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quarta-feira, julho 23, 2025

Na solidão de Ingmar Bergman

Persona (1966): Liv Ullmann no papel de Electra

Como escrever sobre os filmes de Bergman? Como desafiar os limites da própria crítica? Talvez em forma poética — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 julho).

Num misto de encanto e distanciamento, como quem consulta um tratado que escapa às regras comuns dos tratados, descubro o livro O Desembarque das Ondas, publicação da Livraria Linha de Sombra Editora, de João Coimbra de Oliveira (sendo essa também a designação do espaço de livros e cinefilia que podemos visitar no andar de cima da Cinemateca Portuguesa). Descoberta algo tardia, é verdade, já que se trata de uma edição de novembro de 2024, motivada por um evento de 2018.
Recapitulando. Em 2018, precisamente, decorreu em Lisboa, no Cinema Nimas, um ciclo da Medeia Filmes a assinalar o centenário de Ingmar Bergman (1918-2007). Foram dirigidos convites a vários autores portugueses que, depois de verem ou reverem os filmes programados, em prosa e sobretudo poesia, escreveriam a partir da sua experiência. O número de contribuições foi-se alargando e o resultado é esta antologia com mais de 70 autores. Não exactamente “sobre” o cineasta, antes aplicando a escrita como aventura, questionamento e, por fim, oferenda — daí o subtítulo: “Antologia para Ingmar Bergman”.
Entenda-se: “para” Bergman significa escrever “com” Bergman, num atrevimento afectivo de que as palavras são o instrumento, a matéria e, por fim, o texto. Trata-se de seguir os caminhos ínvios dessas mesmas palavras, já que, como nos ensinou Roland Barthes, a escrita é “a ciência das fruições da linguagem”. No seu texto, António Cabrita aponta o extremismo poético de tudo isso, fixando-se no silêncio de Liv Ullmann em Persona (1966), ela que interpreta uma actriz que “perde” a voz, em palco, ao representar a personagem de Electra: “Um dia, em Electra, viu que estava / no palco errado. Como retribuir / o silêncio do público, enganando-o?”
Com o seu título “roubado” ao poema de Daniel Jonas, O Desembarque das Ondas organiza-se — ou desorganiza-se, mas vai dar ao mesmo — como um desafio a esse assombramento primitivo do cinema: na sua vibração, as imagens tendem a anular a “necessidade” das palavras, o que, bem (ou mal) entendido, não nos faz desistir de falar sobre os filmes.
Creio que é algo dessa contradição muito humana que está no poema de Helga Moreira: “Onde nem distraída se instala a fala. / O desamparo fecha-nos a boca / põe no olhar, no sorriso, legendas.” E também na pergunta/resposta que O Sétimo Selo (1957) suscita a Hélia Correia: “E quem assiste ao jogo? A morte assiste.” Ou ainda na proclamação ambígua com que Pedro Mexia começa a sua evocação de Luz de Inverno (1963): “O mundo está cheio / da glória de Deus.”
Vale a pena acrescentar que tudo isto envolve uma revalorização daquilo que no discurso crítico sobre os filmes procura, não “explicá-los”, antes caminhar com eles, enfrentando as perplexidades e os silêncios que habitam as suas imagens e sons. Neste tempo marcado pela miséria intelectual de muitos “influencers”, tratando os filmes como “fast food”, eis o cinema, aliás, as artes celebradas como origem e cenário de uma “reacção em cadeia”. Que acontece, então? Gera-se uma “nuvem de estilhaços que transportam um pouco do fogo original e se tornam eles próprios no fogo original de outros estilhaços” (cito o prefácio de Luís Miguel Oliveira).
São ideias que recusam as generalizações fáceis, a começar pela que insiste em definir “a” crítica como uma entidade compacta, em forma de rebanho. Muito pelo contrário, o trabalho crítico acontece através das infinitas diferenças que expõe e, na melhor das hipóteses, coloca em feliz coabitação dialéctica — estão em jogo componentes que “são únicas, pessoais e tendencialmente intransmissíveis” (como escreve Joana Matos Frias no seu posfácio). A obra de Bergman, justamente, tem o poder de nos confrontar com a verdade das nossas solidões.

sábado, junho 07, 2025

Política, margarina e um toque de semiologia

A Casa Encantada (1945): desenhado por Dalí, filmado por Hitchcock

Como pensar a televisão a partir do seu interior? Em boa verdade, a tarefa tornou-se quase impossível — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 maio).

