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domingo, setembro 11, 2016

O real e o virtual segundo Larry Clark

Telemóveis e drogas, sexo real e sexo virtual: o americano Larry Clark prolonga a sua obra sobre a juventude, agora em cenários parisienses — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Setembro), com o título 'Larry Clark continua a filmar uma juventude auto-destrutiva'.

Será que o cinema dos efeitos especiais, dos monstros digitais e das naves vindas de outras galáxias chegou a um dramático esgotamento? Se considerarmos apenas a contabilidade dos estúdios Marvel ou DC Comics, as respectivas tesourarias não terão dificuldade em convencer-nos que vivemos no melhor dos mundos. O certo é que o efeito de saturação de muitos produtos do género — proporcional aos milhões de dólares gastos na sua promoção planetária — tem vindo a ser acompanhado por uma sistemática reivindicação de realismo por parte de alguns grandes cineastas contemporâneos. O americano Larry Clark (n. 1943) é um desses cineastas e o seu filme O Cheiro de Nós aí está para o demonstrar.
Para Clark, o realismo é, antes do mais, uma questão inerente à imagem fotográfica. Assim, realizou o seu primeiro filme, Kids/Miúdos, em 1995 (portanto, aos 52 anos), depois de uma importante actividade como fotógrafo. O seu lendário livro Tulsa, editado em 1971, constitui mesmo uma referência clássica na história da fotografia “made in USA” e define, afinal, a principal matriz da sua obra cinematográfica. A saber: uma observação metódica, crua e desencantada, de uma juventude mais ou menos desamparada.
O Cheiro de Nós surge como mais um capítulo de uma saga cinematográfica sobre algumas franjas da juventude contemporânea, iniciada com Kids e prolongada por Bully (2001) e Ken Park (2002). Os adolescentes de Clark são sempre personagens errantes e erráticas, evoluindo num quotidiano que foi abandonado pelos adultos. As figuras paternas estão quase sempre ausentes ou, quando surgem, funcionam apenas como sinais de uma radical impossibilidade de diálogo entre gerações. Com alguma ironia, em O Cheiro de Nós, o próprio Clark assume a personagem do velho e decadente ‘Rockstar’, companheiro intermitente de um bando de skaters que vivem o dia a dia num misto de agressividade e impulsos auto-destrutivos.
É um mundo cruel, aquele que Clark regista com a sua câmara ágil, obcecada pelo detalhe realista. Os seus protagonistas vivem na dependência de muitas substâncias tóxicas, ao mesmo tempo que se entregam a práticas sexuais em que a militante promiscuidade fez desvanecer qualquer conceito de intimidade, até mesmo qualquer hipótese de ternura. Num tempo de banalização das imagens privadas, parecem mesmo viver apenas para conseguir registar as mais inusitadas performances nos seus telemóveis.

Relações virtuais

Clark toca, assim, numa questão central, ao mesmo tempo prática e simbólica, do nosso tempo. A saber: até que ponto nos relacionamos realmente uns com os outros? Ou será que já só conseguimos construir (ou imaginar) uma relação a partir de alguma troca de imagens “chocantes” num contexto mais ou menos virtual?
E não deixa de ser desconcertante que Clark seja um cineasta que, depois do impacto de Kids (acontecimento marcante na edição de 1995 do Festival de Cannes), tenha uma presença irregular no mercado do seu próprio país. Assim, podemos estranhar que O Cheiro de Nós chegue às salas portuguesas apenas dois anos passados sobre a sua revelação no Festival de Veneza — o certo é que o filme nem sequer encontrou distribuidor para estrear nos EUA (aliás, tal como Ken Park).
Convém, por isso, não esquecer que, apesar do seu título original em inglês (The Smell of Us), estamos perante uma produção de raiz francesa, centrada num grupo de adolescentes que se reúnem nas imediações do Museu de Arte Moderna, em Paris. Obviamente muito distante de qualquer visão turística da Cidade Luz, Clark acaba por transformar o seu filme num conto moral sobre algumas formas contemporâneas de solidão. Nesta perspectiva, O Cheiro de Nós exibe um desencanto que exclui qualquer hipótese de redenção, sem que isso impeça uma proximidade, muito física e também muito carinhosa, das trágicas atribulações dos seus protagonistas — provavelmente, hoje como sempre, tal proximidade é o princípio essencial de uma estética genuinamente realista.

sexta-feira, julho 03, 2015

Isto não é "Morangos com Açúcar"...

