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15 setembro 2017

o monstro no labirinto

Mais uma para a conta da insularidade: a Gulbenkian vai apresentar a ópera que cantei em Berlim em 2015. Ena, ena! Que vontade de estar em Lisboa neste final de Setembro!

Será que vão encená-la também como em Aix-la-Provence? Ou será que, por falta de espaço, se limitarão a concertante? A encenação apresentada na estreia mundial, em Berlim (de Annechien Koerselman) era relativamente descritiva, enquanto a francesa era muito mais ousada: política e simbólica, projectando para temas muito actuais.

A versão francesa pode ser vista aqui: Le monstre du labyrinthe. E a alemã, aqui: Was lauert da im Labyrinth (reparem nas trompas, especialmente quando fazem as aparições do monstro: o português Ricardo Silva, que na altura era bolseiro da Orchestra Academie, era o responsável por esse grupo). 

(Na altura em que andei metida nesta aventura, fui contando: I, II, III, IV, V, VI, VII)


25 junho 2017

já foste!

Se querem saber tudo (se não querem, passem para o parágrafo seguinte): no sábado passado, dia da estreia mundial da ópera em que andei a trabalhar nos últimos dois meses, liguei o telemóvel no intervalo do almoço. Daí a nada estava a tocar. Era a Christina. "Ó mãe, saí para o jardim, a porta da casa bateu, e agora estou aqui descalça e o Fox está sozinho lá dentro!" O problema do Fox sozinho em casa é que tinha sido operado três dias antes, e estava sem o funil torturador. Não podia ficar várias horas a lamber os pontos sem ninguém o chatear. Como eu não tinha tempo de ir a casa e voltar a tempo do concerto, a Christina sugeriu encontrarmo-nos a meio do caminho. Foi a uma vizinha pedir uns sapatos emprestados, e encontrámo-nos no Zoo.

Com isso, perdi a horinha que tinha guardado para rever a partitura da ópera e assentar algumas ideias. De modo que ia sentada no autocarro, de regresso à Filarmonia, folheando o livro e repetindo febrilmente "oieoai falado, oieoai cantado 2 vezes e à segunda bates palmas", e coisas assim. O autocarro parou, um homem entrou e sentou-se ao meu lado. Cheguei-me mais para a janela para ele acomodar o corpanzil, e continuei a estudar.

- A senhora é música?, perguntou-me ele, em inglês.
- Não. Apenas amadora.
- Ah. Pensei que era música. É que eu sou. De Jazz.
Pelo ar com que o disse, imaginei que se consideraria uma autêntica lenda viva.
Sorri-lhe brevemente, larguei um "ah, que giro...", e espetei o nariz no livro.
- Se quiser, posso dar-lhe um CD.
- Obrigada... - voltei ao livro.
- Dou-lhe o meu número de telefone, você liga-me, e eu dou-lhe o CD.
Impaciente, passei-lhe um papel para as mãos, na esperança de que ele sossegasse depois de escrever o número (e agora não me chateiem, que eu estava a 35 minutos da estreia mundial e tinha a cabeça no oieoai cantado 2 vezes e à segunda bates palmas). Escreveu - com algarismos americanos - deu-me o papel, e estendeu a mão para um aperto. Estendi-lhe a minha (como quem estende um papel na esperança de que o outro sossegue depois de registar o seu número de telefone, e não me chateiem, que tinha a cabeça no aoeo em que fazemos uma vénia à rainha) e o gajo pousou delicadamente um beijo nas costas da minha mão.

- Já foste!, pensei eu, furiosa comigo própria por ter caído na armadilha. E depois semicerrei os olhos, e rosnei só para mim:
- Já foste, meu grande chato.

Largou-me a mão, e continuou:
- Tem aí o meu número de telefone, pode ligar-me, podemos tomar um café.

Apontei para o livro, e disse-lhe com firmeza que me estava a incomodar.   

Uma amiga minha, portuguesa, contou que quando veio morar para a Alemanha se perguntava o que haveria de errado com ela por não ser assediada na rua. Não estava habituada àquele sossego.
Eu, há quase trinta anos por estas terras, habituei-me bem demais. Tanto, que já nem sei desconfiar de gajos que começam uma conversa comigo no autocarro.

