terça-feira, 9 de março de 2010
anaCrónicas 4
Robespierre certamente que mandaria para a guilhotina não os livros mas quem guilhotinasse livros. E no meio de tanto novo analfabetismo em expansão ficamos de facto surpresos - ele há estatísticas para tudo portanto será difícil que tudo nelas, nas várias, não venha provar a senda constante do progresso (o puguesso como dizia o Cavaco mais primitivo) em direcção ao progresso ou se preferirem, à modernidade, essa galdéria que está em todas as bocas.
Como é possível? Na Itália, quando Berlusconi, esse supra-sumo da estética capilar requentada, entre outras aquisições, comprou a Mondadori, mandou as completas do Goldoni armazenadas já não sei onde pelo mesmo caminho, a guilhotina. O armazenamento, explicam, é mais importante que o livro e certamente mais importante que os leitores. Importância medida pela relação espaço versus pilim – como nos estacionamentos, essa mina de ouro certo. Os livros na realidade estão estacionados. Na altura pareceu-me que a façanha estava à altura do bicho. E pensei que viria bem ao mundo se o guilhotinassem a ele, talvez mesmo entre as partes – é uma metáfora, claro, já que não guilhotinam tomates. Mas aqui, com a tradição miserável que o livro e a leitura têm, guilhotinar livros do Sena, do Eugénio de Andrade, da Sofia? De facto tem razão o Luís Fernandes quando no Público clamou para que não lessem as coisas da Leya, essa editora que, entre outros tops, tem o Saramago. Será que o Nobel vai fazer ouvir a sua voz ou, tratando-se do patrão, a calará? Era uma boa ocasião para sair da editora e eventualmente fundar outra, alternativa e não monopolista. Mas isso obviamente obrigaria a ir contra a lógica best seller.
FMR
sexta-feira, 5 de março de 2010
Discurso de Aceitação do Prémio Leya 2009
Desde tempos recuados que o continente africano se tornou famoso como fonte de matérias-primas. Por elas se matou e se morreu. No princípio foi o ouro da bíblica Ofir e do Mwenemutapa, depois o marfim, o corno de rinoceronte capaz de operar maravilhas no Oriente, e até a energia humana por meio do hediondo comércio de escravos e dos trabalhos forçados. África forneceu pois, ainda que de forma involuntária e nem sempre com proveito, o combustível das grandes revoluções que fizeram o mundo avançar para aquilo que é hoje. À medida que este avançava, novas matérias-primas nela foram sendo descobertas, assim como se apuraram novas maneiras de as pesquisar: o cacau e a borracha, o petróleo, os diamantes, e até o coltan, o chamado “ouro azul” do sul do Congo, sem o qual os notebooks e os telefones celulares não poderiam funcionar.
Todavia, há uma matéria-prima que desde sempre foi passando despercebida às pesquisas, apesar das esforçadas expedições, da sofisticação das análises e dos testes, dos radares e sondas, enfim, dos satélites.
A matéria-prima a que me refiro, em estado bruto parece uma pedra vulgar em nada distinta das outras pedras. É uma pedra feita das histórias das pessoas deste país Moçambique, e desta região: dos seus desejos e sonhos, das suas memórias e disputas, dos lugares que habitam e do que fazem no seu dia-a-dia – enfim, da vida que têm. Talvez (e porque é esta a ordem do mundo enquanto a não conseguirmos mudar), uma pedra mais despojada, mas ainda assim capaz de uma beleza e força singulares.
A par de me desbravar os meus próprios interiores e de me confrontar com a minha própria língua, entendo a escrita literária como o ofício de polir essa pedra. Todavia, dado que para polir cada pedra há primeiro que achá-la, é um ofício que depende também, em grande medida, de mestres garimpeiros. No meu caso tem havido muitos, e quero deixar aqui o nome de três.
O primeiro nome é o de Joaquim Soto, velho camponês das montanhas de Chimanimani, que em certa data do longínquo ano de 1970 que já não consigo precisar, me abrigou de uma chuva torrencial na sua palhota, comigo partilhou o seu milho assado, me ofereceu uma esteira e uma capulana com que passar a noite, ao mesmo tempo que me chamava de seu neto. Revelando-me como vivia e como pensava, entregava-me, com paciência e generosidade infinitas, uma pequena pedra para que eu a polisse.
