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sábado, 23 de janeiro de 2016

A Gastronomia e a gastronomia



“Não sou ninguém para julgar. Só sei que sinto uma antipatia inata pelos censores, os árbitros… mas, acima de tudo, são os redentores quem mais me incomoda.”  Corto MalteseTango*, 1985.


                 Existem dois tipos de gastrónomos e, logo, duas gastronomias. Apesar da homonímia e de, vagamente, se andar à volta do tema das comidas, fica por aqui qualquer semelhança entre elas e, para que se destrincem possíveis confusões, vou tratar uma com a maiúscula que bem merece e a outra com a minúscula que nem chega a merecer.

Para não começar por assuntos tristes, vou primeiro abordar essa que Albino Forjaz de Sampaio chamou "Volúpia - A 9ªArte, a Gastronomia", cuja nobilíssima missão de procura, de estudo, ao encontro do prazer e volúpia com que gostamos de adornar o biológico acto de nos alimentarmos e onde, entre muitos outros, nomes como Virgílio Gomes, Alfredo Saramago, Maria de Lourdes Modesto ou Manuel Bento dos Santos que, através do estudo e de um continuado exercício de experiência e do gosto, nos abrem portas e mostram caminhos, propostas e novidades entre aquilo que à nossa volta vai sucedendo às comidas e a História que moldou o que hoje somos em termos gastronómicos, caso dos dois primeiros, ou enveredando pelo caminho da experimentação culinária pura, caso de Manuel Bento dos Santos, um dos poucos que alia ao saber gastronómico uma forte componente culinária prática, uma raridade nesta área ou ainda Lourdes Modesto com um percurso em sentido inverso, da culinária à Gastronomia.

Depois vem uma chusma de outros, os da gastronomia*, aqueles a quem eu chamei gastrónomos elitistas e patetas, de facto uns convencidos cheios de importância, de que não vou citar nomes, até porque me esqueceria de muitos, injustamente. Esta gente, que usa este assunto da comida e das comidas para as mais confrangedoras manifestações de exibicionismo novo-rico, falando com displicência intencional das suas refeições em sítios que o comum mortal nem sonha existirem ou, sabendo-lhe da existência, nunca poderá pagar e onde ele, por uma ou duas centenas de euros, uns trocos, entenda-se,  enche a distinta e abençoada pança, para depois arengar contra a inexplicável falta de gosto das massas ignaras que teimam em não seguir os seus doutos conselhos e vão desbaratar-se nalgum restaurante menor onde prescindem da entradita de lagosta ou das imprescindíveis trufas negras do Pèrigord.
Na verdade, estes “gastrónomos”, de quem todos conhecemos os discursos, por aí muito espalhados, até neste espaço virtual, estão longe de ocupar-se da Gastronomia, a mais viva e evolutiva das artes, até porque a decorrer a todo o momento, nos templos onde se faz a verdadeira procura daquilo de que, enquadrado pela tradição da cozinha familiar, a cada momento mais gostamos: as cozinhas de todos nós. Preocupam-se outrossim em divulgar com espalhafato de pavão como eles próprios são cultos, especiais e ricos, como bem se vê pelo que comem, como comem e onde comem.
A estes somam-se, muitas vezes em sobreposição,  os não menos patetas da gastronomia purista, gente que entende a comida como algo cristalizado num determinado momento da sua meninice ou nas receitas que espelhavam as comidas e processos de um determinado tempo ido da sua eleição e que se acantonam em saudosistas confrarias que se erigem em guardiãs de passadas grandezas, perdendo o contacto com a realidade e repetindo, evento após evento, a sua receita de museu, museu de outras épocas mesmo assim, que hoje os museus são tudo menos espaços imóveis e poeirentos.
Chamo-lhe a gastronomia canónica ou museológica e tem a mesma importância para a cozinha dos nossos tempos que os simpáticos e curiosos desfiles de época de coches e outros carros de tracção animal têm para a indústria automóvel.
Os seus tristes mentores são, armados das receitas “originais” ou simplesmente da receita que a “baronesa” tia-avó deles usava, os auto-nomeados fiscais do nosso gosto e das nossas cozinhas, atrevendo-se até, chegando por vezes ao puro insulto, a ralhar com quem, honestamente e sem outras pretensões,  mostra a comida que hoje efectivamente faz e de que gosta.
Com os egos inchados num priapismo arrogante e até ofensivo, vão estes patetas vaidosos debitando as lições estudadas nos seus gurus da moda e mestres da “cuisine”, fazendo-nos saber em que gordura se “deve” estrelar um ovo, onde é que o dito “pode” levar sal (segundo Escoffier!), como é que se faz “o” Cozido naqueles restaurantes onde eles comem comida a sério, que não tem nada a ver com essas imitações de cozido engolido pela maltinha ignorante, as couves cozidas na água que cozeu as carnes, horror…
Eu, que em mais de quarenta anos a estrelar ovos, já experimentei todas as versões possíveis e que há mais de trinta escolhi o meu modo preferido (em azeite, sal grosso e pimenta sobre a gema e comido da frigideira, com pão acabado de cozer), não os aturo, como não aturo quem me venha dizer que é assim a maneira “certa” de fazer uma maionese, que eu faço de mais de dez maneiras, com gema, com clara, com ovo inteiro , sem ovo, com leite, com óleo, com azeite, com mistura, com óleos de noz ou de sementes de abóbora, até com manteiga, até de bacalhau, a frio ou a quente, com vinagres, lima ou limão, com garfo, com varas, com varinha mágica, sempre maionese e sempre bem feita.
Não há pachorra para esta gastronomia rasteira, feita juiz que ninguém pediu, censura que a todos repugna, árbitro que ninguém quer e redentora de pecados que ela própria inventa, à boa maneira inquisitorial e à míngua de ser capaz de se reinventar.

Quanto a nós, que cozinhamos e gostamos de fazê-lo, os que não somos gastrónomos nem Gastrónomos nem sequer profissionais das comidas e que vamos no dia a dia das nossas cozinhas, inventando, combinando, experimentando as propostas que outros como nós ou Gastrónomos  a sério nos fazem, daqui e dali, adaptando essas propostas ao nosso gosto pessoal,  à nossa identidade cultural e até à abundância ou escassez da nossa bolsa, às vezes com êxito, às vezes falhando e aprendendo pelo velho método da tentativa e erro, vamos por aqui dando conta a quem nos lê do que vamos fazendo e aprendendo com aqueles que aqui connosco partilham as suas experiências e sonhamos com o dia em que pudermos gritar alto e bom som: a gastronomia morreu, viva a Gastronomia!