--

Caso estejam perplexos com os textos da ópera que cantei: era a história de uma viagem à lua - a língua do povo da lua era feita só de vogais: a o e i I (ai) o u.
Como não se entende o que eles dizem, a própria música tem de contar tudo. É uma bela ópera para crianças. Um dia destes disponibilizam no Digital Concert Hall, e eu ponho aqui o link.


17 junho 2017

vou à lua e volto já



Hoje é o dia da estreia mundial da ópera "a Trip to the Monn", de Andrew Norman.

Podia contar muita coisa, mas não tenho tempo, porque antes de sair para os últimos preparativos ainda tenho de levar o Fox ao seu passeio, e ir comprar dois baldes enormes para a sardinhada que estamos a organizar para amanhã no Monbijou park. Inventam tantas teorias, e ainda ninguém se lembrou de inventar uma de círculos do tempo sobrepostos, para eu poder fazer três ou quatro coisas ao mesmo tempo. Quer dizer, isso já eu faço. Mas dava-me jeito se pudesse fazer descansadamente cada uma dessas coisas, num círculo diferente do tempo.

(Chama-se agenda, Heleninha. Basta não pôr duas coisas na mesma linha.)


Aqui podem ler um pouco sobre este projecto. Amanhã, às onze da manhã (dez em Portugal), passam em directo e gratuitamente no Digital Concert Hall. Se me quiserem reconhecer no meio daqueles lunáticos todos vestidos de branco, estou no grupo de bipolares que desce as escadas da direita. Devo ser a oitava a contar do fim.

Lunáticos, bipolares? Resumindo, é assim: um grupo de terráqueos chega à lua, e os lunáticos reagem com desconfiança. Por sorte a Pocahontas lá do sítio explica-lhes que não é preciso ter medo, e todos fazem uma grande festa, na qual a princesa explica aos visitantes como vivem os lunáticos e o medo que têm de um monstro que os persegue. Tudo vai em boa paz, até que aparece o monstro da lua e as coisas começam a correr mal. A boa vontade transforma-se imediatamente em ódio. Oh, estes lunáticos de fracas convicções, sempre predispostos a fazer de mob atrás de um líder qualquer que fale mais grosso!

A música tem passagens belíssimas, e a encenação está muito boa.

Escusado será dizer que estou a gostar imenso de participar neste projecto - mesmo se ando sempre a correr de um lado para o outro, e se faço tudo com uma décima de segundo de atraso porque ainda não tive tempo de decorar a partitura e a coreografia.







(tirei todas as fotos do site da Filarmonia de Berlim)


30 maio 2017

le voyage dans la lune

(fonte: "Le voyage dans la lune", 1902 - Jason Shulman/Guardian - fotografias de exposição ultralonga, para condensar um filme completo numa imagem só)





O Education Project deste ano na Filarmonia é uma ópera do Andrew Norman, novinha em folha, inspirada no filme "Le voyage dans la lune", feito em 1902 por George Méliès.

É a minha segunda ópera em projectos destes, e talvez seja a última - não se sabe se o sucessor de Simon Rattle vai dar continuidade a este tipo de trabalho com crianças, jovens e cantores amadores.

A estreia mundial será em Berlim no próximo dia 17 de Junho. Repete a 18, e depois será apresentada por outro elenco em Londres (com Simon Rattle e a Sinfónica de Londres) e Los Angeles (com Dudamel e a Sinfónica de Los Angeles).

A história passa-se na lua, mas vou avançando de pés bem assentes na terra: a aprender "moonish" (uma língua que só tem vogais: aeiIou, uai, ieo, aie e por aí fora), a treinar andar na lua, e fazer vénias à rainha, e acertar os meus movimentos pelos do líder de cada um dos grupos, e não me enganar na parte em que bato palmas e na outra em que só canto, e no ritmo, e nas costas redondas, e no balanço para cima e para baixo mas não para um e para outro lado, e por aí fora.

Tenho duas semanas para aprender tudo isso, e para actuar e cantar com convicção, com a certeza absoluta que é assim mesmo.

Pés bem assentes na terra, disse? Mais abaixo, mais abaixo: tenho a autoconfiança ao nível da terceira subcave.

(Mas é como diz o Pennac no seu maravilhoso Chagrin d'École: se não sei, só tenho uma solução - arregaçar as mangas e desatar a trabalhar.)




