25 março 2025

*vizinhos*

Na semana passada, o tema daquele meu famoso grupo de escrita era "vizinhos". Tinha muito para dizer sobre o assunto - de facto, o problema é mesmo saber por qual das pontas pegar, e o que deixar de fora - mas uma pessoa está de férias, e ou não tem internet ou não tem um teclado de jeito ou não tem tempo, ou tudo isso ao mesmo tempo, e fui atrasando. Agora que já devia estar a pensar no tema desta semana, os vizinhos não me saem da cabeça. E por isso escrevo, mais tarde e ainda a mais más horas que de costume. Portanto: aproveitem enquanto ainda faço parte do grupo, porque ando realmente a arriscar-me a ser posta para fora, e era merecido.

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Não sei se é verdade ou uma historieta forjada, e já não me lembro ao certo da frase, mas li algures, há muitos anos, que uma jovem alemã, na época do III Reich, terá comentado: "Todos os judeus são horríveis, excepto o senhor Rosenberg, que é meu vizinho". O fenómeno continua vivo e de boa saúde na Alemanha de hoje: quanto mais estrangeiros há num bairro ou numa região, menor é a percentagem de votos em partidos xenófobos. As pessoas temem o que não conhecem. E não é só na Alemanha.

É por isso que urge criar laços entre pessoas diferentes. O que se pode fazer de muitas maneiras, e uma delas é um projecto em que tenho vindo a pensar há alguns anos. Se passar por aqui alguém que leia e ache boa ideia e queira pôr em prática: esteja à vontade! Até agradeço.

Chamo-lhe "a aldeia da cidade" (em alemão é mais engraçado: das Stadtdorf), e imagino-a como um edifício onde vive uma comunidade em interacção com o seu bairro. Situado numa rua central, tem vários andares de apartamentos e um piso térreo virado para a rua: com uma cantina para almoços baratos que à noite é convertida em salão para os grupos do bairro: teatro, coro, dança, folclore, banda de música, clubes de leitura, yoga, e tudo o mais que houver. Com salinhas onde os moradores dão explicações ou aulas de música às crianças das redondezas, ou tomam conta de alguma criança enquanto os pais vão resolver algum problema urgente, ou fazem sessões de leitura de livros infantis - e não só. Com uma oficina para consertar pequenos electrodomésticos, um centro de aluguer/empréstimo de máquinas e utensílios da cozinha, de bricolage ou de jardinagem. Com uma oficina de sapateiro e outra de arranjos de costura. Com uma pequena salinha de leitura. Com uma horta comunitária. Com um café onde as pessoas podem ficar a conversar umas com as outras enquanto esperam.

Uma boa parte dos apartamentos são reservados para pessoas reformadas, com o objectivo de lhes permitir envelhecer dentro de uma comunidade plena de vida. Outros são reservados a pessoas que têm mais dificuldades em conseguir arrendar casa: refugiados, minorias, mulheres de famílias monoparentais. Condição para poder viver nesse centro comunitario: contribuir generosamente com trabalho, na medida das possibilidades de cada um, para o projecto de boa vizinhança. Quem quiser ficar a viver num dos seus apartamentos tem de responder satisfatoriamente à pergunta: "Quantas horas por semana quer dar a este projecto, e que actividades quer desenvolver?"

E onde arranjar o capital inicial para tudo isto? Parece-me que, tendo em conta o valor estratégico de um projecto como este para dar vida a um bairro e criar laços de humanidade e confiança entre os seus habitantes, transformando moradores isolados em vizinhos integrados, o edifício devia ser disponibilizado pelas autarquias, e sustentado por rendas solidárias (quem tem mais paga mais, quem tem menos paga o que pode).

É esta a cidade onde gostaria de viver: com um porto seguro em cada quarteirão, um lugar de generosa vizinhança, onde as pessoas têm nome e história. Para combater a solidão e o cinismo do mundo.

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Os vizinhos das outras: A Curva
A Gata Christie
Boas Intenções
Gralha dixit
O blog azul turquesa
Panados e Arroz de Tomate
Quinta da Cruz de Pedra

19 março 2025

decisão

 Parece que vem por aí um caso de temporal de dilúvio e apocalipse ao mesmo tempo.

Como não sei se não vou levar com algum ovni na cabeça, que me mande desta para melhor, decidi que hoje, pelo sim pelo não, só vou dizer coisas simpáticas nas redes sociais. E na vida lá fora, vá.

Depois de tomar esta decisão, fiquei a pensar: como seria o mundo à nossa volta, se cuidássemos das palavras como se fossem as últimas que dizemos, e aquelas pelas quais nos recordam?

15 março 2025

*até o diabo se ria*


Este blogue está em serviços mínimos, desculpem. É que não dá mesmo para preparar férias, gozá-las, e escrever ao mesmo tempo. Mas não quero faltar ao compromisso com o meu novo grupo de escrita sobre o tema da semana. Tanto mais que "até o diabo se ria" foi um tema que escolheram por eu ter usado essa expressão.

"Até o diabo se ria", "dar água sem caneco", "à grande e à francesa" são expressões que levei comigo para a Alemanha, em finais dos anos oitenta, e lá ficaram na minha vida. Não havia internet, as chamadas telefónicas eram caríssimas, os jornais chegavam em papel e as notícias que traziam já cheiravam a peixe. Em Portugal a língua ia evoluindo, entretanto havia quem dissesse "cota" em vez de "velho", e eu transformava-me num museu vivo do português que se falava no Minho dos anos sessenta e setenta, e no Porto a seguir ao 25 de Abril. O "ó pá" e o "gajo" andavam de mãos dadas com o "é só fumaça", o "há mar e mar" e o mais antigo "a quem nos visita, o sol da nossa simpatia". Saboreava a música e o prazer das memórias que essas expressões transportavam. E resistia: os meus amigos portugueses diziam "com vocês", mas eu ensinava "convosco" aos meus filhos alemães. Pode alguém ser quem não é?

