Parece que não morreram 600, que talvez só tenham morrido 300... A notícia tem menos importância... Se morressem apenas 100, teria ainda menos importância. Então, se fosse apenas 1, nem valeria a pena publicá-la: seria um desperdício de espaço. Refiro-me aos africanos que se afogaram, esta noite, perto das costas italianas. De facto, hoje é assim: uma questão de números. A morte de um homem não pesa nada: não emociona, suficientemente, os leitores e os espectadores. André Malraux dizia, em "Les Conquérants": Une vie ne vaut rien, mais rien ne vaut une vie (Uma vida não vale nada, mas nada vale uma vida). Bem..., escreveu-o no tempo em que havia homens. Nós vivemos no tempo dos mortos-vivos, escravizados, formatados, produtos mercantis sem cheiro, sem sabor, sem cor -sem amor.
terça-feira, 31 de março de 2009
O'Neill vivo da costa!
1. Politiqueiros chamaram a Manuel Pina (poeta singular e jornalista íntegro) “demagogo”. Mais uma prova do analfabetismo pandémico português (e da política atascada do país)! Com o aleijão esbarra Alexandre O’Neill. E uso o presente do indicativo pois constato que volta quem aponta, superiormente, a beleza e a mediocridade envolventes. Se o título da obra póstuma é “Já cá não está quem falou” (Assírio & Alvim) e lembra que o escritor se foi (morreu em 1986), nós encontramos, em cada página, a empolgante e sedutora presença -a voz excepcional de artista, sempre poeta, mesmo quando escreve a prosa inimitável do livrinho “As Andorinhas Não Têm Restaurante”. Dado que o mundo é pequeno e Portugal apertado, tive a sorte de o conhecer. Emociona-me a memória, tocada de nostalgia e amizade? Com certeza; no entanto, aquilo que me impressionou foi a autenticidade de uma pessoa que tudo deu à vida, a começar pela própria vida e a assumiu de modo exemplarmente exigente e sincero –no risco constante. Eis o que faz os homens de eleição e os criadores –caso de Alexandre O’Neill.
2. Interveniente? Sim, andou por aqui a descascar a vida: a tentar entendê-la e a denunciar o provável disparate dela e o escândalo dos exércitos de resignados à mediocridade de fetos inacabados, que a rebaixam e lhe apagam a luz. Também andou a revelar a beleza (já sabemos: esquiva, fugaz, feita de breve instante, que nos deixa água na boca e sede insaciável). Acontece que O’Neill no-la entrega e vibramos (sofremos, involuntários e voluntários aprendizes da desistência) na grande altura da sua poesia.
As consequências das asneiras
O ministro Teixeira dos Santos manifestou preocupação: o risco de tensões sociais. Acordou tarde: elas já existem há muito e este governo agudizou-as. A asneira tem consequências, tem um preço. Basta olhar para o que este governo fez: deu cabo do ensino; baralhou e paralisou o serviço nacional de saúde; pôs de gatas o funcionalismo público; congelou, quando não diminuiu, o poder de compra; aumentou o desemprego; empurrou centenas de milhares de portugueses para a emigração. Queriam rosas? Palmas? Vivas? Isso só organizado, com autocarros e almoços pagos, á maneira do antigo regime. Receiam que aconteça aqui o que vem acontecendo na França e na Grécia? Esquecem que, em democracia, se aprende o direito de reivindicar o que ao cidadão é devido: ensino a sério, saúde a sério, trabalho a sério –entre outras coisas. E que as reivindicações podem exagerar e escapar ao controle. A coroar as tristes afirmações e justificando, julgo, medidas governamentais, o ministro Teixeira explica: “Isto não é ideologia... é pura economia”. Que este governo não tem a ideologia alardeada -socialista- já o sabíamos; mas que exista “economia pura”, sem cheiro de ideologia por trás, parece tão inconcebível como quererem convencer-nos que o Sol gira à volta da Terra. Ou será que este governo admira a Inquisição, que condenou Galileu?... É preciso ter lata! E o Zé a apertar o cinto...
O dia de hoje...
A notícia mais importante talvez seja a seguinte: cerca de 600 africanos desapareceram em frente das costas italianas. Naufragaram, afogaram-se. Vinham, em jangadas, à procura de uma vida melhor -de trabalho e comida- nesta Europa, onde nós vivemos e, também, procuramos trabalho e comida. Isso -a nossa crise e a nossa insegurança, o nosso desespero crescente- não poderá parar a imigração –os africanos morrem de fome, aos milhões. Nem apagará a nossa responsabilidade. Nem justificará a nossa indiferença. Começo pela indiferença: se a calamidade envolvesse 600 europeus, a nossa imprensa, nós próprios, dedicar-lhe-íamos toda a atenção e prantos. Os jornais, as televisões enviariam, para o local, centenas de jornalistas. Mas a morte macaca de milhares de africanos já passou ao corriqueiro: ao costumeiro. É um crime, é o exemplo da sociedade desumanizada, imoral, do lucro, do homem-máquina, do egoísmo, que criámos e em que consentimos –de que somos responsáveis. África é um continente abandonado. Também é um continente onde, sem escrúpulos, os grandes grupos económicos e os aventureiros com algum dinheiro, vindos do primeiro (e segundo) mundo, se aplicam a refazer e reinstalar o neocolonialismo. Vivi 5 anos em África, vi com os meus olhos. Aqui lhes deixo um exemplo repugnante, infame, e que, se calhar, desconhecem: grandes grupos, europeus, norte-americanos, asiáticos, compram centenas e centenas de milhares de hectares, em África, exploram o que a terra dá, recorrendo à mão de obra local, muito mais barata, e levam para casa e comerciam os bens das terras que roubaram. Enquanto o africano morre à fome. Tudo isso deveria ser insuportável, mas suporta-se. Pior: ignora-se. O encolher de ombros afasta de nós pensamentos incómodos. As vítimas da nossa sociedade monstruosa atiram-nos à cara os nossos crimes -morrendo, é certo... Assobiamos para o lado, depois de duas ou três lágrimas crocodílicas. Até quando?
segunda-feira, 30 de março de 2009
Pedido ao amigo Duarte
Solicito ao amigo Duarte que leia o comentário à minha nota sobre as Pobres árvores e tente satisfazer o pedido de Redonda. Obrigado, amigo!
Coração de Artista
1. A semana passada, voltei ao Alentejo. Dei notícia no blog (http://sobreorisco.blogspot/com), onde o leitor será bem recebido, e retomei dois escritores alentejanos admiráveis, mais ou menos esquecidos, Noel Teles, perdido na bruma, Brito Camacho, há poucas semanas reeditado (“Quadros Alentejanos”, Bonecos Rebeldes). Instalado na Pousada de Santa Maria, não perdesse as delícias da cozinha da Dona Manuela, entreguei-me à paisagem magnífica e ao silêncio bom e reparador do ninho de águias. Por estar longe do litoral, onde se empilham milhões de portugueses (a inexistência de agricultura e indústria empregadoras e, consequentemente, de dinheiro que garanta consumo e comércio, expulsam-nos de onde nasceram), a qualidade de vida ainda não foi assassinada. Marvão reservava-me, aliás, um surpresa: o jardim, junto à entrada do Castelo, obra muito bela do jardineiro que já foi cantoneiro. Leva, dentro, o coração de artista, um tesouro, e, sozinho, oferece-nos um recanto encantador, que, apesar de pequenino, nada deve a parentes franceses ou árabes. Além da vista, dos infindáveis horizontes, da história e das muralhas, a cidade mínima tem, agora, uma jóia, um poema, assinado Dionísio Gomes.
2. Em Arte, cabe sempre, e bem, a Culinária. Recomendo “Marvão, à mesa com a tradição”, da autoria de Adelaide Martins, Emília Mena e Teresa Simão, com prefácio de Jorge de Oliveira, livro profusamente ilustrado que faz crescer água na boca, só de olhar. Junta a história da terra e o regalo dos acepipes. Imagine-se o leitor, no jardim do Sr. Gomes, virado à Serra e, ao lado, um cristalino cálice de Licor de Pêssego...
Pobres árvores...
O meu amigo Duarte diz-me que há, por aí espalhados, em feiras de livros, a saldo, obras de Graça Pina de Morais, à venda, ao preço da chuva. Não admira: a literatura caíu nas mãos da máquina fornecedora do mercado -e o mercado alimenta-se da ignorância. A Cultura é o maior inimigo do mercado. Quanto mais burros ou analfabetos, melhor. Todos lembramos um episódio recente: certo leitor, farto de andar à procura, em vão, de livros que lhe dessem alguma coisa e convencido (e bem) de que isso está ligado ao analfabetismo de muitos editores (os tais interessados no lucro fácil), enviou uma cópia dum romance de Charlote Brontë (ou de outro grande romancista, arrisquei esse nome), assinado com pseudónimo, a uma casa editora, que lho devolvou, sugerindo várias alterações... Não duvido que certos nossos editores, diante de um texto de Camilo, não identificado, propusessem cortes e acrescentos, um pouco de pornografia, um pouco de "histórico", confusão ortográfica, etc. Vivemos num imenso bluff, na corrida à "arte" medíocre e degradada. Olhe, caro Duarte: em Portugal, a árvore foi, sempre, um objecto a abater (repare na vergonhosa urbanização, no império imbecil do betão, na construção civil desertificadora); com a febre consumística editorial, a pobre árvore tem os dias contados... Desgraçados castanheiros, carvalhos e simpáticos, efémeros eucaliptos...
O dia de hoje...
John Middleton Murry (1889-1957), novelista e ensaísta inglês, prefaciou o “Diário” de Katherine Mansfield (1888-1923), com quem, aliás, foi casado. Acerca de Katherine, escreveu: ‘Ela preferia a opinião das pessoas simples à dos literatos, à sociedade culta dos críticos. Sentia-se responsável, diante desses leitores. Tinha que lhes dizer a verdade e só a verdade. A preocupação de que a verdade estivesse naquilo que escrevia obcecava-a. A verdade da sua alma. Só assim seria digna do acto de escrever.’ Os Editores Relógio d’Água publicaram, recentemente, Garden Party e Contos, de Katherine Mansfield. Vale a pena -vale muitíssimo a pena- ler essa grande, maravilhosa escritora, que atravessou a vida breve com os olhos postos numa coisa fundamental: o diálogo sincero. Entre pessoas sinceras, não entre pessoas artificiais. A meio da vida viva, não em salões poluídos, onde se cultiva a hipocrisia e a vaidade. Katherine não era uma mulher simples; mas quis ser simples e directa no que escreveu e quis entregar àqueles que a lêem a mensagem de um destino agitado, complexo, doloroso –e marcado pela busca da beleza.
domingo, 29 de março de 2009
O dia de hoje...
Umas palavras sobre um admirável pintor esquecido: Manuel Barrias, que viveu, em Portalegre, nos meados do séc. XX e de quem quase ninguém se lembra. José Régio, que de Arte sabia, escreveu, em 1947, a seu propósito: “um dos casos mais sérios da nossa pintura moderna”. Hoje, a falar-se dele é apenas para lembrar que foi mestre-mentor de outro grande artista, Manuel D’ Assumpção. A fama é assim. As partituras de Vivaldi, o maravilhoso músico barroco, estiveram fechadas, numa gaveta, em Viena, durante 200 anos. Caravaggio -outro grande pintor, esse do séc. XVI/XVII italiano- andou pelos depósitos de museus. A Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa valeram o bom gosto, o entusiasmo e a generosidade dos homens da revista presença. Irene Lisboa e Graça Pina de Morais vivem no limbo. Agora e ainda, acerca de Manuel Barrias: onde andam os amadores de pintura ou os críticos capazes de o arrancarem ao injustíssimo silêncio?
sábado, 28 de março de 2009
Governantes presentes, governantes ausentes...
Decorre, em Viña del Mar, Chile, a VI Cimeira de Líderes Progressistas, que junta as presidentes do Chile e da Argentina, os presidentes do Brasil e do Uruguai, o vice-presidente de Obama e os primeiros ministros de Espanha, Noruega e Inglaterra (a presença dos Usa terá motivado os governantes ingleses; a presença do Brasil não disse nada aos de cá). Na verdade, surpreender-nos a ausência portuguesa, seria não ter o mínimo sentido da realidade. O que não nos impede de constatar e lamentar a nossa realidade...
p.s. "El Pais" intitula, assim, a notícia referente à Cimeira: 'La izquierda, a salvar el mercado". Realmente, o que iriam lá fazer os nossos governantes (de Belém a São Bento)?
O dia de hoje...
