Mostrar mensagens com a etiqueta supremacia branca. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta supremacia branca. Mostrar todas as mensagens

17 julho 2019

"ganda puta!"

Há uma dúzia de anos uma blogger da nossa praça contou que o filho de dois anos andava com a mania de chamar "ganda puta" às pessoas. Os pais tentaram tudo para lhe tirar o hábito, mas o miúdo insistia. Até que a mãe recorreu a métodos brutais. A maior parte dos comentários ao post onde isto era relatado foram de aprovação, variações de "quando for grande vai-te agradecer ter recebido essa boa educação".

Há dias comparei os valentes que "ousam assumir" um discurso politicamente incorrecto a uma criança de três anos que grita "cocó" no meio de uma sala cheia de visitas. Mas ao ler o artigo mais recente do João Miguel Tavares dei-me conta de que a imagem peca por defeito. Corrijo agora: o que esses valentões dizem não é "cocó", é: "ganda puta!"
E parece que não tiveram pais que os educassem, em criança.

Por algum motivo que gostava de entender, mas argumentando que estão a respeitar a liberdade de expressão, os jornais publicam a provocação. Dão palco a estes discursos que não fazem o menor esforço para esconder os tiques de supremacia branca, e até os exibem em letras grandes e gordas:

Ganda puta!


Desculpem que pergunte: em nome de quê publicam os jornais um "ganda puta!" (por exemplo: "Sim, há culturas que são superiores a outras") em letras gordas?

A posição de que as ideias se debatem com ideias, e que a vantagem da publicação de textos infelizes é dar ensejo à publicação de textos felizes para contrapor, parece-me um bocadinho ingénua. Qual é o poder e o valor do contraditório nestes tempos de fake news, quando já é do conhecimento de todos que as pessoas ouvem apenas aquilo que querem ouvir e acreditam apenas naquilo em que querem acreditar, quando a terra ser redonda ou plana, a chegada do Homem à lua ou a importância das vacinas são meras questões de opinião? Hoje em dia, o que acontece no espaço público não é um debate esclarecedor, mas uma enorme chinfrineira. Para muitos, o debate esgota-se de forma satisfatória no momento em que lêem o "ganda puta!" da sua convicção escrito em letras grandes e gordas nas páginas do Público. Tudo o resto que se possa dizer sobre o assunto será ignorado: mera canzoada a ladrar.
São estas as novas regras do jogo, e não as podemos ignorar.
Fazer o quê, então? Não sei. Mas o facto de não ter solução para este problema não inviabiliza a crítica e não nos pode impedir de reconhecer que chegamos a uma situação de impasse.

Para tornar tudo ainda mais complexo, a gravidade desta questão não se esgota na improficuidade do debate. Se as ideias apresentadas e debatidas se limitassem a discutir o sexo dos anjos, menos mal. Mas muitas vezes esses "ganda puta!" atirados para o espaço público de debate ferem impiedosamente a dignidade humana. O infantiloide que se julga muito valente por não respeitar "a ditadura do politicamente correcto", e grita insultos para o meio da sala, está realmente a cometer tortura psicológica contra as pessoas de alguns grupos marginalizados. Dizer-se neste caso que "quem não deve não teme" será sinal de ignorância e falta de empatia. É exigir demasiada nonchalance a pessoas que ao longo de toda a sua vida são humilhadas por atitudes - muitas vezes inconscientes e involuntárias - de ódio étnico e racial. Estou a pensar, por exemplo, no que me contou há dias um empresário alemão: em miúdo, fartou-se de apanhar tareias na escola e na rua, sem saber o que é que os outros miúdos tinham contra ele. Até que um dia percebeu: o seu cabelo castanho dava-lhe um ar de turco. Isso mesmo: perseguiam-no e batiam-lhe apenas por acharem que ele era turco. Ele - filho, neto e bisneto de alemães - tinha como escapar a esta dinâmica de violência. Mas os outros, os filhos de turcos, não. 
E estou a pensar neste filme, que mostra bem o que é crescer num ambiente hostil:



O meu filho está há meses a trabalhar com grande entusiasmo e generosidade na organização do festival in*Vision. Um dos objectivos do festival é trazer para o centro da sociedade pessoas que se sentem marginalizadas. Fazê-las acreditar que são cidadãs de pleno direito, e que esta Polis também é delas - nem mais nem menos que dos outros.