Tempos houve em que, para algumas pessoas, era de bom tom tratar os críticos de cinema como uns rapazes esforçados e arrogantes que se distinguiam por uma ridícula obsessão: tinham a mania de analisar os filmes... Podia até sugerir-se que a complexidade narrativa de um filme de Hitchcock se aproximava da densidade de uma pintura de Dalí (trabalharam juntos, já agora), mas isso era irrelevante — “analisar” os filmes, que disparate...
Confesso que tenho saudades dessas atribulações das décadas fundadoras da nossa democracia, ainda que o fenómeno já existisse antes de 1974, tendo passado, incólume, de um tempo para outro. Era, pelo menos, possível compreender e, de algum modo, valorizar as diferenças com que vivíamos. Agora, entre política e futebol, a “análise” passou a ser um vírus televisivo, para mais ancorado num tique de linguagem que se tornou epidémico: o “analista” comum começa quase sempre com as palavras “eu acho que...” — tal expressão é aplicada como prova de uma verdade inequivocamente estabelecida apenas porque ele ou ela “acha que...”
Vem isto a propósito de um fenómeno paralelo cuja perversidade de linguagem me interessa e, perversamente também, me seduz. Assim, em alguns canais de televisão, têm surgido participantes em debates políticos que vão dando conta da sua indignação face ao automatismo com que qualquer evento em torno do partido Chega é rapidamente transformado em sobressalto “informativo”, mesmo quando (por mim, diria mesmo: sobretudo quando) não há nada de novo ou relevante para ser noticiado.
Roland Barthes
Abre-se, deste modo, uma saudável via de reflexão que, infelizmente, ninguém arrisca prosseguir. A saber: até que ponto a ascensão social de algumas forças políticas (não apenas em Portugal, como é óbvio) tem sido favorecida pela ligeireza com que determinadas linguagens televisivas excluem qualquer hipótese de pensamento, apenas celebrando o que possa conter alguma promessa de agitação ou conflito? Não há muitos anos, numa gritaria à porta de um estádio de futebol, e na expectativa de alguma confusão, um jovem repórter, aparentemente desiludido por não ter à sua frente uma altercação mais extremada, formulou mesmo a frase chave desta ideologia mediática: “Ainda não há violência...” A pergunta que ficou é esta: quem ensinou os jovens como ele a reportar aquilo que “ainda” não aconteceu?
Agora, pelo menos, há quem comente política no interior da televisão chamando a atenção para a grosseria cognitiva que a televisão, precisamente, pode assumir e propalar. Sinto-me próximo das suas preocupações, embora perguntando se têm consciência da ambiguidade do seu gesto. Entenda-se: não se trata de duvidar da sua sinceridade e isenção, do mesmo modo que ninguém está a sugerir que as televisões são cavalos de Tróia deste ou daquele partido. As questões em jogo são menos lineares e francamente mais incómodas. Acontece que esta denúncia televisiva da mediocridade (também) televisiva pode favorecer o perturbante fenómeno semiológico que Roland Barthes, nas suas Mitologias, chamou “vacina da verdade” (foi em 1957!!!).
“Um pouco de um mal reconhecido dispensa o conhecimento de muito mal escondido”, escrevia Barthes (a tradução é minha) a propósito da publicidade da margarina Astra. Eis a vacina da verdade. Primeiro, a margarina é apontada como um verdadeiro escândalo gastronómico: “Uma mousse feita com margarina? Impensável!”. Depois, emerge uma espécie de compaixão religiosa: afinal, “a margarina é um alimento delicioso, agradável, digestivo, económico, útil em qualquer circunstância.” Resume Barthes: ao aceitar a banalidade da margarina, normalizando o seu consumo, “a consciência suaviza-se".
A questão de fundo, creio, decorre de um facto que todos, analistas ou políticos (por vezes, analistas e políticos), continuam a recalcar. A dinâmica social da política — e, em boa verdade, toda a dinâmica social — passou a ser determinada, filtrada, organizada, decomposta e recomposta por linguagens de raiz televisiva. Eis um bom tema para analisar.

terça-feira, janeiro 02, 2024

Na solidão de Philippe Sollers

PABLO PICASSO
O Acrobata (1930)

Falecido em 2023, Sollers legou-nos uma obra em que a desmontagem da regra conduz à celebração da excepção — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 dezembro).

