanhos, de conduzir à vitória numa batalha, de assegurar boas caçadas, e de proteger o seu portador contra azares diversos, nomeadamente ser colhido por um raio ou mordido por uma cobra. De modo que comprámos várias pulseiras muito poderosas e carregadas de significados, que tragicamente se esvaziaram ao chegar à Europa, porque perdemos o folheto que explicava tudo. Razão têm os antigos, quando afirmam que a passagem da tradição oral à escrita é o princípio do fim.

A guia continuou a contar. De quando os espanhóis chegaram "e ficaram cheios de inveja dos nossos pomares e campos viçosos", e capturaram centenas de diné para os obrigarem a fazer agricultura assim bonita noutros lugares. De quando os ingleses chegaram, lhes destruíram campos e árvores de fruto, os perseguiram sem piedade. Do seu bisavô, que sobreviveu à grande marcha forçada: 300 milhas até Fort Summer, 300 milhas para o regresso quatro anos mais tarde, quando os americanos se deram conta de que afinal aqueles territórios não eram tão ricos em recursos naturais, e que a ideia de concentrar na mesma área tribos tradicionalmente inimigas não tinha sido brilhante: como se concluiu sarcasticamente na época, teria ficado mais barato metê-los em hotéis em Nova Iorque...

Junto a um conjunto de ruínas, lembrei o que o ranger de Mesa Verde nos contou: os navajos não deixam os seus filhos visitar aqueles locais, por temor aos espíritos dos que lá viveram. Ela fitou-me, pensativa:
- Na noite do 4 de Julho passado fui com as minhas amigas ao miradouro de Massacre Cave. Podíamos ouvir distintamente os gritos e o choro das crianças. A gente do meu povo não gosta de chegar muito perto destes locais, porque a morte é contagiosa.



O canyon é habitado, e é até possível pernoitar num hogan alugado, ou acampar no terreno de uma família. Pede-se aos turistas que respeitem a privacidade dos habitantes, e não fotografem pessoas, animais domésticos ou hogans sem antes pedir autorização.
A família da guia mora ao fundo do Canyon de Muerto, mas ela tem uma casa em Chinle. A sociedade é matriarcal: o património familiar passa de mulher para mulher. Esses bens não são possuídos, mas administrados em função do bem de todos: à sua detentora cabe garantir a todos os membros da família alojamento e meios de subsistência. A família é alargada, e a "herdeira" é a mulher mais velha da geração subsequente, escolhida entre as filhas e as sobrinhas. Após o casamento, os homens mudam-se para a família da mulher. Daí a importância das kivas, acrescenta: os homens precisam de um refúgio só para eles.
- Então as kivas não eram compartimentos multi-usos para toda a população, como nos disseram em Mesa Verde?
- Não. Só para os homens. - diz ela, com um ligeiro sorriso irónico.

Depois fala das tradições e da modernidade. É católica, mas continua a respeitar os ritos e as crenças do seu povo. Conforme a doença, decide se vai ao médico ou ao medicine man. Recorre à medicina natural. Após uma pequena hesitação, aponta-nos um arbusto com frutos verdes, semelhantes a tomates: "Aquele fruto ali - vêem? - é um excelente analgésico. O problema é que pode viciar. Temos problemas graves de toxicodependência por causa desta planta". Os nossos filhos observam a planta, subitamente muito interessados. Esta atracção pelo abismo...

É muito difícil criar os filhos no ponto de intersecção das sociedades americana e diné. São permanentemente obrigados a escolher um rumo para a evolução da sua cultura de origem. As crianças aprendem inglês e a língua dos antepassados, mas muitas preferem falar inglês.
- E como encontram palavras para descrever algo novo, como avião ou computador? Usam as palavras inglesas?
- Não. Procuramos criar significados novos a partir das palavras de que dispomos... - e eu a pensar: ai que engraçado, a "loi Toubon" chegou tão longe? - ...Por exemplo: para televisão, dizemos "imagens que vêm pelo ar". Ontem, para dizer à minha mãe que comprámos um computador, tive de dizer assim: "imagens que vêm pelo ar e máquina de escrever".



Entretanto tínhamos chegado à nossa última etapa. A White House Ruin, com a sua parede branca para, segundo se pensa, reflectir a luz para as casas em torno.
Que estranha fé levaria aquela gente a construir casas sob maciços rochosos tão imponentes e intimidantes?