Não por acaso trouxe aqui, ontem, imagens de um bocadinho de Pier Paolo Pasolini, Cosa sono le nuovole. Chegara a Roma -onde vivi 15 anos- poucos meses antes de que o assassinassem (porque foram vários, os algozes, e Gisuppe Pelosi, La Rana, não passou de isca, mas tudo ficou no vago e Pelosi pagou por todos). Conhecia, dele, Il vangelo secondo Matteo e Mamma Roma, o meu amigo José Pires Sanches, artista desconhecido, revelara-me as poesias. Em Roma e no Corriere della Sera, habituara-me a seguir (na primeira página, que ainda preferia a Cultura aos crimes de faca e alguidar e aos desamores e adultérios das estrelas do jet set) a polémica Pasolini/ Italo Calvino. A notícia do crime apareceu-me no ecrã da televisão, em casa do embaixador Martins Janeira, na companhia deste e de Melo Antunes (à altura ministro dos negócios estrangeiros). Anoto porque eram dois homens de cultura, exigência ética, humanistas empenhados em compreender as contradições brutais daquilo a que chamamos vida e, tantas vezes!, não passa de circo, palco de violências, prepotências e injustiças gratuitas, baile macabro de mortos vivos. Precisamente a indignação de Pasolini, a sua coragem de denunciar o crime organizado em que se transformou o sistema social (não lhe chamarei “contrato” pois ninguém contratou com ninguém: os que dominam limitaram-se a impor a lei, a ferro e fogo, veja-se a crise que sofremos), a frontalidade e a generosidade do autor de Passione e Ideologia, de Ragazzi di Vita, tinham-me cativado e por isso o respeitava (e respeito). Não podia adivinhar que o seu assassinato representava um virar de página. Os anos de 1975 a 1980 foram empolgantes. Lembro a força do Partido Comunista e do Partido Socialista italianos e a imensa preocupação de apostar e desenvolver a Cultura que marcava a administração das autarquias que dirigiam. Lembro a novidade criadora do Partido Radical. E a Democracia Cristã ajudava a manter o nível extraordinário da vida política e cultural italiana. O declínio começou nos anos 80, com o consumismo, com o neo-liberalismo rampantes, e culminou com o aparecimento de uma figura cómica e tenebrosa: Berlusconi. Pasolini tinha ideologia, Berlusconi tem dinheiro. Os italianos empobreceram: material e espiritualmente. No entanto, amigos, a Itália não é a procissão de fariseus (de salteadores) e de pessoas superficiais e resignadas, agarradas às coisas inválidas, porque as coisas valem... o que valem as coisas. Não é a palhaçada sinistra por aceita (há desemprego, medo e fome, revolta) que as televisões mostram. Nem pode ser. A Itália é o seu (dela) renascimento; é, mais perto de nós, Croce, Umberto Saba, Visconti, Antonioni, Claudio Magris. É Pasolini, homem da ideologia e do espírito -capaz de ler, nas núvens, o indecifrável.
*****
Espírito e matéria, a alma e as coisas... Atiraram a Sócrates, mostrando-lhe um diadema de diamantes: “Nunca terás isto!”; e o filósofo-vagabundo respondeu: “Ora aí está uma coisa que eu não preciso de ter...”
sexta-feira, 27 de março de 2009
O poeta cósmico
1. Herberto Helder: entregue-se o leitor à obra que se lhe oferece (“Ofício Cantante, poesia completa”, Assírio & Alvim). Eis a viagem reparadora, num tempo de histriões. Malcolm Lowry escreveu, em “Under the Volcano”: “ele próprio estava no Inferno”. O Inferno obriga à luta e à queixa. A morte é certa e improvável porque no instante que passa brilha a eternidade. Herberto: “Cantar? Longamente cantar./ Uma mulher com quem beber e morrer.” A que veio Lowry? Aproxima-os o ferro em brasa diante do amor e da morte. O trágico modo de interpelar a vida. A autodestruição? Porque “a morte está tão atenta à tua força contra ela,/ enquanto ávido e acerbo cantas debaixo da água enviada,/ acaso contes adormecê-la com a música turva?”, interroga o poeta. E o amor, exaltado e agredido, quase inimigo necessário à liça eterna: o sexo? Origem de tudo? Armadilha de Deus? Que outra coisa Ele, Deus, não é senão o Juiz que faltou ao julgamento –e nos abandonou, nos deixou um sexo inútil e uma vulva que apodrece, enquanto se abre, vibra e nos atira para aqui -para a vida-, excrescências suas? Repete-se o sacrifício de Isaac, em que havia um filho e um pai. E Deus. Depois, o Anjo, o cordeiro e o sangue. Mas o sangue que jorrou é o nosso. “Dai-me uma jovem mulher com a sua harpa de sombra/ e o seu arbusto de sangue. Com ela/ encantarei a noite”. Ferve por dentro o poeta, “até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza”. À volta, o silêncio do cosmos e o grito do homem.
2. É impossível definir (limitar) o génio de Helder. Pergunto: não deveria a Academia Sueca corrigir o erro de 1998, distinguir o poeta, honrando, finalmente, a Literatura Portuguesa?
O Ministério da Educação e o Magalhães
O Ministério da Educação fez saber que não sabia que os pais dos alunos andam a vender o Magalhães (computador), provavelmente, sabendo que o Ministério não sabe (não sabia , porque, agora, o Ministério já sabe). Ainda bem que não sabia, se soubesse é que era grave. Mas a verdade é que o Ministério não é, nem era, nem nunca foi obrigado a saber tudo, por exemplo, não era obrigado a saber que o Magalhães (computador) não sabe escrever português. Mas, agora, já é: disseram-lhe. E, se não lhe tivessem dito? E, agora, quem é que agarra o Magalhães (computador) que anda por aí a espalhar erros de ortografia? E quem é que convence os pais dos alunos que não devem vender o Magalhães (computador) que só ensina erros (de palmatória) aos filhos? E quem é que convence os filhos dos pais a usarem o Magalhães (computador) que só ensina erros de palmatória e as palmatoadas doem? É um caso bicud0.
O dia de hoje...
O que leva os políticos ao descrédito? Qual o motivo por que o cidadão, o eleitor, não se identifica com eles e, cada vez mais, os desrespeita ou menos respeita? Julgo que resulta de não se baterem os políticos por uma ideologia mas, sim, pela conquista do poder –e, simultaneamente, pela defesa dos próprios interesses. A acção do político deverá ser conquistar a presidência de uma freguesia? De uma câmara municipal? Um lugar na Assembleia da República? Um lugar no governo? Com certeza; só assim terá condições para aplicar as suas ideias. Mas a maioria dos políticos não tem ideias, tem ambições. E o encontro de políticos mima o arraial de feira, onde se vendem e compram burros, peças de roupa, videos –e, por aí fora, até chegarem os negociantes à administração e à presidência da administração de bancos privados e públicos, de empresas... Antero de Quental sonhava ‘sacrificar a vida’ a uma grande causa; o político sacrifica-a a um grande tacho. Antero tinha ideologia –tinha ideias, cultura. A nossa classe política -honra às excepções- cultiva a cultura da cartilha de vendedor de banha de cobra. Vende a mãe, a avó, a camisa, as cuecas, as peúgas, diz isto e aquilo –olho na progressão na ‘carreira’. E o cidadão/eleitor vê-o passar ao lado, encher a burra e, caçado o voto, adiar o prometido para outra ocasião, para o dia de são-nunca-à-tarde, e multiplicar-se em vias –na terceira via, na quarta, na quinta, afinal regalado com a caixa de mudanças automáticas que se adapta, amanha, se arranja... automaticamente... Entre o político de serviço e o homem com ideal, que se dedica à coisa pública, a distância é tragicamente imensa. Em tempo de reformas, reformem-se os que nos atrasam a vida –e que venham outros. Há, sempre, outros. Este dia que começa não é o último.
quinta-feira, 26 de março de 2009
Afonso Duarte, poeta esquecido
AMOR
Antes que seu perfil me aparecesse
Eu tinha gasto meu coração a vê-la...
E erguendo aos céus as minhas mãos em prece,
O meu amor foi só reconhecê-la.
Como graça de Deus que me atendesse,
Sou seu amor, posso dizer-me de Ela..
Chamar-lhe minha, assim quem o pudesse,
Na noite da minh’alma única estrela!
P’ra meu amor é que Ela ao mundo veio
E, assim outrem amando-a, era parti-la,
Que alguma coisa de Ela há no meu seio.
Não será minha? Isso que tem para a Arte?
Estatuário que eu sou, hei-de esculpi-la;
Dá-la em beleza é o meu amor em parte.
Antes que seu perfil me aparecesse
Eu tinha gasto meu coração a vê-la...
E erguendo aos céus as minhas mãos em prece,
O meu amor foi só reconhecê-la.
Como graça de Deus que me atendesse,
Sou seu amor, posso dizer-me de Ela..
Chamar-lhe minha, assim quem o pudesse,
Na noite da minh’alma única estrela!
P’ra meu amor é que Ela ao mundo veio
E, assim outrem amando-a, era parti-la,
Que alguma coisa de Ela há no meu seio.
Não será minha? Isso que tem para a Arte?
Estatuário que eu sou, hei-de esculpi-la;
Dá-la em beleza é o meu amor em parte.
Antero de Quental, homem a sério
Os dois volumes de cartas de Antero de Quental, publicados por Universidade dos Açores/ Editorial Comunicação, valem como breviário. Guardam um exemplo extraordinário de inteligência, coragem e pureza, que levanta a alma. Encontram-se, às vezes, à venda, em feiras de livro ambulantes, em estações do caminho de ferro e noutros lugares. Transcrevo as seguintes linhas: ‘Quero sacrificar a vida, morrerei contente se tiver vivido 6 meses ao menos da verdadeira vida de homem que é a da acção por uma grande causa’. A carta deverá datar de 9 de Fevereiro de 1890. Tempos em que os homens falavam. Hoje, cacarejam, a ver se agarram um tacho à mesa dos orçamentos (públicos e privados). Isso não quer dizer que essa desistência (servidão e pouca vergonha) não possa mudar. Muito pelo contrário! Basta procurar a saída ou a porta que abra para a ‘verdadeira vida’. É o nosso combate.
O dia de hoje...
Este governo conseguiu, em meno de 4 anos, desacreditar 4 classes sociais (e baralhar as pessoas): na generalidade, a dos funcionários públicos; na especialidade, as dos professores (“inimigo nº 1”, para este governo), dos médicos e dos magistrados. Penso até que apontou a pistola aos reformados, como se esses tivessem a culpa de não morrer e reclamarem as pensões devidas (vem aí, como era de esperar -este governo tem o vício de equilibrar finanças à custa dos desprotegidos e de assobiar para o lado, perante os ricos-, o aumento das contribuições dos reformados/aposentados –reacção viril do governo ao crime de estar vivo). Desviou, assim, as atenções, preocupações e indignações do eleitorado –arregaçou as mangas, na mira de continuar no poder. E o que já era confuso confundiu-se mais. Identificados os “responsáveis” pela crise social, que já existia antes da “Grande Crise”, o cidadão/eleitor ajudou o governo a atirar-se a eles e a esconder -ele, governo- a própria incompetência. Os funcionários passaram a funcionar pior; a escola rebentou pelas costuras e reduziu-se o trabalho a distribuir testes e arranjar estatística simpáticas, para satisfazer o cidadão/eleitor; a medicina tende a desaparecer em parte incerta; a Justiça, um dos poderes fundamentais consagrados na Constituição, foi quase atirada às ortigas, ofendida, humilhada, desautorizada. O português, ao qual todos os dias é dito “desculpa, pá, aperta o cinto, tamos na crise”, reparou que já não pode mais, se enforca pela cintura, não chega para as encomendas, barriga, casa, carro e filhos –e desatou a insultar os tais alvos/responsáveis que o governo indicou. O governo consentiu, quando não aplaudiu (o que aliás, aconteceu, frequentemente). Enquanto essa peixarada ocupa a cena, nos bastidores, o governo faz o que quer, e certos privados continuam a fazer o que querem. Dado como semi-morto o cidadão/eleitor e, sobretudo, supinamente ignorante dos seus direitos (e deveres: porque, quando qualquer coisa vai mal na Pólis, na Cidade, no País, intervir é um dever, uma obrigação de cidadão responsável), o governo e os privados que o governo tolera, acharam-se de mãos livres, sem ter que dar satisfações a ninguém. Veja-se, agora: a REFER e a CP fecharam, sem dizer água vai, passando por cima dos interesses e direitos do cidadão (andaram um mês a preparar, clandestinamente, o golpe), as linhas do Corgo (Régua a Vila Real) e do Tâmega (Livração a Amarante); o esquisito ME, com o impagável trio Lurdes-Lemos-Pedreira, à frente, marimbaram-se para as razões dos professores e decidiram que não serão avaliados nem progredirão na carreira aqueles que não apresentarem escritos (julgo ser irrelevante a qualidade do português, mesmo um português magalhoano serve) os famosos, famigerados, abstrusos “objectivos individuais”. Quer ir de combóio? Nem pense nisso: vai a pé ou de carrinha, se acabar com esses comentários! Quer ter opinião, quer criticar, discutir as decisões do ME, as iluminações mentais do TRIO? Desista, senão vai para a rua ou nunca mais sai de onde está (mal, n.r.).
O apontamento de ontem, a propósito de imperadeiros, saltou, como já me tem acontecido. Culpa da minha inexperiência? Um comissário político disfarçado de tecla? Fico com a dúvida.
quarta-feira, 25 de março de 2009
O dia de hoje...
... ainda vai a meio... Aproveito para sublinhar o seguinte: a editora "Opera Omnia", de Guimarães, que não nada em dinheiro, julgo que antes pelo contrário, mas tem demonstrado bom gosto e muita coragem, publicou a peça de teatro de Camilo, O Morgado de Fafe em Lisboa. Explica a "Opera Omnia" que a iniciativa se insere ‘num projecto cultural meritório: reeditar peças teatrais de inegável valor intemporal, fazendo coincidir a montagem do respectivo espectáculo teatral com o lançamento de cada novo título’. É, sem dúvida um projecto de grande interesse e este primeiro volume teve o apoio das Câmaras Municipais de Fafe e Famalicão. Sobre Camilo não há que dizer -sempre, nos altos e baixos, genial, único. Quanto à Opera Omnia, resta enviar um forte abraço de parabéns. Do apoio das duas Câmaras minhotas... desejar que continue e se estenda pelo país fora: há muita cultura por cá a sobreviver sabe Deus como... E muita indiferença do poder central e muita distracção do poder local...
O outro lado...