E assim ia a vida, até ao dia em que a minha filha largou uma gargalhada no banco de trás do carro, e traduziu para o irmão pequenino:
- Olha o que a mãe acabou de dizer ao pai: "Weder sage ich es, noch erzähle ich es dir."
Era "nem te digo nem te conto", e eu, que já ia lançada na história que acabara de anunciar que não revelaria nunca, parei a pensar na surpresa destas expressões tão sumarentas, as minhas velhas conhecidas, que se esvaziavam completamente na tradução literal.

Lembro-me bem da forma do caneco de lata com que se tirava a água do pote de barro na cantareira de granito. Mas que imagem terão os jovens de hoje, quando alguém diz que dá água sem caneco? Que pensarão do ralhete "então saíste sem dizer água vai?", quando nem sequer está de chuva?

E quem se terá lembrado de pôr o diabo a rir se não acontecer algo que é absolutamente provável? O diabo só ri quando o mundo descarrila por inteiro? Nos dias normais: anda carrancudo? Enquanto nós vamos fazendo pela vida, acertando e errando à medida do que podemos, o diabo não é tido nem achado? Só começa a achar realmente graça (só começa a rir a bandeiras despregadas) quando - digamos - nós começamos a não saber que dois e dois são quatro, que a terra é redonda, que a perfeição não existe e que ninguém faz milagres?

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No início desta semana, pensava escrever um texto sobre a musicalidade destas expressões idiomáticas. "Até o diabo se ria", por exemplo: é uma exclamação linda, que nos põe bem dispostos e reforça a nossa confiança na normalidade do mundo.

Mas entretanto o governo caiu e já vi pelas cidades cartazes de um partido que alimenta o descontentamento com o que está mal para iludir as pessoas com a ideia de que - eles sim! os que metem no Parlamento ladrões de esmolas e de malas, gente que recorre à deficiência para achincalhar pessoas - sabem fazer perfeito. O diabo vê, e desata a rir com quantos dentes tem na boca.

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07 março 2025

*coração lavado*


[ A quem interessar possa: o grupo de amigas da antiga bloga, que todas as semanas escreve sobre um tema determinado, continua vivo e de boa saúde. Eu é que andei pela Berlinale, e depois pelas eleições alemãs, e mais isto e mais aquilo, e só agora regresso. Esta semana, o tema é "coração lavado".  ]


Aquela sensação de coração lavado com que uma pessoa saía da confissão, em criança, aquela leveza feliz: quem mais conhece?

Abençoado ópio do povo, que tão boas sensações me dava! Implicava trabalho, também: percorrer a lista de pecados de um missal da minha avó, anotar os que tinha cometido, ter cuidado para os meus irmãos não descobrirem a minha listinha, ter cuidado para não a perder, decorá-la com afinco antes de ser a minha vez no confessionário, dizer o acto de contrição e começar a debitar: não obedeci aos meus pais, bati nos meus irmãos, não devolvi um livro que me emprestaram. Depois os pais nossos e as avés marias que tivesse de ser, e ala para a rua e para o sol, livre de culpas. Não que os meus pecados tivessem andado a pesar-me muito, mas saía da confissão de coração lavadíssimo. 

Até que, um pouco mais velha, apareceu na minha lista um pecado novo: "pequei contra a castidade". E o padre, logo: "sozinha ou acompanhada?"

Queria saber tudo. Nem sequer era novidade para mim, porque no livrinho da minha avó também havia sub-alíneas sucessivas: "sozinho ou acompanhado", "com homem ou com mulher", etc. Mesmo assim, dessa vez saí do confessionário com o coração sombrio, como se o confessor mo tivesse conspurcado. 

E nunca mais lá voltei. 

Excepto muitos anos mais tarde, com padres que sabia serem pessoas sérias, adultas e responsáveis. No tempo em que a confissão passou a ser uma conversa libertadora, mas não me lavava o coração - nem era preciso. Entretanto, já me habituara ao mistério e às dúvidas, ao espinho dos erros cometidos agarrados a mim como uma segunda pele a lembrar-me o mal de que sou capaz, a dizer-me para ter cuidado. Já me habituara a este coração que nunca conseguirei lavar tão branco como no tempo inocente das primeiras confissões. Este coração com manchas que nem a corar ao sol desaparecem: a vida.  

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Outros corações lavados:

 Boas Intenções

A Curva

A Gata Christie

Panados e Arroz de Tomate


06 março 2025

there's a crack in everything that's how the light gets in

 


1. "E se esta não fosse a escuridão do túmulo,  mas do útero?"
Respire fundo e faça força: este apelo de Valarie Kaur, defensora dos direitos civis sikh-americana, foi feito no primeiro mandato de Trump - e está cada vez mais actual. 

