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sábado, março 29, 2025

Lucy Dacus, Opus 4

À beira de completar 30 anos, a norte-americana Lucy Dacus acaba de lançar Forever Is a Feeling, o seu quarto álbum de estúdio, quatro anos depois de Home Video. Cantora e compositora, ela que pertence também ao trio boygenuis, permanece fiel a uma estética neo-romântica cada vez mais depurada nas suas harmonias e na precisão poética das palavras — este é o teledisco de Ankles, uma deliciosa parábola museológica (literalmente...).
 

quinta-feira, outubro 31, 2024

Amadeo: memórias de um exílio português

Os Galgos (1911), de Amadeo de Souza-Cardoso (Centro de Arte Moderna/Fundação Gulbenkian)

Amadeo, o livro de Mário Cláudio sobre Amadeo de Souza-Cardoso, é um notável exercício literário sobre uma figura central do modernismo português; foi agora reeditado, 40 anos depois de ter ganho o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 outubro).
 
De que falamos quando falamos de Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918)? O seu lugar emblemático no panorama do modernismo português está longe de o reduzir a mero “símbolo” de um movimento: o seu trabalho reflecte uma elaborada abertura às convulsões artísticas do seu tempo, incluindo o cubismo e o futurismo, consolidando-se numa obra multifacetada capaz de transcender os limites de qualquer época. A reedição do romance Amadeo, de Mário Cláudio (com chancela da Dom Quixote), assinalando o seu 40º aniversário, aí está como testemunho eloquente de tal pluralidade histórica e, obviamente, também da sua transfiguração literária.
Estamos perante um livro fascinante, consagrado em 1984 com o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. E se é verdade que o podemos definir como “romance biográfico”, não é menos verdade que tal classificação não deve ser separada da consciência estética, certamente pedagógica, de um labor que desafia, não apenas as fronteiras da escrita romanesca, mas também as regras tradicionais da abordagem biográfica.
No texto de apresentação da nova edição, Carlos Reis enaltece tal dinâmica, começando por questionar se esta é uma “biografia induzida pelo título”, um “diário completado por uma investigação biográfica”, um “ensaio balizado por eventos históricos”, ou ainda um romance capaz de subverter os “protocolos de género”. A resposta é “um pouco de tudo isso”, até porque se trata de enfrentar “questões que o tempo não dissolveu”.
Que questões são essas? Decorrem do misto de transparência e mistério que transforma o artista nessa “entidade” que existe por inteiro na sua obra, ao mesmo tempo que a obra se impõe como um corpo autónomo, capaz de interrogar o tempo e os lugares em que foi gerada. A esse propósito, importa lembrar que o escritor iniciava com Amadeo um conjunto de ficções biográficas (a expressão talvez seja mais sugestiva do que “biografias ficcionadas”) que viria a receber a designação de “Trilogia da Mão” — completaram-na Guilhermina (1986), sobre a violoncelista Guilhermina Suggia, e Rosa (1988), evocando a popular ceramista Rosa Ramalho.
Há um ziguezague biográfico que não é estranho a algum “suspense” (com o seu quê de cinematográfico). Quem está a conduzir a narrativa? Quem trabalha num romance que poderá chamar-se Amadeo? E quem descreve tudo isso, criando um livro-espelho do próprio livro que estamos a ler? Muito cedo ficamos a conhecer um investigador (“considera-se um biógrafo”) que “reúne documentos recentes, ouve quem ouviu do homem, acrescenta a tudo isso estâncias da própria existência. Este meu Tio Papi pretende justificar-se. A vida apenas se lhe torna inteligível na vida de outrem, e é isso quase tudo quanto o move.” Daí também a expressão que, um pouco mais à frente, Mário Cláudio aplica à aprendizagem do seu Amadeo. A saber: ele “aprendia a ser-se”.

Museu
Entre Manhufe e Paris

Entre Manhufe, terra natal no município de Amarante, e a perturbante sedução de Paris (“um quebra-cabeças de persistência e de folia”), nasce, assim, um labirinto de vivências, umas vividas, outras imaginadas, de que a pintura será a ilustração e a vertiginosa transfiguração.
“É uma longa maldição o exílio português”, lê-se na pág. 98 desta nova edição. Como se Amadeo, o artista revisitado como personagem de romance, estivesse condenado a existir sempre dividido entre a racionalidade das origens e a liberdade animal da criação. Reflexos desse assombramento podem encontrar-se na polémica que o romance suscitou em 1984, ao ser distinguido pela APE.
Nas páginas finais, há uma coleção de anexos que, depois de algumas páginas do original manuscrito, reproduzem artigos de várias publicações que, além dos textos críticos, nos permitem revisitar momentos fundamentais daquela polémica. É pena que as reproduções, de fraca qualidade técnica, reduzam as medidas dos originais, em vários casos tornando a leitura praticamente impossível. Nada disso diminui a importância desta reedição de Amadeo (com texto impresso num azul cúmplice do universo do pintor), até porque fica a sugestão de que, há 40 anos, um romance podia suscitar tanto interesse mediático quanto a transferência de um treinador de futebol.