Esta é a mesma casa que (quase não) se vê na primeira fotografia deste post, e que foi feita do miradouro na orla do canyon.

Despedimo-nos da guia e regressamos ao hotel. Nesse dia celebrávamos o aniversário do nosso casamento, e decidimos festejá-lo no restaurante, com um bom bife que nos tirasse a barriga de misérias, depois de tantas sopas biológicas de pacote e do eterno esparguete com molho de tomate. E bem regado com um daqueles vinhos californianos tecnicamente perfeitos (isto não é um elogio).
Carne, havia, e era muito boa. Também havia enchiladas deliciosas. Quanto ao vinho... azar o nosso: o álcool é proibido nas reservas navajo. Por curiosidade, encomendámos um vinho sem álcool, muito recomendado na carta do restaurante. Revelou-se óptimo para melhorar a memória: nunca mais, por cem anos que viva, serei capaz de esquecer o sabor horroroso daquela coisa.



No dia seguinte percorremos o South Rim até Spider Rock. Os navajos acreditam que a Spider Woman vive no topo da coluna mais alta, que tem uma altura de 240 metros. A Marvel Comics, aqui?!, perguntarão. Nada disso: a Spider Woman é uma figura mítica ligada ao surgimento da vida na terra. No princípio do mundo, enfeitou uma das suas teias com orvalho e atirou-a para o espaço: das gotas de água nasceram as estrelas. É amiga dos navajos, e protege-os. Foi ela quem ensinou as mulheres dos antigos a tecer, enquanto o seu marido, o Spider Man, ensinou os homens a construir um tear:

Cruzam-se os pólos da terra e do céu para fixar a estrutura; alinham-se raios de sol na teia; os liços são feitos de relâmpagos difusos e cristais de rocha, para manterem a qualidade das fibras; para melhor cerrar a trama, põe-se na ripa a auréola do sol; usar para o pente uma concha branca que purifique os fios.

Embora amiga e generosa, a Spider Woman pode ser muito severa. Captura as crianças que se portam mal, leva-as para a sua casa, devora-as, e deixa os seus ossos a secar ao sol - são as manchas brancas no topo da coluna.
Com uma protectora deste calibre, não admira que as gerações mais novas prefiram aproximar-se da cultura americana...



Estava um dia glorioso para continuar a viagem, com destino a Monument Valley.

27 junho 2010

Shiprock

Apesar de os canyons de Chaco e de Chelly se situarem sensivelmente à mesma latitude, para ir de um ao outro é preciso desenhar um enorme ómega por estradas que nem sempre são muito boas. Rumámos primeiro para norte, até Farmington, depois para oeste, e na pequena localidade de Shiprock voltámos para sul. Desperdício de tempo? De modo algum!


(imagem encontrada aqui)

Ao cabo de meia dúzia de milhas a sul dessa localidade, entrámos na Indian Route 13, em direcção a sudoeste. A paisagem desértica é atravessada por estranhas muralhas de basalto, lembrando um gigantesco dinossauro enterrado com a crista dorsal de fora. À direita, levanta-se um maciço imponente: Shiprock, montanha sagrada dos navajo, com quase 500 metros de altura. Em geologês, trata-se simplesmente dos diques e da chaminé de um vulcão extinto, mas na tradição dos navajos tudo se torna muito mais rico. Segundo a lenda, quando os diné (o nome que os navajo dão a si próprios, e que significa "o povo que surgiu da terra") vinham a fugir de cruéis inimigos do noroeste, atravessando um canal (talvez o estreito de Bering?), no seu enorme desespero pediram ajuda ao Grande Espírito. Repentinamente, do chão sob os seus pés nasceu um pássaro enorme, que os transportou no dorso durante um dia e uma noite em direcção ao sul. À hora do sol-pôr, deixou-os no ponto onde fica agora Shiprock, e transformou-se de novo em pedra. Em homenagem ao pássaro que os salvou, os navajo chamam a esta formação Tsé Bitʼaʼí: rocha com asas. A partir de então, os navajo ficaram a viver no cimo da montanha, e só vinham ao vale buscar água e cultivar os campos. Um dia, quando os homens estavam a trabalhar no vale, uma grande tempestade abateu-se sobre a montanha. Um raio fendeu as suas encostas, tornando-a inacessível. Impossível ajudar as mulheres, as crianças e os velhos presos no topo das escarpas, que acabaram por morrer de fome e sede. Para não despertar os seus espíritos, é proibido escalar o rochedo.