18 maio 2016

de mil faces transbordantes



No próximo domingo, o Daniil Trifonov vai tocar o concerto nº 2 para piano de Rachmaninov na Filarmonia de Berlim. Vi-o há meses, a tocar o nº 3. A sala inteira em apneia, até se esqueceram de tossir e tudo.

Os bilhetes para o próximo domingo são demasiado caros, pelo que estou a pensar um plano B, teimosamente fundado na convicção de que a esperança é a última a morrer: ir para a porta, ver se há alguém com um bilhete a mais, que o queira oferecer. Às vezes, há.

O problema é que no próximo domingo vou cantar a missa de Schubert. Estarei na Filarmonia das dez da manhã até às seis da tarde, completamente mergulhada em música e endorfina da melhor. Já basta para um dia, já deveria bastar - e bastaria até para um mês, ou seis meses, ou um ano, se a minha vida não fosse a tal de mil faces transbordantes.

Há tempos, uma das cantoras que participou na ópera do ano passado comentou que foi o melhor que lhe aconteceu nesse ano (ou terá dito "na vida inteira"?). Fiquei muito surpreendida, porque eu tinha conseguido encaixar a ópera entre uma viagem maravilhosa à Costa Rica e a festa que organizámos na nossa rua - para falar apenas do que aconteceu na mesma altura. Pergunto-me se dou o devido valor ao que me acontece, ou se na vertigem de tanto e tão bom acabo a deslizar pela vida sem lhe tocar a profundidade.

Estou a ouvir o Trifonov, e a pensar que gostaria imenso de o ver no próximo domingo, mas não sei se consigo estar realmente nesse concerto com ele logo depois de ter cantado a mil vozes uma missa de Schubert - essa missa que estou a fazer minha.

Não será uma overdose de sensações demasiado intensas?
Menos é mais?

Não me digam que ainda agora completei cinquenta anos, e já estou a ganhar juízo?

(Provavelmente é apenas o saber de experiência feito. Por causa daquela vez em que fiquei de frente ao Dudamel a vê-lo dirigir a segunda de Mahler, e a seguir fui ao late night com o Rattle e a Barbara Hannigan. Eles foram excelentes, mas foi uma péssima ideia, porque não conseguia ouvi-los - ainda estava no concerto anterior. O eco daquele Mahler precisou de vários dias para se resolver dentro de mim.)

(Por outro lado, é o Trifonov. E o nº 2 de Rachmaninov. Aaah, pudesse eu não ter laços nem limites...)


21 junho 2015

"opera prima" - hoje, às 4 da tarde (3 em Portugal), transmissão em directo e gratuita no Digital Concert Hall

A estreia, ontem, correu bem. Tentei lembrar-me de tudo: de usar "toda a língua alemã", como diz o Simon Halsey (ou seja: bater bem as consoantes), de meter uma folha de papel entre as palavras para se perceber cada uma delas sem o texto parecer uma sopa informe, de fazer os pianos e os fortes, de estar atenta à expressão do rosto e das mãos ("isto é tudo teatro", dizia a encenadora - tenho de me lembrar mais disso, porque às vezes esqueço-me, e os olhos enchem-se-me de água quando os jovens atenienses partem no barco), dos momentos em que é para cantar como se fosse um lamento interior e dos momentos em que há uma explosão de dor, do "you are not alone" (como cantarolou o Simon Rattle, para nos lembrar que o coro dos cretenses, sendo um trabalho de 100 solistas, tem de ser um trabalho em uníssono), da palavra luz iluminada (como o Tobias, o maestro que nos preparou, pediu desde o primeiro ensaio), do 1-2-3-4-"T", o 1-2-3-4-5-6-"G", dos cantabile, dos crescendo, do "nun" cantado como "lun" para não se ouvir apenas o "u". De levantar o braço ameaçadoramente logo em "já", e não em "labirinto", embora a entoação seja "já para o LABIRINTO".

Ao meu lado, um cantor fazia os gestos errados, e eu dava-lhe cotoveladas discretas. Enganei-me uma vez no coro dos cretenses, ai que vergonha, e nessa parte senti algum embaraço por estar misturada com o público a gritar coisas horrorosas em alemão, no meu alemão que não é perfeito, e as pessoas ao meu lado perceberem isso  (como quando ralhava com os meus filhos em alemão, e eles me corrigiam a pronúncia e a gramática).