Tem de ficar assim porque ainda não sei fazer melhor...
http://www.youtube.com/watch?v=GWrxs2RDNRU&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=GWrxs2RDNRU&feature=related
O trágico divórcio dos políticos
Maria José Nogueira Pinto é uma mulher admirável (concordemos ou não com as suas ideias, sempre respeitáveis por autênticas), que se entrega inteiramente a quanto faz. Escreve ela, hoje ("Diário de Notícias"): '... as mulheres não estão na política (...) porque não querem. Fazer carreira dentro de um partido político não lhes interessa, sentem que é um desperdício de tempo'. E tem toda a razão: o político deixou de defender ideologias para defender uma carreira; de político passou a 'carreirista' -e o seu esforço esgota-se na luta interna dos partidos. Vira as costas à realidade social, ao povo, aos eleitores. Os inimigos são os outros políticos que ambicionam os mesmos lugares na máquina partidária. Para o político (para o politiqueiro) de hoje, o problema não é resolver a questão social -é conquistar bons lugares dentro dos partidos. Entre o político e o leitor (o cidadão) cavou-se a fossa, um trágico divórcio que leva este último a não confiar no primeiro. Se alguém pensar em intervir, realmente, na pólis, na cidade, o mundo partidário aparece-lhe como uma coisa esquisita, estranha, completamente desligada do quotidiano muito difícil que vivemos.
Diário Moscovita
Sentimento de um português na Rússia
6 de Agosto de 2004
Entro no avião da Lufthansa directo a Franqueforte e reparo numa das hospedeiras. É uma mulher de estatura média, cabelo curto loiro. Já não é jovem. Tem o rosto fechado de profissional alemã, correcta e atenciosa. Sorrio-lhe, porque inicio a longa viagem para Moscovo, a cabina, climatizada, parece confortável e se trata de uma mulher diferente das do meu país. Afinal, mais reservada, severa e distante. Mas, quando responde ao meu sorriso, os olhos azuis transformam-se, doces, envolventes, familiares, e eu lembro-me da actriz da minha adolescência, que me apaixonava, no velho cinema da Guarda: Maria Schell. Ah, sim, a mesma ternura dilacerada, comovente... Seria difícil dizer a sua idade. Há na expressão desta desconhecida, neste instante, apelo, afirmação. Oferta. Como se quisesse comunicar-me qualquer coisa, por exemplo, que estava ali, existia, guardava, dentro, um mundo e podia dividi-lo. Andou para trás uns anos, rejuvenesceu. Sempre pensei que, se a procurarmos, a criança que fomos, escondida dentro de nós, reaparece. Brevemente. O átimo em que a eternidade se revela?
Antes de embarcar, disse a uma jovem amiga, que se queixava do sem sentido da vida e que me perguntara qual o destino das nossas experiências: “Não sei. Talvez nenhum, à luz da razão, do nosso entendimento das coisas. Tempo? Espaço? Destino? Que sabemos disso? As nossas certezas e convicções o que valem? Sei que foi uma sorte o acaso que trouxe o bocadinho de vida que nos cabe. Revelaram-se a beleza e a harmonia. Qual o sentido? Não sei. E não vale a pena pesar e medir nada. É inútil, nem aquece nem arrefece. Resta-nos entregarmo-nos ao instante”. Com a imprudência da hospedeira alemã. Enquanto formos capazes.
Ela já perdeu o sorriso e o rosto voltou ao que o tempo lhe pôs em cima. Os músculos da face cederam, o brilho do olhar apagou-se. Ainda me sorri, hesita, mas o meu lugar não pertence à zona que lhe confiaram. Até Franqueforte, constatei que era uma funcionária eficiente.
À mesa do incaracterístico café de aeroporto – o Café Goethe-, espero a empregada. Fazem-me companhia três asiáticos –de Singapura?, da Tailândia?, da China? Sem cerimónias, bebem cerveja e riem. A menina chega e eles querem pagar. Acena-lhes que esperem e toma nota do whisky com água lisa, que eu lhe peço. Noto que o faz porque são asiáticos e gesticulam de maneira insólita –grosseira, segundo um europeu do Norte. A menina não tem culpa, mas eu lembro-me dos campos: Auschwitz, Dachau... Lembro os diferentes. A exclusão. O recuo, face ao outro. A alterofobia. A menina não tem culpa, retribuo-lhe a delicadeza, também eu impaciente. A refugiar-me no meu egoísmo. Horror à massificação? Fuga? Alterofobia? Um sentimento comum, que tentei corrigir -e continuo a tentar-, através de viagens, convívio, vivências. Esse sentimento não morreu e o mundo que criámos exacerbou-o. Já perdemos o hábito de viver com os outros –ou nos servem ou não nos servem. Educamo-nos, assim. O outro é um parceiro no jogo do lucro e da indiferença –ou um inimigo, ou um concorrente. Os judeus eram concorrentes, segundo Hitler e contemporâneos. São, ainda hoje, inimigos só por serem judeus? Afinal, como os árabes, os negros, os imigrantes... Os asiáticos do Goethe nem deram por nós, pela menina e por mim. É o mesmo, não é verdade?
No avião para Moscovo: tenho sorte, quase vazio. Reabro o livro, que abandono: De la Russie, de Youri Afanassiev. Custa-me ler, durante as viagens, interessam-me as pessoas. A mulher, na fila da frente, à minha direita. Alta, esbelta, olhos cor de mar, conversa, em russo, com a amiga. Agita as mãos e os braços. Tem a expressão determinada, sabe o que quer. A outra é calma, doce, leva o filho, uma criança, trata-o com meiguice. De costas, só lhe distingo o cabelo loiro (levanta-se e puxa um saco de lona, é baixa e gordinha). A magra explica-me que não se encontravam há vinte anos, trabalha em Orvieto e a amiga vive em Nova-Iorque. Em Orvieto?! Fala um italiano perfeito. “Falo inglês, espanhol...” Russa? Se a encontrasse num café de Telavive acharia natural. Adivinha e antecipa-se: “Sou um quarto judia”. Precisa: “Vinte e cinco por cento.” Nina Malievine. Conhece Umberto Saba, Svevo, viu os filmes de Visconti e, obviamente -lê-se-lhe nos olhos ansiosos-, os de Antonioni. É independente, pagou caro a independência. Vejo as cicatrizes. Digo-lhe? “Sim, acertou...”, responde-me, em italiano, fica entre nós. E acrescenta: “Telefone-me domingo de manhã, segunda já estarei em Petersburgo. Jantamos com uns amigos. E se for a Petersburgo, não deixe de visitar a casa de Puschkine, na Fontanka. É o maior escritor russo! Maior que Dostoievski... Puschkine é tão directo!”
8 de Agosto
Não telefono a Nina. Passo a manhã de domingo na Feira da Ladra, a Ismaylovo. Almoço, numa barraca, a excelente sopa do Uzbequistão, funcho, cebola crua, paprika, carne de vaca, cenoura, abóbora, esparguete cortado e iogurte, tudo muito bem apurado, em panela monumental. Os parceiros de mesa brindam, cálices erguidos, nasdarovie!, “à saúde!” E noto a solidariedade, o acolhimento espontâneos. Volto aos atalhos de Ismaylovo, no grande bazar, sobressaem os quadros: figurativos, impressionistas, abstractos, imitações de ícones. Técnica perfeita. Algumas paisagens admiráveis, que o mau gosto turístico não condicionou. Escolho a pequena tela No Alto Volga, de um artista que vem de fora de Moscovo. Tardo impressionismo. Sensibilidade: a falésia ocre, a meio da mancha do arvoredo, o farol, as águas encrespadas, um barco, em que ressaltam a proa de um azul mais claro do que o do rio e, na popa, a cabina de comando, iluminada, as nuvens, brancas, violetas, cinzentas, a outra margem, distante, escura, imprecisa, o céu tempestuoso. Demoro-me nas bugigangas, antiguidades autênticas e de ontem, molduras, roupas, lembranças de época recente, da União Soviética, fotografias delidas, namorados, um senhor barbudo, de sobrecasaca preta e chapéu alto, a dama elegante, um ramo de flores encostado ao peito cheio, que espera nunca saberemos por quem, uma praça de Moscovo, postais, que alguém escreveu e alguém juntou, ali esquecidos. Nostalgia.
11 de Agosto
Visito o Convento de Novodevichiy e, à entrada, depara-se-me a Capela funerária dos Prokhorov. Um pequeno edifício de paredes brancas, desenhado em dois planos de quatro arcos bizantinos, a cúpula doirada, contra o azul do céu. Singelo e atraente, por isso. Mas o segredo esconde-se lá dentro: a monja, vestida de preto, que conta uma história a duas senhoras. Escutam-na, religiosamente. É uma mulher de idade, rosto e mãos de camponesa, muito viva. Está sentada atrás de um mesa cheia de livros e postais, de folhas escritas. O que ela diz não entendo. E, apesar disso, não consigo desviar o olhar. A música da voz -o russo é uma língua musical, enleante-, a convicção, os gestos, teatrais e ingénuos, prendem-me, tal qual me fascinam as duas senhoras. Há, na monja, a humanidade profunda dos eleitos, que não se sabem escolhidos. Há generosidade, poesia –tão terrena e imaterial! O lirismo dos simples, que lhes confia Deus. E os olhos ficaram-me marejados: diante, tinha a Santa Rússia –a de Puschkine, Dostoievski, Tchekhov. A Rússia imensa e misteriosa, espiritual e concreta, violenta e poética. A Rússia a que Tolstoi se entregou, agonizante e sozinho, no apeadeiro perdido de Astapovo. Gostaria de lhe beijar as mãos ou de as apertar nas minhas. De nunca mais a perder –porque ia perder, quando me fosse embora.
Nas costas do Convento, a Sul, o Cemitério, onde repousam figuras gradas das artes e da política russa. O túmulo de Gogol, com a estátua grandiosa. Pergunto ao jovem pintor que a copia: “Tchekhov?” Acena a uma campa rasa, coberta de flores, logo atrás. Nem estátua, nem imagem: um arremedo de muro branco, coberto por um manto verde, três coruchéus de ferro, pobre esboço de cenário teatral, modesta memória do dramaturgo que ele foi. Não choca. Viveu tão discretamente! Escreveu tão simplesmente! Morreu tão docemente! A beleza das suas histórias é tão delicada! À noite, assistirei, na Escola de Teatro Contemporâneo, à peça A Gaivota. Uma das personagens, o novelista Trigorin (Tchekov) ironiza: “O público lê-me e diz: “Bonito, escrito com muita inteligência... Mas inferior a Tolstoi... Belo trabalho, mas inferior a Turgueniev...” E sofria (Tchekhov), por isso. Hofmannsthal: “É preciso esconder a profundidade. Onde? Na superfície.”
O teatro-estúdio está cheio, pessoas de todas as idades e condição social. A peça é apresentada, essencialmente: espectadores dispostos em duas bancadas de três filas, uma de cada lado da sala, ao longo da passadeira que une dois espaços: interiores da casa de Petrosha e o jardim, ocupado pelo palco improvisado, em que se apresentará a obra de Kostia. A Gaivota depende do talento dos actores. Sem compreender as deixas, eles arrebatam-me. É, também, a emoção de assistir a uma peça de Tchekhov, na Rússia. Mas actores destes encantam.
Há, em Moscovo (catorze milhões de habitantes), dezenas de grupos e de teatrinhos. Aliás, sente-se a força cultural da cidade: teatro, cinema, bailado, concertos musicais. A corrida aos livros, vendidos a preços baixíssimos (de bolso a 2 euros; edições normais e traduções de autores estrangeiros, a 4, 5 euros). O gosto pela leitura, topo-o no metropolitano, nos eléctricos, nos cafés. A defunta União Soviética promoveu a leitura, a música, o bailado. Condicionada, embora, ferozmente vigiada, policiada, censurada (daí, o deserto da criação, o caso Pasternak e a forçada renúncia do escritor ao Nobel, o degredo, o desaparecimento esquisito -Isaac Babel- e o exílio de outros), a prática generalizou-se. A alma russa não se deixou sufocar, sobreviveu à dureza dos anos. Hoje, voltam à luz do dia, autores esquecidos na clandestinidade e no purgatório, Dostoievski, Ivan Bunine, Achmatova, Bulgakov, revelam-se escritores, músicos, realizadores de cinema. A Santa Rússia não dorme –sinto bater o coração.
14 de Agosto
Ivan Bunine (1870-1953), velha admiração, descoberta na Guarda, na Papelaria do Sr. Casimiro, Amor que santifica, editado pela saudosa “Inquérito”, à qual, em boa hora, João Gaspar Simões serviu de conselheiro. Leio o último livro de contos do grande escritor, exilado, em França, desde 1920, primeiro Nobel russo, em 1933, Les Allées Sombres (Biblio, Poche). Em 1910, o romance A Aldeia, um êxito, que trata a condição dos camponeses (também ele conhecia o povo, os humilhados e ofendidos), consagrara-o. Anos depois, marginalizaram-no, não perdoaram a independência: a recusa frontal da revolução bolchevista, o afastamento do experimentalismo literário, do futurismo, de Maiakovski, Essenine, Achmatova, cujo triunfo duraria pouco, afastados, eles também –de que maneira!-, pelo didáctico e obrigatório realismo socialista ou o medo da singularidade. Bunine continuou, até à morte, fiel a si próprio. Beleza das descrições (amava, carnalmente, a Rússia, quanto não sofreu, ao abandoná-la!), poesia, complexidade das personagens –tudo isso faz o seu génio. Mas quero inclinar-me diante da verticalidade: respeitou-se, perseverou, contra ventos e marés, ergueu uma obra única. Atravessou modas, desprezou dogmas, coerente, livre –coisa extraordinária.
O mar de gente, mais de três milhões de automóveis, eléctricos, autocarros, o moscovita corre, não anda. O metropolitano tentacular, com estações que são obras de arte. Árvores, muitas árvores. Procuro entender: gente próxima de nós, isenta, felizmente, da insegurança e da opinião alheia, complexos que nos anquilosam. Reservada, aparentemente brusca (um sorriso, e a doçura salta) mas tranquila e generosa, romântica e sonhadora. Tensa, ansiosa. Complexa, como os seus artistas, e frequentadora de cafés e amante do convívio.