domingo, abril 28, 2024

Museus e exposições — memórias com imagens

Rijksmuseum, Amsterdão

De que falamos quando falamos de museus?
Ou ainda: como os vemos, visitamos e compreendemos?
Eis uma antologia pessoal proposta pelo Nuno (com fotografias do próprio) — belas pistas para muitas formas de (re)descoberta dos lugares, das pinturas, dos objectos e, last but not least, dos ambientes.

quinta-feira, abril 25, 2024

Memórias de 1974 [pintura]

* CONTRE-JOUR IN THE FRENCH STYLE
David Hockney


Um resumo possível da lógica interna do trabalho de Hockney deverá ter em conta a sua aliança entre concreto e abstracto. Assim é este contra-luz inspirado num recanto do Museu do Louvre, conciliando o rigor da perspectiva com a gestação de uma realidade "cubista" em que cada elemento figurativo (observe-se a técnica "impressionista" aplicada nas paredes) parece conquistar uma autonomia expressiva que, em qualquer caso, não anula a singularidade de cada um dos outros.

sábado, novembro 19, 2022

A pintura como arte do tempo

"Homem a oferecer dinheiro a uma jovem":
um quadro de 1631 revisto no nosso presente

Um quadro holandês do século XVII “reaparece” num romance da americana Katie Kitamura: o presente é feito de muitos passados — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 novembro).

Reparem neste quadro. Que acontece? Com a mão direita, um homem oferece algumas moedas a uma jovem. Ela está a bordar à luz de uma lamparina, absorvida no seu trabalho, os pés aquecidos por uma caixa com brasas de carvão. A composição está carregada de sugestões implícitas. Desde logo pelo contraste entre a “brancura” dela e o “negrume” dele, ampliado pela respectiva sombra: as moedas são uma arma de sedução, tentando comprar os favores (sexuais, por certo) da mulher — ela persiste na distância casta que o seu próprio trabalho significa.
Estamos perante uma pintura muitas vezes, justificadamente, citada pela sua linguagem feminista. Seja como for, e por mais que alguns maniqueísmos ideológicos queiram tratar todas as relações masculino/feminino em função das convulsões do nosso presente, convém não excluir a densidade das memórias. Quanto mais não seja porque se trata de um quadro com data de 1631. Foi, de facto, há quase quatro séculos que a holandesa Judith Leyster (1609-1660) pintou este “Homem a oferecer dinheiro a uma jovem”. É uma das preciosidades do Museu Mauritshuis, na cidade de Haia, instituição em que obras-primas de Rembrandt ou Vermeer coexistem com objectos tão especiais como este — sem esquecer que, na sua época, Leyster foi uma das raras mulheres a construir uma obra realmente pessoal.
Agora, “Homem a oferecer dinheiro a uma jovem” ressurge, se assim nos podemos exprimir, num romance de Katie Kitamura, escritora americana, de ascendência japonesa, nascida em Sacramento, Califórnia, em 1979. Chama-se Intimidades e foi recentemente editado entre nós pela Quetzal (com tradução de Tânia Ganho) — a narradora, cujo nome não chegamos a conhecer, é uma mulher de Nova Iorque que, depois da morte do pai, vai trabalhar como tradutora para o Tribunal Internacional de Haia.
No capítulo 10 do livro, essa personagem central visita o Mauritshuis e descobre o quadro. Surpreendida pelo facto de Leyster ter “uns meros vinte e dois anos quando o pintou”, ao mesmo tempo reconhecendo o seu poder figurativo, universal e intemporal, contempla aquilo que chama a “inconsistência presente no âmago da imagem”. Inconsistência, entenda-se: uma magnífica “ambiguidade”. Escreve ela: “Por mais que eu olhasse para o quadro, não conseguia conciliar a modéstia perfeita da rapariga, cujo corpo estava todo coberto, tirando o rosto e as mãos, com o comportamento lascivo do homem e a sua oferta. Talvez ele estivesse simplesmente a oferecer-se para lhe comprar o pano bordado? Mas, se assim era, porquê a expressão de medo na cara da rapariga? Porquê a concentração da jovem, tão frágil e carregada de significado, como se fosse a única forma de recusa que lhe era permitida?”
Esta descrição da narradora, também ela ambígua e em aberto, não pretende, como é óbvio, satisfazer as regras de qualquer enquadramento histórico do quadro (para isso, sugiro consulta do excelente site oficial do Mauritshuis). O que aqui encontramos é uma rima perfeita com o tom fragmentário de Intimidades, romance que talvez possamos definir como uma metódica exploração de uma escrita que prefere o anti-clímax a qualquer “explosão” dramática das suas componentes.
Qual é, afinal, o núcleo narrativo do romance? Será o facto de, no seu trabalho, a narradora se deparar com matérias tão perturbantes como os horrores perpetrados por um ditador africano? Ou será a sua relação com um homem, de nome Adriaan, que parece enredado num divórcio sem conclusão à vista? Ou será “apenas” uma cena pintada por uma mulher do século XVII?
A certa altura, ela enfrenta uma ausência de Adriaan (para, ao que ela supõe, concluir o seu divórcio), ficando a viver na casa dele, casa ainda exibindo as marcas do seu casamento. Como Adriaan vai adiando o regresso, sem notícias claras do que está a acontecer, ela acaba por voltar para o seu apartamento. Já perto do final, regressa à casa para ir buscar um livro antigo que comprara (livro com um papel importante em vários momentos do romance). Para ir buscar um livro…“ou pelo menos foi isso que disse a mim própria.” Daí a sensação de um inclassificável exílio, condensado neste desabafo íntimo: “Senti-me, atravessando a casa, transparente.”
Talvez que, na sua sábia contenção, Intimidades seja um livro sobre essa transparência em que, afinal, todas as coordenadas afectivas parecem vacilar, levando-nos a sentir a frágil duração, e as muitas ambiguidades, do acto de viver. Até porque nos quadros do Mauritshuis podemos contemplar o fascínio de todas as artes narrativas, quer dizer, “o peso do tempo a passar”.