Philippe Sollers
Numa pesquisa rápida em algumas das maiores plataformas de venda de livros, procuro obras de Philippe Sollers (1936-2023) traduzidas em português. O resultado é eloquente: zero. Sinto-o como um eco incauto de muitos obituários rotineiros e indiferentes que deram conta do seu desaparecimento em meados deste ano — faleceu em Paris, no dia 5 de maio, contava 86 anos.
Se eu disser que considero Sollers um dos escritores e pensadores fundamentais da nossa contemporaneidade — o seu primeiro romance, Une Curieuse Solitude, surgiu em 1958 —, corro o risco de atrair mais um desses jogos florais “pró & contra” que todos os dias parasitam o nosso espaço (dito) de comunicação. Escusado será dizer que não tenho gosto em alimentar qualquer infantilismo do género. Além do mais, seria contrário à matéria e ao espírito da escrita de Sollers, autor sempre empenhado em denunciar a chantagem da regra, procurando escutar as razões, mesmo as menos razoáveis, da excepção.
Não por acaso, um dos seus livros de ensaios intitula-se Théorie des Exceptions (1986). Nele encontramos uma antologia de reflexões sobre as heranças de escritores, artistas e, como ele diz, algumas “insolências mais gerais”: Cervantes, Sade ou Proust; Rafael, Picasso e Bach; ou ainda “a ficção, a teologia, Freud”. São nomes que Sollers inventaria e analisa, lembrando uma “evidência” que se demarca, ponto por ponto, do aparato de consagrações que a cultura dominante vai encenando: “É falso que as obras literárias ou artísticas sejam esperadas, justificadas, normalmente produzidas no seu tempo para posterior satisfação do historiador, dos museus ou dos professores.” Porquê? Porque, no começo, no domínio temático e narrativo, tais obras nos colocam perante “a violência, a invasão, muitas vezes o escândalo.”
Discípulo de Roland Barthes (1915-1980), com ele manteve uma relação de dupla fidelidade, já que, no começo, Sollers foi editor de Barthes. Tudo isso ecoa num livro que nos ajuda a compreender que a dinâmica dos pensamentos, mesmo quando enquadrada ou enriquecida por contextos institucionais, não é estranha ao valor primordial da amizade: em L’amitié de Roland Barthes, publicado em 2015, incluindo cerca de três dezenas de cartas de Barthes para Sollers, este recorda uma lição fulcral do autor de O Prazer do Texto (tradução portuguesa disponível com chancela das Edições 70), lembrando que a linguagem é “a mais forte das transgressões.”
O desafio inerente a tal transgressão é tanto maior quanto o linguajar do nosso presente vive alimentado por uma cultura de grosseiro narcisismo, favorecendo também a ilusão (mais do que isso: a mentira) da arte como uma espécie de balanço contabilístico de uma empresa empenhada em ilustrar as virtudes do “progresso”. Numa entrevista de 1978, incluída em Théorie des Exceptions, Sollers avança mesmo com uma máxima psicanalítica sobre as nossas ilusões comunitárias: “(…) qualquer cultura é construída para nos dar a boa consciência segundo a qual nada temos que ver com o inconsciente.”
Nos últimos anos do seu labor, depois de uma autobiografia em forma de “verdadeiro romance” (Un Vrai Roman, 2007), Sollers publicou uma série de romances breves, alguns com menos de uma centena de páginas. O cruzamento de referências históricas, ainda que sempre remetendo para personagens e situações do presente, faz com que o romanesco se dilua no confessional, gerando objectos que podem ter tanto de radical especulação filosófica como de inusitada crónica jornalística.
Os títulos desses livrinhos são tanto mais sugestivos quanto, por vezes, celebram a vibração de uma única palavra, solitária e feliz: a “iluminação” (L’Éclaircie, 2012), a “beleza” (Beauté, 2017), o “desejo” (Désir, 2020). No último deles (Graal, 2022), Sollers revisita as memórias mitológicas do reino da Atlântida, em que os segredos são “ciosamente guardados”, ao contrário da nossa “pós-modernidade de indiscrição generalizada”.
São ecos de um livro razoalmente autobiográfico, habitado por um contagiante humor (Agent Secret, 2021), como se Sollers assumisse a máscara de um James Bond acrobático, ainda mais insolente que o original. Em nome do pudor, aí encontramos já a metódica exumação do nosso mal viver: “A discrição é, na verdade, qualquer coisa de delicioso, oposto a tudo aquilo que invadiu o espaço humano, agora dedicado ao jornalismo absoluto em que tudo é, por definição, indiscreto. Com a chegada da Internet, vivemos numa sociedade de indiscrição generalizada.”

segunda-feira, julho 05, 2021

Philippe Sollers
ou a alegria dos agentes secretos

Num livro auto-biográfico, Philippe Sollers propõe a redescoberta de Cortina Rasgada, um filme de Alfred Hitchcock — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 maio).

