A história fabulosa, em todo o sentido da palavra
Quem era Mariana?
Nasceu a 22 de Abril de
1640, em Beja, filha segunda de Leonor Mendes, do mesmo lugar, e Francisco da
Costa Alcoforado, originário da Vila de Cortiços, comarca de Torre de Moncorvo,
Trás-os-Montes.
Três anos depois, nasce
o irmão Baltazar (1645) *** o mais velho de três filhos dos sete -três rapazes
e quatro raparigas- de Francisco e
Leonor. Baltazar teve um papel relevante no drama de Mariana, como veremos
adiante.
Essa, aos 11 anos,
entra para o Real Convento de Nossa
Senhora da Conceição, em Beja, e, aos 16, professa. Ali viverá até à morte,
a 28 de Julho de 1723, com 83 anos. Da sua vida pessoal, quase só nos resta
aquilo que sucedeu em 1667: um breve e tumultuoso encontro.
Noel Bouton
(1636-1715), conde de Saint-Léger, futuro Marquês de Chamilly, era capitão de
cavalaria, às ordens do conde de Schomberg, Frederic Armand von Schomberg, por
sua vez, às ordens do rei de França, Luís XIV, que o mandara comandar um corpo
de exército francês, destinado a apoiar Portugal na demorada Guerra da
Restauração. Ao que sei Noel era o mais velho de seis irmãos: além dele, outro
também militar, um frade e três irmãs freiras.
Chega Noel Bouton a
Beja em 1666 e junta-se a um grupo de pândegos sem regras, amigos, camaradas,
entre os quais… Baltazar Alcoforado, depressa seu amigo íntimo que reforçou o amor de Noel por Mariana.
A velha Pax Julia romana, destacava-se, ainda,
no século XVII. Raul Proença, no volume do Guia
de Portugal dedicado ao Alentejo, editado em 1927, sublinha que “nos sítios de Esquível e do Ulmo os palácios
brasonados, as janelas quinhentistas e as rótulas de gelosias evocam a
lembrança da vetusta cidade rural que
foi assento de príncipes, cunhou
moeda, teve dentro dos seus muros o mais rico convento do Alentejo, e viu
passar nas suas calçadas as cavalgadas brilhantes de Briquemault e Chamilly [Noel
Buton]”. Mas Beja não era a mesma nem o tal Convento muito rico, antes pelo
contrário, ao aparecer o capitão de cavalaria, o fidalgo francês Noel Bouton.
Que levou Mariana (“a grande amorosa Mariana Alcoforado, glória
eterna do sentimento português”, escreve Brandão no texto já referido) e
Noel a conhecerem-se?
Janela da Porta de Mértola, no Convento da Conceição
Aquilo que viria a
ocupar lugar vitalício na Literatura aconteceu do modo mais natural:
descobriram-se quando ela assomou à janela do convento sua preferida, a da
Porta de Mértola, e ele surgiu, a exibir-se num cavalo de raça, e a viu.
Como se apaixonaram?
Uma mulher de 26 ou 27
anos, inexperiente, segregada, longe do mundo desde os 11 anos, viu um oficial
garboso, um estrangeiro, um homem diferente.
Noel, no marasmo da
província portuguesa, tão pobre comparada ao esplendor de Paris, de Versailles,
topa uma beleza que o deslumbra –e ela própria, numa das suas cinco cartas
enviadas para França, lhe recorda: “Encontrará,
talvez, agora, uma vasta variedade de belezas (então [quando se amavam, em
Beja], disseste- me que eu era
invulgarmente bela)”.
Mais terra à terra: a
monotonia do convento e o quotidiano insípido da pequena cidade soltam, deitam
fogo a duas almas ansiosas por que alguma
coisa aconteça. Era a aventura, que Mariana buscava e Noel cultivava.
O cavaleiro inesperado
Mariana deu-se, Noel divertiu-se.
Mero divertimento?
De certo que não: Mariana tomou posse de Noel, prendeu-o por dentro.
Para o aristocrata
rico, frequentador da corte de Versailles, habituado a amores que não passam de
jogos –Mariana revela-se uma força, que o assusta.
Não calculara, fria e amoralmente
mais um jogo -e lembro o amante da novela de Irene Lisboa, a crueldade gratuita
a torturar Helena, ele a gozar esse poder-, não, isso não, Noel entusiasmara-se
com a brincadeira.
Mas, a dado momento, a
brincadeira, destinada a preencher o vazio de Beja, que prostitutas e álcool,
divididos com Baltazar, amigo e proxeneta, não compensavam, transformou-se:
Noel viu-se entalado naquilo que não queria nem podia querer: o dealbar da
paixão que o ligaria a uma plebeia de um país pobre e quase desconhecido. Regressar
a Paris acompanhado de uma freira raptada seria um desastre, seria o
descrédito, seria queimar o futuro ambicionado.
E sacudiu a manta.
Arreou o cavalo e abalou.
Depois de mil promessas
de amor, de fidelidade, talvez sinceras, tanto crescera o entusiasmo.
Mas aquele sítio e
aquela mulher não eram o que desejava. Ele queria a corte, Versailles, benesses
e uma esposa rica, nobre, bonita ou feia, que importava? Uma mulher à sua
altura.
Sofreu a escolha? Terá
sofrido mas breve e superficialmente.
Abusara dela?
Chegou-lhe, alguma vez, essa dúvida? Talvez haja existido esse remorso, ferida
impertinente e incómoda, que logo procurara curar.
O doce Cupido é, porém, luciferino e não deixa em paz aqueles que lhe cederam e o acolheram.
De volta aos salões de Versailles,
procurou, sistematicamente, apagar a memória de Mariana; também, justificar-se,
diante dos valores do meio de que viera e a que regressava.
Um trabalho fácil: aos
olhos da corte de Versailles, a freira de Beja não podia deixar de aparecer senão
como leviana, pecadora, igual a mulher
da vida.
Noel Bouton contribuiu
para essa imagem? Sim, contribuiu não reagindo à publicação das cartas nem aos
comentários às mesmas, guardando o silêncio e, dizem, acabando por as destruir.
Destruí-las beneficiava-o
a dois níveis: o próprio, uma vez que eliminava a presença da freira de Beja e enterrava a aventura tida com ela e
cuja memória tanto o incomodava, tantas dúvidas ressuscitava; o público, pois,
assim, desaparecia a prova de que Mariana as escrevera e a ligação, que ele não
podia negar, fora mais que um passatempo, fora uma paixão cheia de podres.
Os anos correram, Noel
Bouton teve as honrarias desejadas e o reumatismo físico e mental inevitável,
esqueceu e enriqueceu; Mariana salvou-se guardando, bem guardada, a memória do
único e breve momento em que amou, em que viveu.
Mariana Alcoforado, litografia de Matisse
*** “Segundo declaração do próprio que vimos num processo do Santo Ofício
em que foi testemunha” cito Manuel Ribeiro, no livro Vida E Morte de Madre Mariana Alcoforado,1940, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa. Para mim, a origem judaica
dos pais de Mariana é uma questão em aberto.