De cada vez que um jornal publica um destes "ganda puta!" de supremacia branca em letras gordas, destrói o trabalho dos organizadores do in*Vision e de tantas iniciativas do género, e obriga-os a recomeçar, uma e outra vez. Pergunto-me se o João Miguel Tavares, a Fátima Bonifácio e outros comentadores do género se sentem contentes e orgulhosos do importante papel que escolheram ter na sabotagem dos esforços para criar uma sociedade igualitária. 

E fico à espera dos próximos capítulos no Púlico: será que teremos em breve mais um artigo da Bárbara Reis a criticar os "snowflake" por afinarem logo mal lhes chamam "ganda puta!"? Será que na próxima semana João Miguel Tavares nos vai explicar porque é que os tipos que vivem nos guetos da "cultura inferior" não se devem revoltar contra os da "cultura superior" que os tratam com a rudeza de um miúdo de dois anos que quer provocar a autoridade dos adultos?

11 julho 2019

cocó! (hihihihi)

Há tempos li um artigo de opinião no Spiegel online (infelizmente esqueci o nome do autor) onde se comparava o politicamente correcto à condução cuidadosa numa zona urbana com muitas pessoas.  A ideia era muito simples: se sei que há muitos peões nesta zona, se sei que há crianças a brincar, se sei que qualquer descuido meu pode provocar um acidente, naquela zona conduzo com redobrados cuidados. E nem por isso me vou queixar de que a minha mobilidade está em risco.

Traduzido o discurso dos opositores do politicamente correcto para os termos desta imagem, fica:

- Quero lá saber se há crianças e velhinhos a atravessar a rua! Tenho um bólide novinho em folha, estou numa rua para carros, tenho direitos. Saiam da frente, aqui vou eu!

A imagem também se aplica maravilhosamente à lamúria "sou um desgraçadinho, diga o que disser, há sempre alguém que se sente ofendido...":

- Tenho direitos! Estou a cumprir a velocidade legal dentro das localidades! Não tenho culpa que a rua seja estreita, sem passeios e cheia de peões. A cada metro, pumba!, mais um que se queixa que foi atropelado! Não me deixam conduzir como me apetece! Sou um desgraçadinho.

Num outro artigo de opinião na mesma revista, Ferda Ataman compara estas pessoas que querem  falar como lhes apetece, e sem se sujeitaram às peias da boa educação e da inteligência, a um miúdo de três anos que grita para o meio da sala "cocó!" e depois fica na expectativa, a ver como é que os adultos vão reagir. Como explicava a Françoise Dolto já há muitos anos: uma criança que diz "cocó!" para uma audiência de adultos sente-se muito poderosa.

Enfim, criancices.

Mas isto dá-me uma ideia. Para conseguirmos uma plataforma de entendimento entre os adeptos e os opositores do politicamente correcto, e lembrando ainda aquela piada da família que numerou as anedotas para as contar mais depressa ("37!" "hahahaha" "51!" "hehehehe, muito boa!" "15!" "oh, essa não se conta à mesa!"), quem quiser dizer o que lhe apetece sobre uma minoria podia anunciar simplesmente:

- Estou a dizer um cocó sobre os ciganos/africanos/judeus/mulheres/gays/desempregados/deficientes/idosos/etc. !

