
Sete anos depois, —passaram depressa, tão depressa que se diria impossível — Andrea e Bernardo Dillon encontraram-se em Milão, num café da galeria, junto à Catedral.
—Por aqui? — exclamou Andrea.
— Tu?! Há quanto tempo!
-Séculos!
Abraçaram-se e sentaram-se, a olharem um para o outro.
— A tua vida? — perguntou Bernardo.
-Sem problemas, gosto do meu trabalho. Ninguém me incomoda.
— E o Roberto?
— Também não tem problemas. Cresce. É bom aluno.
— Deve estar um homem. —disse Bernardo, com as mãos apoiadas nas pernas gordas— Já tem quantos anos?
— Quase dezassete.
Enquanto o criado anotava o que pediam, Bernardo comentou:
-Foi num ápice! Nem demos por isso! Eu bem te procurei mas tu nunca mais disseste nada! Nem tu, nem a Luísa! E nunca mais te encontrei em Veneza!
-A Luísa? Não sabes que nos separámos? E por que é que havias de encontrar-me em Veneza? Eu nunca lá vivi!
— Tens razão, tens razão. A Luísa! Que disparate! Mas via-te em Veneza. E como desapareceste... Passou o tempo, foi o que aconteceu!
Engoliu de um trago meio copo de cerveja e, sempre agitado, os punhos da camisa a saírem do casaco, as calças apertadas a mostrarem as peúgas brancas, limpou a testa:
— Não vives em Veneza mas de cada vez que lá volto lembro-me de ti.
E ficou com o lenço na mão, a suar, porque sabia que dissera uma asneira e não podia emendá-la.
“Este sua sempre... -pensou Andrea- E ainda nem chegámos à Primavera!”
Era ao cair da noite de um dia de Março de 1986 e as pessoas apressavam-se, cobertas de abafos. Espreitavam-nas do lado de cá dos vidros.
“Quando aquecer, como se governa?”
-Não voltámos a encontrar-nos porque não me procuraste!
— Isso não é verdade! Telefonei-te muitas vezes!
— Para onde?
— Para casa!
— Qual?
— A de Treviso!
-Mas eu já não vivo em Treviso!
Desarmado pela aflição de Bernardo, tocou-lhe o ombro.
— E tu que andaste a fazer?
Bernardo deu um pulo na cadeira.
— Nem imaginas! Consegui!
— Conseguiste o quê?
— Consegui que me deixassem trabalhar! Consegui o dinheiro para o laboratório e já tenho mais dois colegas comigo! Às vezes, lá vou às apendicites... Mas só às vezes. Lembras-te? Tu com a mania de seres um João-Semana e eu à volta dos vidros e das pipetas? Dizias que eu tinha medo das pessoas e empurravas, puxavas-me o casaco. Talvez. Mas, olha, em Bassano...
E falou-lhe do hospital, das dificuldades e das alegrias. Falou muito. Andrea parecia-lhe inquieto. Continuou a falar, queria dar-lhe amizade e tinha medo que ele se fosse embora.
— Conseguiste isso tudo? Bravo! Muito bem! Ficaste satisfeito?
-Fiquei —disse Bernardo, a desconfiar das palavras do amigo, não estava habituado àquele tom nem à ironia, antes não era assim, e assustava-o- Achas que não devia?
— Fizeste bem. Quantas vezes me lembrei de ti! Também eu pensei em procurar-te.
Bernardo apressou-se a responder:
— Tenho uma casa muito bonita em Bassano. Não é nenhuma maravilha mas cabemos todos.
Sorriu e acrescentou:
-Não chove lá dentro... Podes lá ir quando quiseres. Por que é que não vamos, hoje? É quinta-feira. Dás uma desculpa no hospital e ficas até segunda. Fazes um telefonema!
Andrea sentiu outra vez ternura por ele e remorsos. Não tinha o direito de troçar dele, magoara-o e ele era seu amigo e não tinha muitos.
— Então, vamos?—insistiu Bernardo, que lhe lera nos olhos—Que ficas a fazer aqui? Já trabalhaste bastante!
— A maçada que te vou dar!
— Nenhuma! Antes pelo contrário!
— E o jantar?
— Comemos qualquer coisa pelo caminho.
Levantaram-se, sem acabarem as cervejas, e foram por entre as pessoas agasalhadas e as luzes dos cafés e das montras, lado a lado.
—É frio de neve! — disse Bernardo— Olha o fumo que eles deitam!
— A humidade...
-E a respiração!
— Pois claro. — concordou Andrea, feliz: Bernardo ia a esfregar as mãos e a tremer, encolhido no casaco de carneiro e, porque não queria perdê-lo, explicava-lhe o que ele já sabia. Sorriu:
“Isso faz-lhe bem. Tão frágil e tão forte, tão concreto, até me pesam o seu ombro e os oitenta quilos... E a dizer-me estas coisas, para me agarrar. Mas pode perder-se a amizade?”.
A caminho do carro, exclamou:
— Bernardo, olha a Ursa Maior e a do Norte!
O céu mostrava as constelações e a estrela do Norte.
“Há tanto tempo, ali!”, pensou Bernardo. Meteu o braço no de Andrea, e chegou-o a ele.
— Vais ver mais! A Via Láctea, a Ursa Pequena e as outras estrelas que estão lá em cima! Da minha casa alcança-se tudo!
Bernardo, gordo e desastrado, falava das estrelas, de Veneza, do que devia ser e do que não devia, oferecia-lhe a casa, confiava-se.
— Deve ser muito bonito!
Uma casa isolada, nos arredores de Bassano, o vasto jardim, virado para as luzes da cidade, as estrelas, as constelações e, fixa, lá voltava a do Norte.
-Eu levo as malas.
Bernardo parara o carro frente à casa e sossegava o cão, que saltara ao caminho, a ladrar e de orelhas espetadas.
— Zac! Quieto!
— Deixa as malas! Não te doem as costas?!
Tinham viajado durante três horas no pequeno carro — um velho Morris —, doíam-lhes as costas, tinham sede e fome. Bernardo meteu-se na cozinha a preparar bebidas e comida.
— Senta-te, está à tua vontade!
~
Andrea deixou-se cair num sofá e entregou-se à paz da casa. Esticou as pernas e reparou na sala ampla: em frente, um maple de couro gasto, a cobrirem as paredes, livros e quadros, à sua esquerda, a grande lareira de pedra, que iam acender. Viu o cão deitado ao lado e pensou que fora para isso que viera: queria estar tranquilo e descansar na companhia do amigo. Tudo quanto acontecera dizia-lhes respeito. Aceitara o convite, precisava de desabafar. Os anos tinham pesado, em Milão, sozinho, com as raras visitas de Roberto e as viagens a Treviso, as amigas iguais às do Cesenatico, que duravam pouco.
Bernardo voltou da cozinha, triunfante, os enchidos, o pão e o vinho, a barriga a amparar o tabuleiro e, outra vez, a suar.
— Da casa do meu pai! E o vinho é da quinta!
Quem era aquele homem que o recebia e lhe dava de comer? Conhecera-o há tantos anos e só o encontrava de vez em quando, sempre o mesmo, a estender-lhe a mão franca. Bernardo sentou-se no velho maple, olhos fitos nele, à espera.
— Passaram tantos anos! -disse Andrea.
— Tantos anos! Tantos meses e dias!