O segundo nome é o de Suzé Mantia, que no início da década de 1980, nas aldeias de Mavago, Chilolo e Nkalapa, me ensinou o significado do som de cada tambor e como se montava a armadilha dos pássaros; e me indicou a específica rocha, junto ao rio, onde Samora e Josina se sentaram a descansar, a meio da difícil marcha para sul. Em palavras cantantes de uma minúcia real e ao mesmo tempo imaginária, descreveu-me os acontecimentos todos que couberam dentro desse dia. Lenhador fortíssimo, capaz de derrubar uma árvore grossa com três machadadas, era também o marceneiro exímio que fabricava uma porta com pormenores de espantosa subtileza. Homem de um riso límpido como nunca vi igual, e que infelizmente a malária levou.
O terceiro nome é o de Joaquina Mboa, camponesa e sacerdotisa da aldeia de Bawa, que em meados da década de 1990 me contou a saga do Kanyemba, velha de mais de cem anos, com uma precisão que os documentos de arquivo só vieram comprovar – facto que ainda hoje não deixou de me intrigar.
São inúmeros os exemplos destes meus mestres garimpeiros, tantos que é impossível enumerar. Muitos deles provenientes até da imaginação.
Tal como são inúmeros os mestres ourives que, a partir das pedras que lhes chegaram ou chegam às mãos se têm dedicado a minucioso polimento, com isso ajudando a entender os meandros do ofício de que falo: o Craveirinha, a Noémia, o Knopfli, o Luís Bernardo, o Mia, a Paulina, o Ungulani, o Patraquim, o White, o Suleiman. E, em particular, o jornalista e escritor João Albasini, que me levou pela mão a espreitar segredos antigos desta cidade, alguns dos quais este livro, indiscreto, revela.
Tantos são os mestres ourives que é pois também difícil enumerar. Estes e outros por esse mundo fora, que ao longo dos tempos e nos mais diversos lugares nos têm oferecido à leitura as suas jóias particulares. Porque é de leitura que falo, dado que é através dela que podemos chegar à miríade de brilhos e reflexos que de cada jóia emana.
Este livro, “O Olho de Hertzog”, que o júri do Prémio Leya resolveu premiar, conta uma história que curiosamente gira também ao redor de uma pedra. Uma pedra que eu – ourives não de primeira, mas de recente viagem – formalmente hoje devolvo ao lugar onde a fui buscar. Pretendo que o gesto seja um contributo no esforço de tantos mestres garimpeiros e ourives que se dedicam a levantar a parede – que já vai alta – da literatura moçambicana. Desejo também que essa parede seja parte integrante e importante daquilo a que podemos chamar simplesmente a Casa da Literatura.
João Paulo Borges Coelho
Maputo, 4 de Março de 2010
terça-feira, 2 de março de 2010
Histórias de Amor e de Obsessão
terça-feira, 11 de novembro de 2008
Ilha Morena
O lugar do Monte, freguesia da Candelária do Pico, foi a terra natal de Tomás da Rosa, professor e ensaísta. E terá sido esse lugar calmo, de vinhas, figueiras, pinheiros e faias, mas também de árvores de fruto, rebanhos com a música dos seus chocalhos, a sua gente, uma vida tranquila que se repartia entre o amanho das terras e a pesca, o lugar que primeiro contribuiu para a formação de uma personalidade sã e sabedora.
A sua estadia no Oriente, em Macau, onde frequentou, no Seminário, o Curso de Teologia, foi, sem qualquer dúvida, uma fase bastante profícua da sua vida. O contacto com uma cultura milenar e com um povo acostumado às privações, o fluir de uma grande cidade portuária, sítio de acolhimento de variadíssima gente, os juncos rasgando esses mares de incontroláveis mercadorias, alargou os horizontes de um adolescente ilhéu. Tendo desistido da carreira eclesiástica, veio para Lisboa onde concluiu Filologia Clássica, na Faculdade de Letras, com elevada classificação. Na capital do país deparou com o ruidoso viver daquelas ruas, os tumultuosos vendedores, os seus cafés e tertúlias.