Dizia "cocó!", ficava aliviado, até podia entrar para as estatísticas ("em Julho aumentou exponencialmente o número de cocós xenófobos nas redes sociais") e o grupo alvo não se sentia espezinhado como nos casos em que alguém diz por extenso o que lhe vai nas tripas.


09 julho 2019

"Fátima Bonifácio e o soufflé"

A melhor reacção que li até agora ao texto racista da Fátima Bonifácio no Público é este texto do Hugo van der Ding.

(Se vocês tivessem de ir para uma ilha deserta e só pudessem levar um humorista, qual dos outros levavam?) (O Hugo van der Ding não podiam levar, que já está reservadinho.)


Leiam tudo. Deixo aqui apenas duas pequenas ideias:

"Não conto que me responda, mas adorava que esclarecesse uma dúvida que me ficou da leitura do seu texto: a Maria de Fátima, no direito à duplicidade de que todos gozamos, escreveu-o na sua qualidade de Maria-de-Fátima-Académica ou na sua condição de Maria-de-Fátima-Calhandreira? Isto parece-me fundamental para compreender o que a Maria de Fátima escreveu. Se foi na sua condição de académica, a Maria de Fátima há-de dizer-me onde é que dá aulas, para eu escrever aqui num papel para não me esquecer de nunca lá pôr os meus filhos. Se foi na sua condição de calhandreira, estão os meus parabéns, o texto está ótimo!"
(...)
"É curioso que a académica Maria de Fátima se queixe depois das portas escancaradas das Universidades, da entrada de analfabetos que resultaria do acesso irrestrito e incondicional ao ensino superior, quando a própria Maria de Fátima trata este tema — pelo menos neste artigo, a única coisa sua que li até hoje — como uma analfabeta."


---

ADENDA - agora que já passaram alguns dias, transcrevo o texto completo:

Cara Maria de Fátima,
Permita-me que a trate assim, que estou sem pachorra para ir ao Google procurar o seu grau académico, que, li não sei onde, é de licenciada para cima. Pois que já deve adivinhar o que me traz aqui: o seu artigo de opinião «Podemos? Não, não podemos», publicado no jornal Público, que li, eu e o resto do país. E resolvi então escrever-lhe uma carta aberta, para juntar às muitas outras que lhe têm escrito por estes dias a propósito do mesmo tema. Olhe, sempre é mais uma para pôr em cima da lareira ou do piano no Natal, que, com esse feitio não deve receber muitos postais de Boas Festas. Digo eu.
Por ignorância minha ou por não frequentarmos os mesmo círculos (nunca a vi, por exemplo, num after, ou, pelo menos, não tenho ideia disso), confesso que nunca tinha ouvido falar da Maria de Fátima. Mas soube agora, a propósito do frisson que causou o seu artigo, que ando a perder bastante, pois garantem-me que a Maria de Fátima é uma respeitadíssima e publicadíssima académica. Faz muito bem, que o saber não ocupa lugar. E, como diz o povo, um burro carregado de livros é um doutor. O povo é mesmo torto, credo.
Não conto que me responda, mas adorava que esclarecesse uma dúvida que me ficou da leitura do seu texto: a Maria de Fátima, no direito à duplicidade de que todos gozamos, escreveu-o na sua qualidade de Maria-de-Fátima-Académica ou na sua condição de Maria-de-Fátima-Calhandreira? Isto parece-me fundamental para compreender o que a Maria de Fátima escreveu. Se foi na sua condição de académica, a Maria de Fátima há-de dizer-me onde é que dá aulas, para eu escrever aqui num papel para não me esquecer de nunca lá pôr os meus filhos. Se foi na sua condição de calhandreira, estão os meus parabéns, o texto está ótimo!
Mas quero acreditar que a pessoa cuja crónica saiu no Público foi a Maria-de-Fátima-Calhandreira. É que a Maria-de-Fátima-Académica não faria generalizações como «os ciganos», «os africanos», e muito menos usaria como amostragem académica uma conversa que teve no elevador com a mulher-a-dias da sua vizinha de cima.
Dirijo-me, portanto, à Maria-de-Fátima-Calhandreira, com um intuito pedagógico. Não vou comentar a sua posição em relação ao sistema de quotas que tanto a incomoda. Discuti-la-ia com gosto com a Maria-de-Fátima-Académica, se ela assim quisesse. Mas, como já vimos, não é dela a prosa do artigo.
Abeiro-me assim da janela de onde a Maria-de-Fátima-Calhandreira, de óculos na ponta do nariz, casaco de malha coçado, e naperon de crochet crescendo numas agulhas, tece as suas considerações para quem a quiser ouvir.
Vou saltar por cima dos clichés estafados sobre os ciganos, que já não há pachorra para essa conversa, de tão pouco original. E qualquer taxista expõe melhor os seus argumentos do que a Maria de Fátima. Mas, Maria de Fátima, os africanos? A Maria de Fátima escreveu mesmo «os africanos»?
O que me parece faltar à Maria-de-Fátima-Calhandreira, como sói acontecer às calhandreiras, é mundo. É viajar, é ler, é ir ao cinema, que são três boas soluções para a falta de mundo. Uma mais cara, outra média e outra barata, para não haver desculpas.
África, Maria de Fátima, é um continente. Que vai do deserto à selva, da savana às montanhas. Tem o norte e tem o sul, tem o interior e o litoral, tem a costa atlântica e a costa oriental. E cada uma destas partes tem tanto a ver com as outras como têm a ver o olho do rabo com a Feira de Montemor, como também diz o povo.
África tem 30 milhões de quilómetros quadrados, 20% do total da área terreste. Tem 54 países. Tem cerca de 2000 línguas, com 140 delas faladas por vários milhões de pessoas. E, por falar em milhões de pessoas, sabia, Maria de Fátima, que «os africanos» são (números de 2018) 1.287.920.518 de pessoas? Vou dizer por extenso, pois creio ter lido que a Maria de Fátima é de Letras: mil duzentos e oitenta e sete milhões novecentas e vinte mil quinhentas e dezoito pessoas. Ou seja, há mais 1.287.920.517 de africanos, para além da mulher-a-dias da sua vizinha de cima, que a Maria de Fátima usou para resumir «os africanos». Já agora, estima-se que haja em África 380 milhões de cristãos, ao contrário do que a Maria de Fátima parece pensar, quando escreve que os africanos não «fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade». É bom de ver que a Maria de Fátima nunca leu, nem sequer nas revistas das Selecções do Reader’s Digest, na privacidade da sua casa de banho, que algumas das comunidades cristãs mais antigas do mundo (dos séculos I e II) são em África.