Raparigas muito belas, loiras, esguias, corpos flexíveis, frágeis, diria pássaros, um golpe e quebravam. Olhos de azul celeste. Aprenderam a dançar ou seria impossível a correcção e a elegância das atitudes. E o latino abre a boca, pascácio, e passa-lhes ao lado. O latino é, por natureza, machista –e não leu os poetas russos. Elas saíram dessas páginas. Não vale a pena demorar-me no salivar dos lorpas. Elas ignoram-nos. Animam as ruas, os cafés, os teatros, as praças de Moscovo, enriquecem, aquecem a alma. (Nesta megapolis permissiva, obviamente, é possível experimentar, tudo quanto se deseje).
As novelas de Irina Denejkina, 22 anos, Dá-me! Song for Lovers. Agarram. Retrato da juventude que sofre as consequências da mudança, da crise social, o deserto de valores. Uma juventude que ama, esbraceja, se agride e destrui. Irina (imagino-a indefesa e exposta, preço da sinceridade) acusa: “Tudo é pó, tudo é glória vã, tudo é mentira”. Aflige-me e não posso abraçá-la –é só um livro. Reage: “A vida é extraordinária e surpreendente”. Pudesse eu sarar a dúvida, que não a larga! Mai-la raiva e a solidão, a fuga. Luta e grita. Álcool, droga, camas de acaso... Song for lovers. Quem ama os amantes que falham o milagre da própria juventude? Não têm rugas, são belos, os músculos respondem, os cabelos vão com o vento, tal qual as mãos, que se procuram, se encontram, se apertam e se largam, e as bocas imaculadas, que se beijam, sempre insatisfeitas e inconscientes, os corpos misturados, hiantes, e logo abandonados à ternura que ninguém colhe. Sangram, na estrada.
Antologia de autores russos contemporâneos -muito mais velhos do que a Denejkina-, organizada por Viktor Erofeev e traduzida, para o italiano por Marco Dinelli. Não me interessam. Estéreis, circenses, insinceros. Outra forma de fuga –experimentalismo serôdio, repetição do que se disse e se tentou, há quase um século: Maiakovski, Marinetti... Outra face da crise de identidade, comum, no fim e ao cabo, a muita literatice nossa. Ouvi, em Moscovo, a intelectuais cultores dessa nova linguagem, que Dostoievski é um escritor menor, ultrapassado. Eles, sim, que me pareceram anacrónicos e de costas viradas para a realidade, impotentes e a esconderem-se no artifício fútil.
17 de Agosto
Museu Puschkine. Um quadro de Goya, assinado da maneira seguinte: Lola Jimenez, o modelo, surpreendido a desenhar o retrato do artista –esboço do rosto de Goya, ao canto da tela. Obras do renascimento italiano, Lorenzo Lotto, Perugino, Tiziano. Os impressionistas e fauvistes franceses, Degas, Renoir, Gauguin, Matisse. Peças notáveis do período azul de Picasso. Grandes telas de Bonnard.
O Napoleão, de Gérard (1805). A coroa, o ceptro, o manto de arminho. Não é isso que me impressiona: é o olhar de adolescente, de quem não cresceu e continua a sonhar. O imperador apaga-se, volta o tenente pobre e solitário, que escrevia novelas românticas e se chegara ao suicídio, quinze anos antes. O olho direito denuncia-o –os nossos olhos abrem janelas diferentes. Há um mundo naquele homem imaturo (ele, o anti-Cristo, o estratego genial, o condottiero), uma interioridade, que adivinho e me escapa –a sua viagem era dele. Vê, além do horizonte. E compreendo excessos, imprudência, o disparate da campanha da Rússia. Talleyrand explicava-lhe que era o senhor da Europa. Não ouvia conselhos. Nada bastava ao sonho imenso. Por isso, após Waterloo, a recusa da fuga para a América, a confiança absurda nos ingleses, o exílio de Santa Helena –afinal, a assunção do próprio destino, cumprido -na convicção pura de louco visionário- integramente
19 de Agosto
Não aprecio Bulgakov, mas é no Café Margarida, homenagem ao seu romance, O Mestre e Margarida, que vou almoçar. Nenhum turista. Uma excelente sopa, borsch, depois, ravioli (os russos têm uma variante muito saborosa, os pelmeni) e cogumelos assados, vinho tinto da Geórgia, um cálice de vodka (já não me lembrava de vodka tão pura, Standard Russian). Decorado com peças de madeira escura, simples, aconchegante. No friso do balcão, cinco figurinhas, um conjunto de jazz, em que brilha a eterna criança, genial e infeliz, Billie Holiday. Vou beber o café ao Mania, na praça do Conservatório, onde ensinaram Tchaikovski (lembra-o a estátua) e Chostakovich (afastado, em 1942, por... incompetência). Leio e escrevo. Numa cidade destas, é costume. E, além do cidadão comum, que aprecia a leitura, frequentam o Mania escritores, professores e alunos do Conservatório. Katia, a jovem empregada tártara que me atende, sorri e improvisamos uma conversa em inglês arranhado. Ouso duas ou três palavras russas, descabidas. Que importa? Paro o tempo, abandono-me aos olhos em amêndoa, ao calor do corpo harmonioso, em que adivinho a seiva correr, impaciente. Travo-lhe o braço acetinado. Liberta-se, agradece, e vai veloz, contornando mesas e cadeiras, a cintura que o arco das minhas mãos abarcaria, o movimento leve de bailarina, quase em pontas, os finos cabelos, presos com um laço de veludo azul. Mania, meu refúgio moscovita, é um outro Diza, o café de Telavive, onde conheci Nathan Zach. Mas Katia não é Meital, a minha amiga do Diza. Qual a diferença entre as russas e as israelitas? Talvez, a doçura resplandecente das primeiras. Há, com certeza, em Moscovo, judias, que não são israelitas. Às vezes, julgo reconhecê-las: a espessa cabeleira preta ondeada, a melancolia insondável dos olhos escuros.
21 de Agosto
Yasnaya Poliana, a propriedade familiar onde Tolstoi (1828-1910) nasceu (em 1854, a casa foi vendida e removida, resta uma pedra, a lembrá-la), viveu muitos dos seus dias e está enterrado. Malgrado a austeridade procurada, o lugar de um Grande Senhor –e fica-me a ideia de que é natural a sua obra gigantesca. A morte não lhe aconteceu ali, mas aconteceram romances e novelas e, certamente, a Sonata a Kreutzer –o drama do seu matrimónio. Quando atravessei o portão, e, depois, entrei na residência, que ele próprio ajeitou, recordei o apartamento alugado por Dostoievski, em São Petersburgo, modestíssimo, vulgar, não fora o inquilino e o fantasma. Nesse andar de burguesia remediada, escreveu Os Irmãos Karamazov e morreu gasto, doente, pobre, endividado. Yasnaya Polyana deslumbra: o parque imenso; o lago tranquilo; a floresta de abetos de altos troncos brancos, os vastos espaços verdes, os caminhos de terra batida, em que terão passeado e conversado André Bolkonski e Pedro Bezukov. A casa mãe, aristocrática: ampla sala de jantar, com os retratos, a óleo, dos antepassados, a grande mesa de dezasseis pessoas, outras, onde se jogava e lia, o piano, em que a mulher, Sofia Andreievna tocou a tal Sonata; quartos bem mobilados; um mundo de livros e pinturas; esconderijos de Tolstoi, que lá se refugiava, a fugir a Sofia, sua obsessão, doença e tragédia (Ramón J. Sender analisa, magistralmente, o conflito em Tres ejemplos de amor y una teoria, Alianza Editorial). A fuga derradeira, iniciada na noite de 28 de Outubro de 1910, terminaria no apeadeiro de Astopovo. Recusou, até ao fim, a presença de Sofia Andreievena. Nos últimos dias, em Yasnaya, leu Os Irmãos Karamazov, que sublinhou, detendo-se no capítulo Do inferno e do fogo eterno. Vi o exemplar, numa mesinha do escritório, aberto nessa página e anotado. Na mesa de trabalho, os Essais, de Montaigne e uma obra sobre o povo russo. Tudo era assim? É improvável: em 1941, o exército alemão ocupou Yasnaya Poliana e, na retirada, tentou incendiar a casa. Escapou à barbárie o que se havia escondido, a tempo: objectos pessoais, obras de arte, livros, alguns móveis, em suma, bastantes coisas, mas o arrumo seguiu as fotografias e os conselhos dos que lá viviam.
Aponto: o retrato do único autor presente em Yasnaya, Dickens; o fonógrafo e o copiador, enviados, da América, por Edison; no quarto de cama espartano, o leito de ferro, um armário, um lavatório, duas cadeiras e a garrafa de água de Vichy, a caixa de Macaraíb Chocolat...
25 de Agosto
A riquíssima Galeria Tretyakov. Os retratistas russos e a sua arte insuperável. Os paisagistas. Os impressionistas (Tchekhov preferia-os, aos franceses). Uma Arte diferente. Arte russa, à margem daquela à qual nós, europeus, nos habituámos, mesmo quando se aproxima de correntes que experimentámos. Claro que me tocam, especialmente, os retratos de Dostoievski, (Perov), de Tolstoi, (Repin), de Puschkine, (Kiprensky), o génio de Serov, as paisagens de Leviatan (que Tchekhov privilegiava) e de Vassiliev, o maravilhoso e subtil Kuindji (que as páginas de Bunine recordam). Mas há tantos! O que me encanta é o novo universo. Que ridícula a ilusão de sermos o centro do mundo, nós europeus envelhecidos, actores cansados de uma história gasta, safada, inconsequente.
À saída, já ao cimo das escadas, fiquei parado, preso do rosto e do corpo de uma rapariga, linda como qualquer pintura. De tal modo e tão excessivamente, que ela baixou os olhos, envergonhada e lisonjeada, sem saber o que eu queria. Ou a saber: queria a sua beleza. E se o bom senso -a pior das coisas- me não fizesse cair em mim, abraçava-a e beijava-a. Sem mal: com paixão.
27 de Agosto
No metropolitano, assisto à cena que define um povo que não nada em dinheiro: uma mulher de meia idade, vestida modestamente, pára diante da jovem que toca violino, encostada a uma coluna do túnel, e deixa algumas moedas, no estojo ao lado. Não é esmola –é a homenagem ao talento e à Arte.
1 de Setembro
Dostoievski, Tolstoi, Tchekhov, Puschkine (sempre evocado com particular amor, o Camilo ou o António Nobre russos), esta Cultura única. Simeone Frank, eslavista, fala do espírito russo como “de um peregrino, saído do povo, ou de um Dostoievski, de um Tolstoi, sempre em busca de uma verdade que não lhes iluminasse e explicasse, apenas, o mundo –constituísse o alicerce da vida verdadeira e justa, por isso santificadora e salvadora”.
3 de Setembro
No décimo primeiro andar da Bolshaya Spackaya, perto do Largo das Três Estações, a meio da noite, oiço uma voz suave de mulher, a anunciar as partidas dos comboios. Petersburgo? Surgut? Saratov? Amanhã, regresso a Portugal. Arrumo, religiosamente, os livros que me acompanharam: Dostoievski, Bunine, Puschkine, Tchekhov... Guardo este caderno. Chego à janela, espreito os eléctricos iluminados, as pessoas que se apressam, a fugir à chuva miudinha. Onde vão?
terça-feira, 24 de março de 2009
A Acácia Vermelha
Foi por pouco tempo. Um mês. Lembro-me de quando me apareceu, a rir-se, à procura de trabalho. Eu viera contratado para verificar as condutas de água que abasteciam a capital. Era um país do golfo da Guiné, muito pobre e com dificuldade em organizar-se depois da independência. Perguntei-lhe:
-O que é que sabes fazer?
-Tudo- respondeu-me, às voltas com o corpo, que balanceava, livre, as mãos agarradas à boca.
-Como é que te chamas?
-Ednilza.
Acertámos o preço e ficou a trabalhar em minha casa. Chegava às seis da manhã -todos se levantavam cedo- e ia-se embora ao pôr-do-sol, quando eu a levava no jeep, carregado de sacos, os restos do dia. Atravessávamos a cidade às escuras e subíamos uma rua íngreme de terra batida, onde havia pequeninas bancas, iluminadas por candeias improvisadas, de lata.
-É ali- dizia.
E entrávamos no atalho. Ficava a dizer-me adeus, junto às escadas que davam para o único andar da casa de madeira assente em barrotes e com um telhado de zinco amolgado. Era um vulto, no meio do mato, com o vestido branco e o lenço amarelo. Os coqueiros agitavam-se, em volta e luzes brilhavam, por detrás das cortinas de pano.
Um dia, apareceu-me com a irmã e uma sobrinha.
-O doutor não precisa?...
Porque não? A vivenda que eu alugara era grande, quartos amplos, abertos sobre um jardim com mangueiras, bananeiras, goiabeiras, e eu gostava de a sentir habitada, a ouvir o mar, em frente. Mas foi sempre ela quem me serviu e reservou isso para si, a preocupar-se com a minha saúde, com o meu bem-estar. Uma vez, disse-me:
-O doutor não gosta de mim...
-O quê?
Aquela era a hora em que eu costumava sentar-me, na varanda, a olhar para o jardim e a ver cair a noite. O crepúsculo chegava devagarinho, as mangueiras escureciam, com a folhagem densa, a caramboleira deixava o dourado dos frutos.
-Gosta de mim?
-Claro que gosto!
Nunca tinha pensado nisso. Agarrei-lhe a mão húmida e puxei-a.