2. Um texto que encontrei no facebook, feito de sabedoria:

"From a friend:  this is not going to be a popular comment but here goes: someone told me their Frump loving, flag-flying neighbor just lost their job. i am just outside of DC and know a ton of people who are living in fear of job loss. my response: GO CATCH THEM. bake them cookies, bring them a beer, listen to their stories. 

if we don't CATCH THEM, WHO WILL? Frump's successor??? these people have been in a cult, following the rantings of a madman, a brilliant orator and a madman. i'm not sure what the phases are of surfacing from a cult, but my guess is there will be shock and rage, a ton of blame shifting and "yeah but...ing" and then the grief, maybe shame? i dunno. and i am not calling on people to embrace their inner Buddha...okay, maybe i am. but come up w/ some standard lines..."i'm so sorry...didn't see this coming." or just say nothing and keep cracking open another beer. 

we have to CATCH THEM if we are ever going to surface from this, if Frump is ever going to lose his power. he has to FAIL HIS FOLLOWERS for them to wake up from the trance, and when they do we have to be there else the wound festers and grows. we will all suffer along the way...but i believe it is the only way through this. this are very difficult days"


3. Bem sei que os estrategas políticos sugeriram às figuras de proa dos democratas americanos que se façam de mortos. Mas levo a mal a um Barack Obama, por exemplo,  não vir a público dizer: "meus caros concidadãos: nós não somos assim. Nós não somos isto. O país que temos construído ao longo dos séculos, e que tantos motivos de orgulho nos dá, não é assim, e nunca será great desta forma."


4. Pequeno desabafo: que saudades do tempo em que o maior escândalo que um presidente dos EUA podia fazer acontecer na Sala Oval era uma cena de sexo de filme low budget...

03 março 2025

tudo pessoas de bem...


(fonte)


Na Alemanha é proibido propagar a herança nazi na forma de símbolos (exibição da suástica, por exemplo) ou de ideias e chavões tais como "Ein Volk, ein Reich, ein Führer", "Heil Hitler" ou (o lema das SA) "alles für Deutschland".

Björn Höcke, um político da extrema direita mais radical dentro da AfD, especializou-se em pisar o risco para o esbater de tanto passar por cima dele, e para ir habituando as pessoas a mais nazismo no dia-a-dia. Num comício, gritou "alles für Deutschland". Levaram-no a tribunal, e ele - o sonso que estudou História e Ciências Sociais - disse que tinha sido sem querer, que não sabia que aquela frase era proibida.

Mas logo a seguir, noutro comício, começou: "alles für…" - e o mob radiante respondeu: "Deutschland!"

Novo processo.

Entretanto a AfD apareceu com um cartaz onde se lê: "Alice für Deutschland". Para quem não sabe: a diferença na pronúncia de "Alice" e "alles" é mínima.

Eles sabem perfeitamente o que andam a fazer.

02 março 2025

Tordesilhas

 




A Gronelândia, o Canadá e o Panamá para Trump, a Ucrânia e o Leste da Europa para Putin.

Com detalhes rocambolescos: na semana passada (lembram-se?) o Putin ficava com parte da Ucrânia, o Trump ficava com metade das terras raras da Ucrânia, e soldados europeus ficavam incumbidos de assegurar a paz no território saqueado pelos outros.

fatos e factos


O jornalista que perguntou a Zelensky porque não estava de fato chama-se Brian Glenn, e é correspondente do Real America's Voice, um canal de televisão por cabo de direita, que difundiu teorias da conspiração sobre a possibilidade de estrangeiros estarem a votar, e ajudou a distribuir o podcast “War Room” de Stephen K. Bannon depois de este ter sido banido do YouTube, do Spotify e de outras plataformas tradicionais. (aqui)

Ao aliar-se ao bullying de Trump e Vance contra Zelensky,, passou para um estádio superior da sua estratégia de carreira que consiste em lamber as botas do regime. Até aqui, esta pessoa, que namora com Marjorie Taylor Greene (de entre os políticos que apoiam Trump, uma das mais radicais e polarizadoras), dera nas vistas por estar na conferência de imprensa da Casa Branca a fazer perguntas "softball": simpáticas e inofensivas. E são pessoas como ele que têm agora acesso à linha da frente da informação na Casa Branca, é de pessoas como ele que verdadeiros jornalistas como os da Associated Press dependem agora para receber informações para as suas notícias.

Fica a informação. E o lembrete: o jornalismo é o quarto poder, a propaganda é o moço de recados da ditadura. E o alerta: a Casa Branca está a escolher propagandistas disfarçados de jornalistas para passarem a informação aos que se esforçam por trabalhar com seriedade e ética deontológica. Se Trump chamar agora "fake news" aos jornalistas sérios, é apenas a ironia de uma self fulfilling prophecy: o próprio Trump faz o que pode e não pode para introduzir agentes de propaganda entre a observação dos factos e a criação da notícia.


01 março 2025

a hora da Europa

Não é habitual o vice-presidente estar presente nestas sessões de fotos em frente à lareira. É óbvio que Trump e Vance combinaram previamente humilhar um chefe de Estado em frente aos jornalistas. No caso: o chefe de Estado de um país invadido, que luta heroicamente há 3 anos para defender as fronteiras da Europa. A humilhação começou logo à chegada de Zelensky, com Trump a comentar a roupa que ele trazia. Como se há meia dúzia de dias Musk não tivesse dado uma conferência de imprensa nesse mesmo sítio em t-shirt e boné do seu próprio movimento (que diz MAGA, mas é em preto).
É imperioso que todos os países da Europa reconheçam abertamente que os EUA deixaram de ser o chamado "líder do mundo livre", que na Europa estamos agora entregue a nós próprios e que temos de encarar a realidade: somos a nova América Latina dos EUA. Com Trump+Putin podemos até ser o novo Iraque.
Portanto: abrir os olhos, aumentar a coesão entre os países europeus e arregaçar as mangas. Temos muito trabalho pela frente.

Penso que a Europa tem de afirmar a uma voz só que não compactua com aqueles imperialismos. Nenhum país pode roubar território a outro país. Nem a Ucrânia, nem Gaza, nem a Cisjordânia, nem a Gronelândia nem nada estão a saque.

