A melhor reacção que li até agora ao
texto racista da Fátima Bonifácio no Público é
este texto do Hugo van der Ding.
(Se vocês tivessem de ir para uma ilha deserta e só pudessem levar um humorista, qual dos outros levavam?) (O Hugo van der Ding não podiam levar, que já está reservadinho.)
Leiam tudo. Deixo aqui apenas duas pequenas ideias:
"Não conto que me responda, mas adorava que esclarecesse uma dúvida que
me ficou da leitura do seu texto: a Maria de Fátima, no direito à
duplicidade de que todos gozamos, escreveu-o na sua qualidade de
Maria-de-Fátima-Académica ou na sua condição de
Maria-de-Fátima-Calhandreira? Isto parece-me fundamental para
compreender o que a Maria de Fátima escreveu. Se foi na sua condição de
académica, a Maria de Fátima há-de dizer-me onde é que dá aulas, para eu
escreve
r aqui num papel para não me esquecer de nunca lá pôr os meus filhos. Se foi na sua condição de calhandreira, estão os meus parabéns, o texto está ótimo!"
(...)
"É curioso que a académica Maria de Fátima se queixe depois das portas
escancaradas das Universidades, da entrada de analfabetos que resultaria
do acesso irrestrito e incondicional ao ensino superior, quando a
própria Maria de Fátima trata este tema — pelo menos neste artigo, a
única coisa sua que li até hoje — como uma analfabeta."
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ADENDA - agora que já passaram alguns dias, transcrevo o texto completo:
Cara Maria de Fátima,
Permita-me que a
trate assim, que estou sem pachorra para ir ao Google procurar o seu
grau académico, que, li não sei onde, é de licenciada para cima. Pois
que já deve adivinhar o que me traz aqui: o seu artigo de opinião
«Podemos? Não, não podemos», publicado no jornal Público, que li, eu e o
resto do país. E resolvi então escrever-lhe uma carta aberta, para
juntar às muitas outras que lhe têm escrito por estes dias a propósito
do mesmo tema. Olhe, sempre é mais uma para pôr em cima da lareira ou do
piano no Natal, que, com esse feitio não deve receber muitos postais de
Boas Festas. Digo eu.
Por ignorância minha ou por não frequentarmos os mesmo círculos (nunca a vi, por exemplo, num after,
ou, pelo menos, não tenho ideia disso), confesso que nunca tinha ouvido
falar da Maria de Fátima. Mas soube agora, a propósito do frisson
que causou o seu artigo, que ando a perder bastante, pois garantem-me
que a Maria de Fátima é uma respeitadíssima e publicadíssima académica.
Faz muito bem, que o saber não ocupa lugar. E, como diz o povo, um burro
carregado de livros é um doutor. O povo é mesmo torto, credo.
Não
conto que me responda, mas adorava que esclarecesse uma dúvida que me
ficou da leitura do seu texto: a Maria de Fátima, no direito à
duplicidade de que todos gozamos, escreveu-o na sua qualidade de
Maria-de-Fátima-Académica ou na sua condição de
Maria-de-Fátima-Calhandreira? Isto parece-me fundamental para
compreender o que a Maria de Fátima escreveu. Se foi na sua condição de
académica, a Maria de Fátima há-de dizer-me onde é que dá aulas, para eu
escrever aqui num papel para não me esquecer de nunca lá pôr os meus
filhos. Se foi na sua condição de calhandreira, estão os meus parabéns, o
texto está ótimo!
Mas quero acreditar que a pessoa cuja crónica
saiu no Público foi a Maria-de-Fátima-Calhandreira. É que a
Maria-de-Fátima-Académica não faria generalizações como «os ciganos»,
«os africanos», e muito menos usaria como amostragem académica uma
conversa que teve no elevador com a mulher-a-dias da sua vizinha de
cima.
Dirijo-me, portanto, à Maria-de-Fátima-Calhandreira, com um
intuito pedagógico. Não vou comentar a sua posição em relação ao sistema
de quotas que tanto a incomoda. Discuti-la-ia com gosto com a
Maria-de-Fátima-Académica, se ela assim quisesse. Mas, como já vimos,
não é dela a prosa do artigo.
Abeiro-me assim da janela de onde a
Maria-de-Fátima-Calhandreira, de óculos na ponta do nariz, casaco de
malha coçado, e naperon de crochet crescendo numas agulhas, tece as suas
considerações para quem a quiser ouvir.
Vou saltar por cima dos
clichés estafados sobre os ciganos, que já não há pachorra para essa
conversa, de tão pouco original. E qualquer taxista expõe melhor os seus
argumentos do que a Maria de Fátima. Mas, Maria de Fátima, os
africanos? A Maria de Fátima escreveu mesmo «os africanos»?
O que
me parece faltar à Maria-de-Fátima-Calhandreira, como sói acontecer às
calhandreiras, é mundo. É viajar, é ler, é ir ao cinema, que são três
boas soluções para a falta de mundo. Uma mais cara, outra média e outra
barata, para não haver desculpas.
África, Maria de Fátima, é um
continente. Que vai do deserto à selva, da savana às montanhas. Tem o
norte e tem o sul, tem o interior e o litoral, tem a costa atlântica e a
costa oriental. E cada uma destas partes tem tanto a ver com as outras
como têm a ver o olho do rabo com a Feira de Montemor, como também diz o
povo.