-Não acreditas?
Ela deixou-se estar e, depois, libertou-se. Ficou parada, entre cá e lá, encostada à balaustrada, com as pernas cruzadas. Demorou. Não tirava os olhos de mim. Era muito forte o olhar e desviei o meu.
Passaram os dias. Até que aconteceu. Tinha ido ao sul da ilha e voltei tarde, já de noite. Vi-a enforcada, presa de um braço da mangueira. Chamei os polícias, que a levaram, um corpinho exil, com as pernas esticadas e o peito rígido a levantar-lhe a camisa.
Em frente do escritório de minha casa, havia uma acácia vermelha, que floriu, nessa altura. Eu vi-a, julgava vê-la passar, por debaixo da árvore. Às vezes, parecia que se virava para a janela.
-Tão elegante...- pensava.
A minha cozinheira apanhou-me assim e desabafou:
-Nunca lhe contaram? Ela foi uma infeliz. Andou, sem eira nem beira, desde que nasceu! O pai? Não quis saber dela, tinha mais filhos e outras mulheres. A mãe? Aguentou, enquanto pôde. Também tinha outros. Não sabe como é? Ela é que foi à vida. Aprendeu depressa. Mas isso era o menos. O pior era o resto. Nunca os viu? O que é que o doutor andou cá a fazer? Só as minas? Só a casa? Os criados? Nós?... A varanda? Nunca os viu, os brancos, que voltaram, a pagar, a pagar! A enchê-las de roupas, e a aproveitarem-se. A comprarem. Não as deitam fora. Têm dinheiro: usam-nas e até as protegem. Dão-lhes de comer. Depois, esquecem. Elas é que sofrem. Ela é que sofreu. A sua! Passou de mão em mão.
A raiva sufocava-a.
-Compraram tudo...
-Ela? Qual?
-A que o doutor não quis.
E troçou:
-O doutor andou sempre distraído...
Não sabia responder-lhe. A verdade é que não tinha querido nada. Viera por pouco tempo. Percebera depressa que aquilo era um pântano, lama a sujar a beleza da ilha. O hotel, a cair de podre, o bar do Alípio, com o gerador que dava cabo dos ouvidos, os mosquitos e aquela gente, que dizia que ajudava e sugava, grosseira, agressiva. Ainda hoje, passados tantos anos, os vejo: suados, as camisas abertas, a encostarem-se uns aos outros. E, de repente, levantavam-se, metiam-se nos carros, e iam desenfreados, pelas estradas esburacadas, até se cansarem e se abraçarem e rebolarem nas praias. Pensei, sempre, que estavam a mais, que nunca viram nada. Contaram-me coisas, a tentarem envolver-me.
-Na despedida do Bidarra, tiraram-lhe a língua para fora. Estava tudo bêbado! O “macaco” pendurou-se do candeeiro! Felizmente, agarraram-no a tempo...
Eu conhecia o “macaco”: era um mestiço, que a colónia europeia tolerava. Quando nos cruzávamos, eu desviava os olhos: custava-me o seu ressentimento, o desespero de andar na cola dos brancos. Diziam que era filho de um roceiro, que o empregara como capataz.
Quantas vezes fugira daquele mundo infectado e me refugiara na vivenda! Onde a encontrava.
-O doutor já tomou o remédio?
Eram as pílulas para a malária, trazia-mas num tabuleiro leve, quase uma folha, equilibrado nas mãos pequeninas, seguro pelos dedos magros, doirado, com figuras geométricas de madeira preta, e olhava-me, à espera. Depois, girava, a saia de popelina a roçar-lhe os joelhos, os olhos a brilharem, e dizia, contente:
-O doutor esquece sempre....
Agora, a minha cozinheira gorda, de quem nunca esquecerei os olhos vivos, acusava-me.
-O doutor deixou-a sozinha.
Acabada a missão, fui-me embora. Às vezes, lembro-me da Ednilza, no meio das árvores, a dizer-me adeus. E, à noite, oiço os coqueiros, quando o vento sopra.
Tel Aviv, Outubro de 1996
in Um Inverno em Marraquexe
Alerta no PS...
Leio, com algum atraso (é de quarta-feira passada), o divertido e acutilante artigo de Baptista-Bastos, Os Infiltrados do PS, em que noticia a inquietação do deputado socialista Strecht Monteiro por causa de indeterminados infiltrados da direita no seu partido. E eu que julgava que os "infiltrados" -a havê-los...- seriam de esquerda!
O dia de hoje...
Ontem, a propósito da ideia de que não se vem do nada nem ao nada se regressa, interrogava-me acerca da “infelicidade” de não aceitar dogmas religiosos –como se esses fossem óptimo paliativo, quando nos assaltam dúvida e angústia, face à morte. Talvez consolem, mas, se consolam, cortam-nos as asas. E o que estava por trás é o seguinte: incomoda-me, no agnosticismo, um empobrecimento; o agnóstico é, para mim, alguém que reduz a aventura da vida. Alguém que se fecha dentro de um racionalismo tosco. Tão restritivo como qualquer dogma de fé. Leio um excelente ensaio, Dieu face à la science (Le Livre de Poche), de Claude Allègre, professor universitário e geofísico francês de prestígio mundial, ministro da educação no governo do socialista Lionel Jospin. Trata-se de obra muito acessível (e apaixonante) que nos leva ao limite do conhecimento do... desconhecido. Quero dizer: nos aponta as baias, entre as quais vivemos. Entre as quais ainda vivemos. Porque o grande mérito da ciência talvez resida no combate -sempre esclarecedor e sempre incompleto- com o mistério da origem da vida (e, obviamente, do universo) e do destino da vida. Se, realmente, não se volta do nada nem se caminha para o nada –de onde vimos e para onde vamos? O capítulo em que Allègre cita os gregos chama-se A matéria e o espírito; ora aquilo que eu julgo pressentir no agnosticismo (tal qual no dogma) é a redução, o quase apagamento do espírito –onde Deus ou o Diabo, a vertigem do cosmos e a banalidade de combinações casuais, que se multiplicam e transformam, assentam no tal terrível e fascinante mistério, origem da nossa angústia e da nossa paixão.
segunda-feira, 23 de março de 2009
O dia de hoje...
Os gregos, que já sabiam do átomo, concluíam: “nada vem do nada nem regressa ao nada”. Até que ponto isso responde à nossa angústia, diante da morte inevitável? Albert Camus falou do problema, certamente o problema fundamental. Recordo o seu admirável romance “La Peste”, que deslumbrou o adolescente que eu era, ao encontrá-lo. Um dia destes vou reabri-lo; tantos anos passados, a angústia da morte não se apagou, em mim. No entanto, a tal ideia grega de que não chegamos do nada nem ao nada voltamos -continuará a ínfima (e, para nós, imensa) parcela fantástica de vida o seu caminho, por estradas desconhecidas- ajuda-me bastante. Claro que penso estas coisas, (infelizmente?) livre de qualquer dogma religioso. Pergunto: que raio de sentido tem a vida, se a morte a extingue, implacável e irremediavelmente? E respondo-me: a nossa vida é um instante da vida eterna, que enraíza no poço insondável do ontem e continuará no milagre do amanhã, e por aí adiante, connosco e sem nós, que ficaremos pelo caminho. E, talvez, aceitando a lei da vida e tentando colher no instante que nos é concedido, a plenitude, a beleza e o amor –encontremos um sentido: o da alegria. Há uma frase esplêndida de Cristo (e cada um julgará Cristo à sua maneira: Deus feito homem; ou o homem que mais se aproximou de Deus, tal qual Régio insinua, num livro singular, profundo, rico, único na nossa Literatura, “Confissão dum homem religioso”); diz Jesus: “recebeste sem pagar nada, dá sem pedires que te paguem”. O que é que recebemos? A maravilha do mundo. O que poderemos dar? A entrega, sem o mesquinho cálculo dos avarentos mortos-vivos. Não falámos disso, a propósito de “Gran Torino”? À nossa angústia oporemos a força do milagre de estar na vida. Breve o instante que nos cabe? Sim, mas nem por isso menos intenso, imensurável, insondável, formidável, do que outro qualquer.
domingo, 22 de março de 2009
GRAN TORINO
1. Não custa nada apontar as fraquezas de “Gran Torino”. O que talvez custe é suportar a denúncia de Walt Kowalski, o personagem central de “Gran Torino”. Clint Eastwood realizou um filme esquemático, com figuras-tipo e com enredo previsível, por isso, superficial? Em muitas passagens sentimentalonas, a chegar-se ao melodrama? Fugiu-lhe a mão? Patinou? Já disse quanto tinha a dizer? Ver “Gran Torino” desde esse ângulo significa perder a oportunidade de reconsiderar o nosso quotidiano doente, em vias de apodrecimento (ou já apodrecido?). Clint Eastwood quis que o filme fosse directo, essencial e suficientemente dramático para que abalasse, emocionasse e prendesse os espectadores. Julgo que o conseguiu. Oxalá as lágrimas, que as houve de certeza, não tenham sido de crocodilo.
2. A história de Walt Kowalski é a de um homem ferido. Cresceu numa sociedade desumana e absurda que espezinhou, dentro dele, os sentimentos e o atirou para o egoísmo, a recusa do outro e a solidão. Cresceu na sociedade do mercado, da prepotência, da indiferença e do racismo. Kowalski apercebeu-se do logro e isolou-se. Endureceu. Agora, tenta recusar a vida, a bater-lhe à porta: os vizinhos, uma família de imigrantes asiáticos. Deve considerá-los inferiores e recusar o que lhe confiam: aquilo que foi perdendo: humanidade, amizade. O resto, o leitor há-de sabê-lo, quando for ver “Gran Torino”. Mas acrescento o seguinte: Kowalski reconsidera o que o rodeia: um mundo vazio, assente em nada. Compara-o com o que lhe oferecem e decide aceitar e sacrificar tudo. No sacrifício, recupera o sentido da vida. A escolha devolve-lhe a alma.
quarta-feira, 18 de março de 2009
AINDA ALENTEJO
De malas feitas para Marvão, aqui deixo um pista muito importante: a saída do livro de Brito Camacho, Quadros Alentejanos. Publicado em 1925, esse testemunho admirável esperou 83 anos pela reedição! De parabéns está a "heróica" casa editora Bonecos Rebeldes, um nome a fixar. Manuel de Brito Camacho nasceu, em 1862, em Aljustrel . Médico militar, foi, também, antes e durante a Primeira República, político íntegro, jornalista corajoso e capaz, escritor com lugar cativo na Literatura Portuguesa (morreu, em Lisboa, em 1934, obviamente afastado da política...). Cheguei até Brito Camacho, através do muito interessante livro de Aquilino Ribeiro (amigo e admirador do aljustrense), De Meca a Freixo de Espada à Cinta. O seu Alentejo ficou a dever-lhe páginas únicas. Toca a ler um excelente contista esquecido!
O Canto do Galo
“Má altura!...” Olhou os turistas, com as camisas coloridas e os bonés de pala, suados e atarefados. Disparavam as máquinas fotográficas e consultavam os guias. “A indústria do século. Man Rays, um milhão! E de todas as cores: os crustáceos nórdicos, os leitõezinhos alemães, os japoneses amarelos...” Aquela era a Roma bastarda. Pintores e desenhadores negociavam. A meio da praça, vendiam-se bugigangas e cachecóis desportivos. Enzo e Valentina surgiram detrás da fonte de Bernini e acenaram-lhe. Sorriam um sorriso forçado. “Não lhes agrada. Disfarçam mal. E ela a reboque...” Quando chegaram, estendeu o livro.
-O catálogo do Pasmore.
-Em Veneza? No Palácio Grassi?
-De onde é que eu venho?! No Palácio Grassi, pois então! Não merece?
E apontou Valentina.
-Ela que o diga...
-Eu?
-És especialista.
-Que exagero!
-E a Simona? -perguntou Enzo.
-Ficou lá, a meditar...
-Em quê?
Luís abriu os braços:
-Na vida!
Enzo deu uma gargalhada:
-A terrível angústia existencial! Coitadinha... Nós largamos isto para a semana.
Antes, após a febre contestadora e a militância política, escolhiam a Índia, o Nepal e não riam de Simona. Agora, preferiam a Sardenha, a vivenda nos arredores de Alghero. Luís espreitou-o e disse adeus ao senhor Bocacci, que tirava o capacete e arrumava a moto à porta de casa.
-O Bocacci é único! Sobrevive a tudo!
Lembrava-se da mãe, à janela do andar de cima, debruçada sobre as sardinheiras que enfeitavam o peitoril, o cabelo branco e o vestido preto, da mulher morta e dos filhos, que tinham crescido.
-Resiste a tudo, ele e a Navona aguentam estes bárbaros!
-É verdade! –concordou Valentina.
E acrescentou:
-Vem connosco, Luís, a Sardenha é linda!
-Eu sei... Vou para outro sítio...
-Para onde?
-Para longe.
-Eles estão interessados? –interrompeu Enzo.
-Nas cerâmicas? Com certeza.
E explicou que os comerciantes aceitavam comprar as peças da fábrica da Marinha. Valentina começou a folhear o catálogo e Luís mudou de conversa:
-...São borrões de tinta e linhas, manchas de cor e, depois, o branco, que pouco nos oferece ou só o que tem: a ilimitada possibilidade. Resta-nos agarrarmo-nos às cores, a esses pontos e espaços coloridos, ainda que circunscritos, mas, com o peso de quem lá pôs as mãos, síntese ou forma de resistir à confusão... Não achas?
-Acho...
-Eh! Pá! Grande discurso! Devias ter sido tu a escrever o prefácio! -disse Enzo.
-Quanto é que pagam?
-Não sei. Olha que é bastante!
