quarta-feira, 31 de março de 2010

É urgente que alguém chame as coisas pelos nomes!...

João Cravinho




Cravinho: "A corrupção política está à solta"
Por Nuno Sá Lourenço


Veio de Londres para dizer aos deputados que "a corrupção política está à solta" e que nada fazer em relação a isso era deixar o essencial de fora. João Cravinho falou na comissão anticorrupção, onde abordou "questões de fundo" e algumas "sugestões avulsas".

Para o ex-ministro socialista , a "peça fundamental" nesta luta é "despartidarizar a administração pública" (Hugo Delgado (arquivo))

Para o ex-ministro socialista e principal proponente da última vaga de leis de combate à corrupção, a "peça fundamental" nesta luta é "despartidarizar a administração pública e escolher dirigentes públicos pelo mérito e competência".Por o considerar essencial, foi muito específico nas suas propostas. Defendeu o fim de nomeações políticas em "toda a administração directa e indirecta, gestores de sociedades de capital público e em empresas onde há participação do Estado".Apresentou uma solução para os processos de contratação de dirigentes, com a inclusão de uma comissão independente mandatada para organizar o processo de selecção, aberto a todos os cidadãos, propondo depois "dois ou três candidatos". Ao ministro da tutela cabia apenas arrancar com o processo, indicando um perfil, mas escolhendo sempre entre os dois ou três nomes propostos pela comissão.Já antes tinha explicado o porquê da proposta. A actual lei, denunciou, "conduz à partidarização", falando mesmo em "casos significativos" em Portugal de "manifestações de redes de tráfico de influência que desviam a administração dos seus objectivos últimos". A rematar, foi particularmente duro com o Governo: "Não podemos continuar a ter um governo sem estratégia explícita de combate à corrupção", defendeu, para depois perguntar para que serviam "700 planos de anticorrupção" se o executivo não tomava em mãos a iniciativa. E classificou o actual estado das leis como um "problema de vontade política". O agora responsável no Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento avançou depois com uma bateria de propostas "avulsas".Entre estas propôs premiar cidadãos que avançassem com processos contra causadores de lesão dos interesses financeiros do Estado. No caso do processo judicial "propiciar activos financeiros ao Estado", "o cidadão em causa teria o direito a 15 a 20 por cento [do valor recuperado], ditado pelo tribunal". Sobre os offshores defendeu que "as entidades de que não se conheça o beneficiário último não poderá ter personalidade jurídica". Sobre contratos públicos de grande complexidade, João Cravinho aventou "uma auditoria em tempo real responsável e responsabilizável".

transcrito, com a devida vénia, do Público de hoje

'O Pássaro de Vidro' -Epílogo 6

'A noiva do vento', óleo de Oskar Kokoschka (1886-1980)


Andrea levantou-se num repente, a tremer, os olhos marejados:
-Bernardo, eu fui ao quarto dela...

O amigo sorriu, afinal não o surpreendia, e respondeu, muito calmo:
-É grave?

Andrea libertava-se do peso ou da culpa que o roíam:

-Afinal, era uma mulher doce. Generosa. Boa? Talvez, sei lá! Deixei-me levar e procurei corresponder. A partir de dada altura, não havia mais ninguém. Esqueci o resto. Tinha a sua nudez e a delicadeza, o cuidado em fazer-me feliz. Quando acabámos e me levantei, perguntou: “Vais já embora?” Doce, sem a frieza e a hipocrisia que imaginara. Cobrira-se com os lençóis e parecia uma criança, ainda mais pequena, frágil, insignificante. Só os olhos brilhavam, resignados. Há nos olhos das orientais uma candura e uma inteligência que desorientam! A dada altura, eu senti-me inferior, uma criança. Eu, uma criança, ao pé daquela jovem.

Virou-se para Bernardo e exclamou, como quem não a entende mas tem de aceitar a evidência:
-Ela sabia muito mais do que eu!

Bernardo abanou a cabeça, agora a olhar para dentro, momentaneamente alheio, melancólico e divertido:
- Não só as orientais são assim...

A voz de Andrea embargara-se, e aos arranques, a querer dominar-se e a mortificar-se, acrescentou:

-Aproveitei-me e escapei! Vesti-me a correr. Ia sair, sem me despedir. Voltei atrás, estendi-lhe a mão. Não conseguia dizer nada. Sorriu: “Esquece. Não tem importância.” Partiu-se-me a alma! Como pudera fazer aquilo?! Ela insistiu: “Adeus. Vai...”

Fez uma pausa, cansado, e concluiu, o rosto ardido das lágrimas:
-Aí tens o que aconteceu!

Bernardo levantou-se e abraçou-o. Não o queria a chorar.

-E depois? Que importa? Era Lorenza quem tu amavas!

Andrea fitou-o, ansioso, agarrado à palavra que o absolvia:
-Tens a certeza?
-A certeza não posso ter. Mas também tu não podes ter a certeza do que dizes. Que importa tudo isso? É tarde. A noite vai alta, está frio e bebemos muito. Estamos muito cansados.

Andrea deixou-se cair no sofá e sorriu:
-Sim, é verdade, bebemos demais. Mas tu compreendeste. Amei Lorenza, sempre!
-Alguma coisa viste nela. Mas o quê, meu amigo? Não podias estender-lhe a mão?
—Vi-a aflita, insatisfeita, a escrever-me: “Uma sensação de vazio completo, de indiferença, de renúncia. Gostava de te dizer que ia ter contigo. Sou tua amiga, à minha maneira. Como eu gostava de ir ter contigo! Mas não vou, já não irei. Eu nunca vou, em nada! Falta-me coragem. Sobrevivo.”
— Escreveu-te isso?
— Escreveu-me essas coisas, mesmo as que inventei agora!
— Eu nunca disse que inventavas.
— Nem podias dizer! Ela sofria, com a grega, ou fosse lá com o que fosse, e eu já não podia fazer nada!
— Porquê?
— Porque passara o tempo.
— E não sofrias?
— Sofria, mas preferia sofrer sozinho.
—Curaste-te?

Andrea fitou-o, irónico:
-Achas?
-Não sei.
-Não sabes? Eu explico: não me curei, cauterizei a ferida. Foi cada um para seu lado, ela com os dramas dela e eu a trabalhar em Milão, a ver o Roberto crescer e a procurar ser honesto. Não julgues que me tornei monge! Aqueci a merda deste corpo nas que foram aparecendo.

Gesticulava outra vez, excitado, emocionado, levantava-se e voltava a sentar-se. Ria. Gritava.
-E apareciam muitas! Aparecem muitas! Muitas!!! Não posso queixar-me. Dá para encher o tempo... E dá alguma felicidade.

orriu para o cálice.
-Felicidade?... Chama-lhe assim. Um corpo de mulher é, sempre, um corpo de mulher! Uma luz, não é? Um holofote!... Um bem de Deus...

Não parava de beber, ele próprio se servia e tomara conta da garrafa. Bernardo seguia-o, fascinado. E, a medo, perguntou:
-Nunca tiveram um momento de felicidade?
-Quem?
-Tu... Tu e a Lorenza?

Andrea imobilizou-se e pareceu acalmar-se.
-Eu e a Lorenza? Quem? Foi há tanto tempo...


terça-feira, 30 de março de 2010

A Itália e a pulga de oiro...

... era uma vez a Itália...
Berlusco: o homem dos euros...


Vivi 15 anos em Itália e considero-a a minha segunda pátria.

Lá aprendi a liberdade.

É natural: vinha, em Janeiro de 1975, de um país humilhado e ofendido, que sofrera uma ditadura Salazarista, á qual se acrescentara um débil consulado marcelista e que tudo somara, mais ao menos, 50 anos;

vinha de um país que suportara, de 1850 a 1910, uma monarquia constitucionalista corrupta, com um único Rei esclarecido, Pedro V, a morrer jovem, ainda hoje se não sabe por que razão, e com mais dois outros, um, a engordar, acomodado, a mulher, uma savóia, a insultá-lo (ler Fialho de Almeida), o outro a caçar e a pedir dinheiro, “adiantamentos”; uma República heróica, de 16 anos minados pela podridão que vinha de antes...

É natural: eu vinha da censura ao que se escrevia, de ser proibido pisar a erva, de o vizinho da mesa ser um Pide...

E acordei em Roma.

Na Piazza Navona.

E deslumbrou-me a liberdade: a beleza da liberdade.

Não havia Berlusconis.

Havia ideal.

E, se agora, Berlusconi, um comerciante que começou a vida a tocar bandolim nos paquetes de luxo e a contar anedotas, ganhou estas eleições,

se o Bossi das ligas, da Liga Norte, ganhou ainda mais que um chico esperto que está a viver a andropausa (todos viram as tristes fotografias do homem, Berlusconi, maquilhado operado, atrás das garotas das TVs),

e, hoje, se a Itália é uma fotografia deplorável...

isso deve-se ao que eu nunca entendi:

o desmembrar do Partido Comunista Italiano,

o apagamento da Democracia Cristã.

Tinham ideologia: PCI e DC,

lutava-se pelo bem estar do homem, por uma sociedade justa, comandava essa luta a exigência ética.

Hoje, há contas bancárias.

É um desastre o que acontece em Itália. Talvez seja um desastre o que aconte aqui: em Portugal: abandonado, explorado, sufocado.

A censura conhece muitos caminhos.

Luchino Visconti

Piazza Navona, Roma


Cansado da vulgaridade dos dias, do espectáculo oco e suicida, das argolas penduras das orelhas e dos lábios, do cabelo sujo, das calças rotas e do dinheiiro da mãe no bolso, do sexo-resolve-e-não-perguntes-nada, de um pouco de haxix ou cocaína, das lágrimas derramadas sobre o que queríamos que nos perguntassem e tivessemos para responder, da solidão... do mimetismo... da covardia... da falta de coragem para lutar por si próprio, da chatice que é este viver de biliões ou com fome ou com vida de escravo e resorts e imensa, dolorosa, imensurável solidão...

fui rever um filme de um Mestre, Visconti: Gruppo di famiglia in un interno...