sábado, março 28, 2020

Gerhard Richter — uma exposição

GERHARD RICHTER
Auto-retrato, 1996
Os 150 anos do MET (Metropolitan Museum of Art), de Nova Iorque, estão a ser comemorados com diversas exposições que têm agora, mais do que nunca, uma importante vida virtual. É o caso da retrospectiva do alemão Gerhard Richter (n. 1932), até 5 de Julho, com o belo título 'Painting after all' — qualquer coisa como "afinal é sempre pintura". Assim é, de facto: da abstracção à reconversão pictórica de representações fotográficas, Richter é um admirável criador e crítico das imagens como entidades que expõem as fronteiras do visível, tanto quanto nos podem confrontar com o que permanece ausente das representações correntes do mundo. Ou até mesmo com o que, historicamente, resistiu ao testemunho das imagens — há vários trabalhos que envolvem ecos do Holocausto e, mais especificamente, de Auschwitz-Birkenau.
Para descobrir no site do MET. Aqui em baixo, um breve video de apresentação da exposição.

quarta-feira, agosto 28, 2019

Um museu em Hollywood

O projecto do Museu da Academia de Hollywood existe desde 2012 e tem tido uma existência atribulada. Dedicado à memória de mais de um século de cinema deverá abrir ao público, finalmente, em 2020 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Agosto).

O Museu da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood vai abrir ao público em 2020. Enfim, talvez... A data da inauguração já foi objecto de várias atribulações (anunciado o projecto em 2012, a sua abertura chegou a estar prevista para 2017), pelo que convém encarar com alguma prudência todas as notícias sobre o projecto.
Situado no Wilshire Boulevard, cerca de 6 km a norte do Dolby Theatre (sala que tem acolhido a cerimónia dos Oscars desde 2002), o Museu é um dos empreendimentos mais ambiciosos em toda a história da Academia de Hollywood. Com uma aposta radical: afirmar-se como “a maior instituição do mundo dedicada à arte e à ciência dos filmes”.
Concebido pelo italiano Renzo Piano, arquitecto ligado a construções tão emblemáticas como o Centro Pompidou ou o edifício do New York Times, o Museu distingue-se, antes do mais, pela sua pluralidade interior — de espaço de memórias dedicado a mais de um século de cinema a centro de espectáculos com programas regulares, “o museu pretende-se inspirador, divertido e educativo.”