* Claro que há ainda uma terceira “gastronomia”, a chamada gastronomia dos críticos de restaurantes, de que Quitério foi o percursor e é ainda a referência. Estas pessoas são na realidade críticos de estabelecimentos comerciais, cotejam o seu desempenho com as recolhas tradicionais ou com as modas do momento. Podem ser uma boa ajuda para quem considera que as verdadeiras cozinhas são as da indústria hoteleira. Eu não!

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Alimado de couve coração-de-boi (reflexão sobre o bacalhau na Cozinha Popular Alentejana)

            Uma leitura atenta de uma resenha editada pela Câmara Municipal de Portel, sobre sopas alentejanas, confirma aquilo que há muito vinha intuindo pela experiência directa de degustação das actuais sopas (açordas) : nas cozinhas popular e de restauração, o bacalhau está a matar a infinidade de sabores simples e poderosos que ali se encontravam e que foram construídos por séculos de fome e pela inventiva com que estas populações lhe sobreviveram.
O bacalhau, hoje omnipresente nas açordas alentejanas, esteve longe de ter sido ali o "fiel amigo" que foi em outras regiões, pela simples razão de que não havia dinheiro suficiente para a sua aquisição.
O consumo de bacalhau foi assim restringido à cozinha das casas ricas, sendo usado pelo povo apenas em ocasiões festivas excepcionais e não constituiu assim um modelo que possa ser invocado como de uso habitual.
O consumo proteico nas famílias dos assalariados ou contratados rurais era muito baixo e resumia-se quase sempre a subprodutos do porco, alguma ave em dia festivo, isto para a carne, sardinhas "amarelas" e cação seco pela parte do peixe, muitas vezes substituídos pela inclusão de ovos nos pratos, basicamente constituídos por vegetais de subsistência, bolota, grão-de-bico, ervas, azeite e pão, sempre o pão.
É preciso bem mais do que recolhas etnográficas a esmo, como aquela que vos mencionei a abrir, para se perceber o que foi essa cozinha, que constitui para a esmagadora maioria da população alentejana rural uma referência directa a algo que para o citadino é uma abstracção, por vezes até enfeitada de algum romantismo tolo, mas para um alentejano rural idoso é apenas fome. E a fome nunca foi romântica, a fome é um insulto insuportável a todos os que por ela passaram!
Assim se explica a presença, hoje quase compulsiva, do bacalhau, o tal símbolo de abastança, em praticamente todas as açordas alentejanas, que à conta desse pretenso enriquecimento, perdem evidentemente na sua espantosa diversidade original.  Mesmo para quem ainda as faça no espaço privado das suas cozinhas, na altura de relatar ou demonstrar a receita para o estranho que a recolhe, impera a ancestral vergonha, a recusa de invocar antigas misérias e é aí que entra, postiço, o bacalhau!

Os "alimados" são, como o conhecido "alimado de cação", feito hoje com o peixe fresco e dantes com a variante seca, sopas engrossadas a farinha e feitas a partir de uma base de refogado de alhos em azeite, temperadas depois com coentros ou poejos frescos e cujo líquido era um qualquer caldo, proteico ou vegetal, se o houvesse, mas as mais das vezes, água. O "alimado" é o golpe final de vinagre, essencial para que a açorda se mantivesse segura durante as horas que passava na panela até ser consumida a meio do dia, nalgum campo distante. Na cozinha alentejana ancestral havia alimados de quase tudo e quando o “tudo” escasseava, alimavam-se uns alhos e coentros e com mais uma côdea estava feita a refeição.
Este alimado de couve coração-de-boi, que descobri por acaso (e saboreei, maravilhado) pela mão mestra de D. Rosa Máximo, lá na “minha” aldeia, é uma das tais sopas/prato esquecidas e  que não figura em nenhuma recolha, a caminho do olvido final da extinção. Mesmo assim já levava o inevitável bacalhau, este alimado de D. Rosa,
mas ficou a referência antiga, que foi a que usei para esta açorda espantosa, toda ela sabor telúrico e simples a invocar no palato outras épocas ainda recentes e de memória triste, na vida, mas que foram, ao mesmo tempo, o motor que desencadeou uma das mais desconcertantes e poderosas cozinhas rurais portuguesas.

Ingredientes:

Couve
Alhos
Azeite
Coentros frescos
Farinha de trigo
Ovos
Pão duro
Sal e pimenta
Água

Preparação:

Estufe couve coração de boi,
cortada em juliana, num fundo de azeite onde estalou alguns dentes de alho.
Junte coentros picados grosseiramente,
depois um pouco de farinha que se destina a dar corpo à sopa,
mexa bem para que não haja qualquer grumo quando adicionar água. Tempere, junte um golpe de vinagre de vinho, deixe ferver até a couve estar a seu gosto e a farinha cozida
e sirva sobre fatias de pão alentejano duro, acompanhada de ovos escalfados
de modo a que a gema esteja cremosa.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Umas Migas Gatas