Vi-o, pela primeira vez, em 1975, Janeiro, em Roma -e marcou-me: as exigências e raiva que então tinha tenho-as hoje -e espero que os mais novos que eu as tenham: a exigência de ser eu e a raiva de me quererem impedir de o ser.

Ó leitor amigo de 20 anos! Só és ainda jovem, se quiseres sê-lo, tal qual eu só serei velho se o aceitar. Passa-se tudo cá dentro. Sabes?,

e aqui deixo o bocadinho de música que me marcou, para sempre, um momento de um filme sem pornografia (esses podes alugá-los no videoclube ali da esquina) e tanto da nossa dificuldade de ser livres e amar...

É de Mozart, o treco, e chama-se: Vorrei spiegarvi oh dio...

Explicar a Deus? O nosso desbandar? Ah, é desistência... basta dizer-Lhe isso.

O supervalor de superman...




El primer Superman marca un nuevo récord
Subastado un ejemplar del primer número de 'Action Comics' por 1,5 millones de dólares

Un ejemplar del primer número de la revista Action Comics, donde por primera vez aparecía el superhéroe Superman, ha vuelto a marcar un precio récord al venderse en una subasta a través de internet por 1,5 millones de dólares. Hace un mes, un mismo ejemplar de la publicación que salió al mercado en 1948,
llegó a alcanzar la cifra de un millón de dólares .



El número de la revista salió al mercado hace más de setenta años con un precio de diez centavos, una cifra irrisoria ante la millonaria cantidad que ahora ha pagado un amante de los cómics a través de la página web ComicConnect.com , con sede en Nueva York.



"Va a ser muy difícil batir este récord", aseguró el copropietario del distribuidor de cómics clásicos Metropolis Collectibles y de la web donde se realizó la subasta, Vincent Zurzolo.



Para el experto, se trata del cómic "literalmente más valioso del planeta", ya que es el único primer número de Action Comics -se calcula que circularía medio centenar de ellos en buen estado - que cuenta con un grado de excelencia en conservación de 8,5 puntos, una cualidad que le hizo superar el millón de dólares que en febrero pagó otra persona por otro ejemplar de ese mismo número.



La misma web vendió poco después un ejemplar de un cómic de Batman por 1.075.000 dólares, una cifra que Superman ha batido ahora con un ejemplar definido por los vendedores como "el máximo objeto de deseo de los amantes de los cómics" y cuya existencia se conoció a finales de la década de los 80.



"Durante cincuenta años, el cómic estaba escondido entre revistas de cine de los años 30, hasta que esas publicaciones fueron vendidas a un coleccionista de la ciudad de Pittsburgh (Pensilvania), que se sorprendió al encontrar a Superman junto a Clark Gable y Joan Crawford", señalaron los responsables de ComicConnect.com.




transcrito, com a devida vénia do El Pais de hoje

'O Pássaro de Vidro' -Epílogo 5

'Universo', trabalho de Antoine Pevsner (1886-1962)



Encheu-lhe o cálice de aguardente. Custava-lhe, mas não podia parar. Alguma coisa acabaria por sair dali. Não queria contrariar a vontade de se confiar do outro e pensava que a sua não era só inútil e egoísta.

— Esteve ao pé de mim quando a chamei! Não é bem verdade... Às vezes, foi ela que veio. Tão poucas vezes, que comecei a descrer!
— Quer dizer, tu não respondias aos telefonemas...
-Estás enganado. Respondi, sempre, aos telefonemas. Ela é que vinha sem entusiasmo. Era um peso que levava comigo, uma aflição. Por que me telefonava e, depois, aparecia com cara de enjoo? Se me chamava, era porque precisava. E eu também precisava dela. Em vez de se mostrar contra­riada, por que não me dizia: “Gosto muito de ti”? É verdade que dizia: “Obrigada por teres vindo” e encostava o casaco ao meu.
E, num movimento de revolta:
-Eram só casacos!

— Que querias mais?
— O resto! Que se me desse toda!
— Achas possível?
— Houve um momento em que pensei que sim: quando a vi no barco.
— E depois?
— Depois? Foi o que estás farto de saber! Não apertes! Que tens a que ver com isto?!
-Nada. Mas ouve, Andrea, deixa-me dizer-te: as vossas almas mentiram ou ligaram-se para sempre.

Andrea não o ouviu.

—Depois, é verdade, escreveu-me, mas a despejar as frustrações!
— Só isso?
-Praticamente. As cartas dela eram-me indiferentes. Gostava de as receber, mas não queria lê-las. Já tinha a vida organizada em Milão, esquecera Veneza. Equilibrava-me!
-Esqueceste?...
— Não perguntes se eu não sabia que era um falso equilíbrio!
— Eu não pergunto nada...
— Era falso, mas era o meu! O dela era mais verdadeiro?
— Era? –insistiu Bernardo.

Irritava-o a angústia do amigo, não estava ali só para o ouvir e dizer-lhe que sim, apesar de só estar ali por isso e por o estimar:

— Era tão falso como o teu! Alguma vez lhe pegaste ao colo?
— Muitas vezes! E sei lá se valeu a pena!
— Porquê?
—Puxava-a e ela consentia mas, depois, sentada nas minhas pernas, eram só os ossos e começava a mexer-se e já não valia a pena tê-la ao colo.
-Pobre Lorenza!
-Talvez. Mas que sabes tu de Lorenza?
-O que me disseste.
-Disse alguma coisa?

E, a sentir-se devassado, quis levar ainda mais fundo a confissão, a ver se conseguia libertar-se do que lhe ia dentro e do peso do amigo.

— Então, vais ver! Se quiseres ouvir.
— Quero.
— Falou-me de tudo, dos pais, das irmãs. Da grega.
— Da grega?
— Não soubeste da grega?
— Soube que ela tinha uma amiga grega de quem não gostavas.
— Metia-me nojo! A Lorenza escreveu-me uma carta em que não falava da grega mas era só da grega que falava. Dizia: “Querido Andrea: estou cansada. Nem o cigarro me satisfaz. O vento, que bate na minha janela, desequilibra, rasga a tranquilidade do meu quarto. Estou cansada, farta do meu narcisismo e dos problemas que me cria! Talvez todos os narcisistas tenham estas tendências.” E acrescentava: “Não me julgues, não me condenes. Eu não julgo, nem condeno, amo, como toda a gente. É pecado querer a beleza? Merda! Eu não acredito em pecados, só acredito em mim!”

Bernardo interrompeu-o:
— Lembras-te tão bem?
— Lembro-me como posso Que queres? Se calhar invento, mas lembro-me!
— E o que é que isso tem a ver com a grega?
—Tem a ver porque a Lorenza também me escreveu: “A menina da franja e das sandálias brancas com soquetes! Onde foi parar! É triste ser-se objecto de amor e não conseguir desejar nem amar quem nos merece e perdermo-nos nas nossas fraquezas.”

Parou, como se lhe faltasse o ar, bebeu mais um gole e continuou, amargo:

-Esse era o tempo em que andava com a grega e a levou a casa.
— E, só por isso, achas que ela não te amava, não te dese­java?
-Não, mas gostava de fitas! Uma vez, escreveu: “Gostava de me prostituir, durante uns tempos. É uma experiência necessária. Já que me prostituo tanto na cabeça, é a altura do corpo se entregar. Chama-lhe masoquismo, se quiseres.” Assim, friamente.

Calou-se um instante, a olhar para dentro de si e, depois, murmurou:
-É um dos mistérios das mulheres, a frieza de que são capazes... Defesa? Pudor? Indiferença? Troçam de nós? Nós também somos assim, quando amamos? Nunca entendi!

Bernardo reparou que o fixava, lúcido e desvairado, e lhe estendia o cálice vazio. Assustou-se:
-Não interessa! Somos todos iguais! Uns desajeitados!
Mas o outro não desistiu:
-Só as mariquinhas e as falsas que escrevem cartas líricas!
-Não é verdade. Mas deixa lá... –comentou Bernardo.
E não resistiu:
-Achas que ela se prostituiu com a grega?
— Pelo menos faziam coisas de que se ela arrependia.
-És ciumento e possessivo. O mais certo é que não passassem de duas boas amigas.
-Há muita coisa que não sabes. Foi tudo uma grande confusão! A grega, por exemplo. Essa cabrinha, um dia, apareceu-me em S. Marco, insistiu para que nos sentássemos a tomar café. No Florian, claro! E cruza as pernas, mostra as coxas, desfaz-se em sorrisos, a armar em virgem!
-Em virgem?! –riu Bernardo- És sempre o mesmo! E tu?
-Também virgem, menino de coro... Às ordens dela... E ela toca de falar em arte, na minha sensibilidade, no tempo que corre, nas injustiças. Na solidão, imagina! E que desenhava, que pintava. Eu queria ir ver? “O meu quarto é mesmo ali, por detrás do relógio...”
-E foste?
-Convite de puta! Não, não respondi. Atirei-me às teorias, cobri-lhe a gordura com a teoria da arte! Cansei-a, até que se foi embora, vermelha como um tomate!
Bernardo baixou os olhos.
-Vermelha como um tomate! –repetiu Andrea.
-O que é que ela queria?
-Cornear a amiga! Não achas?!
-Talvez não, talvez quisesse saber por que é que ela te amava.
-Onde?! Na cama, onde nunca estivemos? Ó Bernardo, francamente!

Bernardo ia a dizer: “Esse foi o teu erro ou a tua covardia, recusares-te” mas Andrea antecipou-se:
-Eu não me recusei, ela é que nunca quis! E aparece a grega, a tentar convencer-me! Qualquer eu coisa herdei de meu pai. Não só o romantismo e a paixão pelo Puccini. Meu pai era um homem sempre alerta, com os pés bem assentes na terra! Cheirou-me a esturro. O que ela queria era sujar-me e, depois, ir contar à Lorenza.
-Sim, é possível. E também é possível que quisesse partilhar do vosso amor.