-Estou a brincar. Os meus catálogos são comerciais. O Salvi é que os avalia...
Os negócios herdados eram um pretexto, a maneira de vencer a inquietude que o roía. Ah!, essa não o largava, nem descansava nunca. Tinha compensações: estar ali e ver Valentina, a desculpar-se da casa da Sardenha e a tentar parar a vida. A tarde foi morrendo e o ocre dos prédios ressaltou, doce, repousante. A brisa ligeira, o ponentino, percorreu a praça e aliviou as almas. Alguns turistas deixaram-se ficar nas esplanadas e Luís sentiu-se lesado: “Não percebem nada, cumprem obrigações...” A verdade é que também ele, às vezes, cumpria obrigações. “Que remédio!” –e tentou esquecer, entregando-se à beleza do instante.
Enzo tocou-lhe no braço:
-Há azar? Queres que eu telefone ao Salvi?
Luís abanou a cabeça, não queria, não tinha pressa, era um jogo.
-Deixa-os poisar...
Enzo levantou-se e chamou o criado.
-Vemo-nos em Outubro?
Antecipou-se-lhe:
-Eu pago. Desculpa a maçada...
-És sempre bem vindo!
Não era sincero, queria livrar-se dele.
-Eu fico -disse Valentina.
Enquanto o amigo se afastava, Luís comentou:
-Anda noutra.
Ela emendou:
-Agora, é assim...
-O quê?
-Ele, nós. Modificámo-nos.
-Modificámo-nos?...
Ela começou a falar:
-Não me sinto bem. Sinto-me dentro de uma caixa, que me atira de uma parede contra outra. E o pior é que as paredes me atraem.
Sorriu:
-Estão cobertas de anúncios luminosos... E eu corro atrás deles, mas não entro lá dentro, deixo-me queimar nas luzes. Não agarro nada e não saio da caixa...
Procurou animá-la:
-E se fôssemos ao bar da Roberta?
Atravessaram a praça, evitando olharem-se.
-Tenho vergonha, Luís... Sinto-me desonesta...
-Desonesta em quê?!
-Em tudo.
-Que disparate! És masoquista?
Valentina encolheu os ombros:
-É o que penso.
E, depois, sem convicção:
-Não ligues, sempre fui uma exagerada.
Continuaram até ao Campo dè Fiori, à Roberta, calados, constrangidos. Encostada ao balcão de zinco, ela repetiu:
-Agora, é assim...
Não queria alimentar-lhe a doença –porque ela estava doente. O cansaço que via no seu rosto afligia-o: ela sofria. “De facto, não somos os mesmos!” E a consolá-la, ou a sacudi-la, lembrou-lhe:
-Precisas de descanso e tens a tua Sardenha!
Ela retorquiu, impaciente:
-Não queres perceber? Estás satisfeito? Tu e o Enzo podem estar contentes?
E foi ele quem perdeu o pé e defendeu-se:
-Não te acomodaste?
-Foges, Luís...
-Talvez. E depois?
O Bar enchera-se. Roberta espreitava e servia os clientes, entendia tudo, a sorrir, irónica. Há tantos anos que ele a conhecia! Antigamente, simples, familiar, o Bar era outra coisa. Roma era outra coisa.
Valentina teimou:
-Não os vês? Olha isto! Olha esta cambada. Que procuram? Gastar dinheiro, fingir que são artistas?
-E tu?
-Essa é a desgraça! Espalhei-me... Esqueci-me de querer. Fiquei igual a eles!
-É natural.
Ela engoliu em seco, empalideceu. Os lábios tremiam-lhe. E limitou-se a dizer:
-Sim, a nossa comédia acabou. Resta-nos...
-O que nos resta?
-Conformar-nos. Ninguém se ocupa do mundo!
E riu muito alto, um riso estridente. Os outros olharam e baixaram a voz. “Ri de nós os dois, ri de todos.”
À saída, Valentina apoiou-se em Luís. Bebera demasiado. Uma mulher alta, forte, que se vestia com cuidado e descurara a atitude e se abandonava. Ele tinha dificuldade em conduzi-la. Obrigou-o a parar e apontou a estátua de Giordano Bruno:
-Lembras-te?
E sem esperar resposta:
-Em setenta e cinco, viemos ao enterro do Pasolini! Lembras-te das bandeiras vermelhas? Dos nossos gritos?!
-Lembro. Nesse tempo...
Em 1975 -há mais de vinte anos-, à volta da estátua, juntavam-se vagabundos e marginais: aqueciam-se, no Inverno, com os caixotes que sobravam do mercado da manhã e eles queimavam. O Farnese, o cinema de ensaio, era quase de graça. Nos bares, comia-se e bebia-se pelo preço da chuva. Agora, a paisagem mudara. “Menos séria”. E, depois, riu-se da ideia: o que tinham de sério os vagabundos e os marginais? Ele mesmo e as ilusões de então? Aquela gente, sentada às mesas dos restaurantes enfeitados ao modo da antiga Roma, respirava bem-estar, com um toque de falsa boémia. Não exigiam mais. E por que haveriam de exigir?
-As bandeiras vermelhas? Ora, menina! Isto é bem bonito.
Valentina não ignorou o sarcasmo.
-Nesses anos lutávamos!
E espicaçou-o:
-Combatíamos! Lembras-te?!
Brilhavam-lhe os olhos. “Está indignada...”
-Sim..., lembro-me –disse, a sossegá-la.
E, a certa altura, teve medo: oscilava. Agarrou-a com força.
-Cuidado!
Não perdera a consciência. Indefesa, olhou-o, com humildade canina:
-Estou triste, Luís. Muito triste...
Não quis ouvir e interpelou-a, secamente:
-Vamos para casa?
Pareceu-lhe que se lhe chegava mais e que a boca se oferecia:
-Vamos...
Ele hesitou. O que é que ela julgava? Isso era dantes. E, no meio do embaraço, divertiu-o a ideia de que também isso era dantes: dormirem juntos.
-É muito tarde! Daqui a pouco canta o galo...
Valentina libertou-se, fitou-o, desiludida, refém da hipocrisia que a atormentava, e as palavras que lhe atirou feriram-no, doeram, não podia escapar-lhes:
-O galo já cantou, meu querido!
Baixou os olhos, desarmado:
-Anda...
Ela vivia perto. Quando se despediram, beijou-a na face:
-Boa noite.
Encostou-se à ombreira e esboçou um gesto. Deixou cair o braço. Viu-a acender a luz e subir as escadas. A saia justa prendia-lhe as pernas, o corpo não queria obedecer. E reparou que se transformara e ele com ela. Tinha sido um disparate vir a Roma.
Girou pelos sítios do costume, à espera que as horas passassem. Não lhe apetecia voltar ao hotel. O movimento das pessoas, nas ruas estreitas, confortava-o. Habituara-se àquele ruído, ao fluxo colorido e vário, aos risos, às vozes, e deixava-se envolver. Acalmava. Parou e acendeu um cigarro. Repousava de quê? A sua vida dependia de si, mais ou menos intensa, ele marcava-lhe o ritmo. Não tinha problemas, nem de dinheiro, nem de amor. E, no entanto, fugia, a proteger-se. Não o deixavam gozar a liberdade. Apeteceu-lhe sacudir tudo, perder-se no meio daquele mundo, anónimo. “Desligo o telefone e fico aqui!” Se ficasse, viriam ter com ele ou seria ele a procurá-los. Não sabia governar os dias, ia ao acaso: era um diletante. Dissera-lhe o pai, porque ele se recusara a trabalhar na fábrica e invocara os estudos e a necessidade de viajar. E acrescentara, resignado: “Ao menos vê lá se isso te serve, se vendes alguma coisa...” Não lhe servira para mais nada, fora as experiências e as emoções, que se repetiam e resvalavam para a monotonia. “A insipidez do diletantismo...” A expressão magoava: sempre receara que se cumprisse. No entanto, arriscara. Mas a angústia, que se sobrepusera à insatisfação, roía-o. “Que estupidez!” As contas à vida não batiam certas. E a inquietação arrastava-se, avolumava-se. A agressividade, indomável, aumentava. Raiva surda. Contra quem? Não quis saber. Espreitou à volta, receava que adivinhassem e troçassem dele, clandestino, sem eira, nem beira. Um solteirão? E depois? Não era o único fugitivo! Enzo e Valentina juntavam as malas e iam para a Sardenha. E o que deixavam atrás? A mesma monotonia que o oprimia e que reencontrariam na ilha. A decadência que o chocara, na Navona. Tinham quase chegado a meio do caminho. E pensou: “Haverá outra oportunidade?” A decadência era aquilo: o conformismo, a ambiguidade das relações. “Amigáveis”. Calculadas, consentidas -em quanto toleravam uns nos outros. A paixão morrera. Pasmore, o catálogo, as palavras de Valentina, medidas e convencionais, doseadas, moderadamente excêntricas. Os cuidados de Enzo, sempre atento às oscilações da bolsa. E ele era melhor? Não era. A sua vantagem residia no dinheiro: nascera rico. Nunca perdera a estabilidade. Que arriscara, realmente? Nada. E o que chamava a fuga de Enzo e de Valentina diferia da sua, apenas, nisso: agarravam-se ao conforto de que ele usufruíra. O dinheiro chegara-lhe, sempre. À frente, recortou-se a porta do Hotel, o átrio iluminado.
***
No quarto, afastou a cortina da janela e olhou as estrelas, que piscavam, as sombras dos telhados e dos campanários, as linhas suaves da Roma que traíra. “É tão bonito!”, exclamou, deslumbrado. A ferida abriu-se e a revolta soltou-se de onde a prendera. Subiu-lhe um calafrio: “A vida não merece os tratos que lhe damos!”
Serra de São Mamede, Maio de 2005
-O catálogo do Pasmore.
-Em Veneza? No Palácio Grassi?
-De onde é que eu venho?! No Palácio Grassi, pois então! Não merece?
E apontou Valentina.
-Ela que o diga...
-Eu?
-És especialista.
-Que exagero!
-E a Simona? -perguntou Enzo.
-Ficou lá, a meditar...
-Em quê?
Luís abriu os braços:
-Na vida!
Enzo deu uma gargalhada:
-A terrível angústia existencial! Coitadinha... Nós largamos isto para a semana.
Antes, após a febre contestadora e a militância política, escolhiam a Índia, o Nepal e não riam de Simona. Agora, preferiam a Sardenha, a vivenda nos arredores de Alghero. Luís espreitou-o e disse adeus ao senhor Bocacci, que tirava o capacete e arrumava a moto à porta de casa.
-O Bocacci é único! Sobrevive a tudo!
Lembrava-se da mãe, à janela do andar de cima, debruçada sobre as sardinheiras que enfeitavam o peitoril, o cabelo branco e o vestido preto, da mulher morta e dos filhos, que tinham crescido.
-Resiste a tudo, ele e a Navona aguentam estes bárbaros!
-É verdade! –concordou Valentina.
E acrescentou:
-Vem connosco, Luís, a Sardenha é linda!
-Eu sei... Vou para outro sítio...
-Para onde?
-Para longe.
-Eles estão interessados? –interrompeu Enzo.
-Nas cerâmicas? Com certeza.
E explicou que os comerciantes aceitavam comprar as peças da fábrica da Marinha. Valentina começou a folhear o catálogo e Luís mudou de conversa:
-...São borrões de tinta e linhas, manchas de cor e, depois, o branco, que pouco nos oferece ou só o que tem: a ilimitada possibilidade. Resta-nos agarrarmo-nos às cores, a esses pontos e espaços coloridos, ainda que circunscritos, mas, com o peso de quem lá pôs as mãos, síntese ou forma de resistir à confusão... Não achas?
-Acho...
-Eh! Pá! Grande discurso! Devias ter sido tu a escrever o prefácio! -disse Enzo.
-Quanto é que pagam?
-Não sei. Olha que é bastante!
-Estou a brincar. Os meus catálogos são comerciais. O Salvi é que os avalia...
Os negócios herdados eram um pretexto, a maneira de vencer a inquietude que o roía. Ah!, essa não o largava, nem descansava nunca. Tinha compensações: estar ali e ver Valentina, a desculpar-se da casa da Sardenha e a tentar parar a vida. A tarde foi morrendo e o ocre dos prédios ressaltou, doce, repousante. A brisa ligeira, o ponentino, percorreu a praça e aliviou as almas. Alguns turistas deixaram-se ficar nas esplanadas e Luís sentiu-se lesado: “Não percebem nada, cumprem obrigações...” A verdade é que também ele, às vezes, cumpria obrigações. “Que remédio!” –e tentou esquecer, entregando-se à beleza do instante.
Enzo tocou-lhe no braço:
-Há azar? Queres que eu telefone ao Salvi?
Luís abanou a cabeça, não queria, não tinha pressa, era um jogo.
-Deixa-os poisar...
Enzo levantou-se e chamou o criado.
-Vemo-nos em Outubro?
Antecipou-se-lhe:
-Eu pago. Desculpa a maçada...
-És sempre bem vindo!
Não era sincero, queria livrar-se dele.
-Eu fico -disse Valentina.
Enquanto o amigo se afastava, Luís comentou:
-Anda noutra.
Ela emendou:
-Agora, é assim...
-O quê?
-Ele, nós. Modificámo-nos.
-Modificámo-nos?...
Ela começou a falar:
-Não me sinto bem. Sinto-me dentro de uma caixa, que me atira de uma parede contra outra. E o pior é que as paredes me atraem.
Sorriu:
-Estão cobertas de anúncios luminosos... E eu corro atrás deles, mas não entro lá dentro, deixo-me queimar nas luzes. Não agarro nada e não saio da caixa...
Procurou animá-la:
-E se fôssemos ao bar da Roberta?
Atravessaram a praça, evitando olharem-se.