                 Estas migas gatas pareceram-me álibi perfeito para falarmos um pouco sobre essa imensa e generalizada confusão entre História da Cozinha (ou Cozinha Histórica) e Cozinha Tradicional, conceitos que encerram em si aspectos quase antagónicos mas que teimam em ser misturados, apesar de imiscíveis, num amálgama infeliz que muito mal tem trazido à gastronomia portuguesa. Dessa persistente confusão entre o que é do domínio da História, felizmente imóvel, e o que é do domínio da Tradição, felizmente dinâmica, têm nascido incontáveis tentativas normalizadoras de pratos que, sendo do domínio popular e das cozinhas familiares, apresentam, a partir de uma matriz comum que as denomina, incontáveis variantes e para os quais qualquer normalização é forçosamente redutora e empobrecedora.
É por isso que quando falamos de cozido à portuguesa, pastéis de bacalhau, pataniscas, meia-desfeita, peixinhos da horta, arroz de pato ou migas gatas, estamos a falar de cozinha tradicional, cuja principal virtualidade é precisamente o modo como a tradição do prato se foi modificando e adaptando às pessoas e aos tempos e que, refractários a normalizações canónicas e às chamadas receitas “fixadas”, explodem nas criatividade e dinamismo que fazem a cozinha viva de um povo. Só dentro da minha família e na da minha mulher, pude contar seis maneiras de fazer os pastéis de bacalhau, todas boas e todas diferentes da receita que alguém “fixou” há anos mas que nem por isso fixou o modo como cada um faz os seus pastéis de bacalhau, nem tão-pouco fez com que existam pastéis de bacalhau “certos”, apenas bons ou maus.
Já na cozinha histórica, a tal que tantos teimam em chamar “tradicional”, a questão é, precisamente, a preservação de uma receita, a reconstituição de uma época culinária, toda uma museografia culinária cuja principal virtualidade é precisamente o rigor e a inflexibilidade de métodos e ingredientes, garante de que serão na boca, exactamente aquilo que o seu nome promete: Bacalhau à Brás ou à Gomes de Sá, Carne à Mercês, Tripas à Moda do Porto, Pudim Abade de Priscos ou Pão de Rala. Isto é Cozinha Histórica; posso recriar a partir dela mas nunca apropriar-me dos seus nomes!
A cozinha tradicional popular alentejana, repositório do que se foi inventando em séculos de fome e privações, fazendo autênticos milagres gastronómicos a partir de quase nada, teve no pão e no seu aproveitamento a sua grande base. As açordas (sopas de pão) e as migas (massas recozidas de pão duro e água), formam um bloco em que com pão, água, sal, azeite, uma ou outra erva aromática, algum ovo, toucinho da salgadeira anual ou peixe seco, quando os havia, se fizeram uma miríade de sabores simples e poderosos que ainda hoje nos arrebatam e encantam, como estas migas gatas, que cada família apurou a partir da sua base comum de pão, bacalhau e azeite, numa sabedoria de texturas e sabores mais ou menos complexos mas sempre migas gatas. Estas, feitas pela minha filha Inês a partir do que há dias viu fazer em cozinha eborense de amigos, evoluíram segundo a história e preferências daquela família, num ano alguém não quis o bacalhau e fez-se um ovo, noutro ano houve quem quisesse os dois, o prato hoje vai assim, misto entre as migas gatas mais tradicionais do Alentejo e a “miga recheada” da Beira Alta, sendo o exemplo daquilo que é, afinal,  a Cozinha Tradicional.

Ingredientes:

Pão alentejano, duro
Postas de bacalhau demolhado
Ovos
Azeite
Alhos
Sal

Preparação:

Coza postas altas de bacalhau, levando-as ao lume em água fria
e interrompendo o processo mal a água comece a querer borbulhar. Lamine alguns dentes de alho sobre pão alentejano cortado em fatias e que esteja num recipiente que permita o escoamento, dentro de outro que permita recuperar o líquido sobejante. Estrele ovos em azeite e reserve.
Retire as postas de bacalhau para uma travessa de serviço e regue o pão com o caldo fervente,
com o sal rectificado tendo em conta o sal que o bacalhau deixou na água. Repita com a água que escorreu, as vezes necessárias a que o pão fique bem molhado. Passe para uma tigela, junte o azeite onde estrelou os ovos e desfaça o pão com uma colher de pau,
de modo a que fiquem ainda nítidas as côdeas.
Sirva as migas gatas com o bacalhau e o ovo estrelado, tudo regado com um fio de azeite cru.


terça-feira, 14 de abril de 2015

O Outras Comidas e o Facebook

             Por detrás desta página que todos os leitores podem ler, existem outras só acessíveis ao dono do blog e que lhe dão um enorme manancial de informação sobre a saúde do seu blog e o modo como ele se está a comportar dentro desse mundo que se costuma designar por Blogoesfera. 
Ali se podem obter preciosas informações sobre que público está o blog a atingir, quantas visitas, a que hora acontecem, de que áreas do mundo provêm e quais os canais através dos quais o leitor navega até chegar a ler o nosso blog.
Curiosamente, a enorme maioria dos donos de blog, ignora olimpicamente esta informação e vai deixando que o seu blog “aconteça” conforme lhe vai apetecendo.
Foi através do estudo desta informação que tenho nas “traseiras” do Outras Comidas que em relação ao Facebook penso que está a ser desastrosa a inclusão ali de notas ou chamadas sobre as publicações em blog; são mundos diferentes e o Facebook tem um efeito canibal que não aproveita a ninguém. Perdem-se leitores no blog para o trabalho sério que ali apresentamos e ganham-se leituras rápidas de cabeçalho, likes automáticos e “comentários” que, as mais das vezes, não comentam nada e são apenas exclamativos ou simples cortesia social.
Assim, esta é a última vez que um post do Blog “Outras Comidas” será ali mencionado. Cada coisa em seu sítio! O que é das comidas no blog, o que é do âmbito social, no Facebook.
Até já, ou aqui, ou lá.