Sex-shop abençoado...



Do Islão "with love"
por Manuel António Pina


O leitor imagina um bispo a autorizar uma "sex-shop católica"? Pois da Holanda vem a notícia, que vendo pelo preço que a comprei na nrc.nl/international, de que abriu a primeira "sex-shop islâmica". Tudo "halal", e com licença (sem trocadilho algum) do iman e do "sheik", de modo a que o negócio caiba nos limites do Corão e das várias "fatwas" sobre a matéria. A loja vende cápsulas que "aumentam a duração, o desejo e o prazer" do sexo tanto de homens como de mulheres, bem como vibradores e lubrificantes para homens e para mulheres. E... preservativos. Abdelaziz Aouragh, o proprietário, muçulmano ortodoxo, ainda teve dúvidas mas o "sheik" tirou-lhas: a "sharia" não tem nada contra o preservativo. Parece que a múltipla lei islâmica, tantas vezes, com boas razões, acusada de inimiga das mulheres, as tem afinal, no que à sexualidade respeita, em menos primitiva conta que a Igreja Católica, para quem as mulheres são, na matéria, pouco mais que fábricas de filhos e para quem o sexo (pelo menos fora do seu seio, a crer no que tem vindo a público) só deve servir para aquilo que chama de "procriação".




transcrito, com a devida vénia, do Jornal de Notícias de hoje

segunda-feira, 29 de março de 2010

Já está tudo Ok! Amanhã há mais!

... Y., a minha amiga bloguista feliz...


Obrigado ao amigo A. Oliveira que me avisou!

Bem haja!

'O Pássaro de Vidro' -Epílogo 4

óleo de Paul Delvaux


-Gostava que te sentisses bem, aqui... Que desabafasses.
Andrea encolheu os ombros.

-Foi o que foi! Nem eu sei! Precisávamos de nos ver. Íamos um para o outro de boa-fé. E o que conseguíamos era dizer asneiras ou ficar calados. Nunca acertámos! Fartei-me de andar com ela ao lado, calada. E não sabia que dizer-lhe. O que deveria dizer-lhe? Quando falávamos, desentendíamo-nos. E tinha medo de estragar tudo e que ela se fosse embora. E, por isso, não lhe dizia a verdade, punha-me a adivinhar o que ela gostaria de ouvir, e enganava-me. Acho que me enganava, porque ela não me respondia e fechava-se mais. E eu metia-me na minha desconfiança e não saía dela. Um círculo vicioso. Não precisas de me dizer.
— Mas por que é que vocês se apaixonaram e não apro­veitaram o vosso amor? Encontraram-se, conheceram-se, andaram juntos, e separaram-se antes do mais importante começar!
— O mais importante? O que era o mais importante? Começou, e de que maneira! Se calhar, importante era aquilo, a companhia, apesar de não a aprofundarmos. E, depois, quem disse que não a aprofundávamos? Estávamos de boa-fé e a culpa não era nossa.
— A culpa da honestidade?

Havia quase troça, na pergunta e Andrea sentiu-se.
—Nunca largámos a boa-fé, por mais que doesse! Éramos assim!
Bernardo emendou:
— Eu quase não a conheci...
O rosto de Andrea iluminou-se:
— Se a conhecesses, encontravas uma mulher verdadeira!
-Mas não duvidaste dela?
-Eu? As dúvidas eram nossas, minhas e dela. Vivíamos nisso e muitas vezes duvidávamos mais de nós próprios do que um do outro. É verdade que me fugiu sempre mas deu-me o suficiente para que eu não tivesse razões para a abandonar. Vinha e deixava-se estar. É verdade que não me dizia muitas coisas, mas estava ali. Se eu quisesse, empurrava-a e não a empurrava porque não tinha coragem e tinha medo de ser injusto e de não a deixar mudar de ideias, chegar-se mais. Não a empurrava porque gostava dela, do seu corpo. Ficava ao pé dela, na esperança de a ajudar e na certeza de que precisava dela. Nada na manga.

— O que havias de ter na manga?
E procurou consolá-lo.
—Pelo menos, uma vez vocês gostaram um do outro: quando ainda não pensavam nisso e não conseguiam desprender-se. Nesse momento, ninguém vos podia separar e vocês não queriam saber das razões que vos aproximavam. Eram livres.
— Livres de nós próprios...
E olhou para ele, surpreendido:
- Como sabes isso?
— Sei, porque não sou parvo e porque também já me aconteceu.
— Com a Laura?
— Com a Laura e com outras: estar quietinho, ao lado de uma pessoa, receber o que me dá e não per­guntar nada. O pior é querermos saber. Estragamos tudo.
—Isso é verdade.

Bernardo hesitou. Dissera aquilo porque desejava que assim fosse e ele concordara. Então, não era só seu o desejo? Então era verdade o que dissera? O amor valia a pena, justificava sacrifícios, apesar da violência? Andrea contava a história de uma relação profunda e ele lembrava as suas e voltava-lhe a esperança do que não tinha: a companhia perfeita. Se durava tanto e sobrevivia aos anos e aos desencontros, o amor era realmente importante e talvez a casa viesse a iluminar-se.

— Foi muito difícil, fiz o que podia e a Lorenza também. Mas não chegou.

Bernardo não queria afastá-lo de Lorenza nem lembrar-lhe que se casara, tivera um filho, uma criança, loira como ela. O assunto estava arrumado mas ele próprio não queria. A aventura de Lorenza e Andrea exaltava-o. Gostava da casa, do cão, da lareira, não se queixava dos doentes nem do que lhe pediam mas acontecia-lhe desejar que tudo vibrasse de outra maneira. Às vezes, sentia-se sozinho e nada lhe chegava, nem Laura, nem a casa, nem o cão, nem o hospital. Duvidava de si porque não lhe chegavam aquelas coisas e as aceitava como se bastassem.

— Dei-lhe tudo.
— Tens a certeza?
— Dei-lhe o meu amor!
Bernardo, espicaçado ainda pela insatisfação, observou:
-Essa é a tua maneira de ver.
-Não tenho outra! Não posso falar por ela!
Bernardo fez um gesto vago.
-Sim...

Durante muito tempo ficaram calados, abismados nas recordações, até que Bernardo quebrou o silêncio:
— Vamos jantar? Cozinhamos qualquer coisa lá dentro. Tenho um arroz de ontem...
— Bebia uma aguardente...
Serviu-lha e retomou a história interrompida, a desculpar-se:
— Amaste-a e o amor é o que é...
— Eu a procurá-la e ela a fugir. Deveria tê-la deixado? Ou deveria meter-lhe as mãos pelas saias? O meu erro foi não lhe saltar para cima? Não fui capaz de a violar e era isso que ela queria? Quem sabe? É o amor, dizemos. Se não te impões, estás tramado.
— Talvez ela esperasse que te impusesses e provasses que a amavas.
— Na minha situação, o que fazias?
— Provavelmente, o que tu fizeste.
— Eu não podia fazer mais! Já imaginaste a minha vida? A Luísa atrás e o Roberto!
— Por que procuraste com Lorenza?
— Porque ela ia no barco eu estava sozinho. Era um momento difícil. Acontecera o sarilho com a Luísa. O Roberto andava de uma casa para a outra. Mas foi mais do que isso. Prendeu-me a beleza, o corpo dela, a frescura e o modo como se deixou aproximar. Uma pessoa nova e eu tinha, atrás, as velhas.
— E depois?
-Aconteceu o que sabes, os telefonemas, os encontros, depois..., afastámo-nos.
-E ficou por aí?
-Não. Escreveu-me cartas.
— E não te lembras do que diziam?
— Lembro-me. Queres que te repita?
Bernardo hesitou mas respondeu:
— Pois sim, sempre é melhor do que nada. Fecha-se a história.
—Mandava-me cartas do arco-da-velha! Confessava o que não devia.
— O quê?
— Sei lá! O que eu te contar é só parte, não posso lembrar-me de tudo. Mas recordo que dizia que a vida não valia a pena, nada a satisfazia, condenada à infelicidade, antes não tivesse nascido, mais valia morrer. Era uma desgraçada. Apetecia-lhe virar as costas, enroscar-se, gozar as próprias fraquezas. Achava que fora bom encontrarmo-nos, mas não levaria a nada. Assim dizia. E eu perguntava-me: por que não levaria a nada? E o que fora bom? As idas a Burano? Os passeios pelas Zattere? As vezes em que andávamos, com frio e nevoeiro, à espera de que um de nós falasse?
— Achas pouco? E falaram?
-Claro! Mas raramente dissemos o que queríamos. E muito menos aquilo que o outro esperava. Enganámo-nos sempre. Ou, se calhar, gostávamos de arrastar.
E acrescentou, com raiva,:
— Pelo menos ela parecia que gostava!
— De quê? — perguntou Bernardo, a ver até onde é que ele ia.
— Disso mesmo, da nossa infelicidade! Regalava-se. Nunca quis outra coisa.
— Não podias ajudá-la?
— Nunca esteve ao pé de mim.
— Não acredito!
— Quantas vezes esteve ao pé de mim?
— Como queres que saiba?

domingo, 28 de março de 2010

'O Pássaro de Vidro' -Epílogo 3

óleo de Giorgio de Chirico (188-1978)



Andrea parecia um bicho acossado.
— O que é que ela queria?
— Talvez quisesse que eu fosse ter com ela e que só pensasse nela. Não sei. Era a sua maneira. Se te contasse! Se te contasse tudo o que aconteceu!

Bernardo suspirou e ajudou-o:
— Deixa lá! Olha, come esta salsicha! Queres que abra outra garrafa?
-Abre, faz o que achares melhor. Quero é que me oiças.