No fim, o público aplaudiu longamente. Aliás: como trouxeram para o palco tantas pessoas com um nível cultural bastante diferente do habitual na Filarmonia, o público era bem diferente do habitual. Nem tossiam nem nada. O projecto Education Programm tem um efeito multiplicador que vai bem além das duzentas ou trezentas pessoas que nele participam.

No palco, nós sorríamos e aplaudíamos os nossos companheiros de aventura. Eu até me esquecia de parar de aplaudir quando me curvava com o coro dos adultos para agradecer o aplauso que nos era dirigido. Por trás de mim, o filho do Simon Rattle, um rapazinho amoroso que toca contrabaixo nesta orquestra que mistura crianças da escola primária e jovens com músicos da Filarmonia, escancarava os olhos de surpresa perante aquela explosão de aplausos.  

Saímos para a rua com o olhar feliz e realizado de quem conseguiu chegar muito perto da Beleza.

Hoje passa em directo, e gratuitamente, no Digital Concert Hall. Às três da tarde em Portugal.

Depois é apresentado por outros aventureiros em Londres, em inglês, e a seguir no festival internacional de Aix-en-Provence, em francês. A nossa aventura acaba aqui, hoje, e já sinto uma saudade enorme.

20 junho 2015

"opera prima" - uma ópera do nosso tempo





Jonathan Dove e Simon Halsey (fotos)


Os trompistas, que fazem o tema do Minotauro, são conduzidos por Ricardo Silva
um português bolseiro da Orchesterakademie.


É hoje a estreia da nova ópera do Jonathan Dove, "The Monster in the Maze", sobre a história de Teseu e o Minotauro. Estreia mundial, que responsabilidade a nossa! Embora, de facto, a verdadeira estreia mundial seja amanhã, com a transmissão em directo (e gratuitamente) pelo Digital Concert Hall. Domingo, 21 de Junho, às 4 da tarde (3 em Portugal), aqui. Hoje é apenas o aquecimento, perante 2400 pessoas...

Durante estes dois meses de preparação, fui-me apropriando desta ópera a pouco e pouco. Começámos pelo fim, pela mensagem de esperança "e assim a luz expulsa a noite" (e, logo no primeiro ensaio, o nosso maestro a pedir "iluminem bem a palavra luz"). Meu amor à primeira vista:

E assim a luz expulsa a noite, um dia claro nasce, e o seu riso é para sempre, para sempre, para sempre.

Depois fomos ao princípio, quando os atenienses comentam entre eles a crueldade do rei Minos, que exige que os filhos de Atenas sejam enviados de barco para serem entregues à morte. (Barcos da morte no Mediterrâneo? Onde é que já ouvi isto?...)

No primeiro ensaio com o Simon Halsey, a orquestra e os outros dois coros, fiquei fascinada com a beleza das melodias dos jovens, a doçura do coro infantil, e os desdobramentos de tensão na sobreposição dos vários grupos e solistas. Para além disso, comoveram-me os sinais da verdadeira riqueza deste Education Programm: o maestro que se dirige aos grupos do coro infantil chamando-os pelo nome do seu bairro, e são bairros que nos habituámos a associar a grupos sociais pobres e sem acesso à cultura erudita; no fim do ensaio, os gorjeios de língua à maneira do norte de África e da Turquia que ecoaram na sala quando os jovens aplaudiram; e o rapazinho que, sem saber como reagir ao nosso entusiástico aplauso ao coro infantil, endireitou o tronco, levantou os braços e mostrou orgulhosamente os músculos - no coração da Filarmonia de Berlim.

Uns dias mais tarde, durante o almoço na cantina dos artistas, falaria com uma cantora do Rundfunkchor que estava na Filarmonia a trabalhar com um dos coros das escolas primárias, e ela comentaria que é um trabalho muito exigente do ponto de vista emocional, porque muitas vezes aquelas crianças a comovem até às lágrimas. Como a compreendo! Também lhe confessei que tinha alguma inveja dos cantores do Rundfunkchor, que são pagos para trabalhar com o Simon Halsey. Ela sorriu, e concordou. Parece que não sou só eu a reparar no charme dele, do seu humor e da música do seu alemão com toque britânico, e no pormenor delicioso da camisa que no princípio do ensaio está elegantemente metida dentro das calças, e depois se vai esbanigando.