-Tenho vergonha, Luís... Sinto-me desonesta...
-Desonesta em quê?!
-Em tudo.
-Que disparate! És masoquista?
Valentina encolheu os ombros:
-É o que penso.
E, depois, sem convicção:
-Não ligues, sempre fui uma exagerada.
Continuaram até ao Campo dè Fiori, à Roberta, calados, constrangidos. Encostada ao balcão de zinco, ela repetiu:
-Agora, é assim...
Não queria alimentar-lhe a doença –porque ela estava doente. O cansaço que via no seu rosto afligia-o: ela sofria. “De facto, não somos os mesmos!” E a consolá-la, ou a sacudi-la, lembrou-lhe:
-Precisas de descanso e tens a tua Sardenha!
Ela retorquiu, impaciente:
-Não queres perceber? Estás satisfeito? Tu e o Enzo podem estar contentes?
E foi ele quem perdeu o pé e defendeu-se:
-Não te acomodaste?
-Foges, Luís...
-Talvez. E depois?
O Bar enchera-se. Roberta espreitava e servia os clientes, entendia tudo, a sorrir, irónica. Há tantos anos que ele a conhecia! Antigamente, simples, familiar, o Bar era outra coisa. Roma era outra coisa.
Valentina teimou:
-Não os vês? Olha isto! Olha esta cambada. Que procuram? Gastar dinheiro, fingir que são artistas?
-E tu?
-Essa é a desgraça! Espalhei-me... Esqueci-me de querer. Fiquei igual a eles!
-É natural.
Ela engoliu em seco, empalideceu. Os lábios tremiam-lhe. E limitou-se a dizer:
-Sim, a nossa comédia acabou. Resta-nos...
-O que nos resta?
-Conformar-nos. Ninguém se ocupa do mundo!
E riu muito alto, um riso estridente. Os outros olharam e baixaram a voz. “Ri de nós os dois, ri de todos.”
À saída, Valentina apoiou-se em Luís. Bebera demasiado. Uma mulher alta, forte, que se vestia com cuidado e descurara a atitude e se abandonava. Ele tinha dificuldade em conduzi-la. Obrigou-o a parar e apontou a estátua de Giordano Bruno:
-Lembras-te?
E sem esperar resposta:
-Em setenta e cinco, viemos ao enterro do Pasolini! Lembras-te das bandeiras vermelhas? Dos nossos gritos?!
-Lembro. Nesse tempo...
Em 1975 -há mais de vinte anos-, à volta da estátua, juntavam-se vagabundos e marginais: aqueciam-se, no Inverno, com os caixotes que sobravam do mercado da manhã e eles queimavam. O Farnese, o cinema de ensaio, era quase de graça. Nos bares, comia-se e bebia-se pelo preço da chuva. Agora, a paisagem mudara. “Menos séria”. E, depois, riu-se da ideia: o que tinham de sério os vagabundos e os marginais? Ele mesmo e as ilusões de então? Aquela gente, sentada às mesas dos restaurantes enfeitados ao modo da antiga Roma, respirava bem-estar, com um toque de falsa boémia. Não exigiam mais. E por que haveriam de exigir?
-As bandeiras vermelhas? Ora, menina! Isto é bem bonito.
Valentina não ignorou o sarcasmo.
-Nesses anos lutávamos!
E espicaçou-o:
-Combatíamos! Lembras-te?!
Brilhavam-lhe os olhos. “Está indignada...”
-Sim..., lembro-me –disse, a sossegá-la.
E, a certa altura, teve medo: oscilava. Agarrou-a com força.
-Cuidado!
Não perdera a consciência. Indefesa, olhou-o, com humildade canina:
-Estou triste, Luís. Muito triste...
Não quis ouvir e interpelou-a, secamente:
-Vamos para casa?
Pareceu-lhe que se lhe chegava mais e que a boca se oferecia:
-Vamos...
Ele hesitou. O que é que ela julgava? Isso era dantes. E, no meio do embaraço, divertiu-o a ideia de que também isso era dantes: dormirem juntos.
-É muito tarde! Daqui a pouco canta o galo...
Valentina libertou-se, fitou-o, desiludida, refém da hipocrisia que a atormentava, e as palavras que lhe atirou feriram-no, doeram, não podia escapar-lhes:
-O galo já cantou, meu querido!
Baixou os olhos, desarmado:
-Anda...
Ela vivia perto. Quando se despediram, beijou-a na face:
-Boa noite.
Encostou-se à ombreira e esboçou um gesto. Deixou cair o braço. Viu-a acender a luz e subir as escadas. A saia justa prendia-lhe as pernas, o corpo não queria obedecer. E reparou que se transformara e ele com ela. Tinha sido um disparate vir a Roma.
Girou pelos sítios do costume, à espera que as horas passassem. Não lhe apetecia voltar ao hotel. O movimento das pessoas, nas ruas estreitas, confortava-o. Habituara-se àquele ruído, ao fluxo colorido e vário, aos risos, às vozes, e deixava-se envolver. Acalmava. Parou e acendeu um cigarro. Repousava de quê? A sua vida dependia de si, mais ou menos intensa, ele marcava-lhe o ritmo. Não tinha problemas, nem de dinheiro, nem de amor. E, no entanto, fugia, a proteger-se. Não o deixavam gozar a liberdade. Apeteceu-lhe sacudir tudo, perder-se no meio daquele mundo, anónimo. “Desligo o telefone e fico aqui!” Se ficasse, viriam ter com ele ou seria ele a procurá-los. Não sabia governar os dias, ia ao acaso: era um diletante. Dissera-lhe o pai, porque ele se recusara a trabalhar na fábrica e invocara os estudos e a necessidade de viajar. E acrescentara, resignado: “Ao menos vê lá se isso te serve, se vendes alguma coisa...” Não lhe servira para mais nada, fora as experiências e as emoções, que se repetiam e resvalavam para a monotonia. “A insipidez do diletantismo...” A expressão magoava: sempre receara que se cumprisse. No entanto, arriscara. Mas a angústia, que se sobrepusera à insatisfação, roía-o. “Que estupidez!” As contas à vida não batiam certas. E a inquietação arrastava-se, avolumava-se. A agressividade, indomável, aumentava. Raiva surda. Contra quem? Não quis saber. Espreitou à volta, receava que adivinhassem e troçassem dele, clandestino, sem eira, nem beira. Um solteirão? E depois? Não era o único fugitivo! Enzo e Valentina juntavam as malas e iam para a Sardenha. E o que deixavam atrás? A mesma monotonia que o oprimia e que reencontrariam na ilha. A decadência que o chocara, na Navona. Tinham quase chegado a meio do caminho. E pensou: “Haverá outra oportunidade?” A decadência era aquilo: o conformismo, a ambiguidade das relações. “Amigáveis”. Calculadas, consentidas -em quanto toleravam uns nos outros. A paixão morrera. Pasmore, o catálogo, as palavras de Valentina, medidas e convencionais, doseadas, moderadamente excêntricas. Os cuidados de Enzo, sempre atento às oscilações da bolsa. E ele era melhor? Não era. A sua vantagem residia no dinheiro: nascera rico. Nunca perdera a estabilidade. Que arriscara, realmente? Nada. E o que chamava a fuga de Enzo e de Valentina diferia da sua, apenas, nisso: agarravam-se ao conforto de que ele usufruíra. O dinheiro chegara-lhe, sempre. À frente, recortou-se a porta do Hotel, o átrio iluminado.
***
No quarto, afastou a cortina da janela e olhou as estrelas, que piscavam, as sombras dos telhados e dos campanários, as linhas suaves da Roma que traíra. “É tão bonito!”, exclamou, deslumbrado. A ferida abriu-se e a revolta soltou-se de onde a prendera. Subiu-lhe um calafrio: “A vida não merece os tratos que lhe damos!”
Serra de São Mamede, Maio de 2005
O dia de hoje...
Ainda bem que o ministro Vieira da Silva, no seminário sobre Crise, Justiça Social e Finanças Públicas, recusou a diminuição de salários. Recusará, também, congelar salários (aliás, praticamente, já a 30 graus abaixo de zero...)? Socialista, defensor de um estado social, é natural que o tenha dito (mas, hoje e depois de quase 4 anos, infelizmente, muitos eleitores duvidam do socialismo deste governo socialista –e têm as suas razões...). É natural que o sr. Vítor Bento, presidente da Sociedade Interbancária de Serviços, afirme que a baixa dos salários será inevitável, a bem ou a mal –ele representa a banca. Baixa de salários a bem, diz o sr. Bento, pela via neo-liberal da concertação social (qual?); baixa de salários a mal, pela via liberal do desemprego. O sr. Bento fala de duas vias a rejeitar urgentemente: a liberalista e a a neo-liberalista; e tem na cabeça a banca. Ilumina-o uma concepção esquisita da justiça social... Eu tenho na cabeça o cidadão que foi espoliado pelas vias que o sr. Bento refere e a banca que explorou o cidadão, usando-o e depenando-o, a seu belo prazer, ao permitir todas as vias de especulação, ao facilitar créditos que davam juros chorudos mas arruinaram o cidadão comum. A concertação social não é a defesa dos plutocratas que nos chuparam o tutano –nem a recomposição de um sistema social falido. Há que mudar o sistema, reforçar o Estado, defender os cidadãos. Não há que salvar os responsáveis pela crise brutal que nos atirou para a miséria. O tempo de assobiar para o lado e atirar areia para os olhos de quem se queixa -acabou.
Vou ao Alentejo recarregar as baterias e só regresso para a semana. A meta é Marvão, o ninho de águias onde viveu algum tempo Branquinho da Fonseca, o autor de obras-primas: O Barão, Rio Turvo; e de um fabuloso livro de contos, Caminhos Magnéticos. Encontramo-los em alfarrabistas. Poucos os grandes escritores que se reeditam... Terei, ao lado, a cidade de Portalegre e a memória de José Régio. E, em Castelo de Vide, a lembrança de Francisco Bugalho... Mas terei –coisa importantíssima!- a beleza do Alentejo e as maravilhas da sua cozinha e do seu vinho. Até já ( o tempo voa)!
terça-feira, 17 de março de 2009
Beleza Berbere
1. Na costa atlântica de Marrocos, a sul, existe uma cidade que se chamou, em tempos, Mogador -como a nossa transmontana Mogadouro. Hoje, chama-se Essaouira. É um exemplo de criadora convivência humana, porém em risco. A extraordinária harmonia do lugar arrasta a invasão crescente do turismo, sempre deplorável, já deplorável: os visitantes apresentam-se com a falta de jeito e a grosseria de elefantes aos pulos em lojas de vidros. E, vê-los, recorda-me as páginas, escritas há setenta anos, pelos irmãos Jérome e Jacques Tharaud, que descrevem a deselegância dos colonos franceses -era durante o “protectorado”-, visitas nas requintadas casas dos “fassi”, dos habitantes de Fez. A nobreza e a intrínseca dignidade marroquinas constituem um valor inestimável. Perante elas, o eterno complexado europeu, vítima do visceral complexo de superioridade (complexo sempre mais de insegurança), o europeu eternamente colonialista, e que nenhum tempo curará, revela, agora, nos turistas, a incultura, o analfabetismo, a inferioridade de porte. Quantos agridem Essaouira -e são muitos-, exibem a mesma doença. Vêm de um continente estafado, assustado, que reage, violentamente, intolerante e em pânico, a quanto lhe parece diverso, novo, original; fogem-lhe e não reparam que macaqueiam os costumes alheios, perdida a individualidade, gasta na venda, por lentilhas, na aparência e no desbarate do próprio espírito, da própria interioridade. Vestem ridículos uniformes de turistas e passam ao lado de Mogador, ceguinhos, porque a ignoram -mas ferem-na.
2. Isso é outra história -o fascínio de Essaouira é o que nos interessa. Ponto de encontro de duas tribos, a Chiadma, do norte, árabe, e a Haha, do sul, berbere, teve-nos por lá, durante alguns anos. Do Castelo Real, mandado construir, em 1506, por Manuel I e capitaneado por Diogo de Azambuja, resta a “skala”, baluarte da cidade amuralhada, que o francês Théodore Cornut desenhou, no século XVIII, a pedido do sultão Mohammed ben Abdallah. Os árabes apelidaram-na de “Suêra” e os berberes, os “amazighen” (“homens livres”), baptizaram-na Mogador: “lugar do vento”.
3. Explica-se de outras maneiras o termo berbere (de “migdol”, torre, ou tomado ao marabuto Sidi Mgdoul, patrono de Essaouira), mas a de movimento alvorotado, agitação, mudança, ajusta-se ao mundo aberto, encruzilhada de raças (além de árabes e berberes, marcaram-na judeus e escravos negros), cultor do diálogo, naturalmente belo e orgulhoso de o ser -fidalgamente livre, palco da beleza berbere. Terra que dá vontade de viver.