Vivemos em pleno niilismo mediático. Da política ao futebol, acordamos de manhã, ligamos as nossas antenas e ficamos a saber que nem sequer faz sentido temer o apocalipse — já aconteceu, é tudo pós-apocalítico, nada resta do humano a não ser a miséria das suas obscenidades. Neste tempo que elegeu a queixa e a denúncia como linguagens dominantes, alguém se escapa às obrigações niilistas, escrevendo assim: “A alegria é a minha filosofia essencial. Alegria, jóias, pensem o que quiserem, mas a alegria antes de tudo. É uma espécie de contemplação contínua.”
Importa dizer que a ligação das palavras “alegria” e “jóias” não é tão arbitrária quanto parece. Primeiro, por causa das semelhanças da sua sonoridade em francês: “joie” e “joyaux”. Depois, porque o autor nasceu Philippe Joyaux, a 28 de novembro de 1936, tendo desde o primeiro romance (Uma Curiosa Solidão, 1958) adoptado a assinatura de Philippe Sollers.
Com uma obra imensa, nos últimos anos repartida por romances breves que existem como outros tantos opúsculos filosóficos (Désir e Légende, de 2020 e 2021, são os mais recentes), Sollers escreve sobre a alegria em Agent Secret (Mercure de France, 2021), afinal um livro auto-biográfico. Não no sentido pitoresco de acumulação de lugares e datas. Antes resistindo à pornografia confessional do presente, celebrando um segredo ambíguo, partilhado com os outros, dos outros escondido. Está no título, envolve um método de viver e pensar: “Como uma criança, corro muito depressa, é normal, sou um agente secreto. Sem segredo não há nada.” Um verdadeiro programa político que a língua francesa consagra com discreta elegância: a mesma palavra, “secret”, serve para dar nome e adjectivar: “segredo” e “secreto”.
Através da colagem de evocações familiares, imagens e variações políticas e poéticas, a estrutura de Agent Secret faz lembrar o clássico Roland Barthes por Roland Barthes (Edições 70), cuja primeira edição surgiu em 1975. Não por acaso, como é óbvio: Sollers foi editor de Barthes, evocando o mestre e amigo em algumas das páginas mais comoventes de Agent Secret. Morto num acidente em 1980, contava 64 anos, Barthes foi também um modelo do paradoxo que ilumina a escrita de Sollers: contundência e discrição. Sollers resume, assim, o estado das coisas: “A discrição é, na verdade, qualquer coisa de delicioso, oposto a tudo aquilo que invadiu o espaço humano, agora dedicado ao jornalismo absoluto em que tudo é, por definição, indiscreto. Com a chegada da Internet, vivemos numa sociedade de indiscrição generalizada.”
Daí a atenção prestada por Sollers a todos os sistemas, sejam eles políticos ou de linguagem (uns confundem-se com os outros), que tentam encerrar a singularidade humana em modelos fechados e, em última instância, repressivos. Num capítulo fascinante de Agent Secret, Sollers refere o “período extremamente tenso” que estamos a viver, assombrado por um “desejo de totalitarismo”, para evocar alguém que “como ninguém, compreendeu esse totalitarismo interior”. A saber: Alfred Hitchcock (1899-1980).
Numa breve deambulação “hitchcockiana”, Sollers cita um dos seus filmes menos vistos, durante décadas amaldiçoado por um imaginário de esquerda, de sensibilidade comunista: Cortina Rasgada (1966), “thriller” com Paul Newman e Julie Andrews (de que Sollers publica o maravilho cartaz francês, Le Rideau Déchiré). Será preciso lembrar que se trata de uma espécie de anti-James Bond, tendo por pano de fundo as tensões sinalizadas pela Cortina de Ferro? É a aventura de um cientista americano (Newman) que, em pose de agente secreto, se infiltra nos meios académicos da Alemanha de Leste, país peão da URSS, para tentar roubar a fórmula científica que permitirá fabricar uma nova arma de guerra…
Sollers recorda o óbvio, isto é, o modo como esse “jesuíta britânico” que era Hitchcock se empenhou “contra o totalitarismo estalinista da época”. Destaca, em particular, a cena da fuga dos protagonistas quando, na plateia de uma sala de espectáculos já rodeada por elementos da polícia e dos serviços secretos, Newman instala uma confusão salvadora, gritando: “Fogo!” Como escreve Sollers, assistimos ao triunfo de uma regra fundamental no universo de Hitchcock: “o espectáculo dentro do espectáculo”. Ou ainda: “o teatro dentro do teatro, como em Shakespeare”. Tudo isto, claro, encenado com sereníssima alegria.

sábado, abril 24, 2021

Este (não) é o meu corpo

Robert Downey Jr. em pose de Homem de Ferro:
envolvido em metal, o actor deixou de ser determinante

De que falamos quando falamos do corpo? A pergunta é antiga, mas adquiriu uma perturbante actualidade, uma vez que somos agora tentados a distinguir um corpo de outro apenas pela presença ou ausência do vírus — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 março).