Mesmo dando de barato que a Maria de Fátima se referia à África que fala português, ficamos com cinco países, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, que ficam geograficamente em regiões tão distintas culturalmente como o noroeste, o sul, o oriente ou o meio do mar. E são cerca de 52.000.000 de pessoas. Cinquenta e dois milhões de pessoas.
Penso que foi a ignorância destes números que fez com que generalizasse que todos os africanos (e afrodescendentes) se «autoexcluem, possivelmente de modo menos agressivo [que os ciganos], da comunidade nacional»,  que «odeiam ciganos», que «constituem etnias irreconciliáveis», que «são abertamente racistas: detestam os brancos sem rodeios», que «detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou "nacionalidades" rivais». E é aqui que usa o seu vasto conhecimento dos africanos, através do exemplo da mulher-a-dias da sua vizinha de cima, que, conta a Maria de Fátima, lhe disse: «Senhora, eu não sou preta, sou atlântica, cabo-verdiana». Desta história que a Maria de Fátima parece usar como exemplo académico, fica uma dúvida: a Maria de Fátima chamou preta à mulher-a-dias da sua vizinha de cima? É que, pun not intended, fica pouco claro.
Mais à frente no seu texto, e a propósito da criação de um observatório do racismo e da discriminação, escreve a Maria de Fátima: «Mas como é que se observa o racismo e a discriminação a partir dos gabinetes almofadados onde se sentariam os observadores? A única maneira de observar uma matéria tão fugidia e evanescente é frequentar feiras e supermercados baratos, é entrar nos bairros em que nem a polícia se atreve a pôr os pés». Isto escrito pela mulher que, umas linhas antes, usa o exemplo da mulher-a-dias da vizinha de cima para concluir que todos os africanos são racistas. Ai, Maria de Fátima, Maria de Fátima...
África e os africanos têm bastantes problemas, sabemos todos, e um deles, que não é de somenos, são os brancos como a Maria de Fátima que, por ignorância, mas também por maldade, usam o seu estatuto «académico» para despejar o seu ódio racista. Um discurso racista disfarçado por vezes de humanitário, trazendo para a conversa temas de facto sérios e graves como a excisão feminina, oferecendo, como contributo, a exclusão.
É curioso que a académica Maria de Fátima se queixe depois das portas escancaradas das Universidades, da entrada de analfabetos que resultaria do acesso irrestrito e incondicional ao ensino superior, quando a própria Maria de Fátima trata este tema — pelo menos neste artigo, a única coisa sua que li até hoje — como uma analfabeta.
A propósito do por vezes complicado choque de culturas, lembrei-me de uma história de Kofi Annan — pedindo-lhe desde já, Maria de Fátima, desculpa por usar o exemplo de um africano cuja craveira intelectual faz de si, Maria de Fátima, por comparação, uma analfabeta, cuja imensa pinta e classe fazem de si, Maria de Fátima, por comparação, uma frequentadora de supermercados baratos, e cujo prestígio internacional faz de si, Maria de Fátima, por comparação, tenho de dizer-lhe, a mulher-a-dias da sua vizinha de cima.
Kofi Annan casou, como sua segunda mulher, com uma condessa sueca. Vinda de um país, nas palavras da própria, onde «quando combinamos um jantar para as oito da noite, chegamos às sete e meia e ficamos a dar voltas de carro pelo bairro até chegar a hora marcada de bater à porta». Para o primeiro jantar que deu aos seus novos parentes africanos, fez a condessa um soufflé. Ora os seus novos parentes não chegaram às oito, nem chegaram às nove, chegaram às dez da noite. Já há muito que tinha ido o soufflé (que, penso que sabe, é um prato que tem de ser servido assim que sai do forno) para o caraças. A condessa ficou pior que estragada, claro. Depois de os parentes se irem embora, Annan, sempre um diplomata, lá acalmou a condessa. E acabaram por concordar que, no futuro, os parentes chegariam atrasados só uma hora e não duas, e que a condessa não voltaria a fazer soufflé.
São duas maneiras de encarar o «outro»: tratá-lo genericamente como um bárbaro selvagem, ou abdicar, de vez em quando, de um soufflé.
E esta escolha dirá sempre mais sobre «nós» do que sobre o «outro».