Pessoalmente, cheguei ao ponto em que estava capaz de aderir à atitude do discurso "sangue, suor e lágrimas", mesmo sabendo que punha a minha própria vida em risco. Porque não faz sentido viver como escrava de um Trump e de um Putin. Escravidão como, por exemplo, raptar crianças ucranianas para as levar para "reeducação" na Rússia.

Tenho a certeza de que um político como Churchill era capaz de pôr aqueles dois ditadores imperialistas com dono. Porque o Putin tem um país enorme mas uma economia do tamanho da italiana. E o Trump é um poltrão que só sabe ser forte com os fracos.
--- Mais uma prova do ambiente de bullying generalizado que se viveu no salão oval, a nova latrina da Casa Branca - contra uma pessoa isolada, e que não se estava a defender na sua língua materna:


E um comentário muito a propósito:


27 fevereiro 2025

o fenómeno Alice Weidel: uma mulher lésbica à frente de um partido homofóbico (2)

No post anterior partilhei um trabalho académico sobre o fenómeno Alice Weider. Neste, partilho um texto que está no site da Campact (aqui, em alemão):


"Eu não sou queer"

Em setembro de 2023, a líder da AfD afirmou numa entrevista: “Não sou queer, sou casada com uma mulher que conheço há 20 anos”. E tem toda a razão: porque queer é uma auto-designação positiva para pessoas que não são heterossexuais e/ou cisgénero (ou seja, que se identificam com o género que lhes foi atribuído à nascença). 

O que não é, definitivamente, o caso de Weidel; não há qualquer sinal de uma imagem lésbica positiva nesta mulher de 44 anos. Pelo contrário: é uma mulher populista, profundamente conservadora e de direita, que vive com outra mulher e tem filhos - mas que tem pouco em comum com o resto da comunidade. Exalta-se quando fala contra as pessoas trans, exprime-se em termos de “disparates de género” e quer proteger as crianças de uma “cultura pop trans idiota”. 


A AfD é um partido homofóbico - por dentro e por fora

Uma mulher à frente da AfD: à primeira vista, isto é surpreendente - especialmente se ela for também lésbica. Afinal, a AfD é, de longe, o partido mais homofóbico do Parlamento Federal. Um olhar sobre o seu programa de base demonstra-o. Neste, o AfD coloca o pai, a mãe e a criança no centro da sua política familiar e alerta para a destruição da imagem tradicional da família. Na escola, rejeita a “ênfase unilateral da homossexualidade e da transexualidade nas aulas”; as crianças não devem tornar-se “o joguete das inclinações sexuais de uma minoria barulhenta”. 

Em 2019, o grupo parlamentar tentou revogar o direito ao casamento de gays e lésbicas através de uma moção. Sem sucesso, uma vez que todos os outros grupos parlamentares votaram contra. O manifesto eleitoral para as eleições de 2021 para o Bundestag continuou a ser alegremente anti-queer: a cirurgia de mudança de sexo para menores deve ser proibida, as crianças dos jardins de infância devem ser protegidas da "loucura de género" e uma "família verdadeira" precisa de um pai e de uma mãe.

O tom das mensagens de chat do grupo parlamentar da AfD também não deixa dúvidas quanto à homofobia descarada dos membros do partido. Tratam por "ela" homossexuais masculinos, e chegaram a referir-se a um político homossexual como "uma abertura de ânus radicalmente má". 


Alice, a poster girl

Em tal ambiente, como é que Alice Weidel conseguiu chegar ao topo do partido? Em primeiro lugar, porque os seus preconceitos e tiradas retóricas se enquadram muito bem no programa da AfD. Agita contra os transexuais e critica  o direito à autodeterminação da identidade de género: "Nos tempos que correm é possível escolher o nosso género uma vez por ano, masculino, feminino ou até mesmo diverso". Por outro lado, a presença desta mulher  lésbica na AfD sugere que, ao fim e ao cabo, o partido não é assim tão horroroso como se diz. Como é que podemos ser homofóbicos quando até temos uma lésbica no topo? Como token ou manobra de diversão, é suposto ela ajudar o partido a chegar a eleitores queer - pelo menos aos conservadores. 

A boa notícia: as coisas não funcionam assim. É o que sugerem os dados da Universidade de Giessen. Um grupo de investigadores analisou a forma como as pessoas queer votaram nas eleições federais de 2017 e 2021. O resultado: quase ninguém votou no AfD. Em 2017, foram apenas 2,7 por cento - pelo menos no grupo inquirido - e apenas 2,6 por cento em 2021. Em comparação, os Verdes receberam mais de 50 por cento dos votos das pessoas queer

No entanto, a AfD vai continuar a tentar captar o interesse dos eleitores gays e lésbicas no futuro. Vai pôr os muçulmanos e a comunidade queer uns contra os outros; vai tentar usar actos de violência homofóbica - alegados ou reais - cometidos por refugiados para criar uma onda de rejeição; vai conseguir chegar a gays e a lésbicas conservadores com as suas posições contra as "manias de género". 


Alice Weidel e o seu AfD são um problema - e não apenas para as pessoas queer

As políticas homofóbicas da AfD também têm consequências para o resto da população. A sua retórica estridente altera o tom de um debate que muitos gostariam de conduzir de forma objectiva - a disputa sobre a Lei da Autodeterminação é apenas um dos muitos exemplos. A nível estadual, em particular, está a permitir a entrada de políticos que são abertamente homofóbicos e transfóbicos nos parlamentos - e que se manifestam abertamente tanto no hemiciclo como nas redes sociais. O seu discurso de ódio atinge um público cada vez mais vasto.