A urgência dos nossos dramas sanitários faz-nos viver as imagens e o imaginário dos nossos corpos num torpor, individual e colectivo, pontuado pelo medo. Temos medo e passámos a distinguir os nossos corpos a partir de uma dicotomia radical: a presença ou a ausência do vírus. Tempos difíceis para qualquer desejo de romantismo. Talvez por isso, as ficções virtuais que consumimos oscilam entre a abstracção pueril e a contundência do realismo.
No primeiro caso, encontramos séries como The Crown — a realeza persiste como pano de fundo de um imaginário de fábula em que os corpos são, ingenuamente, intermutáveis: primeiro a rainha, agora a princesa, enfim, todos podem trocar de intérpretes porque, de facto, já não há personagens, apenas marionetas congeladas numa novela caucionada pela “história”. Exemplo da segunda variante é o admirável filme do húngaro Kornél Mundruczó, Pieces of a Woman, obviamente (e justificadamente) reconhecido como peça de exaltação das singularidades do feminino, mas sem que isso o impeça de consumar uma metódica desmontagem do imaginário tradicional da maternidade.
É no futebol que encontramos uma das mais curiosas manifestações do empobrecimento das nossas linguagens sobre o corpo. Assim, há uma espécie de pudor que impede o reconhecimento simples de que uma equipa joga mal, optando-se por uma derivação fisiológica: estão a jogar mais com o “coração” do que com a “cabeça”… O “coração”, órgão mítico da verdade de todas as paixões (até mesmo no Big Brother televisivo), passa a ser definido como instrumento de erro.
De que falamos, então, quando falamos do corpo? Há muito tempo (ou talvez não, depende das medidas de cada um), Eduardo Prado Coelho reflectia sobre os ecos díspares de tal interrogação. Celebrava ele o efeito de libertação dos discursos gerado pelo 25 de Abril de 1974, definindo um programa de trabalho que seria sempre, em última instância, colectivo: “Recensear as palavras rasuradas em cortes de jornais, em discursos públicos, em conversas calafetadas, em legendas de jornais.” E acrescentava um breve inventário de algumas dessas palavras: “comunista, fascista, luta de classes, orgasmo, virgem, censura…”
São citações extraídas de um texto com data de 14 de Maio de 1974 (ainda escrevíamos os meses com maiúscula…), servindo de introdução à edição portuguesa de O Prazer do Texto, de Roland Barthes (Edições 70). São palavras que não podem ser deslocadas de um contexto muito específico em que a energia da palavra escrita ainda não se confrontava com o império de imagens, multifacetado, contraditório e global, que hoje habitamos enquanto espectadores permanentes dos nossos ecrãs de televisão, computador ou telemóvel.
Eduardo Prado Coelho convoca o leitor para lidar com Barthes, não como mensageiro de uma qualquer verdade definitiva, antes como hipótese de interrogação do ilusório naturalismo do mundo. A começar pelo enigma do corpo. Ou de acordo com as palavras cristalinas de Barthes: “O prazer do texto é o momento em que o meu corpo vai seguir as suas próprias ideias — pois o meu corpo não tem as mesmas ideias que eu.”
A herança de Barthes adquire uma actualidade tanto maior quanto podemos observar que a reconfiguração (digital) dos corpos se tornou uma lei de encenação num espaço audiovisual — as aventuras de super-heróis — que, nos últimos vinte anos, passou a dominar o mercado global das imagens. Aí, quase sempre de forma automática, o corpo é tratado como peça figurativa que pode ser reconvertida em qualquer formato. Consequência prática? A banalização do trabalho do actor, reconhecido apenas como auxiliar de um ritual em que o seu corpo é festivamente desvalorizado.
Lembremos apenas o caso de um actor tão talentoso como Robert Downey Jr., notável, por exemplo, em Zodiac (2007), de David Fincher. Ao assumir a personagem do Homem de Ferro (cujo primeiro título surgiu em 2008), o seu corpo foi, literalmente, envolvido em metal, pouco mais lhe exigindo do que uma pose de crescente banalidade dramática. Numa civilização como a nossa, marcada pelo poder transfigurador da palavra (“este é o meu corpo”), tal banalização dá que pensar. Com a cabeça e o coração.

sábado, março 28, 2020

Roland Barthes, aqui e agora

Na sequência de um acidente, Roland Barthes faleceu no dia 26 de março de 1980, fez ontem 40 anos. A obra do autor de O Prazer do Texto, Fragmentos de um Discurso Amoroso e A Câmara Clara não perdeu actualidade nem sedução — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Março).