Voltando à nossa história: começa com o rei Minos a falar aos atenienses. "Ouve, Atenas! Foste vencida. Vencida, conquistada, destroçada. Enche todos os anos um barco com a tua Esperança, os jovens da tua cidade, e envia-o para o mar, para mim, o rei de Creta!" (Enviar para longe os jovens que são a Esperança de um povo? Onde é que eu já ouvi isto?...)
Os atenienses estão desesperados, os seus filhos estão em choque, e é então que surge Teseu. O Teseu desta ópera é um herói do nosso tempo: cool, cheio de swag. "Olá!", diz ele alegremente ao grupo de atenienses que estão à beira de um ataque de nervos. "Que choradeira é esta?"
Os jovens enchem-se de esperança: "Teseu!, o Teseu é o mais inteligente!, o Teseu é o mais forte!, é o mais valente!, é modesto!, consegue o que ninguém mais consegue!" e o Teseu faz charme, "ora essa, isto é só fun". Combinam que Teseu vai com eles para os ajudar a escapar ao Minotauro, preparam-se para partir, e eis que surge a mãe do Teseu, e parece saída de um livro do Freud. Pior, parece eu a falar com os meus filhos: "Nem penses! Isso é perigoso! Podes morrer! E eu, como é que fico? Não me deixes sozinha!"
O Teseu também parece meu filho: "Ó mããããeeee!" - impossível não rir com os tiques de adolescente que o Florian Hoffmann empresta ao seu personagem.
Depois os pequeninos juntam-se ao grupo, implorando aos irmãos mais velhos que não partam, que fiquem em Atenas. Mas eles põem-se a caminho. Teseu diz à mãe que deu a sua palavra àqueles jovens, reconhece que a comida dela tem um aroma muito sedutor, mas que a aventura ainda o seduz mais (ah, YOLO!).
Para trás ficam os atenienses, de coração destroçado.

Quando os jovens chegam a Creta, são recebidos pelo rei e por um mob sádico e sedento de sangue. Entram no labirinto, onde - tão jovens do séc. XXI! - os miúdos se queixam do fedor e da falta de conforto. Ao ouvir ruídos, os miúdos da frente fazem "chiu" e os de trás protestam: "já não se pode falar?!"
É Dédalo, o construtor daquela obra, que os leva até ao Minotauro. Durante a luta com o Minotauro (não vou revelar tudo, vejam no Digital Concert Hall) o coro dos jovens transforma-se em balões da banda desenhada: Batsch! Uffff! Peng! Knack!

O resto da história é o esperado: Teseu vence o Minotauro, saem do labirinto, e entram no barco rumo a Atenas, onde ninguém acredita no seu regresso. Os pais repetem "eles nunca mais vão voltar a casa" como uma canção de embalar - como se quisessem adormecer a sua dor. E chega o grande final, o momento da alegria e da esperança, com todos os solistas, os três coros em palco, a orquestra e dois maestros - o Simon Rattle  e o Simon Halsey - a aclamar o brilho daquele dia de riso claro para sempre, para sempre, para sempre.
Esta parte é muito difícil. Há demasiadas frases sobrepostas, as pessoas em palco têm dificuldade em ver o Simon Halsey, que dirige os três coros e ainda acompanha o que Simon Rattle faz na orquestra. Queremos todos entoar a esperança com enorme júbilo, mas sentimo-nos um bocado perdidos no meio da uma extrema diversidade. Alguns dos cantores nem conseguem ver o maestro, que se multiplica em gestos para oito músicas paralelas, tentando conduzir todos com segurança para um final de perfeita polifonia. Nestas condições, não basta esperar ter um dos melhores maestros da Europa e confiar nele. Para além de seguir as indicações do maestro, cada um de nós tem de saber muito bem o seu papel e o modo como se combina com o dos outros, tem de estar extremamente concentrado, tem de estar sempre atento para ouvir o seu grupo e todos os outros, tem de dar o melhor de si para garantir o melhor resultado do conjunto.

É, sem dúvida, uma ópera para o nosso tempo.


17 junho 2015

"opera prima" - bastidores



Nos bastidores, em Berlim:




Nos bastidores, em Aix-en-Provence:




Num ensaio em Berlim (eu sou aquela de branco, um pouco acima e à esquerda do Simon Rattle) (hihihi)




14 junho 2015

"opera prima" - ensaio com público



(fotos)
(eu sou a quarta bandeira da direita...)