As políticas do AfD estão cheias de contradições e o seu ódio pode afetar toda a gente: gays, lésbicas, pessoas com deficiência, muçulmanos e refugiados. Só se nos mantivermos unidos poderemos actuar contra a viragem à direita e o iminente sucesso eleitoral do AfD. Temos de resistir. Não apenas quando somos afectados pessoalmente, mas sempre que Alice Weidel e companhia puserem em causa a humanidade e os direitos humanos - seja qual for o alvo em causa no momento. 


25 fevereiro 2025

o fenómeno Alice Weidel: uma mulher lésbica à frente de um partido homofóbico (1)

 

Em resposta ao pedido de um amigo, que tenta entender as contradições da Alice Weidel no partido AfD, fui investigar algumas publicações em alemão.  Começo com uma tradução rapidíssima e abreviada de uma abordagem académica, que Patrick Wielowiejski, investigador na área da Antropologia Cultural, publicou a 6.11.2021 (aqui, em alemão):


A normalidade alemã: os homossexuais de direita e a AfD A Alternativa para a Alemanha (AfD) fez a sua campanha eleitoral para as eleições federais de 2021 com um simples slogan: "Alemanha. Mas normal". Qualquer pessoa com alguma informação sobre teorias de género e queer reconhece imediatamente que isto também se referia à “normalidade” do patriarcado, bissexualidade e heteronormatividade que os partidos populistas de direita como o AfD defendem. Mas que tipo de comportamento em termos de género e sexualidade é realmente considerado “normal” para o AfD? A campanha eleitoral centrou-se nas famílias nucleares, brancas e heteronormativas, com um modelo de provedor masculino. No entanto, no próprio partido, também há políticos na linha da frente que não correspondem pessoalmente a esta imagem: Jörg Meuthen está no seu terceiro casamento, Beatrix von Storch não tem filhos, Alice Weidel vive em união civil registada e tem dois filhos. Todos “anormais”? Os políticos da AfD cujos estilos de vida se desviam dos valores heteronormativos e de família do seu próprio partido envidam esforços para satisfazer as exigências da norma. Este trabalho centra-se na questão da homossexualidade e da homofobia do partido.

Alice Weidel fez o seu coming out em 2017. Num discurso da campanha eleitoral admitiu ter uma opinião diferente da do seu partido sobre a igualdade jurídica: “Reclamo essa liberdade para mim”. No entanto, argumentou que não só não havia contradição entre ela e o seu partido, como também era lógico que ela fosse ativa na AfD enquanto mulher homossexual: “Recentemente, os bandos muçulmanos têm andado literalmente a fazer caça a homossexuais, mesmo no centro da Alemanha, e isso é um escândalo!” [...] “A AfD é a única verdadeira força protectora dos gays e das lésbicas na Alemanha”.

Este argumento, aparentemente “respeitador dos homossexuais”, baseia-se no racismo anti-muçulmano e ignora simplesmente o facto de os populistas de direita considerarem os homossexuais menos meritórios do que os heterossexuais. Exemplo: o programa da AfD de Hessen para as eleições estaduais de 2018 afirma inequivocamente que rejeita “ensinar às crianças a aceitação de orientações sexuais diversas e, em particular, apresentar a homossexualidade e outras orientações sexuais como manifestações iguais da sexualidade humana, especialmente se exigirem direitos iguais aos do casamento protegido por lei”.

Weidel parece ter percebido entretanto que tem de enfrentar de frente esta discriminação evidente. Numa entrevista, falou longamente sobre a sua família. Por um lado, quando lhe perguntaram se tinha problemas dentro do partido por “não corresponder exatamente ao cliché da AfD de um partido com uma imagem de família conservadora”, respondeu sem rodeios: "Claro que sim. Ainda hoje". Por outro lado, também utilizou narrativas conservadoras e fez com que os seus próprios valores parecessem estar de acordo com os da AfD: "As crianças precisam absolutamente de um pai e de uma mãe. Ou um homem ou uma mulher que desempenhe esse papel. No nosso caso, os miúdos têm contacto com os pais biológicos e também temos amigos homens que, de vez em quando, fazem actividades com eles e cobrem os seus interesses de ‘futebol’ e ‘carros rápidos’ - nós só temos um Skoda... Infelizmente, não podemos oferecer isso".

Nesta narrativa, Weidel desloca a fronteira entre o “normal” e o "anormal" de tal forma que ela e a sua família pertencem agora ao grupo dos “completamente normais”. Do outro lado da linha estão as famílias que não reproduzem o dualismo da mãe e do pai. Na entrevista, Weidel descreve explicitamente a sua rejeição da doação anónima de esperma: “Nesse caso, ter filhos torna-se pura auto-realização para os pais, um projeto do ego”.

Na minha dissertação, distingo duas formas diferentes, e parcialmente contraditórias, que os homossexuais encontraram para incorporar os valores da AfD. A primeira, na qual incluo também a narrativa de Weidel, segue uma lógica discursiva de igualdade homonormativa. Aqui, os estilos de vida dos homossexuais parecem ser tão “normais” que basicamente nada os distingue dos heterossexuais: O seu comportamento e estilo são claramente codificados como masculinos ou femininos, vivem em parcerias monogâmicas de longa duração e não querem dar nas vistas como homossexuais. Nestas condições, podem ser tolerados no imaginário político da AfD, porque não põem em causa a normalidade heterossexual de dois sexos. Nas suas práticas e narrativas quotidianas, há, em última análise, apenas uma coisa que distingue os defensores da igualdade homonormativa dos heterossexuais - a relação sexual. Mas, para eles, isso pertence ao espaço não-político da esfera privada. É por isso que também lhes é impossível actuar politicamente com base na sua própria homossexualidade. A maior parte deles recusa-se a envolver-se com o grupo da AfD que dá pelo nome de “Homossexuais Alternativos” (AHO).