Um pouco mais à frente, a paisagem muda de novo: Red Valley, terra de magníficas rochas vermelhas e formações semelhantes às de Monument Valley.


A seguir, atravessa-se uma bela floresta de faias (nota mental: regressar lá em Setembro - ou então, ainda melhor: à million dollar highway no Colorado). Em Lukachukai vira-se para sudeste, e pouco antes de chegar a Tsaile encontra-se o north rim do Canyon de Chelly, mais concretamente: o canyon del Muerto.

24 junho 2010

Chaco Culture



Today I will walk out, today everything evil will leave me, I will be as I was before, I will have a cool breeze over my body.
I will have a light body, I will be happy forever, nothing will hinder me.

I walk with beauty before me.
I walk with beauty behind me.

I walk with beauty below me.
I walk with beauty above me.

I walk with beauty around me.

My words will be beautiful.


In beauty all day long may I walk.

Through the returning seasons, may I walk.
On the trail marked with pollen may I walk.

With dew about my feet, may I walk.
With beauty before me may I walk.
With beauty behind me may I walk.
With beauty below me may I walk.

With beauty above me may I walk.

With beauty all around me may I walk.

In old age wandering on a trail of beauty, lively, may I walk.
In old age wandering on a trail of beauty, living again, may I walk.

My words will be beautiful.



Poema anasazi, no museu de Canyon de Chaco, New Mexico.

***

A etapa seguinte da nossa viagem anunciava-se muito prometedora: Chaco, no meio do deserto - combinando um riquíssimo conjunto arqueológico da cultura anasazi com um observatório astronómico.
A pesquisa por "Pueblo Bonito, NM 87037" no Google Maps, dá uma boa ideia da grandiosidade das construções.
Por estar tão longe das cidades, Chaco não tem muita poluição luminosa. Os meus guias gabavam-lhe o céu nocturno: um céu de breu sobre o deserto, que permite, mesmo à vista desarmada, saborear as estrelas deslumbrantes e a Via Láctea, que vem ao nosso encontro como se fosse um destino.
Organizámos a viagem de modo a poder participar no Night Sky Program, cheios de expectativa sobre o que prometia ser um ponto alto nas nossas férias já tão cheias de superlativos. Há alguns anos tivemos a sorte de poder ver a lua num telescópio potente, e ficámos encantados com a imagem daquele sossego que quase podíamos tocar com as mãos. Imaginávamos que de Chaco poderíamos ir a Andrómeda, repousar em Júpiter...

Por aquela altura da nossa rota do Sudoeste, já tínhamos muita prática: levantar arraiais bem cedo, partir o mais depressa possível, tentar estar entre os primeiros a entrar no parque de campismo seguinte: first come, first serve. No caso de Chaco era ainda mais importante, porque sabíamos que o hotel mais próximo ficava a hora e meia de caminho.

E assim fizemos. Ao princípio da manhã dissemos adeus a Mesa Verde e partimos em direcção ao sul, para o que se anunciava como uma viagem de 160 milhas, 3 horas. A paisagem árida era interrompida por estranhos oásis muito viçosos. Tínhamos visto esse fenómeno do avião: enormes círculos verdes no meio da paisagem seca - o milagre da irrigação. Milagre, ou desvario? Que sentido faz transportar a água por centenas de quilómetros para ter plantações no deserto? Ou, pensando a uma escala global: o que está a correr mal no nosso planeta, para nos EUA se irrigar o deserto, enquanto os campos tão férteis do nosso Minho estão cada vez mais abandonados?



A última parte do percurso foi feita a passo de caracol: a estrada de acesso ao canyon está propositadamente em muito mau estado, para evitar avalanches de turistas. A investigação e a exploração deste centro, classificado como Património da Humanidade, colidem com os interesses de várias tribos de índios, para as quais estes locais são sagrados: a eles regressam ainda hoje para orar e honrar os espíritos dos antepassados. A solução encontrada em conjunto pela administração do parque e pela população indígena foi manter péssimas acessibilidades, e lembrar repetidamente aos visitantes que devem respeitar o espírito do local.