Bernardo abanou a cabeça, enquanto abria a garrafa.
-Ninguém ouve!

Serviu o vinho e ficaram calados, a olhar o lume, que pegara bem e lambia as paredes da lareira. Mas agora era Andrea quem não desistia:

- Quero contar-te a minha história com Lorenza.
— Não é preciso.
-Estás enganado! Preciso de contar e aproveito esta noite. Se cá vim, foi porque és meu amigo e posso dizer-te o que me apetecer. A verdade.
-A verdade?
Andrea sorriu:
- A que eu souber. Se te contasse!
-Então, conta, desabafa!
— Uma vez...
— Espera aí! Vou pôr música.

“Vai pôr música? O que lhe vou contar pede música? Está a brincar comigo ou é dos copos? É a ironia, que também ele é irónico e, às vezes, caustico, por trás da bondade? Ou quer ajudar-me? Querido Bernardo!”

— Quando a conheci, era uma rapariga de dezoito anos. Ia para a universidade, cheia de medos, insegura, como foi sempre. Nem mais, nem menos. Com a inquietação que só vencia quando a transformava em afirmação. Não acreditava mas servia-lhe para se libertar. Era o que tinha e era teimosa. Viveu sempre assustada e desastrada, pronta a respeitar o caminho que escolhia. Fazia-o inconscientemente? O egoísmo, o instinto de sobrevivência a impor-se? Talvez. O caminho que escolhia nem sempre era aquele que queria. Encostava-se à sobrevivência. Ao mesmo tempo, arriscava: punha a cabeça de fora. Arriscava-se a fugir. Compreendi isso quando a vi no vaporetto.

— Compreendeste logo? És um génio! Compreendeste logo a tua namorada!
— Nunca foi a minha namorada. Julguei que a entendia e apaixonei-me por ela. Tínhamos muitas coisas em comum. Irmã, amiga? Sou dezasseis anos mais velho, podia ser minha filha. Exigente, capaz de se defender. Porque nós queremos sempre que os filhos sejam capazes de se defenderem. Apanhei-a no barco, perguntei-lhe o nome, o número de telefone. Depois, comecei a tentar metê-la dentro, a telefonar-lhe, a procurá-la. Nunca mais lhe dei descanso.

Bernardo sorriu:
— Não exageres! Gostavas da rapariga e foste atrás dela. Não é pecado.
— Eu sei. O que te estou a contar é a história do meu amor por Lorenza.
— Já disseste. E é a história do amor de Lorenza por ti.
—Não havia ne­nhuma razão para ela não gostar de mim. Eu gostava tanto dela! Nem imaginas. Estava em Treviso e pensava nela, chegava a Veneza e ficava à espera de a ver! E lá vinha, com a gabardina branca ou, no Inverno, o casaco de foca, no Verão, a blusa de seda. Os seios pequenos apertados. Os cabelos loiros. Desejava-a! O corpo dela à minha frente e eu sem saber se queria que a abraçasse. Não a inventei. A sua insegurança, existiu sempre. Aparecia, exuberante, toucada de azul, o de Veneza, as pernas desengonçadas, à espera que a protegesse. Eu não sabia. Ela vinha ter comigo e eu desconfiava. Ia dar-me e o que é que ela me daria, em troca? Hoje, penso que ela queria que eu a protegesse. Queria descansar... Ela também. Não se revoltava. Às vezes, revoltava-se a ver se eu a ajudava. Tu sabes como é.
— Não.
— Sabes, com certeza! Provocava-me, à espera que me abrisse. E, quando me abria, fechava-se. O tempo que durou! Eu a ver se ela gostava de mim e ela a esconder-se. E, depois, a pedir-me que a procurasse.
— E tu continuavas a procurá-la?
-Há limites para tudo.

Bernardo atiçou o lume e fez uma festa ao cão.
— Se calhar, ela gostava de ti e tinha medo que começasses a dizer coisas sem pés nem cabeça e já não pudesse valer-te.
— Em quê?
— Ora, nisso mesmo, no disparate, no excesso do teu amor.

Andrea reparou nas bochechas encarnadas de Bernardo, o copo na mão, o corpo aconchegado, os olhos bons, que o culpavam. “Está a trair-me. Afinal é mais amigo da Lorenza do que de mim.”

— Andrea, ouve, eu vi, não era só ela, tu também exageravas!
— Em quê?
— Querias mais do que era possível!
-Eu?! E o que é que julgas que ela queria? A nossa relação foi sempre um desastre!
Não valia a pena parar. Mas custava-lhe.
-Eu sei, Bernardo. Sei que dizia tantas coisas que ela não dizia e não nos entendíamos. É verdade que precisava dela, que a procurava, e talvez nisso exagerasse. Às vezes, deixava-a em paz. Outras não, apertava com ela. Mas ela parecia que também queria. E eu julgava que fazia uma boa acção. O resultado era magoarmo-nos e ficarmos ainda mais desconfiados.
-Porquê?
-Porque nos arriscávamos pouco. Corríamos, atrás um do outro, só isso. É provável que me tenha procurado quando eu não queria nada dela e vice-versa. Não é um disparate?!
-Talvez...
Bernardo pareceu-lhe distante ou a desfrutar a desgraça deles e Adrea gritou:
— O nosso amor foi o que foi! O que querias mais?!
Bernardo não queria nada, queria ouvi-lo.

sábado, 27 de março de 2010

Que um grande, grande poeta, Afonso Duarte, nos leve, pela mão, à beleza do dia...


-Rio de amores:

Rio das moças de Coimbra, rio
Dos choupos, dos poetas e doutores:
Maior rio só de águas portuguesas
Onde as areias cantam luzidias,
Fulvas de Sol e de Luar, acesas
Em frescos de cristais e pedrarias.
Rio das margens dos salgueiros velhos
E debruçados e curvados, tortos;
E rio moço das lavadeiras moças
Que a gente fica a olhar por esses portos.

O que diria Camilo disto tudo?...

Camilo Castelo Branco jovem

E também não sei se o nosso futuro irá passar por aqui...


...Mas este é também o maravilhoso mundo em que vivemos... se quisermos


Este é o desgraçado mundo em que vivemos...

Erlich, in El Pais de hoje

'O Pássaro de Vidro' -Epílogo 2

'Vénus', pormenor de um óleo de Sandro Botticelli



A expressão de Bernardo, os olhos vivos e a entrega, sentado na poltrona gasta, o cão aos pés e o prato nos joelhos, a simplicidade, conquistaram-no. Ia confiar-lhe muitas coisas, as que, durante anos, não contara a ninguém. “Se não lhe dissesse a ele, a quem diria?”

Mas Bernardo antecipou-se:
— Sabes que a Lorenza se casou?
— Não. — mentiu.
— Casou-se com um engenheiro de Pordenone. E aconteceram outras coisas: o Alberto Memmo anda com uma pintora de Belluno e a Patrizia dal Col fez uma exposição de bonecas em Milão.
— Ah, sim?
— Pois foi. — disse Bernardo e encheu o copo de Andrea. — Nunca mais os viste?

“Filho da mãe! O que tu queres bem sei: que te conte a minha vida”, pensou Andrea.

— Vi essa gente. E, se não os vi mais vezes, foi porque me incomodavam. Voltei a Veneza e a encontrar Lorenza e os outros. Era isso que me incomodava.
— Águas passadas não movem moinhos. O que importa é que estejas contente com o teu trabalho.

Encolheu os ombros. Não acreditava no que ele dizia. Baixou os olhos, triste.
— Ah! Bernardo!
— O que é?
— O que te vou contar já tu sabes. É a minha história com Lorenza.
— A tua história com Lorenza?

Agora, Andrea olhava o amigo na cara, decidido a falar, a expor-se e, ao mesmo tempo, queria que o outro soubesse que não se deixava enganar.

— Qual história é que querias? Não armes em parvo! Vou contar-te uma história e já não é mau. Tens alguma para me contar?
— Não... –sorriu Bernardo- Conta lá.
— Por onde queres que eu comece?
— Conta...
— Ela era uma criança. Teria o quê? Dezoito anos? Encontrei-a no cais da Accademia. Nunca a vira antes. Apareceu-me, com a gabardina branca, os cabelos loiros e as faces rosadas. Que esperavas que eu fizesse? Disse-lhe “Boa noite” e ela respondeu “Boa noite.” Perguntei-lhe “Para onde é que vai?” e ela respondeu “Para o Lido.” Não me disse se queria que eu fosse com ela mas eu fui e, quando lá chegámos, disse-me: “Se quiser, telefone-me. Até qualquer dia.” E eu deixei-a ir.
— Ela deu-te o número do telefone?
— Eu é que lho pedi. E dei-lhe o meu. No regresso pensei que havia de me procurar ou ia eu à procura dela. Era o destino.
— Ai sim? — perguntou Bernardo, recostado no sofá e a saborear o vinho.
— Pois claro! Nem imaginas que destino! Nunca mais nos separámos. E fizemos tantas asneiras! Mais, valia que nunca nos tivéssemos conhecido! Andámos sempre um atrás do outro e mais valia que nunca nos tivéssemos visto. Julgas que foi fácil?
— Nunca julguei...

E era verdade, nunca pensara que tivesse sido fácil. Cruzara-os em Veneza, ouvira falar deles e a impressão que ficara fora a de um grande sarilho: arranhavam-se, não se entendiam e não se largavam. Um combate absurdo, caricato. E, no entanto... “São jovens ainda! Há uma pureza esquisita neste dois e uma tolice incurável.” Saboreava o vinho, enterrado na poltrona, e o que queria era que Andrea se sentisse bem, oferecer-lhe sossego, aconchegá-lo. Parecia um cachorro batido e doía vê-lo assim.