Os AHO tentam politizar a sua homossexualidade. Na sua perspectiva, ser diferente, a afirmação simbólica da homossexualidade, a encenação do desvio e a apropriação da posição de outsider são virtudes através das quais a heteronormatividade pode ser estabilizada. É aquilo a que chamo "diferença heteronormativa". Um deputado da Alemanha Ocidental do AfD, que é considerado de direita radical no seu grupo parlamentar, disse-me: “Se não vos tivéssemos a vocês, aves do paraíso, este partido era uma seca.”

Por um lado, o objetivo dos AHO é demonstrar ao público que a AfD não é homofóbica. Por outro lado, também tenta trabalhar a nível interno para convencer o seu partido de que os homossexuais não ameaçam a nação, ou seja, “a continuação da cultura étnico-alemã”. Enquanto os políticos homossexuais da AfD como Alice Weidel se dão conta de haver um conflito com o seu partido (por exemplo: a igualdade jurídica), os AHO tentam alterar as posições do partido.

Um exemplo que trouxe do meu trabalho de campo: Dirk Uhlig, que era o chefe do comité estatal especializado em assuntos familiares da AfD, foi convidado para uma reunião dos AHO. Queria saber qual a posição dos homossexuais da AfD relativamente às exigências do partido em matéria de política familiar. Andreas, cofundador dos AHO, explicou-lhe o objectivo do grupo: "Trata-se também de dar mais visibilidade aos gays conservadores. Sentimo-nos instrumentalizados pela esquerda". Uhlig concordou imediatamente: "O facto de o tema da homossexualidade ser visto como uma questão de esquerda é um problema para nós. Temos um flanco exposto que precisa de ser fechado por vós. É assim que entendo a vossa função". Uhlig tinha trazido um esboço das principais exigências do AfD em matéria de política familiar. Depois de todos terem folheado as três páginas individualmente, Andreas disse: "Os homossexuais concordam definitivamente com tudo. O ponto sobre a integração da perspectiva de género é particularmente importante para nós. É completamente absurdo! Sempre esta compulsão para ‘igualar’ tudo, este igualitarismo. Mas nós não somos todos iguais! A identidade também implica diferenciação: Eu sou assim e não de outra forma."

Um dos anúncios da AfD na campanha para as eleições federais em 2021 começava com as palavras: “Há um partido que não perde tempo com rodriguinhos de género”. Quer os homossexuais da AfD sublinhem a sua “normalidade” ou precisamente o seu desvio da norma - em qualquer dos casos, concordam com o seu partido: a ordem heteronormativa de dois géneros deve ser mantida. E é desta forma que se querem inscrever no imaginário político do seu partido.


24 fevereiro 2025

Berlinale 2025 - dia 2




Nevou durante a noite, de modo que eu parecia a Gata Borralheira: antes de sair para a festa, ainda tive de limpar tudo. O que não é tão complicado como possa parecer, porque foi antes das sete da manhã: enquanto ninguém pisa a neve fresca, é facílimo varrê-la do caminho.

Nas estações da S-Bahn sem cobertura havia uma camada alta de neve na plataforma. Aí é que era preciso limpar realmente! Mas, pelos vistos, os outros varredores de neve não tinham de sair a correr de madrugada para ir ver o primeiro filme do dia...




1. Sheng xi zhi di (Living the Land), de Huo Meng

Uma aldeia chinesa nos anos 80, a sentir já as mudanças provocadas pelo processo de industrialização do país. Um filme algures entre a crueldade e a crueza de O Laço Branco de Haneke e o retrato pitoresco de A Aldeia da Roupa Branca. O pequeno Chuang empresta-nos o seu olhar empático e puro para atravessar esta espécie de quadro vivo de um equilíbrio ameaçado pela modernização em curso, mas o caminho do filme é sinuoso e perde-se entre os muitos personagens e episódios. 


2. Hot Milk , de Rebecca Lenkiewicz    

Infelizmente tive de sair a meio, mas estava a ser um bom filme. 


3. Michtav Le'David (A Letter to David), de Tom Shoval

(aqui)


4. Solo Sunny, de Konrad Wolf 

No centenário de Konrad Wolf, este filme de 1980 foi exibido na secção Berlinale Classic. Escolhi-o porque me interessava ver como era a vida em Prenzlauer Berg - provavelmente o bairro mais gentrificado de Berlim - dez anos antes da queda do muro. Mas o filme é muito mais do que o contexto de uma época, e a Sunny é uma figura tão bem conseguida que saiu do écran e anda por Prenzlauer Berg a tentar ser feliz. Ainda hoje. 

Na Akademie der Künste reuniram-se algumas das figuras históricas do cinema da RDA. No palco, contaram uma história velha de quase meio século: Solo Sunny foi apresentado na Berlinale, em Berlim ocidental, e a actriz principal ganhou um urso de prata pelo seu trabalho. O urso de prata ainda conseguiu chegar a Berlim leste, mas o diploma respectivo ficou pelo caminho. Durante muito tempo pensou-se que teria sido obra da Stasi, ou algo assim, até que recentemente os descendentes de um dos responsáveis do filme estavam a arrumar os papéis que ele deixara, e encontraram lá pelo meio o famoso diploma. Que foi finalmente entregue aos descendentes da actriz, no meio de muitas gargalhadas. 