Rosario Dawson e Chlöe Sevigny (1995)
O filme Kids, de Larry Clark, fez 20 anos: memórias de um clássico instantâneo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Junho), com o título 'A herança trágica dos adolescentes de 1995'.

Há dias, no âmbito do Bam Cinema Fest, em Nova Iorque, foi assinalada uma “pequena” efeméride: o filme Kids (entre nós: Miúdos), de Larry Clark, fez vinte anos. Apenas vinte anos, é verdade... Foi um dos grandes acontecimentos do Festival de Cannes de 1995, capaz de afirmar uma consciência realista cuja energia persiste muito para além do contexto em que surgiu.
Larry Clark
Que está em jogo? Antes do mais, a opção por uma representação da adolescência que recusa, ponto por ponto, as facilidades do naturalismo televisivo (que, entre nós, se consagrou na indigência dramática e narrativa de Morangos com Açúcar e respectivos sucedâneos). Não se trata, entenda-se, de considerar Kids como padrão universal seja do que for — estamos perante o retrato muito particular de um grupo de jovens, em Nova Iorque, em ambiente de grande promiscuidade sexual, num contexto marcado pela epidemia da sida. Trata-se, isso sim, de sublinhar o grau de exigência do realismo da realização de Clark, ancorada no argumento assinado por Harmony Korine (na altura com 22 anos).
Na trajectória de Clark (n. 1943), tratava-se de uma estreia em cinema que, em qualquer caso, não podia ser desligada do seu admirável trabalho no domínio fotográfico. Reflectindo os seus próprios dramas — incluindo a dependência de anfetaminas durante a adolescência —, Clark construíra um espantoso portfolio sobre a sua geração na cidade de Tulsa, Oklahoma, publicado num livro que viria a tornar-se um clássico da fotografia americana (lançado em 1971, com o título Tulsa). Kids correspondia, afinal, à transfiguração cinematográfica desse labor enraizado nas imagens fotográficas.
Escusado será dizer que a visão de Kids repele qualquer exaltação paternalista da adolescência. O filme apresenta-se como a crónica íntima de um espaço em que qualquer nostalgia redentora se revela impossível. Por um lado, o consumo de drogas está instalado em todas as trocas; por outro lado, as relações sexuais proliferam a partir de severas estruturas de poder, quase sempre lideradas pelas personagens masculinas.
E não deixa de ser desconcertante recordar que o ano de lançamento de Kids (1995) foi também o da apoteose de Toy Story, primeira longa-metragem de animação digital. Dir-se-ia que, perante o triunfo da imagem virtual (fascinante, sem dúvida), a crueza do olhar de Clark funcionava como um perturbante contraponto — a sua contundência realista enraíza-se numa atenção metódica ao frémito dos corpos, logo às nuances dos actores.
Kids acabou por legar ao cinema americano uma geração de intérpretes que, por assim dizer, permaneceram numa região ambígua do imaginário cinéfilo: Rosario Dawson e Chloë Sevigny são as actrizes hoje em dia mais conhecidas, Leo Fitzpatrick prossegue uma carreira relativamente discreta e Justin Pierce suicidou-se no ano 2000, contava 25 anos. As duas décadas que nos separam de Kids têm, por isso, o peso de uma herança trágica, mas essencial.

quinta-feira, maio 09, 2013

Adolescência & gratificação

Hoje em dia, numa cultura dominada por uma visão fútil dos jovens, o modo como se coloca em cena uma qualquer história de adolescência pode fazer a diferença: é o caso de Spring Breakers/Viagem de Finalistas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Maio), com o título 'Um conto de luxúria e medo'.