Ainda em vida do autor fora publicado, em 1990, o volume de ensaios Alguns Estudos, textos dispersos que resultavam do seu trabalho de atento observador da produção literária nacional. Mais tarde seriam editados pelo Núcleo Cultural da Horta – fora um dos seus fundadores – os poemas de Miragem no Tempo, em 1996, e os livros de contos Ilha Morena, em 2003, e A Tarde e a Sombra, em 2005.
Os seus contos – escolhemos, neste caso, Ilha Morena, com prefácio de Manuel Tomás da Costa – permaneceram no silêncio das gavetas ao longo das dezenas de anos em que Tomás da Rosa leccionou no antigo Liceu distrital, onde a sua eloquência se tornara notada desde que iniciara funções. É curioso constatar que a mesma visão do mundo que o autor transmitia aos seus discípulos, encontramo-la na sua escrita de forma quase imaculada, porque não foi ferida nem suja por quaisquer modelos, nem sofreu influências exteriores ao seu pensamento. Assim, permanece o apego ao chão onde correra quando criança, o reconhecimento do pacato bem-estar, uma harmonia que dispensa o luxo, ou as técnicas do mundo contemporâneo, e valoriza o entendimento e a concórdia dos habitantes.
Daí que o Paulino, protagonista do conto que dá título a este volume, depois de muitos anos emigrado no Canadá prefere regressar à ilha do Pico, com sua esposa, e vai ocupar-se com a edificação de uma nova residência. «Em volta da bela moradia, descansava-se no pátio quadrangular cimentado, com ajardinamentos. Dali descia-se por três degraus de basalto, lavrado a picareta, para uma esplanada de bagacina miúda, onde se tinham aproveitado, para sombra, os plátanos e as acácias existentes. Dois metrosíderos copados faziam de toldo a mesas de pedra, redondas, antigas mós de atafona».
Essa dedicação à natureza é patente em quase todos os textos do livro em questão, como, em «A Ardósia Pequena», curiosa narrativa acerca do primeiro namoro de adolescentes, tendo como pretexto a “pedra” que se utilizava nas escolas. Mas transporta-nos às terras do pai do rapaz, o qual, como qualquer ilhéu, olhava desvanecido os navios que avistava no horizonte. Supunha que, invariavelmente, se dirigiam para a América, palavra que imaginava sinónimo de prodígios e fortuna. Irá descobrir, ao alvorecer, que a sua ilha é maravilhosa.«O Antoninho depois de uma noite regalada, saboreou pela primeira vez o deslumbramento do amanhecer no mato. Nas pastagens do avô, onde a aragem brincava entre a erva e os bezerros andavam à solta. Nem lhe assaltava à mente a imagem obsessiva da ardósia. Nunca ouvira, assim, em trinados de tão harmoniosas modulações, a grande cantoria de melros e canários».
As árvores são parte integrante da vida nos campos. Fornecem os seus frutos, projectam a sua sombra sobre os caminhantes, resguardam os apaixonados. «A tarde parecia-lhes um barco a ondear em volta. E a vida, toda, parecia-lhes fluída. Tinham-se desviado do “passeio”, e as folhas da anoneira, baloiçadas por uma aragem estranha, tocavam-lhes algodoadamente no rosto». Mesmo depois de uma vida inteira, já os anos rolaram com seu ritmo diferente, no Pico ou na Califórnia, aquele momento sob «A Anoneira» fixara-se para sempre nos dois jovens que ali se encontravam.
Há também histórias de viagens atribuladas no canal, homens que morrem na costa, levados pelas ondas, na apanha das lapas, roubos, brigas no final das festas, namoros indesejáveis, dívidas antigas, vinganças, a vida. Porém, Tomás da Rosa prefere que a luminosidade incida noutras coisas. «Ecos de guitarras e violas repercutiam-se em outeiros e montes, de crateras amaciadas pelo verdor das forragens húmidas. O brando e amigo sol de Setembro, familiar de vinhedos encachoados e de quintas coloridas de maçãs, aquecia sobretudo os corações novos». Tinha a sua ética. A sua maneira de pensar.
Mário Machado Fraião
quarta-feira, 15 de outubro de 2008
segunda-feira, 2 de junho de 2008
Brandos Costumes
Não consiste novidade a crise do livro, da leitura, ofuscando o prestígio do saber, ou da erudição, e da chamada cultura clássica no nosso país. Os jornais não se vendem, a televisão superou há muito o gosto pelo cinema e os grupos de teatro vivem no essencial de subsídios do Estado. Mas esta situação deprimente conduziu, todavia, no que se refere ao mercado editorial, à procura de soluções que possam minimizar as consequências económicas das casas comerciais mais atingidas por este momento crítico que teima em prolongar-se. Referimo-nos à profusão de espontâneas “feiras do livro” que surgiram nas estações do metro e nas proximidades dos apeadeiros das linhas ferroviárias.