— Bebe, é melhor. Isso são coisas que deram o que tinham a dar.
— Nunca soube gostar dela. Gostei dela e não soube amá-la. E, se calhar, ela nunca soube gostar de mim.
-Acontece.
-A ti, aconteceu-te alguma vez?

Andrea levantara a voz, a querer lembrar-lhe que a sua vida era calma, retirado na casa de Bassano, com o cão e os livros, os quadros e, lá em cima, no hospital, os doentes, que precisavam dele e ajudava, Laura Buriani, a colega que era sua amante.

Bernardo pareceu compreender e justificar-se:
— Acontece a todos.
—Às vezes, dói!
— É natural.
— É natural?! Só é natural para quem anda metido nelas!
— Sabes lá tu no que eu ando metido!
— Sei.
O outro evitou responder.
— E depois? O que aconteceu?
— Depois, quando a conheci melhor, armou-se em boa, fingiu que não me conhecia.
— Armou-se em boa?!
— Armou-se em boa, pôs-se a fingir que não valia a pena, que a gente se tinha conhecido por acaso. Pôs-se assim. E eu já gostava dela.
— E ela não te queria?
— Não sei. É possível. Talvez já tivesse começado a fugir. Sei lá! Falou comigo muitas vezes, veio ter comigo. Mas outras vezes não veio. Escondia-se, exaltava-se, ofendia-me. Sim! Ofendia-me!
— E nunca foi à casa de Treviso?
— Só uma vez.
— Porquê?
— Era longe.
— De Veneza a Treviso?!
-Dizia ela. Eu estava, sempre, à espera. Quieto. À espera que chegasse. Mas sem convicção.
— Porque era muito longe?
Andrea perguntou, secamente:
-Estás a gozar?
Bernardo emendou:
-Não! Mas tens de concordar que ela podia lá ter ido.
-Poder, podia, mas não foi. Ou porque era longe, ou porque não queria, ou porque tinha medo. Ela era assim. Perdoei-lhe.
-Perdoaste de mais.
-Talvez. Compreendi que era difícil meter-se a caminho, apresentar-se, sem defesas e eu abrir-lhe a porta e tomar conta dela. Não é o seu estilo.
—O que tu inventas! Preferias que te aparecesse com defesas e não a pudesses amar?
— Não, Bernardo. Eu não sei se o meu amor era verdadeiro, se me bastaria a sua humilhação para me sentir contente, seguro. Era por isso que a esperava na casa de Treviso e noutros sítios, nos cafés, nos largos, onde quer que fosse? Não sei. Custa tanto ir ao encontro de uma pessoa! Ficava longe de Veneza, a casa de Treviso... Queria que me procurasse mas não me importava se não viesse. Se a domasse e ela precisasse de mim, teria de a aturar.
— Mas não gostavas que te entrasse pela casa dentro e te dissesse que, sem ti, não era capaz de viver?
— Gostava. Mas isso nunca aconteceu.
— Por culpa de quem?
— Não sei!

sexta-feira, 26 de março de 2010

E uma vez que se falou de Aldo Zari, aqui vai mais uma das maravilhas que nos deu...


Começa o fim que é despedida e o começo de outras coisas... pois que a vida nelas é muito rica...

'canal grande, Veneza', óleo de Turner


Hoje começa o fim: o Epílogo d’ O Pássaro de Vidro.

E vivo esse fim, como se reconhecesse o que acabou: os anos de Roma, de Veneza... de Lorenza e Andrea. De Itália.

Da Itália que me roubou gente que não merece a água que bebe.

Vivo esse fim com saudade: do que fui e não voltarei a ser; de Roma, da Piazza Navona, do Campo dè Fiori, da sala onde escrevia e do meu cão Zac, deitado aos pés, e da Marietta, de Corot, ao fundo, mulher de corpo inteiro, doçura e sensualidade entregue ao dia.... Com saudade de Veneza -ah! de Veneza!- e do meu querido Aldo Zari, o pintor mais pobre da cidade e um Mestre, na atitude mesma: nas centenas de quadros que pintou, na pobreza que preferiu às lentilhas (as lentilhas que aceitou o freirinho que me roubou Roma), na coragem de ser e assumir o risco. Zari, companheiro de viagem, pelas osterie, por Burano e a ouvir-me a história de Lorenza e Andrea... a sofrer por eles e por mim.

Compartilho contigo, leitor amigo. Deixo-te a alma. Porque escrevi muitas páginas –mas as d’ O Pássaro de Vidro são, como nenhumas outras, sangue do meu sangue, carne da minha carne.

quinta-feira, 25 de março de 2010

'O Pássaro de Vidro' -Epílogo 1



Sete anos depois, —passaram depressa, tão depressa que se diria impossível — Andrea e Bernardo Dillon encontraram-se em Milão, num café da galeria, junto à Catedral.

—Por aqui? — exclamou Andrea.
— Tu?! Há quanto tempo!
-Séculos!
Abraçaram-se e sentaram-se, a olharem um para o outro.
— A tua vida? — perguntou Bernardo.
-Sem problemas, gosto do meu trabalho. Ninguém me incomoda.
— E o Roberto?
— Também não tem problemas. Cresce. É bom aluno.
— Deve estar um homem. —disse Bernardo, com as mãos apoiadas nas pernas gordas— Já tem quantos anos?
— Quase dezassete.
Enquanto o criado anotava o que pediam, Bernardo comentou:
-Foi num ápice! Nem demos por isso! Eu bem te procurei mas tu nunca mais disseste nada! Nem tu, nem a Luísa! E nunca mais te encontrei em Veneza!
-A Luísa? Não sabes que nos separámos? E por que é que havias de encontrar-me em Veneza? Eu nunca lá vivi!
— Tens razão, tens razão. A Luísa! Que disparate! Mas via-te em Veneza. E como desapareceste... Passou o tempo, foi o que aconteceu!

Engoliu de um trago meio copo de cerveja e, sempre agitado, os punhos da camisa a saírem do casaco, as calças apertadas a mostrarem as peúgas brancas, limpou a testa:
— Não vives em Veneza mas de cada vez que lá volto lembro-me de ti.
E ficou com o lenço na mão, a suar, porque sabia que dissera uma asneira e não podia emendá-la.

“Este sua sempre... -pensou Andrea- E ainda nem chegámos à Primavera!”

Era ao cair da noite de um dia de Março de 1986 e as pessoas apressavam-se, cobertas de abafos. Espreitavam-nas do lado de cá dos vidros.

“Quando aquecer, como se governa?”

-Não voltámos a encontrar-nos porque não me procuraste!
— Isso não é verdade! Telefonei-te muitas vezes!
— Para onde?
— Para casa!
— Qual?
— A de Treviso!
-Mas eu já não vivo em Treviso!

Desarmado pela aflição de Bernardo, tocou-lhe o ombro.
— E tu que andaste a fazer?
Bernardo deu um pulo na cadeira.
— Nem imaginas! Consegui!
— Conseguiste o quê?
— Consegui que me deixassem trabalhar! Consegui o dinheiro para o laboratório e já tenho mais dois colegas comigo! Às vezes, lá vou às apendicites... Mas só às vezes. Lembras-te? Tu com a mania de seres um João-Semana e eu à volta dos vidros e das pipetas? Dizias que eu tinha medo das pessoas e empurravas, puxavas-me o casaco. Talvez. Mas, olha, em Bassano...

E falou-lhe do hospital, das dificuldades e das alegrias. Falou muito. Andrea parecia-lhe inquieto. Continuou a falar, queria dar-lhe amizade e tinha medo que ele se fosse embora.

— Conseguiste isso tudo? Bravo! Muito bem! Ficaste satisfeito?
-Fiquei —disse Bernardo, a desconfiar das palavras do amigo, não estava habituado àquele tom nem à ironia, antes não era assim, e assustava-o- Achas que não devia?
— Fizeste bem. Quantas vezes me lembrei de ti! Também eu pensei em procurar-te.
Bernardo apressou-se a responder:
— Tenho uma casa muito bonita em Bassano. Não é nenhuma maravilha mas cabemos todos.
Sorriu e acrescentou:
-Não chove lá dentro... Podes lá ir quando quiseres. Por que é que não vamos, hoje? É quinta-feira. Dás uma desculpa no hospital e ficas até segunda. Fazes um telefonema!

Andrea sentiu outra vez ternura por ele e remorsos. Não tinha o direito de troçar dele, magoara-o e ele era seu amigo e não tinha muitos.

— Então, vamos?—insistiu Bernardo, que lhe lera nos olhos—Que ficas a fazer aqui? Já trabalhaste bastante!
— A maçada que te vou dar!
— Nenhuma! Antes pelo contrário!
— E o jantar?
— Comemos qualquer coisa pelo caminho.

Levantaram-se, sem acabarem as cervejas, e foram por entre as pessoas agasalhadas e as luzes dos cafés e das montras, lado a lado.
—É frio de neve! — disse Bernardo— Olha o fumo que eles deitam!
— A humidade...
-E a respiração!
— Pois claro. — concordou Andrea, feliz: Bernardo ia a esfregar as mãos e a tremer, encolhido no casaco de carneiro e, porque não queria perdê-lo, explicava-lhe o que ele já sabia. Sorriu:

“Isso faz-lhe bem. Tão frágil e tão forte, tão concreto, até me pesam o seu ombro e os oitenta quilos... E a dizer-me estas coisas, para me agarrar. Mas pode perder-se a amizade?”.
A caminho do carro, exclamou:
— Bernardo, olha a Ursa Maior e a do Norte!
O céu mostrava as constelações e a estrela do Norte.

“Há tanto tempo, ali!”, pensou Bernardo. Meteu o braço no de Andrea, e chegou-o a ele.

— Vais ver mais! A Via Láctea, a Ursa Pequena e as outras estrelas que estão lá em cima! Da minha casa alcança-se tudo!

Bernardo, gordo e desastrado, falava das estrelas, de Veneza, do que devia ser e do que não devia, oferecia-lhe a casa, confiava-se.
— Deve ser muito bonito!