Passámos o parque de campismo ("Olhem, está vazio! Óptimo! Chegámos antes dos outros!) e dirigimo-nos ao centro de informações e pequeno núcleo museológico. Aí, o balde de água fria: o parque de campismo estava fechado, porque ao fazer obras de modernização descobriram vestígios arqueológicos que obrigaram a adiar sine die a reabertura. "E agora?", perguntámos nós, desconsolados, sabendo bem que a localidade mais próxima ficava a hora e meia de viagem. "Bem, podem ficar num parque de campismo privado, aqui perto", respondeu uma das funcionárias do parque, e foi buscar a proprietária: era uma ranger navajo, com uma longa trança preta e brincos de turquesa lindíssimos. Disse que sim, que podíamos ficar junto aos hogan da sua família, e avisou que era tudo muito primitivo.
Resolvido esse problema, partimos a pé, sob um sol inclemente, à descoberta dos vestígios arqueológicos. "Respeite estes lugares sagrados, leve muita água, e tenha cuidado com as cascavéis", dizia o nosso folheto. Ai.

A construção das casas grandes de Chaco foi planeada com notável precisão. Não apenas a orientação, segundo os pontos cardeais e as movimentações dos astros, mas também a própria engenharia: a construção das divisões no rés-do-chão tinha já em conta o que se tencionava construir no terceiro andar. Isto leva-me a desconfiar que terá havido ali dedo de alemão. Espantem-se... Já não seria a primeira vez na História: também o "rei de Stonehenge" era alemão, ou talvez austríaco. A minha teoria é reforçada pela tradição oral dos navajo, segundo a qual Chaco foi criado pelo Great Gambler, que veio do Sul, escravizou os povos dos pueblos e os obrigou a construir aqueles complexos segundo planos extremamente detalhados, antes de ser vencido e expulso. Se isto não é um caso de austríaco, talvez alemão...
E mais uma prova: o mistério das tumbas em Pueblo Bonito, onde se encontraram em lugar de destaque esqueletos de pessoas muito mais altas que os índios da região. Ora aí está: noves fora, nada.
E eis como, num momento de intuição de raro alcance, ofereço um contributo indispensável à compreensão dos mistérios da Chaco Culture. Bem me podiam dar uma medalhinha. A mim, e às vacas de Mesa Verde e de Bryce Canyon.

Findo o intervalinho para café, vou tentar agora fazer uma descrição fidedigna: as construções no canyon de Chaco foram erguidas entre 850 e 1150. Trata-se de vários complexos de casas construídas em semicírculo, desenhadas com grande rigor geométrico e extensos conhecimentos de astronomia. Os conjuntos maiores tinham mais de quinhentas divisões, e chegavam aos três andares. Também as kivas eram extraordinariamente grandes, algumas das quais com capacidade para albergar centenas de pessoas. Era o centro religioso, comercial e administrativo de uma vasta região. Não tinha muitos habitantes permanentes, mas atraía inúmeros visitantes.
A guia que nos mostrou Pueblo Bonito, um dos conjuntos mais bem conservados, comparou Chaco a Las Vegas. Eu teria dito Santiago de Compostela, mas ela era uma jovem americana - que saberá das rotas medievais europeias? E num ponto a sua comparação é perfeita: um lugar no meio do deserto, onde não havia absolutamente nada, e foi construído um centro que exerce um profundo fascínio sobre povos longínquos.
Calcula-se que para construir as casas tenha sido necessário abater mais de 200.000 árvores. Os construtores iam cortá-las às florestas, a mais de 70 quilómetros de distância, cortavam-lhes os ramos, deixavam secar os troncos para se tornarem mais leves, e arrastavam-nos até Chaco, pois não conheciam ainda a roda.


Por algum estranho motivo, algumas das "casas grandes" foram construídas junto a enormes rochedos que ameaçavam cair sobre elas. Pueblo Bonito, por exemplo, estava no sopé da Threatening Rock. Para evitar a erosão, os anasazi construíram plataformas e apoios na sua base. Também colocavam pahos (varetas de oração) na fenda entre a rocha e a escarpa. Em Janeiro de 1941, após um ano de muita chuva, a pedra abateu-se sobre as ruínas, destruindo mais de 30 compartimentos.