sábado, 20 de julho de 2013

Cozinha Tradicional Portuguesa e Outras Conversas a Propósito


               É um facto que, por vezes, mostro por aqui e executo na minha cozinha aqueles que é costume chamarem-se pratos tradicionais ou da Cozinha Tradicional Portuguesa (CTP), o que tem levado alguns dos meus leitores  a concluir pela minha predilecção em relação a estes pratos, o que é afinal puro engano, sendo acidental o meu gosto por eles e não me movendo nenhum interesse especial pelas comidas antepassadas excepto quando, aplicando a boa e velha análise pragmática, elas correspondem à melhor variante que encontro para satisfazer aquilo que realmente me importa: os meus gosto e prazer, hoje, que a comida é para ser comida e satisfazer aqui e agora. Os meus pratos que incidentalmente coincidem muitas vezes com os preceitos da chamada CTP, destinam-se, não a satisfazer um qualquer anseio de revivalismo histórico ou regionalista mas sim a satisfazer o meu apetite, como ele é hoje.
Claro que não estou com isto a dizer que enjeito a História ou que não acho interessante o registo etnográfico de hábitos e gestos culinários de antanho, mas do mesmo modo que, apreciando os aviões dos anos heróicos da aviação, não me ocorreria por um momento ir ao Brasil no avião de Gago Coutinho, que no entanto aprecio, respeito e até gosto de visitar no Museu de Marinha, aqui ao pé de minha casa. Penso que a tradição, longe de ser o refazer automático e canónico do que outros tempos comeram, é antes algo de vivo e dinâmico e deve ser procurado não no que se fez mas sim no que se faz, naturalmente com anos de inovação, experiência e criatividade que todos os dias acontecem nas nossas cozinhas quando imitamos e também criamos e adaptamos sobre os pratos das nossas mães, construindo assim a tradição viva. Se herdamos a casa dos nossos avós, não herdamos aquela casa nova que eles edificaram há um século mas sim a casa com um século de uso, transformações, adaptações às vidas de quem nela viveu e não deixa por isso de ser na mesma a casa dos avós.
Hoje vive-se, a par de outras,  uma espécie de crise identitária, um qualquer complexo de culpa ou de vergonha pelo próprio gosto que provoca, por um lado, a desenfreada procura de sabores e combinações bizarras, num vórtice que tudo sacrifica, até o gosto, no anseio pela surpresa e novidade; por outro lado, uma espécie de culto imobilista e museográfico em que por uma razão qualquer estranha e pela primeira vez na História, se elegem comidas de outros tempos como cânone da boa comida.
Como cogumelos, nascem confrarias de tudo e mais alguma coisa, grupos de cidadãos animados de intuitos louváveis mas que, saudosistas dos tempos da sua juventude, mais não fazem que cristalizar este ou aquele prato e que rapidamente se erigem numa espécie de Inquisição gastronómica, queimando em auto-de-fé tudo o que se desvie da comidinha que não seja igual à que se fazia há 30, 50 ou 100 anos.
Para mim, que acho que a melhor preservação dos tesouros gastronómicos vem da sua qualidade e não de mecanismos proteccionistas, tradição é algo bem diferente e se vivo hoje num mundo globalizado, a minha tradição é hoje bem mais vasta que aquela de que dispunha quem tinha como horizontes o seu quintal. Ainda bem, já que das misturas e miscigenações sempre resultaram cozinhas inovadoras e sabores poderosos, veja-se o que é hoje a magnífica cozinha brasileira, a misturar sem complexos as cozinhas portuguesa, africana, nativa brasileira, italiana, libanesa, síria, japonesa e mais um pouco de todo o mundo e a resultar em hinos maravilhosos de uma nova tradição que não esquece o velho feijão tropeiro e que põe farofa sem complexos sobre qualquer prato em que ache que farofa vai bem. Não é por se inventarem alheiras de diversos ingredientes que a alheira original vai desaparecer, muitos anos de presuntos industriais indigentes e de chouriços arrepiantes, não tocaram na qualidade do bísaro ou da linguiça de porco preto alentejana, como tudo o que se tem feito por aí não fez ninguém esquecer como é um bom pastel de nata ou de bacalhau.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Bucho da Beira Alta


                       Se em matéria de comidas há espírito que eu detesto mesmo, será certamente o das confrarias gastronómicas, com tudo o que encerram de imobilismo e cristalização museográfica de algo bem vivo e em permanente mutação como é a cozinha tradicional.
Não se pense no entanto que eu ache errado o registo e até a eventual revivificação como curiosidade histórica e cultural de pratos de antanho, do mesmo modo que se organiza um jantar de época ou um serão medieval para gáudio dos seus convivas. O que me perturba é a pretensão desses grupos supostamente etno-culturais de erigirem as suas recordações ou determinada recolha em cânone imutável, certificando pela imobilidade o que deve ser este ou aquele prato.
A comida é coisa livre e em permanente evolução e a tradição é o modo como hoje se fazem os antigos pratos, não uma cópia do que eles seriam se por algum fenómeno twilight tivessem ficado suspensos no tempo e mais ninguém os tivesse feito nos últimos cem anos.
É esta a grande confusão: achar-se que tradição e museu são a mesma  coisa, quando tradição é realmente aquilo em que o antigo se transformou na sua caminhada até nós, ao ser vivido e, neste caso, comido e sempre reinventado a cada dia.
Cozinha tradicional é aquela que, nunca esquecendo os valores deixados pelos que antes nós cozinharam, se sabe adaptar numa permanente invenção ao tempo de hoje, fazendo com que os legados permaneçam vivos a cada nova refeição nas casas portuguesas, não nas evocações históricas ou almoços de confrades.
Quando em 1981, essa grande senhora da nossa Cozinha que é Maria de Lourdes Modesto lançou a Cozinha Tradicional Portuguesa, teve o cuidado de se precaver contra esse imobilismo de naftalina das receitas mortas num livro-museu qualquer, ao escrever, logo no seu prefácio: “ Fui o mais rigorosa possível na descrição da confecção e dos ingredientes. Mas a precisão das fórmulas matemáticas não tem lugar na cozinha tradicional, em que pontifica uma salutar dose de criatividade e intuição. …/… Mas não é só do passado que se trata neste livro. As oitocentas receitas que contém estão vivas e saudáveis, como as mãos que diariamente ainda as preparam em milhares de lares portugueses, conservando a nossa tradição gastronómica e projectando-a no futuro.”.
O mesmo bucho que, na região da Guarda e segundo Maria de Lourdes Modesto, era comido apenas cozido acompanhado por batatas cozidas com pele, é hoje, trinta e dois anos depois, usado como carne para um pequeno cozido, numa magnífica demonstração de como a tradição, a verdadeira, está viva e actuante.