Roland Barthes faleceu no dia 26 de março de 1980 — faz hoje 40 anos. Nesse mesmo ano, lançara aquele que continua a ser, por certo, um dos seus livros mais lidos, não só pelo grande público, mas também em contextos de estudo da fotografia e do cinema: chama-se A Câmara Clara e nele o autor discute as transparências e mistérios da imagem fotográfica, quer convocando os grandes mestres (Nadar, Cartier-Bresson, Mapplethorpe, etc.), quer citando registos da sua história familiar, em particular uma fotografia emblemática da sua mãe.
A notícia da sua morte foi um choque. Nascido a 12 de novembro de 1915, em Cherburgo, Barthes era um nome central no pensamento europeu e, além do mais, uma personalidade muito activa nos domínios da escrita e do ensino, na altura integrando o corpo docente do Collège de France, em Paris. Foi, aliás, a caminho das suas aulas, no dia 25 de fevereiro desse ano, que foi atropelado por um camião, num acidente que se revelaria fatal.
Barthes desempenhou um papel fundamental na revolução dos estudos semiológicos da década de 60, tendo publicado os seus Ensaios Críticos e Elementos de Semiologia, respectivamente em 1964 e 1965. A agilidade do seu pensamento, combinando o rigor analítico com o risco filosófico, teve uma influência tanto maior quanto a sua escrita nunca se confinou aos mais clássicos domínios de investigação (a começar pela literatura), abrindo espaços de reflexão sobre os objectos, comportamentos e valores da chamada “sociedade de consumo”.
Dois livros podem ilustrar essa sua atenção às vibrações específicas da nossa vida social, desmontando ideias feitas (sobretudo mal feitas) que circulam a propósito de tudo aquilo que, precipitadamente, consideramos “banal” ou “indiferente”. Um deles, Sistema da Moda (1967), tem a estrutura de uma tese universitária e desmonta o discurso (da moda, precisamente) sobre o que vestimos, o que escolhemos vestir ou nos é dito que devemos vestir. O outro é, ainda hoje, o título mais popular da sua vasta bibliografia: Mitologias (1957) observa com precisão semiológica, e também um delicioso e contagiante humor, os mais variados temas do imaginário social, da publicidade dos produtos de limpeza à iconografia da Volta à França em Bicicleta, passando pelos lugares-comuns dos discursos populistas da época.
Escusado será dizer que, hoje em dia, a obra de Barthes será tudo o que se quiser menos um objecto esquecido num qualquer recanto de curiosidades museológicas. Para além dos muitos estudos, análises e releituras que continua a suscitar, a sua vida foi tratada numa monumental biografia assinada por Tiphaine Samoyault (Roland Barthes, ed. Seuil, 2015).
À excepção desta biografia, a maior parte dos seus livros estão disponíveis no mercado português (com chancela das Edições 70). Eis mais três hipóteses de descoberta ou redescoberta:
[Seuil]
— O PRAZER DO TEXTO (1973): é um dos seus trabalhos mais breves (cerca de uma centena de páginas) e também um dos mais influentes. Trata-se de perguntar como se escreve e, mais do que isso, como lemos aquilo que se escreve. O seu título envolve a tensão entre as linguagens que aprendemos e a possibilidade de protagonizarmos, descobrirmos e inventarmos outras linguagens. No admirável prefácio da primeira edição portuguesa (escrito a 14 de maio de 1974), Eduardo Prado Coelho definia tal tensão a partir de duas frentes: “a guerra das linguagens e a paz dos textos”.
— FRAGMENTOS DE UM DISCURSO AMOROSO (1977): Barthes parte da “extrema solidão” do discurso amoroso, convoca autores como Balzac, Goethe e Freud, propondo uma originalíssima digressão através dos sobressaltos da paixão. Entre os seus fragmentos e alíneas encontramos, por exemplo, “carta”, “ciúme”, “eu amo-te”, “obsceno” e “verdade”.
— LIÇÃO (1978): texto breve, por excelência, não mais que quatro dezenas de páginas sublimes. Nas palavras da lição inaugural da disciplina de Semiologia Literária do Collège de France (proferida a 7 de janeiro de 1977), Barthes fala da aventura de ensinar, da transmissão do saber e dessa revelação visceral, profundamente sensual, que faz com que o saber se transfigure em sabor.

>>> Roland Barthes por Philippe Sollers [Tel Quel, nº 47, Outono 1971].

sábado, agosto 24, 2019

John Berger — ver e escrever

[The New Yorker]
Escritor, ensaísta, argumentista de cinema, o inglês John Berger (1926-2017) deixou uma obra tão vasta quanto multifacetada que mantém a sua pertinência argumentativa e, em particular, a actualidade política e simbólica. Dois livros recentemente surgidos no mercado português atestam essa vitalidade.

Understanding a Photograph, a edição mais antiga, publicada em 2013, com chancela da Penguin, é uma antologia de textos escritos a partir dos anos 60, com duas vertentes fundamentais: por um lado, o lançamento das bases de um pensamento dialéctico sobre a existência material e social das fotografias, tendo como grandes referências inspiradoras os trabalhos de Roland Barthes e Susan Sontag; por outro lado, a prospecção crítica da obra de vários fotógrafos, de Henri Cartier-Bresson a Sebastião Salgado (neste caso, através de um diálogo-entrevista-ensaio). A destacar: o prodigioso texto sobre as aparências — intitulado 'Appearances', justamente —, datado de 1982.

A outra edição, Um Sétimo Homem, é uma tradução portuguesa, da responsabilidade de Jorge Leandro Rosa (também autor do posfácio), e chegou às livrarias através da Antígona.
Encontramos o mesmo labor de percepção e questionamento do mundo e das suas imagens, com a particularidade de essas imagens integrarem a própria dinâmica narrativa do livro: estamos perante um trabalho desenvolvido nos primeiros anos da década de 70 (a edição original surgiu em 1975), com a prosa de Berger e as fotografias do suíço Jean Mohr (1925-2018) a testemunharem as convulsões dos movimentos de migrantes no interior do continente europeu.
Escusado será dizer que somos levados a estabelecer imediatas ligações com o nosso presente, mas o valor do livro não se pode medir porque qualquer simbolismo "premonitório". Acima de tudo, aquilo que encontramos em Um Sétimo Homem é a discussão/experimentação de uma linguagem plural, capaz de integrar, por exemplo, a deambulação romanesca a par do testemunho fotográfico. À sua maneira, esta é também uma crítica contundente — neste caso, actualíssima — da ilusão mediática, muito televisiva, segundo a qual "gravar" o mundo em imagens desemboca na revelação (?) de um sentido único, unívoco e inquestionável.