O caso dos canibais
Eça de Queirós fartou-se de chamar as atenções para o seguinte: apesar de Portugal ser pequenino, cabemos cá todos. Pensava o homem da Póvoa do Varzim ou de Vila do Conde (isso continua incerto e a discutir-se) nos literatos lusos, sempre à cotovelada e em bico dos pés, ansiosos de que os vejam e valorem. A esta ânsia sucedem-se o sufocação e o canibalismo. A saber: os nossos literatos gananciosos silenciam ou riscam do quadro os ‘adversários”. Não falam de certos vivos e muito menos falam de certos mortos (a não ser que os mortos lhes sirvam para teses de mestrado ou doutoramento..., ou para ‘ensaios’ que lhes engordem o CV...). Por isso escritores como João Gaspar Simões desapareceram da vista. João Gaspar Simões é autor de duas biografias fundamentais e as melhores que por cá se escreveram acerca dos biografados: precisamente, o nosso abrasador Eça de Queirós e o nosso poeta da tragédia com 5 máscaras, Fernando Pessoa. Publicou estudos sobre Júlio Dinis, Garrett... Escreveu um livro que é um ‘manual’ imprescindível e ao qual recorro, constantemente: Perspectiva Histórica da Ficção Portuguesa (Dom Quixote). Exerceu a crítica literária -e fica, a meu ver (mas tudo se pode e deve discutir), como o melhor crítico da nossa Literatura- durante 60 anos (há vários livros que reúnem trabalhos seus... livros esgotados e não reeditados). Tem alguns dos mais importantes romances do nosso século XX (obviamente, esgotados), Elói, Internato, O Marido Fiel; novelas admiráveis, de entre as quais assinalo Eduarda (faz parte do livro A Unha Quebrada); deixou peças de teatro apreciáveis, livros de ensaios interessantíssimos. Ainda o seguinte: Retratos de Poetas que Conheci é um precioso testemunho que JGS nos legou e onde evoca, magistralmente, Afonso Lopes Vieira, Afonso Duarte, Pessoa, Almada Negreiros, Luís de Montalvor, Raul Leal, Botto, Mário Saa, António Ferro, Carlos Queirós, Francisco Bugalho, Alexandre de Aragão, Edmundo de Bettencourt e Irene Lisboa. Esgotado, resta procurar nos alfarrabistas e nas livrarias virtuais (como muito bem lembrou Manuel A. Domingos). Viraram-lhe as costas os ‘génios’ da nossa praça (a velha anedota, tão actual!: ‘só génios eramos cinco”...).
Noel Teles (Manuel Teles de Carvalho) foi um homem que publicou pouco, sempre sobre o Alentejo, e escreveu o tal belo romance de que já falei: Terra Campa (1947) –esgotado há muitos anos e à espera de que os herdeiros se lembrem de promover a reedição.
Edmundo de Bettencourt, mais lembrado (Herberto Helder dedicou-lhe um excelente ensaio), é um dos poetas superiores que se revelaram nas páginas da fabulosa revista presença, a grande revista de artes e letras do nosso século XX (há uma preciosa edição facsimilada de todos os números de presença, editada por ‘Contexto’). Obras de Bettencourt? Esgotadas e não reeditadas.
O dia de hoje...
Fui ver o filme de Clint Eastwood, Gran Torino. Saí do cinema melhor do que entrara. Alguém me lavara a alma. Agora, eu olhava os outros de outra maneira: com simpatia e compreensão. Alguém me dissera que a amizade, a solidariedade e o sacrifício são a coisa mais importante da vida. Ah, sim, o filme tem "facilidades": é previsível, demasiado transparente, etc. Mas serão facilidades? Ou queria Clint Eastwood que todos entendessem a sua mensagem e se emocionassem com ela? A sentissem dentro? Emocionei-me, lacrimejei -e não me envergonho. Abençoadas lágrimas! Estou farto do deserto e da secura dos dias. Esta sociedade que fizeram e em que consentimos -lucro, coisas, consumo, egoísmo, indiferença, canibalismo- é uma merda. E sufoca-nos. Desumaniza-nos. Transforma-nos em objectos ocos. Basta! Quero uma terra onde bom dia queira, realmente, dizer bom dia (alguém se lembra d'O Millagre de Milão, de Vittorio de Sica?). É tempo de mudar.
segunda-feira, 16 de março de 2009
Graça Pina de Morais
O comentador/ amigo Manuel A. Domingos sugere que procuremos a Graça Pina de Morais nas livrarias virtuais, a Letra Livre, por exemplo. Boa ideia! Bem haja pela sua ajuda! Mas é um crime que certos escritores continuem a não ser reeditados: GPMorais, Irene Lisboa, Gaspar Simões, Afonso Duarte, Edmundo de Bettencourt, Noel Teles... Não acha, Manuel A. Domingos?
Malcolm Lowry
Não falei deste autor por acaso... Aliás já toda a gente percebeu isso. É que Debaixo do Vulcão é uma das obras-primas do romance contemporâneo. Obviamente, não se trata de um best-seller, nem se vende nas papelarias de aeroporto, nem tem cenas pornográficas, nem trata nenhum tema que ande por aí nas primeiras páginas dos jornais ou das revistas ou faça as delícias dos telejornais caseiros e arrepiantes. Fala de amor e morte. E diz, por exemplo: 'Que há, na vida, para além do ser que adoramos e da vida que podemos construir com ele?'; ou: 'que é um homem senão uma alminha que mantém de pé um cadáver?'; ou: 'o pior de tudo é sentirmos a alma morrer'; ou: 'ele próprio estava no inferno'. E, ao cabo da sua viagem, da viagem do Consul (ele-próprio-o-herói de Debaixo do Vulcão), em que viveu o mal e o bem, o amor e o desencanto, a sede de absoluto e o abismo do álcool, nostalgia do paraíso perdido, através de um México mítico, empolgante, verdadeiro, aberto, generoso, para encontrar a morte, a misteriosa e fascinante e absurda morte, deixa estas palavras lidas algures, naquele deserto cheio de paixão: Le gusta este jardin que es suyo? Evite que sus hijos lo destruyen!
Será fácil encontrar o livro: a editora Relógio d'Água lançou-o há poucos meses)
A Cultura também vem com os imigrantes
http://www.publico.clix.pt/videos/?v=20090316104225&z=1
Não resisto, com devida vénia, a copiar esta magnífica e oportuníssima notícia do jornal Público. Estão a ver? Os imigrantes trazem coisas muito boas! E ainda bem que se fala disso, não vá a xenofobia das direitas e das ignorâncias estragar a nossa secular hospitalidade!
Não resisto, com devida vénia, a copiar esta magnífica e oportuníssima notícia do jornal Público. Estão a ver? Os imigrantes trazem coisas muito boas! E ainda bem que se fala disso, não vá a xenofobia das direitas e das ignorâncias estragar a nossa secular hospitalidade!
Graça Pina de Morais&Cia
Diz uma comentadora/amiga do blog que não conseguiu encontrar o romance de Graça Pina de Morais, A Origem. E não encontrará, apostava, outro livro seu, admirável: Jerónimo e Eulália... É a lei imposta pela ignorância e o mercado (que não é ignorante e se aproveita da ignorância e a estimula). Os livros que se editam são aqueles cuja venda está, à partida, assegurada: superficiais, escandalosos, com o q.s. de pornografia. No fim e ao cabo, os livros que satisfazem o mínimo dos mínimos de exigência cultural e... alimentam essa mediocridade e incultura. Já ouvi tolos/irresponsáveis valorizarem autores citando... o número dos livros que vendem... Graça Pina de Morais, um dos maiores escritores portugueses do nosso tempo é uma das muitas vítimas dessa cabala. Quem encontra os livros de Irene Lisboa? Quem já leu o grande romance de Régio, A Velha Casa? E... quem conhece o maravilhoso poeta Afonso Duarte? Haverá, tem de haver!, uma alma caridosa, um/uma professor/professora que fale aos alunos dessas figuras (e da tantas outras) e não deixe os jovens (comece, pois pelo princípio...) entregues à bicharada! Salvando os jovens, salva-se um país que anda muito, muito, muito abandonado -e há muito, muito, muito tempo! Salva-se um povo bom, que não merecia o que lhe têm feito!
Um Ministério "iluminado"
Está explicado o carácter "iluminado" das actuais políticas educativas. O Ministério de Maria de Lurdes Rodrigues registou como IPSS, em 11 de Outubro do ano passado, a Fundação Casa Índigo, destinada ao desenvolvimento de actividades de apoio a "crianças índigo, cristal, violeta, crianças esmeralda, diamante, douradas" e ainda a crianças "super psíquicas" e jovens "que se identifiquem com todas e cada uma destas energias do Novo Tempo". A estimável IPSS "do" Ministério da Educação promove, através de aulas de Geometria Sagrada e Auto-Consciência Índigo, além de um muito apreciado Seminário de Auras, o Curso das Sete Chamas Sagradas, "que habilita pessoas comuns [e a ministra há-de decerto ser, como todos somos, uma 'pessoa comum'] a manipular o elemento do Fogo Divino" e ensina "a conhecer e entender a espiritualidade e as energias que nos cercam. Com esse conhecimento desaparecem as dúvidas e inseguranças sobre os Mistérios de Deus". Sem "dúvidas e inseguranças" sobre os Mistérios de Deus, como poderia a ministra ter dúvidas acerca de coisas terra-a-terra como a Educação e os professores?
MANUEL PINA, in Jornal de Notícias, 16/03/2009
O dia de hoje...
O milagre do dia! Recuperei os comentários! Vou para a vida muito mais bem disposto! André Gide dizia -e com razão!- que nenhuma palavra se perde... ela sabe, sempre, encontrar o seu caminho...
O dia de hoje...
O dia começou muito mal... Perdi comentários, que enriqueceriam a nossa conversa! Agradeço os comentários... que não consegui publicar. Todos são lidos por mim, antes de permitir a sua publicação, a fim de evitar excessos inúteis (deselegantes) de linguagem. Todos os que li hoje eram extremamente correctos e interessantes... mas a minha falta de experiência no uso destas coisas apagou-os... Desculpem, amigos e leitores generosos! Vou tentar recuperá-los... mas será difícil... Um grande abraço e... até breve!
domingo, 15 de março de 2009
Alentejo Esquecido
1. A identidade de uma terra é a sua Cultura. Já o sublinhei (inutilmente?), a propósito do estranho caso do Sr. Casimiro e da sua Papelaria em morte cataléptica (oxalá!), na cidade da Guarda. O Alentejo, com as Beiras e Trás-os-Montes, é um dos sobreviventes do Portugal que foi. Nunca lhe faltou quem o cantasse. Uma dessas vozes trago, hoje, aqui: Noel Teles e o romance “Terra Campa”. Data de 1947 (de há 62 anos). Roger Martin du Gard, o autor da saga admirável “Les Thibault”, distinguia “a Arte que é actual e a que é humana”, realçando a segunda, por eterna. É o caso de “Terra Campa”. Reli o romance, deslumbrado, os olhos a abrirem-se-me para uma realidade empolgante. Noel Teles deixou um romance ímpar –e é isso que eu quero saudar e recordar. Na garra, na força da linguagem, na poesia, na capacidade de fixar e transmitir a paixão e drama de personagens em carne viva –não deve nada a ninguém. O Alentejo e a nossa Cultura é que lhe devem o haver ele roubado à erosão do tempo um mundo fabuloso: dos ganhões e malteses, dos ratinhos, heróis anónimos da terrível luta pela vida, em pleno latifúndio.
2. Há coisas imperdoáveis e que acontecem nos nossos dias do descartável e do consumo renovável: suicidar-se o homem, virando as costas à raiz. Entregando-se à incultura. Exibindo a prosápia imbecil de ignorar o passado. Nada se constrói sobre o nada, senão o vazio. Eis o que explica que esteja esquecida “Terra Campa”, jóia romanesca, e enterrada, perdida a sua seiva fantástica. No entanto, leitor, basta abrir o livro: ele tratará de si. Mas onde pára? Esqueceram-no? É urgente reeditá-lo. Oxalá os herdeiros de Noel Teles me oiçam...
sábado, 14 de março de 2009
O dia de hoje...
A melhor maneira de começar o dia de hoje, 15 de Março (gosto dos números ímpares...) é a ler este extraordinário poema de José Régio. Faz bem à alma, em tempo de massificação, de agonia do Indivíduo, em que tentam (e às vezes, vezes demais, conseguem) meter na "ordem", formatar, vulgarizar o Homem, afinal, singular, único, e impedir que ele seja... ele próprio, na sua sagrada diferença e originalidade...
Cântico negro
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse.
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe.
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
Sei que não vou por aí!
Cântico negro
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse.
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe.
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
Sei que não vou por aí!
O caso do avestruz que fica nu
Todos conhecem a história do avestruz que mete a cabeça na areia para não ver a realidade quando lhe não convém. Ignorar a importância da manifestação de ontem, organizada pela CGTP, rivaliza com a obtusidade mental da ave referida. E, se fosse, apenas, um caso de idiotia, ainda vá que não vá –a ignorância perdoa-se e pode corrigir-se. Mas, se essa indiferença, diante o protesto de duzentas mil pessoas, esconder prepotência, teimosia, sede insaciável de poder –o caso muda de figura. Trata-se do desrespeito por cidadãos que protestam contra o que acham mau governo e representa a recusa de reconhecer a sua (deles, cidadãos) existência cívica. Mostra a nudez dos reis que assobiam para o lado, enquanto a casa arde –isto é: desmascara a hipocrisia criminosa de quantos se marimbam para a crise que nos atenaza e vai aos bolsos e à barriga. Por detrás da manifestação estava um partido? Estavam mais do que um, certamente –o que é natural, porque é natural que os cidadãos optem por este ou por aquele partido. E estavam muitas pessoas -milhares, provavelmente- que não têm partido mas têm medo do desemprego e da fome.
sexta-feira, 13 de março de 2009
O dia de hoje...
Algures, na velha Atenas e há mais de dois mil anos, recebeu o filósofo Sócrates, condenado pelo governo da cidade e a poucas horas de beber o cálice de cicuta que o vitimaria, um tocador de harpa. Ouviu a sua música e comentou:
-Que linda, que bela ária... Ensinas-me a tocá-la?
Surpreendido, um dos amigos que o rodeavam, perguntou:
-Para quê, Sócrates? Por que queres aprender, se vais morrer daqui a pouco?
-Para quê? Porque não quero morrer sem saber tocar essa peça maravilhosa...
A fábula diz o que escreveu Sebastião da Gama: “Pelo Sonho (pelo Espírito) é que vamos”
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