Uma casa isolada, nos arredores de Bassano, o vasto jardim, virado para as luzes da cidade, as estrelas, as constelações e, fixa, lá voltava a do Norte.

-Eu levo as malas.

Bernardo parara o carro frente à casa e sossegava o cão, que saltara ao caminho, a ladrar e de orelhas espetadas.
— Zac! Quieto!
— Deixa as malas! Não te doem as costas?!

Tinham viajado durante três horas no pequeno carro — um velho Morris —, doíam-lhes as costas, tinham sede e fome. Bernardo meteu-se na cozinha a preparar bebidas e comida.
— Senta-te, está à tua vontade!
~
Andrea deixou-se cair num sofá e entregou-se à paz da casa. Esticou as pernas e reparou na sala ampla: em frente, um maple de couro gasto, a cobrirem as paredes, livros e quadros, à sua esquerda, a grande lareira de pedra, que iam acender. Viu o cão deitado ao lado e pensou que fora para isso que viera: queria estar tranquilo e descansar na companhia do amigo. Tudo quanto acontecera dizia-lhes respeito. Aceitara o convite, precisava de desabafar. Os anos tinham pesado, em Milão, sozinho, com as raras visitas de Roberto e as viagens a Treviso, as amigas iguais às do Cesenatico, que duravam pouco.

Bernardo voltou da cozinha, triunfante, os enchidos, o pão e o vinho, a barriga a amparar o tabuleiro e, outra vez, a suar.
— Da casa do meu pai! E o vinho é da quinta!

Quem era aquele homem que o recebia e lhe dava de comer? Conhecera-o há tantos anos e só o encontrava de vez em quando, sempre o mesmo, a estender-lhe a mão franca. Bernardo sentou-se no velho maple, olhos fitos nele, à espera.
— Passaram tantos anos! -disse Andrea.
— Tantos anos! Tantos meses e dias!

A pouca vergonha dos dirigentes do futebol: estou do lado do Braga ao qual querem proibir ser campeão: uma Federação vendida!




Ao ataque à Comissão Disciplinar da Liga


No dia seguinte a ter-lhe sido negado provimento ao recurso apresentado contra os castigos aplicados a Vandinho, Ney e Mossoró, o Sp. Braga lança duro ataque à Comissão Disciplinar da Liga*****. Em comunicado, acusa-se o órgão de levar a cabo campanha contra o clube e pede-se também a demissão do seu presidente, Ricardo Costa.Eis o comunicado na íntegra: Na sequência da deliberação do Conselho de Justiça de negar provimento ao recurso interposto das decisões da Comissão Disciplinar da Liga, em consequência das ocorrências do jogo disputado entre Sp. Braga – Benfica, no dia 31 de Outubro de 2009, no Estádio AXA, vem o SC Braga comunicar o seguinte:



1. A deliberação do CJ da Federação, de negar provimento ao recurso interposto das decisões da CD da Liga aos castigos aplicados aos atletas Vandinho e Mossoró, são o reflexo da actual situação em que se encontra o dirigismo das instituições desportivas em Portugal e muito em particular no campo da justiça desportiva.



2. A suspensão por três meses de um atleta por uma suposta tentativa de agressão, tendo por base uma acusação apresentada pelo alegado ofendido, quando resulta claramente de imagens divulgadas publicamente (e que podem ser visionadas no site oficial do SC Braga) que esse alegado ofendido foi quem na verdade agrediu o atleta acusado, só pode envergonhar todos que deliberaram nesta irracional decisão.



3. A suspensão do atleta Vandinho vai para além do limite da inteligibilidade, apenas se compreendendo pelo incómodo que o SC Braga vem causando com a sua posição na tabela classificativa. Porém, apesar das adversidades criadas, a resposta do SC Braga continuou a ser dada dentro do campo e assim vai continuar.



4. Ninguém precisa de ser especialista em direito para concluir que esta decisão é injusta. O SC Braga acredita que os jogos ganham-se dentro de campo e não nos gabinetes da Liga, mas os indícios são demasiados óbvios para haver dúvidas sobre a natureza da presente decisão e dos interesses que a mesma serve.



5. Na sequência do referido jogo SC Braga - SL Benfica – que certamente foi de digestão bem difícil para alguns organismos da Liga – o SC Braga foi alvo de uma vergonhosa campanha levada a cabo pela CD da Liga, ao “melhor” estilo inquisitório, que faria certamente a PIDE parecer meninos de coro. Para além de vários jogadores do SC Braga serem alvos de processos pelos casos mais ridículos, há ainda um sem número de processos instaurados na sequência do referido jogo:- Foi punido o SC Braga pelas situações de confusão geradas no túnel (aos atletas do SL Benfica nada aconteceu, e certamente que não foram os jogadores do SC Braga que se empurraram mutuamente…);- Foi punido o SC Braga por efectuar um comunicado a mostrar-se indignado com a difusão das imagens do túnel (o SLB também falou mas mais uma vez...nada); - Foi acusado o presidente do SC Braga pela CD por difundir uma carta aberta aos sócios a pedir o apoio dos mesmos (aguardamos a condenação); - Foi acusado o presidente do SC Braga por se encontrar numa zona de acesso aos escritórios da Administração da SAD (curiosamente, também estavam no mesmo local o presidente do SLB, com outros elementos da direcção e da segurança privada do SLB, que naturalmente não foram acusados de nada);- Etc, etc, etc…6. VERGONHOSO! ULTRAJANTE! São tudo adjectivos que pecam por escassos face ao vil ataque que o SC Braga tem sido alvo por parte da CD da LPFP, em processos que se sucedem e mais não visam do que tentar destabilizar ou enfraquecer o SC Braga. É inqualificável a perseguição que tem sido feita ao SC Braga com a constante instauração de processos e com o uso de dois pesos e duas medidas por parte da CD, que tantas vezes fecha os olhos a agressões claras de atletas a colegas de profissão, mas que pune os atletas do SC Braga sem qualquer tipo de factos que fundamentem as decisões. 7. O SC Braga estranha ainda que, em face da demissão do presidente da Liga, outros não lhe sigam o caminho, nomeadamente, o presidente da CD. Será que ainda tem uma missão a cumprir? Será que ainda não chega de prejudicar o futebol português e, no caso particular, o SC Braga? Será que não chega de protagonismo desmesurado e vaidades pessoais? Ou será que não se demite porque não o deixam?8. O SC Braga não teme os processos que lhe vão ser movidos pela CD face ao presente comunicado. Nem a CD nem nenhum órgão da Liga têm o poder de calar o SC Braga - podem tentar, mas não vão conseguir! 9. Este é um clube de Guerreiros, do Minho, fiéis aos seus valores, aos seus princípios, na defesa dos quais lutaremos até morrer, e apesar das injustiças e contrariedades, este espírito vai continuar a guiar os nossos atletas e os nossos adeptos nos confrontos que se aproximam.
*****aqui repito que sou benfiquista dos do 3º anel... mas corrupção é... corrupção...

transcrito, com a devida vénia, de A Bola de hoje

O grande naufrágio





El Roto, in El Pais de hoje


"-Na luta para não largar o leme, afundaram o barco...




Eu diria: a ganância e a ânsia de encher o tacho deram cabo da sociedade em que vivíamos e barco, agora, só se for um lugarzinho na Arca de Noé...

Um admirável pintor nórdico, uma revelação para alguns que vale a pena trazer aqui...

óleo de Christian Kobek (1810-1848), sem título



'Infinita Sabedoria', óleo do mesmo pintor



Christian Købke: Nordic exposure
Danish master Christian Købke painted empty skies, intimate portraits and melancholy landscapes. Jonathan Jones gets lost in a world of infinite mystery

by Jonathan Jones

When the Danish painter Christen Købke set out to depict the sprawling architectural mass of Frederiksborg castle, a dark genius seemed to possess him. The castle was a national landmark, and in the Romantic age was being rediscovered by writers and artists as a relic of Denmark's glorious history: here was a great relic of the Danish renaissance, now long past. Like the devil tempting him to fly, this genius urged him to go up, up – higher, higher – into one of the soaring towers of the castle, to look down on its black rooftop and over the still landscape beyond. Look, look, said the devil, look into that sky. How empty it is – how infinite!

Købke drew the scene from the loftiest heights of the building and then, back in the studio, painted from memory, painted it exactly. Like a brutally cropped photograph, his view from Frederiksborg's high towers takes in a roof as abstract as a bar placed across the canvas, a red rectangle of a chimney, the spire of a tower and the woods over the silver water. Yet this fills only the lower third of the canvas. Above there is nothing but air, the immense space of an illuminated sky. It seems to be pressing down into nothingness.

Købke's painting Roof Ridge of Frederiksborg Castle, with View of Lake, Town and Forest (c1834–5) is a disconcerting masterpiece of Scandinavian art. Its empty sky, its melancholy attention to the unvisited heights of a building, can be seen as a precursor of the chilled fjord scenes painted by the Norwegian artist Edvard Munch half a century later.

Comparisons with Munch might not be the first thing to strike a visitor to this new exhibition at the National Gallery in London, Købke's first outside Denmark. Initially, this feels like an introduction to Copenhagen's own Jane Austen: a sensible, modest artist who patiently worked his little bit of ivory, portraying the people around him in calm, finely observed pictures of bourgeois life. Are the curators attempting to overturn the cliched view that Scandinavian art is, um, exciting? If you thought artists in the north were all about revelations of the sublime and encounters with the abyss – from the eerie Romanticism of Caspar David Friedrich to the modern light art of Olafur Eliasson – then huh, what do you know? Here is a Danish artist of the Romantic age, regarded by Danes as the greatest of his time, and he is so sensible, looking at his work is like going to church.