Ingredientes:

Bucho da Beira Alta
Toucinho salgado e/ou couratos
Alhos
Sal
Batatas
Cenouras
Nabo
Couves ou ramas dos nabos

Preparação:

O bucho da Beira Alta é feito com carnes temperadas como as das chouriças a que se adicionam algumas partes moles como cabeça, rabo e carne das costelas. Depois de três dias no tempero é ensacado em bexiga de porco e posto a secar ao fumeiro.
Para que não rebente durante a cozedura, deverá embrulhar-se num pano 
antes de ir ao lume durante cerca de uma hora e meia, juntamente com o pedaço de toucinho salgado, o courato se quiser e um ou dois dentes de alho com a casca.
Retire as carnes, prove o caldo para avaliar se deve ou não acrescentar algum sal e coza neste caldo os legumes que irão acompanhar o bucho num prato deslumbrante de sabores e texturas, 
que não deve falhar ao passar por essa bela região beirã ou, sabendo como adquirir um bucho, em sua casa.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Rösti

                       É raro conseguirmos uma posição equilibrada em relação às cozinhas e gastronomias estrangeiras, assunto em que, quase sempre, acaba por vir ao de cima algum provincianismo que é próprio dos pequenos países com História e orgulho antigos mas com umas geografia e cultura que os remete, à força, para um estatuto lateral ou periférico.
Curiosamente, estas posições, apesar de terem todas a mesma génese, acabam por tomar os aspectos mais diversos, podendo, por exemplo, ser detectada no apreço desmedido pelo linguajar estrangeirado para dar graduação a uma comida perfeitamente vulgar, é o que se passa quando se trata qualquer queque por muffin, se baptiza uma massa com molho de tomate com o nome de Spaghetti alla Napolitana ou uma sopa familiar de minestra, coisa que até nem tem receita certa.  
Podem também dar-se os excessos do cosmopolitismo exagerado ou do nacionalismo desenfreado, o primeiro a depreciar os valores caseiros e a exaltar as cozinhas exóticas que, em última análise, serve para demonstrar o grau de evolução gastronómica viajante e distinção cultural do declarante ou, pelo contrário, fazendo apelo a um nacionalismo ou regionalismo tacanhos, demonstra-se afinal as ignorância e total falta de horizontes destes “críticos”, que temos em número de milhões! 
É vê-los encher a boca para atestarem que o queijo ou chouricinho da sua serra, planície ou ilha “foi considerado” o melhor do mundo, que jurem sobre a vida dos filhos que em Portugal, por decreto divino, se fazem os melhores vinhos, os melhores azeites, o melhor pão, o melhor queijo, a melhor carne de vaca, de porco então é melhor nem falar para não deixar o resto do mundo a corar de vergonha! Nisto de superlativos absolutos só o mundo lhes basta e a contra-gosto
Claro que é tudo por fezada, naturalmente, pois nunca se acha necessário provar um vinho espanhol, alemão ou neo-zelandês, um azeite ou presunto italianos, queijos e pães artesanais franceses ou a espantosa carne bovina inglesa; a fé é um mistério que perpassa transversalmente todas as classes sociais e culturais e é ver desde o iletrado ao catedrático, do banqueiro ao bancário suburbano, tudo a achar, tudo a considerar, tudo a asseverar planetárias excelências ao rissol da Ti Maria e aos chouriços do Ti Manel, mentindo sem vergonha, como no futebol, desde que seja para puxar a brasa à sua dama.

O rösti é um prato muito simples da cozinha rural suíça, tradicionalmente servido como pequeno-almoço antes de um dia duro de trabalho no campo, entrando na mesma classe que os diversos pastelões de batata ou da tortilla de patatas espanhola, tendo no entanto duas particularidades que o individualizam bem, que são os factos de não levar ovo para aglutinar e ser feito com batatas cruas ou semi-cruas.
Também servido por vezes como entrada ou refeição leve, o rösti nunca teve grande popularidade entre nós, embora tenha entrado no tenebroso rol dos pratos açambarcados pelo fast-food internacional e goze de grande popularidade em alguns países, como o Brasil, depois de ter levado as habituais normalizações e ganho alguns ingredientes essenciais a saber bem acompanhado de coca-cola.

Apesar da sua simplicidade aparente, o rösti é dos pratos que mais frequentemente leva a desaires, o que, no caso dos rösti, significa simplesmente que as batatas cozinharam demais e se fundiram num puré que se torna o pesadelo de quem o confeccionou.
As dicas para evitar a catástrofe são quase tantas como as receitas de rösti mas, na verdade, se se respeitarem 3 aspectos, escrupulosamente, o rösti sai sempre bem:
1 – Use batatas próprias para fritar, de preferência que não sejam novas.
2 – Use um ralador próprio, com os buracos grandes e em ângulo recto e não as meias luas dos raladores de queijo normais, de modo a que se formem palitos e não lâminas de batata. Na falta corte a batata em “palha” com a faca.
3 – Não tenha pressa. Rösti não é fast-food. Use batata crua ou quase crua, o que lhe vai demorar o rösti mas que garante que tudo fica bem.

Vou deixar-vos aqui um rösti um pouco mais elaborado que o normal, pois é recheado e não com os elementos todos misturados; é como se fossem dois rösti com o recheio entre eles, neste caso, bacon, cebola e queijo.

Ingredientes:

Batatas
Bacon
Cebola
Sal e pimenta
Manteiga ou óleo
Queijo ralado (usei Ilha)

Preparação:

Corte batatas das próprias para fritar, em palha, ou seja palitos muitos finos, seque-os e divida em duas porções iguais.
Frite o bacon com cebola em tiras num pouco de manteiga ou óleo .
Deixe começar a alourar, retire cebola e bacon e reserve.
Na gordura que ficou na frigideira, que deve ser anti-aderente, frite então em lume médio, uma das porções de batata palha, sem mexer, de modo a que os palitos adiram entre si, formando uma “rodela” coesa.
Polvilhe esta rodela com pimenta preta, espalhe sobre ela o bacon frito com a cebola,
um pouco de queijo ralado e por último as restantes batatas cruas, a fechar o conjunto.
Quando o lado junto à frigideira se apresentar tostado e estaladiço, vire o conjunto com o auxílio de um prato e deixe fritar até que também esteja dourado. 
Em todo o processo de confecção do rösti, o controle do calor é fulcral pois os palitos de batata têm de ter tempo para fritarem, o que não acontece se houver calor a mais.
Quando estiver uniformemente frito dos dois lados, escorra em papel absorvente e sirva.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Master Chef, a pornografia culinária !

               É uma reflexão crítica e lúcida, publicada pelo Le Monde na sua edição de 13 de Setembro, sobre um dos mais tristes espectáculos que por esse mundo fora e por cá também se montou sobre o tema cozinha: o “concurso” Master Chef.