A fotografia a preto e branco foi feita nos anos 30, e tirada de um artigo que analisava o risco e apresentava propostas para o reduzir. Nas duas fotografias seguintes, vêem-se os fragmentos caídos sobre os edifícios.










Nas paredes do canyon há inúmeros petróglifos, ou, como lhes chamam os hopi: tutuveni - marcas dos que vieram antes. Alguns são de um tipo muito raro, por combinarem na mesma figura várias técnicas diferentes.






A espiral é um dos símbolos recorrentes (seriam os anasazi umbiguistas?). Mas também se vêem animais e figuras humanas, homens a cavalo - registo da chegada dos espanhóis -, e até um comboio. E, infelizmente, sinais dos visitantes de tempos mais modernos: um tal de Henri e um Mark B passaram por ali, e em 1887 um comerciante deixou indicações para a sua loja, a duas milhas down canyon.

***

A navajo tinha dito "vão de carro nesta direcção, antes de chegarem a um wash virem à esquerda, e continuem durante cerca de vinte minutos. Depois de passarem a terceira colina, virem outra vez à esquerda".
Um wash?! Talvez se referisse ao leito seco de um aluvião. Virámos à esquerda, e seguimos a corta-mato, enquanto nos interrogávamos se não teria sido melhor ideia ir para o tal hotel, mais longe, mas por estrada e com sinalização. Afinal, tudo correu bem: ao fim de meia hora encontrámos o parque de campismo: dois hogans, uma "casinha" (sim, isso mesmo: a uns vinte metros do hogan principal havia uma casinha no meio do terreno, que era suposto ser a nossa casa de banho - decidi logo ali que ia passar umas doze horas sem precisar), e um monte de ferro velho a fazer de mesas, cadeiras e protecção do vento. Tudo com um aspecto desolado.










À nossa volta estendia-se o planalto raso e sem uma única árvore, sobre nós um céu desmedido. Ao fim da tarde levantou-se uma ventania terrível, e nós olhávamos desorientados para aquela paisagem exposta, sem nada que travasse a poeira que remoinhava no ar e nos batia com fúria.
Resolvemos regressar ao centro de informação de Chaco e preparar lá o nosso jantar, protegidos do mau tempo pelas muralhas do canyon, enquanto esperávamos pelo Night Sky Program.


Mais uma vez havia belas mesas para piqueniques, mas não tinham pias para lavar a louça. Apesar do letreiro "não lave a louça aqui", usámos o lavatório da casa de banho. Por causa da má consciência, deixámos tudo ainda mais limpo do que tínhamos encontrado. No céu, as nuvens estavam cada vez mais densas. Então, e Júpiter? E Andrómeda? Deixaram-nos ver um bocadinho da lua num telescópio móvel, mostraram-nos fotografias excelentes feitas naquele observatório, contaram-nos meia dúzia de histórias, e depois boa noite, adeus, voltem sempre.
Aproveitámos a casa de banho do centro, último reduto da civilização, para lavar os dentes e fazer os despejos para as doze horas seguintes, e voltámos tristonhos para o nosso parque de campismo no meio do ferro-velho.
Na manhã seguinte não havia vento, não havia nuvens, e a casinha (sim: quem aguenta doze horas?) revelou-se uma boa surpresa: com uma plataforma forrada a linóleo e um buraco no centro, tudo muito asseado, e sem cheiros. Quem diria.

Fui ter com a proprietária, para que nos indicasse a direcção para Canyon de Chelly. Encontrei-a em frente ao seu hogan. Tinha a longa trança e os seus belíssimos brincos de turquesa e prata, e estava de pé, muito direita e concentrada em algo que se passava no horizonte - o arquétipo de um vigia índio. Olhei também: nada, apenas a planície. Ela explicou-me: "Vê aquela nuvem de pó? É o carro das pessoas que saíram daqui há pouco. Estou a ver se viram no sítio certo e encontram a estrada sem problemas."


Também nós encontrámos o nosso caminho sem problemas.
Virámos costas a Chaco fartos de campismo, vento, pó, casinhas, nuvens que tapam estrelas, falta de água e de conforto. Tão desalentados, que chegámos a comentar maldosamente: na altura em que estes andavam a arrastar árvores por mais de 70 quilómetros, na Europa estavam a começar a construir a catedral de Estrasburgo...
Partimos rumo a Canyon de Chelley, ansiosos por um hotel com duche e restaurante.