Hoje a Filarmonia de Berlim abriu as portas ao público. O dia começou às 11, com um ensaio público de parte da ópera que vai ter estreia mundial no próximo sábado, dia 20. Antes disso, tivemos um ensaio sem público, pelo que o meu dia começou um bocadinho antes. Muito antes, aliás: antes de sair para o ensaio andei em casa numa correria a pô-la bonita para o Joachim que andou uma semana lá fora a lutar pela vida e regressa hoje, e a pôr-me bonita para um ensaio com público na sala grande da Filarmonia, e (aquela coisa do "já agora") a estender a roupa que foi lavada durante a noite, e - claro - a levar o Fox ao primeiro passeio do dia. Ao regressar a casa o Fox espetou os pés no caminho: não queria entrar em casa. O Joachim fora, eu a passar imensas horas fora de casa devido a trabalhos vários, ele sozinho demasiado tempo. Pobre Fox, deve sentir a casa como um castigo. Já estava atrasada, atrasadíssima, pelo que o trouxe para casa ao colo. Ele deitou-se logo no cesto, com um olhar de partir o coração.
Fui para a Filarmonia, entrei como um bólide na sala onde já estavam a fazer aquecimento de voz, e só tinha 30 segundos de atraso. Depois fizemos o nosso ensaio. No coro de Creta, um coro de sádicos, o Simon Rattle tentou tudo por tudo para nos conseguir fazer agressivos e assustadores, mas ainda temos muito de aprender. Ele bem dizia "demasiado, é muito bom!", e nós esforçávamo-nos por ser demasiado agressivos para ele ficar satisfeito. Debalde. A culpa deve ser do ensino público, que anda a dar cabo de nós.
Para repetirmos a cena dos "cretinos" (há quem lhes chame assim - a gente ri-se muito, lá na Filarmonia) saímos do bloco H, onde estávamos, e corremos pelo lado de fora da sala para o bloco A (quem conhece aquela casa imaginará o programa de fitness que esta ópera implica para os cantores). À porta do bloco A já havia pessoas à espera para entrarem na sala. A nossa guia disse "têm de nos deixar passar" e um refilão refilou "ter, não temos nada!" (imagino que isto seja muitos anos de educação para a Democracia - as pessoas ficaram hipersensíveis a tiques de autoridade, mesmo que sejam tão inócuos como este). Mas lá nos deixaram passar, e lá ficámos à espera, até que veio nova ordem: como já não havia tempo para repetir essa parte, devíamos voltar para o bloco H, para começar em breve o ensaio com público. Alguém dos que estavam à espera comentou "esta Filarmonia, que coisa mais mal organizada!" Até estremeci. Eles não sabem nada! Uma ópera novinha em folha, que começou a ser ensaiada há menos de dois meses, com 100 cantores adultos não profissionais, muitos deles sem sequer terem experiência de coro, mais dezenas de adolescentes e crianças (3 coros, portanto), três solistas, um narrador e um bailarino, uma orquestra com músicos amadores (e alguns deles são tão jovens que nem chegam com os pés ao chão quando estão sentados na sua cadeira), uma encenação extremamente complexa que nos faz andar a correr pela casa para voltar ao bloco inicial mas em lugares diferentes (sim, que cada um de nós pertence a 3 grupos diferentes; eu, por exemplo, sou dos grupos contralto, 2 e C). Do ponto de vista da capacidade de organização, o que esta equipa está a fazer é um trabalho brilhante.
O Simon Rattle cumprimentou o público, explicou que isto era apenas um ensaio, e que eles iam ver uma obra em construção. E que era uma aventura, ou uma viagem de carro - se houver um acidente, temos de parar, disse ele. Eu estava à espera que houvesse um acidente, porque o mais interessante é mesmo ver o processo de correcção de erros - sobretudo o modo bem-disposto como eles (tanto o Simon Rattle como o Simon Halsey) nos dizem o que querem receber de nós. Mas parece que não houve nenhum acidente enorme, e lá fomos nós pela peça fora. Ainda não está perfeita, mas já está bastante impressionante. Na parte do coro de Creta (quando estamos no meio do público e dizemos coisas horrorosas às crianças de Atenas que estão a chegar para irem servir de almoço ao Minotauro), uma menina ao meu lado começou a olhar para mim e a encolher-se toda de medo. Pisquei-lhe o olho para ela saber que isto era tudo teatro, e ela encolheu-se ainda mais. Deve ter pensado que eu era a bruxa que a queria atrair à casinha de chocolate.