08 julho 2019

ah, e tal, mas a Fátima Bonifácio limitou-se a descrever como é que os ciganos são...

Algumas informações para quem elogia a coragem da Fátima Bonifácio de dizer as coisas como elas são no que respeita aos povos ciganos:

1. A realidade actual dos povos ciganos na Europa é o resultado de mais de meio milénio de perseguições e marginalização. Para terem uma ideia: já por decreto de 1526 foi proibida a entrada de ciganos em Portugal e ordenada a expulsão dos que viviam no país. A proibição manteve-se ao longo dos séculos. Como a Espanha também proibia a entrada de ciganos, estes não tinham como cumprir a lei, e foram ficando em Portugal em situação de absoluta ilegalidade. Os ciganos que fossem apanhados eram punidos com açoites, perda de todos os seus bens, vários anos de galés (no princípio do séc. XVIII as galés eram reservadas aos homens; as mulheres ciganas eram deportadas para o Brasil, onde havia grande escassez de mulheres brancas para os colonizadores que não quisessem ou não pudessem casar com uma índia ou uma escrava negra), e em alguns casos até a pena de morte.
Outro facto muito importante para compreender as raízes históricas da "incapacidade de se integrar" do povo cigano: os portugueses que andassem com eles também estavam sujeitos às mesmas penas (açoites, expropriação, galés).
Sabendo isto, como é que nos podemos admirar que os ciganos vivam segundo as suas próprias leis, e tenham dificuldade em integrar-se? Mais ainda: como é que nos ocorre culpá-los de uma situação que foi criada pela perseguição institucional e social que durante séculos a sociedade portuguesa moveu contra eles? Que acções e que tempo são necessários para reduzir a desconfiança e sarar as feridas gangrenadas ao longo de tantos séculos?

2. O anticiganismo dos europeus é um facto, existe desde a Idade Média, e ainda hoje é aceite sem qualquer problema. Na nossa sociedade há um enorme à-vontade para generalizar e para falar das pessoas ciganas como se tivessem um problema genético de preguiça e de propensão para o crime e a ilegalidade, e poucos se dão conta da carga racista do discurso que fazem. Este nosso anticiganismo é um hábito que nos impede de ver as pessoas para além das categorias em que as arrumámos, e nos impede de encontrar soluções para os problemas que provocam tanto sofrimento e desconforto quer a essas minorias quer à sociedade em que vivem. Insistir numa retórica anticiganista é participar na construção dos entraves à resolução dos problemas, e simultaneamente atribuir cinicamente aos ciganos a responsabilidade por uma situação que resulta em grande parte das nossas escolhas, das nossas acções, do nosso discurso de rejeição ou, no mínimo, da nossa indiferença.

3. O que é realmente grave no texto de Fátima Bonifácio:
- Ignora o contributo da sociedade portuguesa para a criação do contexto em que essa minoria vive, bem como a questão da responsabilidade histórica.
- Parece decalcado da "retórica assertiva" dos nazis: "nómadas sem lei", "incapazes de integração", "resistentes ao trabalho", "com costumes diferentes dos nossos" - numa palavra: "associais". Como se Fátima Bonifácio não conhecesse a História do século XX, nada soubesse sobre os ciganos enviados para as câmaras de gás com um triângulo negro cosido no casaco (o símbolo dado aos "associais"),  e não tivesse tirado dela nenhum ensinamento.
- Evita a todo o custo estudar e tentar ver para além das aparências.
- Reforça o anticiganismo e o preconceito, preparando o terreno para que a sociedade civil aceite com indiferença e até alívio eventuais acções de violência (inclusivamente institucional) contra os ciganos. Caso hoje apareça por aí um político que queira dar uma "solução final" ao "problema cigano", textos como este da Fátima Bonifácio adequam-se maravilhosamente à sustentação "factual" de acções de perseguição racista.

4. Os ciganos alemães que conseguiram sobreviver à perseguição nazi e ficaram neste país parecem estar bem integrados. Vivo na Alemanha há 30 anos, e não me lembro de ter visto notícias ou ouvido comentários privados sobre alguma espécie de ameaça que os Roma e Sinti alemães possam representar para esta sociedade. Ou seja: em cerca de 50 anos foi possível passar da retórica nazi, que levou ao genocídio, para a coexistência pacífica.
Deixo esta última informação como sinal de esperança para os portugueses: se houver vontade política e tomada de consciência por parte da população civil, é possível corrigir em meia dúzia de décadas os terríveis resultados de meio milénio de anticiganismo institucional.
Mas se preferirem aplaudir a "assertividade" da Fátima Bonifácio, e teimar numa perspectiva mal informada e maniqueísta da situação, então aí...