Li-a na página de Facebook da Elvira (Elvira’s Bistrôt) e aqui fica na íntegra e no francês original, peço desculpa a quem já esqueceu a língua, mas por certo a alguém servirá, como me serviu a mim.

"Master Chef" ! "Un dîner presque parfait" ! La cuisine envahit chaque jour l'espace public. Outre ces émissions mettant en scène la préparation de repas, des centaines de blogs se consacrant à cette activité fleurissent sur le Web. Cet étrange phénomène contraint à poser deux questions : quel en est le sens ? Notre société n'accorde-t-elle pas trop de place à la cuisine ?
La télévision harponne l'art culinaire avec deux schèmes éprouvés : celui de la télé-réalité et celui du sport. La plupart des programmes combinent ces deux approches, en mettant en compétition sportive des "vrais gens". Ces émissions de cuisine d'un style nouveau prennent le relais de la télé-réalité, dont elles sont un dérivé. Qu'est-ce qui fait plus "vrais gens" que quelques congénères s'affairant aux fourneaux ?

Tous les soirs, sur TF1, une année durant, deux anonymes que l'on ne connaît que par les prénoms se rencontraient autour d'un plat, juste avant la grand-messe du "20 heures". La télévision doit ingurgiter du réel - les fameux "vraies gens", le décor anthropologique de Jean-Pierre Pernaut, un micro-trottoir - le malaxer, le désosser, le mettre en scène sans que rien n'y paraisse pour dégurgiter sur les écrans un produit fini fleurant faussement l'authenticité. Evidemment, il s'agit d'une imposture : la réalité ainsi présentée n'est qu'un produit fabriqué destiné à être jeté afin de pouvoir en consommer un autre le lendemain.

Parodie de l'eucharistie

En instaurant la compétition - sur le patron de la "Star Ac" - la télévision trahit la cuisine dont l'essence réside dans le don, cette grâce, cette gratuité qui soude la convivialité. Dans "Master Chef" - tout comme dans "Un dîner presque parfait" sur M6 - TF1 ne valorise pas la cuisine mais la compétition. En réalité, en transformant la cuisine en avatar du spectacle sportif il la détruit. Ainsi, à l'instar des émissions de télé-réalité, "Master Chef" célèbre le culte de la compétition, de la loi du plus fort, introduit violemment l'activité culinaire dans l'univers de la maxime barbare, "l'homme est un loup pour l'homme".

Longtemps nous avons vécu sous l'identification du religieux et du culturel. La religion fondait l'identité d'une civilisation. Son inscription dans le patrimonial - ce linceul ou ce tombeau qu'est le patrimoine - signe la mort de la religion comme alpha et oméga de la vie collective. C'est alors le patrimoine qui devient l'objet d'un culte, et non plus Dieu ou un prophète - on visite les églises et monastères pour leur beauté, non pour y prier. La folie collective pour la cuisine, si elle prépare à moyen terme sa mort par la patrimonialisation qui l'accompagne (la cuisine française vient d'entrer dans le Patrimoine mondial défini par l'Unesco), substitue à la vieille identification du religieux et du culturel une nouvelle identification : celle du culinaire et du culturel. L'identité d'une civilisation, ce n'est plus sa religion, c'est sa cuisine.

La situation extravagante faite à la cuisine n'est que le symptôme d'une société malade, "une société à la dérive" comme disait le philosophe Cornelius Castoriadis. Cela signifie que la cuisine est vécue, de manière imaginaire, comme le dernier lieu de stabilité, le dernier repère encore debout d'un monde en voie de liquéfaction. Autour d'une table, l'illusion de communauté unie peut se reformer. Autour de recettes, de façons de manger, l'illusion de communication avec toute une civilisation peut renaître - donnant lieu à une parodie involontaire de l'eucharistie.

La télévision démultiplie cette illusion à l'infini, attribuant à une émission culinaire le même office social qu'un match de football ou de rugby : souder, le temps d'un spectacle mercantile, des millions de personnes en leur laissant croire qu'à cette occasion survit quelque chose qui est déjà perdu, la communauté réelle. La cuisine se fait passer pour remède à la crise du sens, dont chacun s'alarme.

La montée en puissance de la cuisine, et sa létale exploitation médiatique, relèvent de la pathologie sociale. Le rôle qui lui échoit - jouer le fantôme du sens - le prouve. Les vrais amateurs de la table et de ses plaisirs voient d'un mauvais oeil cette promotion. Ils savent en effet que la vraie cuisine est sans enjeu, qu'elle n'est ni un spectacle, ni une complétion, ni surtout le dernier réduit du sens et de la culture nationale. C'est parce que la vraie cuisine est vide de ces parasites - les enjeux - qu'accède à la vérité l'adage du vieil Héraclite : "Les dieux sont aussi dans la cuisine."

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Cabidela de Entrecosto em Arroz


Este post é constituído por uma reflexão sobre tema de cozinha e depois pela receita proposta. Se lhe interessar apenas a receita, encontra-a cerca de dois “écrans” mais abaixo.