O que tenho de aprender para o futuro (que é já no dia 20):
- não olhar para o público, especialmente para meninas pequeninas todas encolhidas de medo
- não dançar nem sequer baloiçar ao som da música, por muito bonita que seja
- não sorrir encantadíssima quando os outros dois coros estão a cantar
- não sorrir encantadíssima quando o Teseu aparece (e é difícil, porque ele é encantador)
- olhar mais para o Simon Rattle (sim!!! isto é inacreditável, mas está-me a acontecer! uma vez na vida tinha uma boa desculpa para não tirar os olhos do Simon Rattle, e esqueço-me de olhar para ele porque estou presa das crianças que têm melodias lindas, ou das fanfarronices do Teseu, ou da preocupação da mãe dele, ou dos pequenitos que estão na orquestra a tocar ao lado de alguns filarmónicos - o que não me falta nesta ópera são distracções, de modo que passo a vida a chegar com atraso aos lamentos de Atenas (este é o momento em que uma amiga minha vai dizer "pffff, andas há anos a chegar com atraso ao sofrimento dos gregos...") (olá, Rita! estás a ter um bom fim-de-semana?)
- preparar-me realmente bem, saber a ópera de cor - não apenas as minhas frases e os meus gestos, mas o momento exacto em que começo a cantar, e o momento exacto em que largo o "t" ou o "d" do fim da palavra

Ainda temos uma semana de trabalho intenso, ainda estamos a meio do processo - e eu já estou cheia de saudades destes dias. E a sonhar que, se tiver sorte, para o ano há mais.

Entretanto, hoje na Filarmonia há quatro ou cinco palcos onde acontece música excepcional, mas eu vim para casa, porque ainda tinha o coração na tristeza dos olhos do Fox quando o deixei de manhã. O dia continua: já plantei umas trepadeiras, já me zanguei com o Fox que correu para a rua a ladrar a uma senhora, o Joachim voltou, estou a pensar se regue o jardim para as nuvens finalmente se abrirem e largarem a água que têm estado a prometer o dia todo, e nada. A normalidade.  


06 junho 2015

"opera prima" - e nem sequer tenho de pagar!




Passei esta manhã de sábado a ensaiar a ópera "The Monster in the Maze" sob a batuta do Simon Halsey. Mais de três horas de trabalho tão sério e exigente quanto bem disposto, mais de três horas de um maravilhoso show de humor inglês dito em alemão.

Uma delícia. E nem me obrigam a pagar para isto, nem nada!

(tirei o vídeo do site do projecto: the monster in the maze)

**

E agora regresso à Filarmonia para um concerto com os filarmónicos e o Barenboim.
(Eu bem digo que devia ter lá um colchão num cantinho qualquer, era muito melhor para o ambiente poupar-se este meu vai-vem por Berlim.)


01 maio 2015

dizer poesia

Esta manhã uma rádio berlinense estava a pedir aos seus ouvintes que telefonassem a dizer um poema que soubessem de cor sobre a primavera. Ouvi alguns. Impressionante: em vez de porem a voz em registo "ar de caso"
(erro habitual de quem diz poesia) 
(outro erro comum é pôr a voz em registo "prisão de ventre"), 
as pessoas entoavam o poema. Tinha tudo: o ritmo, a melodia e o volume certo como o poema pedia - e segundo o que cada segmento do poema pedia. 
Quem dizia aqueles poemas tinha-os entendido. Mesmo os que não tinham a dicção muito boa, mesmo os que a meio se esqueceram de uma palavra ou de um verso, todos eles diziam o poema a partir de um lugar iluminado dentro de si próprios.

Aprenderam na escola, claro, que isto pode-se aprender. Vi nas escolas dos meus filhos, em Weimar. Vi uma miúda de oito ou nove anos a dizer a balada "O aprendiz de feiticeiro", de Goethe, como se fosse uma peça de teatro para uma pessoa só (*). Maravilhosa. Vi outros, de dez anos, a declamar de cor um poema muito divertido, no dialecto de uma região a norte de Berlim, e a turma a dizer a cada um deles o que é que estava bem na sua interpretação, e o que podia ser melhorado.