22 fevereiro 2025

e assim vamos andando cada vez mais depressa para trás

 


Há pouco mais de um ano, a Alemanha escandalizou-se ao saber de uma reunião de pessoas ligadas ao partido AfD e outros grupos grupos da extrema direita, com o objectivo de definir uma estratégia em relação aos estrangeiros que vivem neste país. Talvez não seja por acaso que tenham marcado essa reunião para um cenário semelhante ao palacete da Conferência de Wannsee, e bastante perto deste.

"Remigração" foi a palavra que chocou a sociedade alemã: repatriação em larga escala de imigrantes, inclusivamente os seus descendentes nascidos na Alemanha e com nacionalidade alemã.

Esta revelação provocou a maior onda de manifestações desde a criação da República Federal Alemã. Não obstante, um ano depois, a AfD usa a palavra "remigração" com a maior naturalidade no espaço público, e tudo aponta para que venha a ser o segundo partido mais votado nas eleições de amanhã.

Pior ainda: também no discurso eleitoral dos partidos democráticos, os "estrangeiros" passaram a ser vistos como uma "ameaça" e um problema que a sociedade tem de resolver. A sociedade alemã regressou sem peias ao "nós" contra "eles".

Recentemente, num talk show, uma jornalista especializada na problemática dos refugiados, que conversa com eles nos campos, nas rotas de fuga e nos países de chegada, chamou a atenção aos outros participantes: "Estamos a falar de seres humanos como se fossem cadeiras desdobráveis". E lembrou os 25% da população alemã que tem uma história de migração, falou nesse "nós" contra "eles" que envenena o "nós todos" e provoca insegurança numa boa parte da população. Mas os políticos não aceitaram o repto, e voltaram ao chavão: "a migração é um problema, e tem de ser resolvido".

Podia resolver-se com reforço dos serviços administrativos, com mais aulas de alemão, mais programas de integração, mais creches, mais habitação, mais programas de formação profissional (o país precisa desesperadamente de mais pessoas no mercado de trabalho, e de dar uma volta à pirâmide etária). Mas não: no espaço do discurso público, a única maneira de resolver o "problema da migração" é com repatriamento, regras ainda mais apertadas e desumanas, e controle nas fronteiras.

Esta sociedade consegue fazer melhor, e já o mostrou em 2015. Quando Angela Merkel abriu as fronteiras aos desesperados que fugiam à guerra da Síria, os alemães viveram um momento alto da sua humanidade: o número de voluntários que queriam ajudar era superior ao dos refugiados. Muitas famílias abriram as suas casas a desconhecidos. Muitas pessoas assumiram o cargo de tutor de menores não acompanhados. Comunidades locais uniram-se para acolher essas pessoas e criar pontes. Lembro-me, por exemplo, de jovens de uma pequena cidade que organizaram grupos de skating com jovens refugiados.

2015 foi também o ano em que a AfD, que começara por apostar, sem êxito, no tema da saída do euro, viu finalmente a sua oportunidade para começar a ganhar algum poder: a instigação à xenofobia e ao ódio como ferramenta política. Foi introduzindo o seu discurso insidioso na sociedade, e o discurso foi corroendo os valores humanitários que as pessoas até então se esforçavam por assumir como seus. Merz, da CDU (o partido que ainda tem "cristão" no nome), que será provavelmente o próximo chanceler alemão, já chegou ao ponto de se referir aos filhos dos imigrantes muçulmanos como "pequenos paxás que não respeitam nada na escola primária". E também se queixou que os refugiados tiram o lugar aos alemães nas listas de espera dos dentistas. É o nível a que chegámos.

Com as eleições à vista, pouco antes do encerramento do Parlamento, Merz decidiu chantagear os outros partidos democráticos, provavelmente para aparecer aos olhos do eleitorado xenófobo como o homem forte que defende convictamente os seus interesses nacionalistas. Levou ao Parlamento uma proposta para serem tomadas medidas mais drásticas contra os imigrantes, incluindo medidas ilegais. Como era de esperar, os partidos democráticos votaram contra, e a proposta de Merz passou com os votos da AfD. Foi um momento muito estranho no Parlamento Federal: todos os deputados dos partidos democráticos com cara de enterro, inclusivamente o próprio autor da proposta, e os deputados da AfD aos vivas e aos abraços no plenário.

A classe política e grande parte da população ficaram em choque por Merz ter quebrado um tabu até agora consensual: não se leva a Parlamento nada que ofereça à AfD o papel de decisor. Merz veio para a comunicação social explicar o seu ponto de vista, repetindo por todo o lado que "uma coisa que é certa não deixa de ser certa por ser aprovada pelos errados". A mensagem é apelativa - mas um parlamento democrático não é lugar para desvarios quixotescos, e a Democracia não funciona assim. Um político que impõe aquilo que entende ser o certo, contra a realidade e contra todos, não é um democrata. A Democracia é um jogo de diálogo, atenção às diferentes perspectivas, negociação e concessão. "Eu é que sei o que é o certo, e imponho a minha vontade" é mais o estilo do Trump. De facto, se olharmos com atenção, vemos que já há muitos políticos europeus com traços de trumpismo - e não apenas o Merz, e não apenas na Alemanha.

A quebra daquele tabu provocou nova onda de manifestações com centenas de milhares de pessoas nas ruas. Duas amigas minhas, de 85 e 87 anos, estiveram numa manifestação várias horas em pé e no frio do inverno berlinense, porque estavam revoltadas. Uma delas comentou: "pela primeira vez na vida não vou votar CDU".