* * * * *

Vale a pena lembrar que John Berger é autor de Ways of Seeing (edição portuguesa: Modos de Ver, Antígona), livro clássico sobre o lugar das imagens nas sociedades contemporâneas e, nessa medida, o seu papel como matéria do próprio real, muito para além de qualquer noção simplista de "reprodução".
Este sim, é um livro de uma admirável presciência: publicado em 1972, a inteligência e agilidade das suas reflexões mantêm uma actualidade perturbante, no limite levando-nos a perguntar como é que a nossa visão das "coisas-enquanto-imagens" desempenha um papel fulcral na interiorização da nossa identidade e também no sistema de relações que estabelecemos com os outros.
Aliás, Ways of Seeing é uma obra tanto mais sedutora quanto, na sua origem, está uma série homónima, de quatro episódios de 30 minutos, produzida pela BBC e emitida pela primeira vez também em 1972 — é possível vê-la por inteiro na Net; eis o primeiro episódio.


>>> Entrevista a John Berger, por Kate Kellaway (The Observer, 30 Out. 2016).

domingo, dezembro 30, 2018

3 livros de 2018

* JOGOS DE RAIVA, de Rodrigo Guedes de Carvalho (Dom Quixote)

>>> Não há um de nós que, por uma vez que seja, não amaldiçoe o seu destino. Só que o destino é tudo o que temos, mesmo que acreditemos que poderemos mudá-lo. Não se chama destino por acaso.
(pág. 240)

O poder do destino começa, afinal, do facto de se chamar... destino. Assim é a prosa de Rodrigo Guedes de Carvalho, continuando um admirável labor realista que não se esgota nos sinais do quotidiano, longe disso, porque existe, no essencial, como realismo da linguagem.
Encontramos em Jogos de Raiva (o título envolve uma calculada ironia cinéfila) o prolongamento exemplar de experiências que tiveram um desenvolvimento importante no anterior O Pianista de Hotel, expondo as conexões reais, imaginadas ou imaginárias entre elementos de um pequeno colectivo atravessado pelos laços, ilusões e símbolos de uma ideia primitiva de família. Certamente não por acaso há, aqui, alguém que escreve um romance que funciona, de uma só vez, como reflexo simbólico e espelho deformante do próprio romance que estamos a ler. Dito de outro modo: o trabalho literário existe como actividade sistematicamente impelida para questionar os seus poderes e limites, sobretudo num mundo em que, "socialmente" e em "rede", cedemos todos os dias à instrumentalização obscena ou mediática (muitas vezes obscena e mediática) da magia primordial da palavra — essa palavra que o cinema já expôs [Dreyer] na sua dimensão sagrada.
Tudo isto se desenvolve através de uma dramaturgia de durações e lugares cruzados, cada um deles alimentando a ambiguidade que o aproxima do seu contrário. É um método capaz de reconhecer a fragilidade em que passou a existir a tarefa prospectiva do escritor, por oposição à rotina instrumental do escrevente (para utilizarmos a oposição definida por Roland Barthes). Em última instância, é uma via para lidarmos com a complexidade do nosso tempo — português e universal.

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* CENTRE, de Philippe Sollers (Gallimard)

No interior de uma obra imensa e fascinante, os mais recentes romances de Philippe Sollers podem ler-se também como zonas mais ou menos autónomas de um bloco-notas dedicado às maravilhas e monstruosidades do nosso viver: da celebração do poder invencível da palavra até ao reconhecimento da mediocridade triunfante da sociedade "virtual" — leia-se a rede que se desenha através de L' Éclaircie, Médium, Mouvement e Beauté. De novo através de uma festiva brevidade — apenas 128 páginas, há algo da vertigem punk na escrita de Sollers —, Centre é mais um romance exemplar dessa dialéctica vivida entre o esvaziamento do social e o sagrado da relação amorosa. Com uma ambígua sugestão autobiográfica: Sollers é casado com a psicanalista Julia Kristeva, ela própria uma notável romancista (leia-se o prodigioso L'Horloge Enchantée), sendo o escritor/narrador de Centre casado com Nora, psicanalista de profissão... Nada a ver, entenda-se, com a pornografia confessional que nos rodeia — este é um objecto do mais radical pudor.

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* CAOS E RITMO, de José Gil (Relógio D'Água)

Esta é a escrita do corpo e das suas propriedades: porque um corpo possui essa capacidade de "emitir forças (partículas intensivas) que um outro corpo recebe e acolhe como suas" (pág. 26). José Gil percorre um leque de mundividências, dos estudos da criança por Françoise Dolto às propostas de Antonin Artaud em O Teatro e o seu Duplo, passando pela feitiçaria interior à tragédia de Macbeth. Na procura de quê? Trata-se de iluminar essas paisagens tão próximas, por vezes tão dificilmente pensáveis, em que o corpo se faz ideia, ou melhor, em que protagonizamos um renascimento alheio a qualquer formatação religiosa, embora realmente espiritual — porque, no dizer de Artaud, "as ideias não são senão os vazios do corpo." Eis um livro que se pode definir através da classificação tradicional de ensaio filosófico, mas que, no limite, se vai construindo como uma deambulação romanesca por um património de ideias com duas frentes: numa delas, continuamos a lutar por saber o que acontece quando aplicamos a palavra "eu"; na outra, porventura distante, mas complementar, revemo-nos no espaço de uma Europa problemática, assombrada pela sedução do seu equilíbrio instável: utopia ou distopia?

sexta-feira, novembro 23, 2018

Quando Walt Disney dava voz a Mickey

A definição da personagem de Mickey está intimamente ligada a Walt Disney — intimamente porque corporalmente: o rato mais célebre do mundo nasceu com a voz do próprio Disney (e assim se manteve até à morte do seu criador, em 1966) — este texto foi publicado num dossier dedicado aos 90 anos de Mickey, no Diário de Notícias (18 Novembro), com o título 'A voz do dono'.