Foi numa dessas improvisadas instalações que adquiri um pequeno livro de Eça de Queirós que não tivera ainda oportunidade para desfrutar. Trata-se de Alves & C.ª , edição póstuma do seu filho José Maria, que agora surge através das quase desconhecidas Edições Atena. Acontecera-me já com O Mandarim, obra que eu me habituara a considerar coisa menor, ou desinteressante, tendo em conta a excelência da produção do autor. Mas o nosso discreto cônsul não escreveu textos sofríveis ou entediantes, e a referida novela transforma-se em leitura aliciante, consequência da fantasiosa digressão por terras do Oriente empreendida por um modesto funcionário público que inesperadamente enriquece.
Mais consentâneo com o estilo de apurado realismo e com a singular observação sociológica do autor, cremos ser a história de Godofredo da Conceição Alves, sócio maioritário de uma lucrativa casa de comissões que se ocupava de artigos a exportar para as colónias, com escritório na Baixa, moradia na Rua de S. Bento, respeitado cidadão casado com a interessante Ludovina, a sua «Lulu». É um texto divertido interpelando a sociedade lisboeta dos finais de Novecentos. Em dia de aniversário do seu matrimónio, um sufocante dia do mês de Julho, Godofredo, porque pensou ser esta uma data feliz, regressara a casa mais cedo. E descobre a mulher, no sofá da sala de visitas, nos braços do seu mais directo colaborador na empresa.
Seguem-se várias cenas rocambolescas, a um ritmo avassalador, adaptadas à realidade portuguesa, como a elegante escrita de Eça de Queirós sempre foi capaz de nos transmitir ao longo de uma obra que se repartiu pelo romance, o conto e a intervenção cívica nas páginas dos jornais. E não perdemos, no entanto, o prazer da inigualável prosa do grande romancista: «Dava o meio-dia; o sol de Julho abrasava nas ruas; e as lojas fechadas, a gente nos seus fatos domingueiros, as carruagens de praça abrigadas no lado da sombra, aumentavam a sensação de calma e de inércia. Uma poeira subtil embaciava o azul luminoso e um som de sinos arrastava pesadamente no ar mole.» E Godofredo, após expulsar a mulher da sua residência e devolvê-la a casa de seu pai, iria procurar os seus maiores amigos, o Carvalho e o Teles Medeiros, que se encarregariam das condições, marcação do local e data, para um duelo, única forma de salvar a «honra» perante a sociedade.
Mas a argumentação dos amigos do «adversário», as discussões, a reflexão mais serena acerca de um caso que afinal não seria assim tão grave, fizeram alterar a contenda, que inicialmente seria à pistola, depois à espada, finalmente não seria nada.
« – Nestas coisas é necessário, sobretudo, dignidade». Todos sabiam histórias de indivíduos que saltavam pela janela, quando surpreendidos, e o Medeiros conhecera um caso de um amigo dele que ficara escondido num curral de porcos durante seis horas. Concluíram que o duelo seria a prova de que houvera realmente adultério e ainda lesava a sociedade comercial.
Além do mais o sossegado comerciante não conseguiu suportar aquela viuvez forçada, numa casa onde as criadas o não respeitavam e até as noites com fogo preso no Passeio Público se tornaram dolorosas. Chegou mesmo a procurar a mulher. «Ela parara, espantada. Estavam junto de uma loja de mercearia, na luz do gás, e ficaram defronte um do outro, sem achar palavra, enleados com todo o sangue na face.» Algum tempo depois começou a reconciliação, como um segundo namoro, ou nova lua-de-mel, que incluiu hotel em Sintra, e em Lisboa, camarote em S. Carlos. E os dois sócios, por entre bailes e jantaradas, iriam também restabelecer a amizade enquanto a firma progredia. Brandos costumes.