Mas as sondagens mostram que esta deriva autoritarista de Merz lhe rendeu um pequeno aumento das intenções de voto. E a AfD continua firme no seu lugar de segundo partido mais votado.

Amanhã a Alemanha vai votar. Longe vão os tempos em que o resultado das eleições não era realmente importante: um pouco mais à esquerda ou um pouco mais à direita, mas sempre com estabilidade democrática. Hoje em dia, a questão começa logo com a dúvida sobre a possibilidade de formar um governo estável. A extrema-direita populista paira sobre a Democracia como uma espada de Dâmocles. Assisto a tudo isto incrédula. Agora sei como foi possível que Hitler tomasse o poder. Como foi impossível impedir que Hitler tomasse o poder.

Uma amiga minha anda a ler o livro "Dança Sobre o Vulcão", sobre o ambiente nos loucos anos vinte na Berlim do século XX. E lamentou-se: "cem anos depois, temos o vulcão mas nem ao menos dançamos!"


16 fevereiro 2025

Berlinale 2025 - dia 1


1. Kaj ti je deklica (Little trouble girls), de Urška Djukić

Não consegui evitar os paralelos com o Gloria, de Margherita Vicario, que vi também na Berlinale no ano passado: primeira longa da realizadora, música, jovens mulheres ou adolescentes a cantar. Mas no Gloria a alegria e o prazer da música estão no centro; neste Kaj ti je deklica, a música é apenas a moldura que enquadra as tensões e a descoberta da sexualidade.


2. Minden Rendben (Growing Down), de Bálint Dániel Sós

Um filme bem feito, com bom ritmo, bons actores, e a pergunta que angustia: e se um pai obrigar o filho a mentir para escapar às consequências dos seus actos?


3. El Diablo Fuma (y guarda las cabezas de los cerillos quemados en la misma caja), de Ernesto Martínez Bucio

Também primeira longa metragem do realizador, tinha tudo para me conquistar: um título muito promissor, um bando de crianças. Digamos assim: não conquistou.


4. Das Licht (The Light), de Tom Tykwer

À saída da exibição, ouvi um jornalista a comentar com outro: "mas que foi isto?!" Isto é uma vertigem berlinense neste princípio do século XXI, com uma mensagem simples (estamos todos perdidos, cada um no seu próprio labirinto; só nos salvamos se tocarmos o essencial de mãos dadas com os outros. É isto, mas na forma de sopa da pedra cinematográfica: um pouco de tudo, e tudo e excesso. Ainda estou a decidir se gostei ou não, mas há duas cenas que não esqueço: o modo como filma o primeiro date de um adolescente (lindo!!!) e o comentário de uma vizinha perante a discussão do casal no patamar das escadas (não conto, mas deixo aqui registado: adoro os berlinenses!)




15 fevereiro 2025

Berlinale 2025 - sessão de abertura

A Berlinale continua política, e não é só nos temas de muitos dos filmes que exibe. Na abertura do festival, os carros dos VIP passavam por manifestantes com uma bandeira da Palestina e um cartaz a acusar a Alemanha de ser cúmplice do genocídio. Do outro lado das barreiras, no tapete vermelho, lembraram David Cunio, que há alguns anos veio a este festival apresentar o filme "Youth", onde teve o papel principal - e agora é um dos reféns do Hamas. 

Muita política, e o seu quê de provinciana, nomeadamente em certos vestidos: a boa, velha Berlinale!

Como sempre, as actrizes já consagradas vieram agasalhadinhas, e as que ainda andam a lutar pela vida passaram um frio dos diabos. Fan Bingbing, a actriz chinesa que faz parte do júri do concurso, veio agasalhada num braço e a passar frio no outro. Talvez falsa modéstia...

Infelizmente não consegui bilhete para a sessão de abertura. Por isso, tirei uma fotografias do povo de pé à neve, ainda passei pelo stand da Armani, onde insistiram muito para me fazer o make up (a mim! coitados, sabem lá eles com quem se meteram...) e fui cedo para casa, que não convém rebentar os foguetes todos logo no primeiro dia. 







 

Berlinale 2025 - cá vamos nós outra vez


 Cá vamos nós outra vez! Até 23 de Fevereiro: correria, correria, correria. Mas quem corre por gosto...

A Berlinale está cada vez mais pobre. Perderam patrocinadores poderosos, e nota-se: até nas flores do tapete vermelho poupam. Mas é bem verdade que quando se fecha uma porta… o São Pedro abriu as comportas do céu e pôs a cidade mágica de neve. E termos de efeitos especiais: um luxo!









10 cm de neve nos passeios.
Sim, antes de sair para os cinemas, tenho de limpar a neve em frente à minha casa antes das sete da manhã. Esta minha Berlinale é glamour puro…

Como ia dizendo: 10 cm de neve nos passeios. Adeus, "escolhi o caminho menos percorrido", adeus "a distância mais rápida entre A e B é uma recta". É que nos dois primeiros dias fui para lá com as minhas botas favoritas, por serem as mais confortáveis, e por serem as favoritas estão com as solas muito lisas. Normalmente ando em cima da neve para evitar escorregar, mas com a neve tão alta não dá, porque fico com as calças ensopadas. Por isso ando aos ziguezagues na rua, pelos sítios que me parecem menos escorregadios, e como na velha anedota: sigo o caminho das pedrinhas.
Ao terceiro dia: levei uma botas com uma sola que deixa mosquinhas na neve. (Já falei do outlet desta fábrica? Noutro dia conto. Mas, para já, falemos da Berlinale.)