              Podem obter-se excelentes pratos cozinhando bem e também cozinhando mal. Isto pode parecer paradoxal ou até charla, mas é a mais pura das verdades: é para que se tenha um bom jantar sendo um mau cozinheiro que existem as receitas cheias de quantidades bem esmiuçadas, meia colher rasa das de café de pimenta preta, 135ml de água, meia colher de sopa de salsa picada e procedimentos bem precisos, 14 minutos a 175ºC seguidos de 7 minutos a 205ºC e aeração… etc.
Quando o prato está pronto, tenha sido feito à mão ou através de uma qualquer escrava mecânica, meio computorizada e meio estúpida, pode-se ter a certeza que se está perante o mesmo sabor que uma multidão de cozinheiros de receita obteve por esse mundo fora, mil vezes por dia, pelo menos. É através de receitas exatas que posso ir ao Mac da minha rua e ter a satisfação de estar a provar o mesmo sabor que é provado por um irmão desconhecido de olhos rasgados e nome esquisito, lá para Pequim. 
Cozinhar bem é ser-se o seu próprio autor e é obra de uma vida. Começa-se por seguir receitas, depois vai-se experimentando sair da linha traçada pela receita e traçamos um esboço de linha nossa, às vezes dá, outras vezes não e, muitos anos depois, começa-se a cozinhar razoavelmente. 
A sensibilidade de que é feito o ato culinário é algo com que alguns poucos sortudos nascem e é vê-los a brilhar sem quase terem de aprender e outros, quase todos, aprendem arduamente à custa de muitas experiências,  perseverança e humildade. Essa, quem a não tem, nunca aprende!. 
Eu, que nunca pequei por modéstia, começo agora, já a caminho dos temíveis anos “sessenta”, a ser um cozinheiro razoável e, se chegar a velhote mesmo e não tiver entretanto esquecido tudo, talvez venha a morrer bom cozinheiro.
Esta conversa de fim de semana é um pouco como uma justificação para os meus leitores que por vezes me notam alguma sobranceria face à chusma de “meninos” televisivos, cheios de pedigree e de cursos de alta cozinha e de estágios em grandes restaurantes e todos eles chefs apregoados daqui e dali que, depois de montarem o seu prato cheio de requinte de empratamento e de terem provado “em direto” a sua obra e soltado uns  “hmmm’s” deliciados (a moda da prova em direto seguida de um chiar de satisfação, invenção da Nigella, veio para ficar), nos deixam uma comida que, bem espremidinha, é corriqueira e banal.  Salvo bem poucas exceções, que não aparecem na televisão, os nossos chefs-estrela são como violinistas japoneses: alcançam os píncaros do virtuosismo técnico mas são incapazes de fazer o violino chorar…. ou rir.
Foi por ter meditado longamente no significado de partilhar comidas num blog desta área dita “de receitas” que, de há uns tempos, as receitas que vos deixo passaram a ser indicativas mas não quantitativas. Perguntei-me, já que raramente sigo uma receita, que significado teria estar a deixar algo que apenas faria com que alguém, algures, estivesse apenas a provar o sabor exato que eu tinha experimentado, mas, ao mesmo tempo, abdicando de ter feito, de verdade, o seu prato, a sua descoberta, feita com as nuances e pequenos gestos que fazem da cozinha de cada um de nós, uma cozinha única.
Não fazia sentido nenhum: quem cozinha bem não vem a blogs de receitas, quem cozinha mal e quer despachar uma comida qualquer vai comprar feita ao Pingo Doce ou põe a bimby a fazer e, finalmente, quem cozinha razoavelmente está na senda da descoberta e interessa-lhe um caminho, não um receituário canónico, exato e constrangedor.

Esta cabidela de entrecosto começou no arroz que o Cupido aqui trouxe e que não tinha nada a ver com cabidela. Mas quando olhei para a foto, o arroz malandro, corado pelo vinho tinto da receita dele, fizeram-me despertar a curiosidade sobre o que seria aquele sabor que me chegava lá do Norte, misturado com a untuosidade suavemente avinagrada do sangue.
Nasceu a Cabidela de Entrecosto em Arroz que, se o provasse na televisão para deslumbrar papalvos, teria direito a muitos "hmmm!, hmmm!", e sem favor.

Ingredientes:

Entrecosto ou entremeada com osso
Vinha de alhos tinta
Azeite (ou banha)
Cebola
Pimenta preta em grão ou moída na altura
Pimenta da Jamaica em grão
Chouriço muito bom
Cravinho
Salsa
Sangue fresco

Preparação:

Parta o entrecosto em pedaços e ponha-os, de um dia para o outro, numa marinada feita com vinho tinto, alhos, louro e sal.
No dia, na gordura escolhida (eu substituí a banha do Cupido por azeite)  aloure em lume forte os pedaços de entrecosto, retire a carne e estale na mesma gordura cebola picada, com as pimentas e o cravinho e algumas rodelas de bom chouriço.
Junte então de novo o entrecosto e a marinada, tape e deixe fervinhar em lume mínimo por cerca de 45m ou um pouco mais, sendo a tenrura da carne a mandar neste aspeto.
Quando a carne estiver branda, junte a salsa, faça uma estimativa da quantidade de aquosos existente na panela e junte a água necessária a perfazer 3 vezes o volume de arroz*, que introduzirá de seguida, sem lavagem.
Mexa, prove para possível retificação, tape e deixe em mínimo  por cerca de 12 minutos ou até o arroz estar cozido a seu gosto.
Junte por fim o sangue fresco** e mexa sempre até ganhar a consistência cremosa e brilhante que indica a cabidela estar pronta. Sirva sem demora.
 Notas: * Arroz Carolino, naturalmente. Chamo a atenção para algum “carolino” que está a aparecer como marca branca de algumas grandes superfícies, a baixo preço e cuja qualidade é muito insatisfatória, havendo casos em que se pode mesmo duvidar da variedade em presença. Por mais alguns cêntimos, será de adquirir o excelente arroz Carolino proveniente dos campos de Alcácer do Sal ou do Mondego (várias marcas).
** Pode usar-se qualquer sangue desde que fresco e que tenha sido misturado com um pouco de vinagre quando do abate do animal. O mais fácil de obter em meio citadino é o de frango que acompanha os frangos do campo, nuns saquinhos fechados. 

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Onde em dia de partir para férias se conversa sobre os vampiros do Zeca, lobos-maus do subúrbio gastronómico e umas hilariantes trutas “au bleu”, contadas como história para adormecer crianças.


               A Tia Nigella                           O Lobo-Mau                         O Tio Jamie

      
Não é que eu acredite em lobos-maus, “pero que los ay, los ay”!
Fique no entanto bem claro que por aqui se defende o lobo e que quando falo dos lobos, no título, me estou a referir ao arquétipo do bicho agressivo mas manhoso do Capuchinho Vermelho ou dos Três Porquinhos e nunca ao belo e ameaçado Canis Lupus.
  

O Outras Comidas faz hoje a sua pausa anual para férias de verão e este é o momento que, por mudança de ciclo, é propício a balanços, avaliações e intenções para o ciclo que se avizinha, agora enquadrado por uma austeridade que nos vai afetar a todos e que poderá dar sentido e utilidade, para além da recreativa, a esta partilha que neste cantinho da blogosesfera se faz das coisas das comidas, uns mostrando o que vão fazendo, comendo e descobrindo, outros partilhando a realidade prática com se depararam ao fazer esta ou aquela receita, cada blog com o ritmo e nível culinário que lhe é próprio, aqui todos nos divertimos, só os parvos se levam a sério, ninguém é juiz de ninguém e não se cozinha à compita.

