"Correndo", 1901, óleo de Paul Gauguin
Volto ao tão interessante "Hommage à Gauguin, l’insurgé des Marquises” (Magellan & Cie, 2003), de Victor Segalen***, e releio: “Há três tipos de pessoas que, levadas por razões diversas, não hesitam em invadi-los [invadir o quotidiano dos habitantes da ilha do Grande-Pico, no Pacífico]... O missionário, seja qual for a sua bíblia; o comerciante, sejam quais forem as tralhas; o administrador, seguido de polícias e papel selado...”
É o “progresso” a matar a vida, a assassinar a Cultura, a destruir, irremediavelmente, universos...
Claude Lévy-Strauss morreu com esse desgosto: ver Culturas serem engolidas pelo Grande Nivelador: aquele a que chamam Ocidente Esclarecido e é o pai da desumanização, da solidão e... da fome –o pai da crise, patíbulo de números, que eram homens...
As notícias que, hoje, me trazem de São Tomé e Príncipe, onde vivi de 1991 a 1996, deixam-me arrepiado: multiplicam-se os resorts, o folclórico forçado... e o perfil das ilhas esbate-se, vulgariza-se...
Quando por lá andei, já havia ameaças, por exemplo, uma espécie de resort, no ilhéu Bom-Bom, com guia turístico, uma europeia, que apontava para a aldeiazinha mais perto e dizia: “Se quiserem, podemos ir visitar aquela gente, aquele “povo primitivo”.
Eu conhecia muito bem aquele "povo primitivo”...
E o convite não tinha resposta. Que poderia retorquir, sem ser desagradável, àquela mulher “primitiva”, que afinal ganhava a vida, paga pelos mercadores europeus, apostados em sangrar ainda mais duas ilhas pobres, carentes, frágeis, sem condições para recusarem a invasão que lhes trazia dinheiro?
Eu conhecia aquele "povo primitivo”, do bairro do Riboque, do velho bar “Das cinco às cinco”, do restaurante “Benfica”, das taberninhas de nome terrivelmente irónico (e lúcido) "O mundo já viu" e "A vida custa"..., de uma preciosa, criadora, inesquecível convivência.
Lembro-me de ver chegar os primeiros turistas arrebanhados pelas agências (ainda eram poucos), fardados disso mesmo: de turistas em África: capacete colonial, blusões caqui, cheios de bolsos, óculos escuros, máquina fotográfica ao pescoço... E tinha pena deles.
Em primeiro lugar, eram ridículos; depois, suavam as estopinhas, assim armados, a arfar, a suar, a temperatura a 37% e a humidade a 98%...
Ao referir as três pragas -missionário, comerciante e administrador-, Victor Segalen omitiu a figura sinistra do turismo de massa; mas a verdade é que escrevia na primeira década do século XX: em 1900 e pouco.
Jacques Monod**** escreveu um livro intitulado “O acaso e a necessidade” –e dessas duas forças se vão construindo as nossas vidas.
Elas assistiram ao meu destino? Provavelmente.
Saí de casa de meus pais aos oito anos; aos 36, iniciava uma viagem de quase trinta anos, por Itália, África, Israel, Marrocos... O acaso (e a necessidade) proporcionou-me alguns meses na Rússia e em Inglaterra. Sofrendo da doença de André Gide e Claude Roy -o síndroma do bicho-carpinteiro-, aproveitei cada ocasião para visitar outros lugares, na Europa, em África, no Médio-Oriente, na Ásia.
E, esbarrando com o turismo mecânico, confirmei a ideia de haver muitas viagens inúteis, servindo, apenas, currículos sociais.
“Eu estive em..., e em... Uma maravilha!”
Que colhem?
Mas, de facto, no Portugal dos fins de novecentos e das primeiras décadas do século XX, ajudava a subir na vida juntar a eventuais títulos académicos uma viagem a Espanha; agora, é indispensável às conversadas que fazem parte da “sociedade do espectáculo”, como lhe chamou Guy Debord, exibir as medalhas dos nossos carnavais turísticos.
Não se pode, porém, chegar mascarado a nenhum lugar –e muito menos recluso em si próprio.
Porque não vamos a nenhum circo, nem a nenhuma festa mundana -vamos à Vida.
Temos de nos despir, entregar; de nos arriscarmos; de partir do zero, a fim de receber o outro e o compreender, a ele, na sua Cultura.
Assim, avançamos e, assim, a viagem nos enriquece e enriquece quem encontrarmos.
É um diálogo.
Não lhe vamos levar a nossa Pedra Filosofal nem ele nos imporá a sua.
Isso seria um abuso: uma invasão.
Vamos trocar ideias e utopias, amizade, receios – vamos pôr a Vida em movimento.
***http://www.univ-bordeauxsegalen.fr/fr/universite/portrait/personnalites/victor-segalen.html
http://www.univ-bordeauxsegalen.fr/en/university/portrait/personalities/victor-segalen.html
**** http://fr.wikipedia.org/wiki/Jacques_Monod
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