Nos últimos anos, um certo cinema americano tem sido drasticamente afectado pela síndrome “American Pie”. Depois desse filme de má memória (lançado em 1999), proliferaram as crónicas mais ou menos brejeiras sobre a adolescência, por princípio enraizadas numa visão estupidamente anedótica da sexualidade. Aliás, sejamos claros: do primarismo de American Pie ao “lirismo” de Morangos com Açúcar, passando pela terrível degradação dos padrões fundadores da MTV, o espaço mediático inflacionou os retratos dos adolescentes em que a ansiedade sexual se diz apenas através da caricatura romântica ou, com mais frequência, da acumulação de anedotas obscenas. Tudo isso com uma consequência social que está longe de ser benigna: em muitas formas de ficção audiovisual, os adolescentes servem tão só de carne para canhão de todas as frivolidades.
Daí o insólito valor pedagógico de um filme como Viagem de Finalistas. As quatro adolescentes que partem para a Florida, na procura de uma utopia sexual condimentada com substâncias mais ou menos etílicas, surgem-nos como clichés saídos do imaginário de American Pie, sendo rapidamente sujeitas a uma prova de real que relativiza esse imaginário e, acima de tudo, lhes confere aquilo que qualquer personagem merece: a sua consistência dramática.
Na dupla condição de argumentista e realizador, Harmony Korine percorre, assim, as pontes que o ligam à sua estreia com o argumento de Kids (1995), escrito para Larry Clark. Trata-se de retratar o caldeirão de valores (ou a falta deles) em que se move uma adolescência formada na ideologia da gratificação automática e gratuita. No limite, Viagem de Finalistas funciona como um perturbante conto moral, de paradoxal classicismo, em que luxúria e medo são apenas faces da mesma moeda.

quarta-feira, fevereiro 13, 2013

Em Marfa, com Larry Clark

Estreou na edição de 2012 do festival de Roma (que venceu) e, desde então, não mais foi visto numa sala de cinema. Chama-se Marfa Girl, é ainda o mais recente filme de Larry Clark e, para o vermos, temos de aceder ao seu site oficial, pagando um bilhete virtual que nos permite o acesso ao filme por 24 horas. O futuro do cinema? Não o sabemos ainda se assim o será. Mas esta é uma contribuição importante num momento em que, perante quebras de receitas nas bilheteiras, se debate (e repensa) o panorama da distribuição.

Primeiro o filme. Em tudo é fiel a uma demanda pessoal do realizador que tem vindo a talhar uma obra vincadamente demarcada e que conta com títulos absolutamente marcantes como o foram Kids, Bully ou Ken Park. A juventude, a descoberta da sexualidade e um sentido de desnorte perante eventuais rumos futuros que se materializa num focar do agora em detrimento do depois, são caros a uma obra onde o universo do skate, da criação artística (e da música em particular) são também presenças firmes. De certa forma há em Marfa Girl algumas afinidades com os universos culturais de um Wassup Rockers onde Larry Clark centrava atenções junto de jovens latino-americanos, que optavam pela demarcação da sua identidade ao vestir roupas justas e ouvir punk rock num bairro do Sul de Los Angeles onde o hip hop é a voz corrente e os tamanhos mais usados vão para lá do 'L'.
Estamos contudo em Marfa, uma cidade fronteiriça no Texas, entre uma expressiva comunidade latina. Há uma banda de punk rock que ensaia num barraco. Uma pintora em retiro criativo que habita um atelier ali ao lado. Um jovem que se descobre a si, ao seu corpo e ao desejo, uma mãe que gosta de ouvir falar de misticismos e medicinas alternativas, uma namorada, amigos. E um agente da guarda fronteiriça, que o mantém sob perturbante vigilância.

Se Larry Clark junta temas e caminhos frequentes à sua obra em Marfa, é porque não só o lugar lhe permite alargar os horizontes dos olhares, como assinala também um relacionamento com um lugar com importante presença na criação artística dos últimos 40 anos. Não só foi ali que foram rodadas muitas das sequências de O Gigante, o último filme protagonizado por James Dean, como mais recentemente foi em Marfa que os irmãos Cohen e Paul Thomas Anderson deram vida a, respetivamente, Este País Não É Para Velhos e Haverá Sangue. A relação de Marfa com a criação artística não se esgota contudo no cinema, cabendo a Donald Judd (referencia maior do minimalismo nas artes plásticas) o encetar de um relacionamento com aquela localidade texana, quando para ali se mudou em 1971 e fundou um atelier em dois barracões. Um relacionamento que se mantém vivo, bastando para tal ver a intensa atividade que tem o centro Ballroom, com programação de exposições, música e cinema.

Foto: Wikipedia
Foto: Chinati Foundation
Foto: Chinati Foundation
Três olhares em volta de Marfa. Em primeiro lugar o Prada Marfa, uma exposição / instalação permanente criada por Michael Elmgreen e Ingar Dragset. Depois obras de Donald Judd e Richard Long que integram a coleção da Chinati Foundation e estão expostas ao ar livre, junto do museu da fundação.