Infelizmente, também temos por aqui, poucos, vá lá, alguns “lobos”. Vamos chamar-lhes assim por comodidade de linguagem apesar de sabermos bem que são totalmente destituídos da nobreza do lobo a sério, sendo antes bicheza peçonhenta, uns saca-rabos vestidos com pele de lobo que, como é sabido, se presta a muitas confusões (“lobo com pele de cordeiro”, “quem não é lobo não lhe vista a pele”, etc.): quando, daqui para  frente, falarmos de lobos é desta pestilência que estamos a falar, combinado?

Estes lobos são muito parecidos com os vampiros mas mais apurados; enquanto dos vampiros dizia o saudoso Zeca que comiam tudo e não deixavam nada, já os lobos além de comerem tudo como os ratos alados, têm ainda a característica de também saberem tudo, de culinária, de gastromia, de bom-gosto, de políticas, até tentando ultimamente entrar nesse campo restrito da ironia e do humor (saldando-se a tentativa por uma coisa com o nível gracioso de um concurso televisivo de Fernando Mendes).
Tal como os vampiros, também estes lobos gourmets de subúrbio vêm "com pés-de-veludo" pousar-nos neste cantinho dos nossos blogs gulosos e mais habituados a mostrar coisas boas que a ter preocupações com predadores e é isso que os torna mais perigosos.
Se alguém se engana/ com seu ar sisudo / e lhes franqueia /as portas à chegada… continuava o Zeca que os conhecia de ginjeira e os sabia São os mordomos/ do universo todo/senhores à força/ mandadores sem lei/…/ eles comem tudo/ e não deixam nada.
O difícil é apercebermo-nos de quem são os lobos, disfarçados como andam pelo meio de nós e por isso vou deixar-vos alguns sinais inequívocos de identificação e sigo assim de consciência tranquila para as minhas férias alentejanas:

1- O lobo grita mais que qualquer um.
2- Quando não está a condenar os outros, o lobo apregoa-se a si mesmo.
3- O lobo é venal: .agacha-se e lambe quem se acobarda e tenta morder tudo o que lhe pareça ameaçar a sua "incontestável" autoridade.
4- O lobo diz que sabe tudo sobre tudo e ainda muito mais sobre cozinha, assunto em que se proclamou juiz.
5- Quando não pode morder pelo lado culinário, o lobo ataca de forma pessoal, muito baixa e característica.
6- O lobo deslumbra o povo com a exibição do seu pedigree de conhecimentos e pretensas amizades, aristocráticas, culturais e de jet-set.
7- O lobo anda sempre com uma lata de Solarine com que vai puxando brilho aos galões dourados.
8- Olhando com muita, muita atenção, percebe-se que, em termos de cozinha real, vai ali uma mão-cheia de nada e outra de coisa nenhuma.
Penso que esta lista exaustiva será mais que suficiente para que nenhum dos meus leitores de há tanto tempo deixe de poder identificar uma dessas peçonhas culinário/gastronómicas se a vir por aí. Se, no entanto, ainda subsistirem dúvidas, deixo-vos, como bónus, mais duas características que, a verificarem-se, darão uma identificação 100% segura:
9- Vasculhando nos seus escritos, encontra-se sempre alguma menção fortemente negativa (às vezes mascarada com alguma tentativa de ironia) à trindade "diabólica", Nigella Lawson, Jamie Oliver e “tias-de-Cascais”, sempre citados em conjunto.
10- Em qualquer altura, o lobo pode aparecer a dissertar sobre trutas “au bleu”.

Esta última particularidade dos lobos-culinários é, no entanto, tão engraçada, que não resisto a contar-vo-la como uma história:

  - Era uma vez um lobo velho e muito mau que tinha o covil na selva urbana dos subúrbios da Grande Cidade de onde tentava arrebanhar algum leitão tenro já que os dentes postiços não lhe permitiam dentadas mais firmes que isso.  

Mas os porquinhos e capuchinhos vermelhos andavam avisados e já não se apanhavam assim e o nosso lobo-mau acabava muitas vezes por ter de se contentar com um peixito e caldos knorr, lá do hipermercado.


Duma vez em que a fome apertava e os cubinhos milagrosos já tinham marchado todos a ver se enganavam a maldita, lá seguiu o nosso lobo até ao hiper para comprar umas trutas de rio, ainda vivas, de modo a poder cozinhá-las da sua forma preferida, au bleu.
Claro que só havia umas trutas reles, de viveiro e espanholas, todas amassadas pelo gelo e a 3.75€ o quilo, mas o nosso lobo tem aspirações a filósofo da cebolla dorada e lá voltou à toca com a truta espanhola para fazer a sua truite au bleu, prato de alta cozinha que só pode fazer-se com trutas acabadas de morrer, dado que a essência do prato e que lhe dá o nome bleu/ azul, é a cor que toma o muco que a truta produz em abundância e a reveste durante a sua agonia, que, ao ser cozinhado com prodigiosos cuidados num caldo avinagrado, coagula numa bonita cor azulada.
Mas o certo é que o nosso bom lobo-mau-filósofo que tudo sabe de cozinha, principalmente da “alta”, nunca tocou numa truta viva, nunca viu uma truite au bleu e, principalmente, nem sabe bem do que se trata, já que, para compor o ramalhete de santa ignorância, ainda foi lavar muito bem a trutinha que estava “toda peganhenta”. Claro que sem o precioso muco é que nem uma truta de Auvergne consegue ficar “bleu, quanto mais uma do Jumbo… não gostou mas lá a enfardou melhor ou pior, que um peixinho mesmo de aviário, sempre é melhor que chupar um cubo knorr.





... e agora sigo para férias, este ano mais comedidas e nacionais, como os tempos difíceis aconselham e cada um faz a sua parte como pode. O Outras Comidas ficará até 17 de Agosto apenas ativo às quartas-feiras, cumprindo o calendário das Trilogias e desejo a todos os meus leitores umas boas férias!