Enquanto os ouvia hoje na rádio, pensei em algumas aulas da Elisabeth Schwarzkopf, e do modo como ela insistia com os jovens cantores para entenderem a poesia do que cantavam. E lembrei-me do ensaio desta semana para a ópera que vai ser apresentada em Junho. Parámos algum tempo na frase "Die Kinder sind, die Kinder sind zum Tod verdammt!" (as crianças estão, as crianças estão condenadas à morte!). O maestro lembrou-nos que nós, atenienses, estávamos gagos de pavor, e não avançou enquanto não cantámos com a entoação certa: "die KINDER sind, die Kinder sind ZUM TOOOD verdammt". Mais uns ensaios com este maestro e vou ser capaz de entoar poesia. Mas o que eu gostava mesmo era de ter frequentado a escola dos meus filhos em Weimar. 



21 abril 2015

a vida continua



A penúltima coisa de que me lembro, na Costa Rica, foi nós sentados no Bread & Chocolate, em Puerto Viejo, a comer uns brownies prodigiosos. A última coisa de que me lembro foi do ar de maturidade do Matthias a aturar a sua mãe chorosa. Bem, antes disso também houve um momento muito engraçado, quando ele anunciou "pai, tenho uma notícia trágica para ti!" e eu disse, sobressaltada, "o que é que aconteceu ao Bayern?", e era isso mesmo - o Matthias decidiu que já não quer ser adepto do Bayern. Uma notícia trágica para o Joachim, ficaram horas a falar sobre essa decisão. E depois dizem que as mulheres é que são difíceis de entender...

Levantámo-nos às três e meia da madrugada para ir apanhar o avião, e 22 horas mais tarde eram oito da manhã no aeroporto de Tegel. De momento não faço a menor ideia das horas que são dentro de mim.

Depois de uma soneca o Joachim foi buscar o Fox e eu fui passeá-lo. A Primavera tem andado pelo nosso lago, eu é que não tiro fotos, porque estas duas semanas na Costa Rica desencantaram-me a paisagem quotidiana. Ao fim da tarde o Joachim foi pintar e antes disso esteve a ver a nova exposição colectiva onde tem alguns quadros, eu fui ao ensaio do coro para a nova ópera do Jonathan Dove. Os primeiros cantores começaram a chegar 45 minutos antes da hora marcada, e muito antes do que estava previsto já estávamos todos prontos, de autocolante com nome ao peito e lista de presença assinada. O ambiente é bem-disposto e leve, mas de trabalho concentradíssimo - até os exercícios de aquecimento da voz são exigentes e exactos (é a Filarmonia, stupid). Durante o intervalo encontrei amigos que iam ao concerto desse dia, rimos um bocadinho e despachámo-nos para não chegar atrasados. No regresso para casa fui ao supermercado, e como não tinha saco meti tudo numa caixa de cartão. Na estação de metro dirigi-me a um dos funcionários para lhe fazer uma pergunta, e levava a caixa e as compras debaixo do braço. Ele começou a olhar para as bananas com ar de cobiça, dei-lhe uma. Aceitou, rindo aquele riso de quem sabe que abusou um pouco mas não se importa muito.
É: estou outra vez em Berlim.


16 março 2015

é uma estreia mundial - e adivinhem quem vai estar no palco?

É oficial: aceitaram-me para participar no projecto deste ano dos Vokalhelden da Berliner Philharmonie. Mal sabem eles que acabaram de contratar a quinta voz dessa obra (a melhor, diria eu, num ataque de falsa modéstia à parte).

A ópera para crianças "The Monster in the Maze" foi encomendada (pela London Symphonie Orchestra, o Festival Aix-en-Provence e os filarmónicos do meu vício) ao compositor Jonathan Dove (que faz peças assim) e vai ser apresentada pela primeira vez ao mundo na Filarmonia a 20 e 21 de Junho, depois no Barbican e depois em Aix-en-Provence.

Nem sei que dizer, quase me engasgo de alegria: trabalhar com o Simon Rattle e o Simon Halsey, dar vida a uma ópera por enquanto apenas imaginada, no meu palco preferido e ao lado de alguns dos músicos que tanto admiro!

É oficial: não sei qual era o alinhamento dos astros no momento em que nasci, mas era o melhor alinhamento possível. Outra explicação não há.