But this is not the whole story, not by any means. Købke's quietness is filled with strange imaginative wanderings. His eye seems drawn to the interstitial, the neglected, the silently waiting. Even if there was nothing Romantic about his art, the brevity of his biography would qualify him as one of this breed: the son of a prosperous Copenhagen baker, he was born in 1810, and dead by the time he was 37. A lot of his life was spent in the Citadel, a vast fortress built to defend Copenhagen's harbour, and in his time used as a prison; his father was the prison baker. From his paintings, you would never guess its military origins, or that it housed prisoners locally known as "slaves". Or would you?

A sky tinged with blood

Købke is drawn to the fortress's gatehouses and drawbridges, which he paints with a hypnotic sense of time slowed to a snail's pace. For instance, his 1837 picture The Northern Drawbridge of the Citadel in Copenhagen, concentrates on the red wooden structure that suspends the bridge over mirroring still water: ice-cold water, surely. People stop on that bridge and beside the moat, staring or talking quietly. Above and beyond, we see that empty sky again: it is tinged with salmon pink, as if blood were running from the bridge's frame into the ether. At first glance so placid, this painting lures you into a frozen moment, so that you share the introspection of the people in it; you, too, are passing time by the bridge, gloomily. It reminds me of Munch's paintings of young women gazing into Oslofjord, to the extent that I wonder if Munch saw this work. It resembles a Van Gogh painting of a similar drawbridge structure near Arles. Købke, like Van Gogh, appears attracted to the eccentricity of the framework, which becomes troubling and uneasy.

The difference between Købke and these later heroes of the northern vision is that he revelled in a precise academic style. At the time, Copenhagen's Royal Academy of Arts was one of the most highly regarded schools in Europe when it came to drawing and painting in the classical tradition. And Købke was a good pupil. His paintings testify to his belief in the Greek style, in close study of the human figure – all the rules of academic art that European painters were to rebel against 50 years later. Købke's painting of a male nude is in a tradition that goes back to Michelangelo and Raphael. His 1830 painting View of the Plaster Cast Collection at Charlottenborg shows a curator wiping dust off a pedestal beneath a cast of a Greek hero fighting a centaur from the Parthenon.

And yet, look again at this painting. The wan contemplative spirit of Scandinavian art once again creeps in, over the shelves, infusing the silver light. Why show a man dusting? It is a pessimistic detail, and reminds us of the existence of dust. The custodian is engaged in the daily battle to keep these fragments white and gleaming. Suddenly we are there, in this empty gallery, on a freezing morning, watching this man dust antiquities in the gelid, vodka light.

Back at the castle, Købke stands by the lake and watches evening redden the sky. The mass of red walls and spired towers is reflected in the water precisely. Dark shadows glare from the palace windows. Strands of cloud hang in the emptiness. Købke is a patient, careful artist, but what he records, so accurately, is a world whose routines seem poised on the edge of infinite mystery. He is a craftsman of the abyss.

transcrito, com a devida vénia, de The Guardian, 24/03/2010

'O Pássaro de Vidro' -III Parte XI

'Madonna', óleo de Edvard Munch (1863-1944)



Alberto Memmo, enganara-se: nada estoirou nem acabou. Durante aquela noite e até tarde, Andrea seguiu Lorenza. Não voltaram a falar-se, mas ele não a deixou, sempre atrás. Ia enervado, ofendido, mas não a deixava. Talvez quisesse deixá-la, ou talvez não quisesse. Ia preso a ela, revoltado. Gostava dela — ah! isso, sim, gostava! —, mas qualquer coisa o empurrava e lhe dizia que devia ir-se em­bora. Mas resistia: “Por enquanto, não”, ela ainda precisa de mim...”

Ela ia aos bordos, perdida de bêbeda, nunca a tinha visto naquele estado. Nessa noite, as coisas foram dife­rentes, parecia que ela nascia outra vez e que os encontrões que dava eram a maneira de pedir que a amparassem.

“Que menino Jesus! Vai com a fralda de fora mas não posso fazer nada. Está frio e ela vai mal agasalhada e bebeu de mais. Foi sem­pre assim, andou sempre com a fralda de fora mas não deixa que a gente lha componha. E, agora, se calhar, já é tarde.”

Ele não podia ampará-la porque ia atrás e quem lhe dizia que ela queria que ele a ajudasse? Avançava tão decidida! Atirava-se com tanta facilidade contra o que encontrava, sem medo de se magoar! E magoava-se, não tinha mãos para aquilo: punha-as à frente e eram duas coisas brancas, não sabia que os outros não a viam e poderiam magoá-la. Seguia-a, indeciso, com vontade de a puxar pelas asas e de a sentar ao colo e, ao mesmo tempo, disposto a deixá-la ir, a assistir ao voo sem o cortar, para onde ela quisesse ir, mesmo que fosse direita àquilo, ao sítio onde só arranjava nódoas negras e a troça dos outros.

“Não posso fazer nada! O que é que eu posso fazer? Nunca me ouviu!”

Ela encostou-se à parede e começou a vomitar. Perdeu as forças, caiu de joelhos, deitou o vinho pela boca, a tremer e a suar, e os outros pegaram-lhe e levantaram-na. Nem se mexeu. Se lhe tocasse, era capaz de o empurrar e de lhe dizer que não o queria ao pé. Já bastava. O amor deles fora sempre uma desgraça.

Ela virou-se, com a boca suja, fitou-o nos olhos e virou-se para a parede e continuou a vomitar. E fez isso mais de uma vez.

Deram-lhe uma garrafa de água e Lorenza despejou-a em cima do vomitado. Chorava, encostada à parede, com as pernas abertas para não sujar a saia. Levantou-se e recomeçou a andar. E, porque ia inclinada e tropeçava, os cabelos loiros cobriam-lhe o rosto e um dos ombros levantava-se mais do que o outro.

Foram assim, chegaram ao Rialto, e ela olhou para Andrea, não sabia onde ir. Os olhos marejados e a boca inchada, virou a cara para ele e não afastou os olhos. Foi ele que os desviou. “A culpa é dela. Parece uma vítima a acusar os outros. Que culpa é que eu tenho?”

— Vou-me embora. –disse Andrea.
— Fica. –respondeu Alberto.
— Não vale a pena. O que é que fico a fazer? Já a viste? Anda aos pulos, na comédia dela. Dá aos braços, mexe o corpo, mas, se alguém se aproxima, atira-se para o chão e desmaia e, depois, começa outra vez a agitar-se, aflita. Achas que é esta a minha vida?, viver a dela? Tenho outras obrigações, o meu filho e o meu trabalho.
— Às vezes andamos a correr à volta do que não nos dá nada e é melhor agarrarmo-nos ao que há.
-E depois?
— Mais vale uma pomba na mão do que duas a voar.
— Tens razão. Vou agarrar-me ao que puder. E é por isso, que me vou embora.

Cortou direito a S. Polo, pela Ruga Ravano, mas, antes, ainda se voltou, a ver se ela olhava para ele. Não olhava, ficara encostada a um dos amigos, com a cabeça caída.

“Não parou de vomitar, já não tem forças. Que a aturem! O que eu preciso é de descanso!”

E, nas semanas seguintes, descansou. Quando voltou a Veneza, não foi à procura de Lorenza. Em Treviso, não quis notícias dela. Depois, começou a perguntar. Estava bem, diziam-lhe, aparecia no Paolin e em Cannareggio, sempre rodeada de amigos, feliz. E, quando ele perguntava: “Anda aos tombos?”, respondia-lhe Alberto Memmo: “Não. O norte dela é como o dos outros.”

Concorreu a um lugar no Hospital de Milão e foi aprovado. Desligou-se de Veneza, fechou o consultório de Treviso e começou outra vida. No comboio que o levava a Milão, recordou Lorenza mas tão esbatida à força de o querer, era uma figurinha no vidro fustigado pela chuva, perdida na paisagem lombarda, úbere e doce.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Mas, felizmente, Jessye Norman também sabe... para aliviar...


Infelizmente, ele sabe o que faz...

... o ministro do nosso dinheiro...

Ou este governo anda às aranhas ou se deixa andar nas más bocas do mundo... Ora bem!: quem fica com a RTP???

...quando é que este governo fala direito?...


Revisão da lei da TV a curto prazo
Governo nega intenção de privatizar RTP


O ministro dos Assuntos Parlamentares, Jorge Lacão, recusou esta manhã, no Parlamento, qualquer intenção de o Governo privatizar a RTP.
O ministro diz que a privatização da RTP não está no programa de Governo (Pedro Cunha)
"O Governo não tem intenção nem o fará [privatizar a RTP]. O que o ministro das Finanças disse ontem é que o esforço de saneamento financeiro da RTP é de tal maneira importante que qualquer operação de privatização não dispensaria o trabalho de conclusão do saneamento financeiro", afirmou Lacão em resposta a questões do deputado social-democrata Agostinho Branquinho.A privatização da RTP, acrescentou o ministro, "não resulta do programa de Governo nem do Plano de Estabilidade e Crescimento relativamete às privatizações".Jorge Lacão anunciou também que a revisão da lei da televisão está a ser ultimada, devendo ser apresentada nas próximas semanas. E a nova lei da rádio será colocada em consulta pública já na próxima semana.
transcrito, com a devida vénia, do Público de hoje

Afinal o mistério é simples de desvendar: bastam as máquinas e os seus "produtos culturais"...

Erlich, in El Pais, 24/03/2010

"-Quem disse que era difícil encontar o sentido da vida? Googel deu-me 40.700.000 respostas em 0.27 segundos.

Portugal o Euro e o que temos de saber...




La primera crisis del euro
Fitch rebaja un peldaño la calidad de la deuda de Portugal por su déficit

La decisión de la agencia complica el acceso del país a los mercados para financiarse.- La entrada del FMI en el plan de rescate griego lleva al euro a su mínimo en diez meses

La agencia de calificación Fitch ha rebajado en un peldaño la calidad de la deuda de Portugal a largo plazo de 'AA' a 'AA-' por su elevado déficit, y la ha situado en perspectiva negativa, lo que supone que es más probable que lo vuelva a bajar que los suba. La reducción de la nota complica su financiación en los mercados internacionales al obligarle a pagar mayores intereses aunque, de momento, la publicación de la decisión ha sido suficiente para frenar las ganancias en las
bolsas europeas de primera hora y arrastrarlas a pérdidas.