África tem 30 milhões de quilómetros quadrados, 20% do
total da área terreste. Tem 54 países. Tem cerca de 2000 línguas, com
140 delas faladas por vários milhões de pessoas. E, por falar em milhões
de pessoas, sabia, Maria de Fátima, que «os africanos» são (números de
2018) 1.287.920.518 de pessoas? Vou dizer por extenso, pois creio ter
lido que a Maria de Fátima é de Letras: mil duzentos e oitenta e sete
milhões novecentas e vinte mil quinhentas e dezoito pessoas. Ou seja, há
mais 1.287.920.517 de africanos, para além da mulher-a-dias da sua
vizinha de cima, que a Maria de Fátima usou para resumir «os africanos».
Já agora, estima-se que haja em África 380 milhões de cristãos, ao
contrário do que a Maria de Fátima parece pensar, quando escreve que os
africanos não «fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural
milenária que dá pelo nome de Cristandade». É bom de ver que a Maria de
Fátima nunca leu, nem sequer nas revistas das Selecções do Reader’s
Digest, na privacidade da sua casa de banho, que algumas das comunidades
cristãs mais antigas do mundo (dos séculos I e II) são em África.
Mesmo
dando de barato que a Maria de Fátima se referia à África que fala
português, ficamos com cinco países, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Moçambique e São Tomé e Príncipe, que ficam geograficamente em regiões
tão distintas culturalmente como o noroeste, o sul, o oriente ou o meio
do mar. E são cerca de 52.000.000 de pessoas. Cinquenta e dois milhões
de pessoas.
Penso que foi a ignorância destes números que fez com
que generalizasse que todos os africanos (e afrodescendentes) se
«autoexcluem, possivelmente de modo menos agressivo [que os ciganos], da
comunidade nacional», que «odeiam ciganos», que «constituem etnias
irreconciliáveis», que «são abertamente racistas: detestam os brancos
sem rodeios», que «detestam-se uns aos outros quando são oriundos de
tribos ou "nacionalidades" rivais». E é aqui que usa o seu vasto
conhecimento dos africanos, através do exemplo da mulher-a-dias da sua
vizinha de cima, que, conta a Maria de Fátima, lhe disse: «Senhora, eu
não sou preta, sou atlântica, cabo-verdiana». Desta história que a Maria
de Fátima parece usar como exemplo académico, fica uma dúvida: a Maria
de Fátima chamou preta à mulher-a-dias da sua vizinha de cima? É que,
pun not intended, fica pouco claro.
Mais à frente no seu texto, e a
propósito da criação de um observatório do racismo e da discriminação,
escreve a Maria de Fátima: «Mas como é que se observa o racismo e a
discriminação a partir dos gabinetes almofadados onde se sentariam os
observadores? A única maneira de observar uma matéria tão fugidia e
evanescente é frequentar feiras e supermercados baratos, é entrar nos
bairros em que nem a polícia se atreve a pôr os pés». Isto escrito pela
mulher que, umas linhas antes, usa o exemplo da mulher-a-dias da vizinha
de cima para concluir que todos os africanos são racistas. Ai, Maria de
Fátima, Maria de Fátima...
África e os africanos têm bastantes
problemas, sabemos todos, e um deles, que não é de somenos, são os
brancos como a Maria de Fátima que, por ignorância, mas também por
maldade, usam o seu estatuto «académico» para despejar o seu ódio
racista. Um discurso racista disfarçado por vezes de humanitário,
trazendo para a conversa temas de facto sérios e graves como a excisão
feminina, oferecendo, como contributo, a exclusão.
É curioso que a
académica Maria de Fátima se queixe depois das portas escancaradas das
Universidades, da entrada de analfabetos que resultaria do acesso
irrestrito e incondicional ao ensino superior, quando a própria Maria de
Fátima trata este tema — pelo menos neste artigo, a única coisa sua que
li até hoje — como uma analfabeta.
A propósito do por vezes
complicado choque de culturas, lembrei-me de uma história de Kofi Annan —
pedindo-lhe desde já, Maria de Fátima, desculpa por usar o exemplo de
um africano cuja craveira intelectual faz de si, Maria de Fátima, por
comparação, uma analfabeta, cuja imensa pinta e classe fazem de si,
Maria de Fátima, por comparação, uma frequentadora de supermercados
baratos, e cujo prestígio internacional faz de si, Maria de Fátima, por
comparação, tenho de dizer-lhe, a mulher-a-dias da sua vizinha de cima.
Kofi
Annan casou, como sua segunda mulher, com uma condessa sueca. Vinda de
um país, nas palavras da própria, onde «quando combinamos um jantar para
as oito da noite, chegamos às sete e meia e ficamos a dar voltas de
carro pelo bairro até chegar a hora marcada de bater à porta». Para o
primeiro jantar que deu aos seus novos parentes africanos, fez a
condessa um soufflé. Ora os seus novos parentes não chegaram às oito,
nem chegaram às nove, chegaram às dez da noite. Já há muito que tinha
ido o soufflé (que, penso que sabe, é um prato que tem de ser servido
assim que sai do forno) para o caraças. A condessa ficou pior que
estragada, claro. Depois de os parentes se irem embora, Annan, sempre um
diplomata, lá acalmou a condessa. E acabaram por concordar que, no
futuro, os parentes chegariam atrasados só uma hora e não duas, e que a
condessa não voltaria a fazer soufflé.
São duas maneiras de
encarar o «outro»: tratá-lo genericamente como um bárbaro selvagem, ou
abdicar, de vez em quando, de um soufflé.
E esta escolha dirá sempre mais sobre «nós» do que sobre o «outro».