Mário Machado Fraião
domingo, 30 de março de 2008
Coisas boas do fim-de-semana
Fazer coisas belas a mulheres belas, Manuel S. Fonseca
O Apocalipse é já amanhã..., Paulo Pinto
A descoberta do
Inquietações Pedagógicas, de Ana Maria Bettencourt
(via Bicho Carpinteiro)
de Ana Cristina Leonardo
quinta-feira, 20 de março de 2008
Doris Lessing ao W.S. Journal: “As mulheres ainda esperam pelo Príncipe Encantado…”
Lessing reafirma na abertura da entrevista, as teses que subscreve num dos seus mais famosos livros, “The Golden Notebook”: "Raras sãos as pessoas que se preocupam com a liberdade, com a verdade. De facto, são só um punhado. Poucas pessoas têm coragem, o tipo de coragem de que se deve alicerçar uma democracia. Sem o tipo de pessoas com esta espécie de coragem, a sociedade livre ou não consegue surgir ou morrerá".
Tendo nascido no Irão e vivido a adolescência no Zimbabué, Lessing beneficiou acima de tudo de um forte ambiente cultural na família, rodeada de livros e afincadamente adstrita ao trabalho de leitura, crítica e comentário. Confessa que gostaria de visitar o Irão , mas “não agora”. “Conheço muitos dissidentes iranianos e zimbabueanos, e todos esperam pelo bom momento para irem ver como é”, precisa.
Doris Lessing foi casada duas vezes e teve três filhos. “Continuo a pensar que as jovens em idade de casar esperam pelo Príncipe Encantado. E têm muita razão, porque se pensam em ter filhos, vão precisar da ajuda dele …” Forma surpreendente é o modo como compara a forma e o tom-significado da fórmula do “politicamente correcto” com o modo de ser do velho “partido comunista”, precisando: “São as mesmas palavras, o mesmo estilo. E depois, surge um dogma. Nunca se consegue desenvolver uma ideia, simplesmente. Acho que existe sempre um grupo de fanáticos que se apoderam dela, fazendo dela um dogma”.
FAR
quinta-feira, 13 de março de 2008
quarta-feira, 12 de março de 2008
quarta-feira, 20 de junho de 2007
Blanchot: algumas noções de Poesia
2. "Na obra o homem fala, mas a obra dá voz, no homem, ao que se não diz, ao inominável, ao desumano, ao que não tem ( é) verdade, ao que não tem justiça; sem usufruir de direito, lá onde o homem não se reconhece, onde não se sente justificado; onde não está de modo algum presente; onde o homem se ausenta de si próprio, de deus".
3. "O poema é a película que torna visível o fogo, que o torna visível porque o esconde e o dissimula. O mostra, portanto. Descobre mas dissimulando e retendo na obscuridade, o que só se pode esclarecer pelo obscuro, e guardando-o no obscuro até à claridade revelada pelas trevas".
4."O poeta vive na intimidade do perigo. Só. Suporta profundamente o tempo vazio da ausência e, nele, o erro torna-se a profundidade da perdição, a noite torna-se noutra noite. Mas o que é que isto significa? Quando René Char escreve: "Que o risco seja a tua clareza", quando Georges Bataille, colocando face a face a chance e a poesia, diz : " A ausência de poesia é ausência de chance", quando Hölderlin classifica o presente vazio do perigo " plenitude de sofrimento, plenitude de alegria, o que é que se procura dizer? Por que é que o risco se assumiria como clarificação? Por que é que o tempo do perigo seria o tempo da chance? Quando Hölderlin fala dos poetas que, como os apóstolos de Bacchus, vão errando de país em país na noite sagrada, em deslocação interminável, infelicidade que atormenta quer os que falham o lugar ou a migração fecunda, o movimento que mediatiza, o que faz das correntes uma linguagem e da linguagem, a casa do ser, o poder pelo qual o dia permanece- e será a nossa habitação?".
5. "O poema é a ausência de resposta. O poeta é o que, pelo seu sacrifício, conserva no seu trabalho esta questão em aberto. Nunca deixa de viver no perigo. Sempre".
6. "No poema não é só o homem que se arrisca, pelo facto que se expõe à expectativa e ao fogo tenebrosos. O risco é mais essencial; é o perigo dos perigos, pelo qual, de cada vez, é radicalmente contestada a essência da linguagem".
In Maurice Blanchot, L´Espace Littéraire, Gallimard. Idées.
FAR