La razón que ha esgrimido Fitch para recortar la nota de la deuda soberana del país es la situación de sus finanzas públicas. Portugal cerró 2009 con un déficit del 8,3% y, al igual que Grecia o España, se ha visto obligado a aprobar un duro plan de austeridad para devolver sus números rojos por debajo del límite del 3%. Sin embargo, aunque considera que el plan es "creíble", la agencia duda de que la subida de impuestos a las rentas altas y la congelación de los sueldos públicos, entre otras medidas, aprobadas por el Gobierno luso sean suficiente para lograr sus objetivos durante los dos próximos años ante la persistencia del deterioro económico. Sobre todo entre 2012 y 2013. Por este motivo, deja abierta la puerta a nuevos descensos en su rating en este periodo.


"Aunque Portugal no ha sido de los países más afectados por la recesión internacional, las perspectivas sobre su recuperación son las más débiles entre los socios de la eurozona, lo que añadirá presión a la consolidación fiscal de sus cuentas en el medio y largo plazo", asegura en un informe Douglas Renwick, director asociado de Fitch. A finales del pasado año, la rebaja de la nota de la calidad crediticia de Grecia al nivel de bonos basura (BBB+) ante la posibilidad de un impago en su deuda originó la primera crisis de la eurozona y que aún no se ha solucionado. En este caso, Fitch asegura que la posibilidad de que Portugal entre en una crisis de liquidez es baja.

El euro cae a mínimos en diez meses

En los mercados de divisas, la posibilidad de que, al final, el FMI entre en la operación de rescate de Grecia ha arrastrado al euro a su nivel más bajo de los últimos diez meses en su cotización contra la divisa estadounidense. Las dificultades de pactar una solución eminentemente europea entre los socios del euro ha infundido cierta desconfianza en la fortaleza de la divisa europea, lo que le ha llevado a perder la barrera de los 1,34 dólares (1,3381) por primera vez desde mayo de 2009, una depreciación que favorece especialmente a las exportaciones alemanas entre los estados de la Unión Monetaria.


Para los analistas, las severas condiciones que Alemania ha puesto sobre la mesa para apoyar el plan hacen improbable que los líderes de la UE lleguen a un acuerdo en la cumbre que empieza mañana, jueves, tal y como reclama Atenas. "Ya sea la UE o el FMI, la operación de rescate sigue siendo algo incierto", ha afirmado a Reuters Masafumi Yamamoto, jefe de estrategia de divisas de Barclays Capital en Tokio.
La divisa ha retrocedido un 6,3% en lo que va del año, su peor evolución desde 2005, cuando cedió un 12,7% en el mismo periodo. Además, ha establecido un nuevo mínimo histórico frente al franco suizo en 1,4233 unidades, lo que podría forzar a una nueva intervención del Banco Nacional de Suiza para frenar el fortalecimiento de su moneda.

transcrito, com a devida vénia, de El Pais de hoje

'O Pássaro de Vidro'-Parte III X

'Vampiro', óleo de Edvard Munch



Toda a gente os via: Lorenza esfuziante e Andrea à espera que ela se acalmasse e a imitá-la. Via-os Alberto e via-os Caterina, também por aqueles sítios. Entrara na Viúva e deparara com eles de sala em sala, de mesa em mesa, a representarem.

“Parecem uns palhaços! Não devem ser felizes.”

Antes, quando andava com ele, julgara que era Andrea que dependia de Lorenza e essa sujeição revoltava-a: o homem de quem gostava nas mãos de uma qualquer, o homem com quem dormia e a quem se dera, degradava-se, consentindo. Agora percebia que era um desastre. Ele não se degradava, precisava daquilo. Acontecera que, ao abraçá-lo, sentira que lhe fugia e, por mais que o apertasse e beijasse, o seu corpo não lhe pertencia, chegava ao prazer e ele também e eram duas coisas distintas, não se misturavam. “Por onde anda? Com aquela idiota? Coitadinho! Não merece!” E, porque gostava dele, vinha-lhe vontade de continuar a abraçá-lo e a amá-lo: “É frágil, é ela que abusa”. Mas reparava que Lorenza dependia de Andrea: sem Andrea a olhar para ela, o teatro de Lorenza, a comédia, os movimentos desgarrados perdiam a razão de ser e desarticulava-se, ficava encostada aos cenários, com uma expressão parada e cabelos de palha.

— Não achas? — perguntou a Alberto.
— O quê? — disse o Memmo, sobressaltado, quase a entornar o copo.
— Não achas que parece um mordomo atrás de uma falida?...
Alberto espreitou-a pelo rabo do olho:
— Quem?
— Aqueles dois. Vieste com o Andrea?
— Não, já cá estava —mentiu Alberto.
-Está sempre toda a gente aqui...
-Tens razão, Veneza é um mundo que nos atira para cima uns dos outros.
E, já seguro de si, perguntou:
— Tens ciúmes?
— Eu não.

Era-lhe indiferente o que pensava Alberto. Não a afligiam os ciúmes, tinha pena deles, quando os outros se riam de Lorenza, que falava alto e de Andrea, que a acompanhava.

—Os amantes são assim. —disse Alberto, com voz arrastada, não por causa do vinho, mas porque lhe custava— Agridem-se e não sabem estar juntos.
— Isso é filosofia! — respondeu Caterina, a roubar-lhe um gole do copo — Quem ama, não larga! Agarra até não poder mais, aperta, até que seja só o calor do outro.
—Filosofia tua...
-Será.

Talvez Alberto tivesse razão: juntava palavras e esquecia-se de que mandara embora Andrea, quando se cansara. Mas viu Lorenza que se virou para Andrea e lhe agarrou o braço, lhe sorriu e encostou-lhe a cabeça no ombro, durante um instante não se mexeu e, depois, empurrou-o com as mãos que o haviam abraçado, baixou os olhos, deixou-o e foi para outra mesa.

“Vai à espera que vá atrás. Serão filosofias mas acontecem. Eu procedi de outro modo. Fui para a cama com ele, estive na sua casa e com o filho, recebi-o no meu quarto, ia ficando grávida por sua culpa. Mas deixei-o, quando foi preciso. Esta nunca mais o larga.”

E disse:
— Talvez. Mas, se uma pessoa não anda com quem ama, com quem é que anda?
E o Memmo, que não queria ter ilusões, disse:
— Anda ao que pode. Somos todos criaturas de Deus, não sabias? Criaturas de Deus, no amor e no disparate. Como nós, não é verdade?

Ela compreendeu a ironia: julgava que queria diminuí-los, vingar-se, que se chegara à procura de um parceiro. Enganava-se. A força do amor deles impressionava-a. Era só isso. Também, a inveja que não confessaria. Nunca mais haveriam de separar-se aqueles dois. Não se entendiam mas continuavam a tentar entender-se. Feriam-se e feriam-se voluntariamente. Provocavam-se, magoavam-se e sabia que era a maneira de tentarem continuar juntos, apesar do medo.

“O medo, eu também o tive! Viver com uma pessoa para sempre! E daquela maneira! Despedaçam-se!”

-Sabes, não sabes?
-O quê, Alberto?
-Quanto mais os amantes querem possuir-se mais, instintivamente, se defendem e se recusam.
-Eles não são amantes.
-É ainda mais triste.
-Eles não são amantes...

Andrea e Lorenza iam além do que alguma vez ela seria capaz. Não se deixavam, insistiam na dificuldade, aceitavam a luta e era a esperança que lhe fazia inveja. Esperanças tivera muitas, mas aquela! É verdade que se arranjava mas, enquanto se lembrasse deles, ficaria hesitante, entre os dois modos: o dela, que cortava a direito e o de Andrea e Lorenza, que pareciam girar um à volta do outro, apaixonados, sem quererem partilhar o amor. Consolava-a pensar que não tinham coragem mas, nesse girar à volta, reconhecia qualquer coisa que a afastava e que, sem ela, viveria: o amor deles. E doía-lhe.

-Olha! — exclamou Francesco Orio. — Ainda acaba mal!

Juntara-se um grupo e, a meio, Andrea discutia. Ouviam-se gritos lá ao fundo.
— Vão pegar-se à porrada — disse Alberto.

Andrea agarrou um pelo casaco e sacudiu-o, ao que esse reagiu, fazendo o mesmo. Abanaram-se e insultaram-se.

— Não se resolvem... —comentou, pesaroso, Francesco.

Os circunstantes interpuseram-se, eles continuaram a gritar e nada mais.

— Era por causa da Lorenza — explicou Alberto — O outro deve ter sido malcriado e a Lorenza está nervosa.
— Já se esqueceram. Já lhes passou o nervoso. Fazem estas fitas e depois esquecem.

“Que azar!”, pensou Caterina “Que fitas inúteis!”

E, quando menos o esperava, ou esperava-o?, porque nunca tirara os olhos dos dois, viu uma coisa que a chocou e afligiu: os outros metiam-se ao meio e aquele que Andrea abanara, de braços caídos, ria-se-lhe na cara e Lorenza espreitava de viés e ria-se. Depois,, pendurou-se do que a ofendera e foi com ele. Foram direitos à porta, ela a equilibrar-se no seu braço.

-Agora é que isto estoira!
— Para mim já acabou, Alberto. — disse Caterina— Tenho de me levantar cedo. Boa noite.

E deixou-os assistirem ao resto. Era com eles e não queria meter-se, outra vez, ao meio. Se pudesse, arrancava-os dali, mas não podia. E deixou-os como se fossem doentes e lhes faltasse ar para respirarem.