Walt Disney conhecia bem o valor — artístico, simbólico e financeiro — do seu Mickey. Numa célebre frase, regularmente citada, proclamou mesmo um princípio de identidade: “Só espero que não percamos de vista uma coisa: é que tudo começou com um rato.”
Disney envolveu-se mesmo com a personagem através de uma importante “duplicação”: foi ele que deu voz a Mickey, desde 1928 até à sua morte, em 1966, contava 65 anos. Podemos, aliás, conhecer alguns momentos das sessões de gravação de Disney através da colecção de DVD “Walt Disney Treasures”, lançada em 2001, no âmbito das comemorações do centenário do seu nascimento. Aí encontramos uma série de fragmentos de estúdio, com Disney na companhia de Billy Bletcher (1894-1979), lendário actor revelado ainda no período mudo que deu voz a muitas figuras dos desenhos animados, incluindo o malvado “Pete”, inimigo de Mickey.
Em Bletcher, de imediato reconhecemos um genuíno intérprete enraizado da tradição burlesca: as nuances da sua voz surgem sempre ligadas a bizarras variações da expressão facial, muitas vezes acompanhadas de gestos exuberantes e sugestivos. A seu lado, o dono dos estúdios parece provir de outro mundo. Na sobriedade do fato e gravata, a figura de Disney confunde-se por inteiro com a sua pose enquanto apresentador e divulgador dos seus filmes — no bolso esquerdo do casaco, vemos mesmo aquilo que deverá ser uma folha dobrada, porventura contendo apontamentos sobre alguma produção em curso...
Mas é a voz que mais surpreende. Em primeiro lugar, porque conhecemos a voz “oficial” de Disney através de muitos outros documentos, em particular entrevistas para televisão: há nela um misto de seriedade e distanciamento que nos leva a escutar com especial atenção e disponibilidade. Depois, porque agora detectamos um tom de falsete, de calculada elaboração, em que se cruzam duas componentes igualmente expressivas: uma carinhosa conotação infantil e uma assumida teatralidade.


São sinais que contrariam a descrição corrente do espaço da infância, não apenas no universo Disney, mas genericamente no espaço social (ontem como hoje). Dito de outro modo: escutamos Mickey, aliás Disney, e verificamos que a pontuação infantil não se confunde com qualquer forma de espontaneidade, existindo antes como uma encenação de complexo artifício.
Seja como for, por mais teatralizada que seja a sua emissão, a voz conserva sempre um resto de alguma verdade individual, pessoal e intransmissível como os passaportes. Porquê? Porque não é possível apagar a sua origem. A saber: um corpo — uma voz é sempre a voz de um corpo.
A idade digital em que vivemos baralhou esta nossa certeza, já que, como bem sabemos, passou a ser possível fabricar vozes por meios informáticos. Mas a criatividade de Disney enraíza-se ainda num tempo histórico em que o cinema preserva a memória muito próxima da (sua) passagem do mudo para o sonoro: criar uma voz para Mickey era, por paradoxal ironia, uma maneira de superar a “insuficiência” expressiva da imagem.
No dizer de Roland Barthes (1915-1980), a voz distingue-se por um “grão” — para uma antologia de entrevistas, dadas sobretudo a propósito dos seus livros, Barthes escolheu mesmo o título O Grão da Voz (primeira edição portuguesa: Edições 70, 1982). A escolha de uma palavra proveniente do mundo da fotografia — o “grão” fotográfico como algo que define o jogo de precisão e artifício da própria imagem — é duplamente sugestiva: sinaliza a indestrutível relação dos sons da fala com a irredutibilidade de algum corpo, ao mesmo tempo que nos permite perceber que a percepção da imagem desse corpo é, em parte significativa, uma relação pontuada, porventura estruturada, pela escuta desses mesmos sons.
Tudo se passa como se, para Walt Disney, Mickey tivesse existido como derradeira mensagem da infância, da impossibilidade do seu regresso. Quando o observamos ao lado de Bletcher, não sentimos que o adulto queira fingir-se criança. Na contenção dos seus gestos, sublinhada pela assumida “falsidade” da voz, Disney protagoniza uma mensagem comovente, afinal estranha ao discurso oficial do seu império: a infância não é um paraíso imobilizado no tempo; quando procuramos a pureza da sua abstracção, atribuindo-lhe uma voz, isso quer dizer que já a perdemos.