Ocupando uma área total de 28 mil metros quadrados (contas redondas: quatro campos de futebol), incluindo jardins e parques, o edifício distingue-se por uma imensa cúpula construída a partir de 1500 placas de vidro. O custo orçamentado é de 388 milhões de dólares (350 milhões de euros à cotação actual), mas tudo indica que tal valor será ultrapassado.
A Academia de Hollywood foi criada em 1927, contando entre os seus 36 fundadores nomes lendários como o produtor Irving Thalberg, o realizador Cecil B. DeMille e os actores Douglas Fairbanks, Harold Lloyd e Mary Pickford. A primeira cerimónia dos Oscars realizou-se a 16 de Maio de 1929 mas, para lá das suas célebres estatuetas douradas, a Academia tem sido também uma instituição apostada na defesa do património cinematográfico, com importantes actividades na área da preservação e divulgação desse património, sem esquecer os domínios da educação e filantropia.
O Museu possui, assim, uma vastíssima colecção de preciosidades para expor, a começar por objectos que, através dos filmes, conquistaram um lugar na mitologia global do cinema — por exemplo, os sapatos vermelhos [foto] de Judy Garland em O Feiticeiro de Oz (1939), a máquina de escrever em que Joseph Stefano criou o argumento de Psico (1960), de Alfred Hitchcock, ou o monstro mecânico usado no clássico Tubarão (1975), de Steven Spielberg. Isto sem esquecer muitos, e muito raros, objectos precursores do cinema como algumas fascinantes lanternas mágicas da segunda metade do século XIX.


Tudo isso será complementado por áreas específicas de evocação de actividades técnicas ou momentos históricos exemplares, obviamente transcendendo as fronteiras específicas da produção “made in USA” — anuncia-se, por exemplo, uma zona dedicada ao universo criativo de Hayao Miyazaki, mestre da animação japonesa. Haverá também um espaço intitulado “Where dreams are made” (à letra: “Onde se fabricam os sonhos”), explicando as tarefas envolvidas na produção de um filme, da concepção dos cenários ao tratamento da luz, e ainda uma exposição em permanente evolução, designada “Teamlab”, que dará conta das transformações globais da produção, desde o uso das primeiras películas até à presente era digital.
Quanto aos programas de exibição de filmes, não será arriscado supor que dedicarão especial atenção às memórias cinéfilas e aos muitos títulos para cuja recuperação e restauro a Academia tem contribuído [imagem: maqueta de sala de projecção]. Será, aliás, a extensão de uma actividade — envolvendo projecções, conferências e debates — que a própria Academia desde sempre favoreceu (na agenda de Setembro, por exemplo, constam filmes de animação e uma conferência sobre o trabalho dos directores de fotografia).


Em qualquer caso, sobre esses programas, o site do museu apenas diz: “Coming soon”... Esperemos, por isso, para saber da proximidade temporal de tal calendário... Uma coisa é certa: desde 6 de Agosto, a Academia tem um novo presidente — David Rubin, primeiro director de “casting” a ocupar tal cargo —, sendo a criação de condições para a abertura do Academy Museum of Motion Pictures uma das tarefas nucleares da sua administração. Esperemos por novidades na próxima cerimónia dos Oscars, marcada para 9 de Fevereiro de 2020.

sexta-feira, agosto 23, 2019

A colecção de Sandy Schreier

O senso comum ensina-nos que a perfeição é inatingível. Em qualquer caso, esta notícia da Vogue não é sobre o senso comum — assim, a colecção da americana Sandy Schreier, historiadora e coleccionadora de moda, vai ser tema de uma exposição no Anna Wintour Costume Center do MET, Nova Iorque. Digamos, para simplificar, que as imagens envolvem uma moral perturbante: a abstracção que os modelos inanimados emprestam a estes vestidos é um sinal cruel, mas redentor, da imperfeição do humano.

sábado, julho 13, 2019

CURTAS 2019
— na companhia de um hipopótamo

Difícil de descrever em formato sinopse: em Les Extraordinaires Mésaventures de la Jeune Fille de Pierre, Gabriel Abrantes encena as atribulações de uma estátua do Museu do Louvre que, à noite, gosta de deambular pelos corredores da sua habitação oficial na companhia da 'Vitória de Samotrácia'... Na verdade, a certa altura, seduzida pelos acontecimentos exteriores ao espaço do museu, as coisas complicam-se e a estátua, desencantada por ser reconhecida apenas como peça "decorativa", acaba por encontrar apoio espiritual num pequena peça do tempo dos faraós, um hipopótamo serenamente filósofo de nome Jean-Jacques...
Há outra maneira de dizer tudo isto: Gabriel Abrantes andava à procura de um registo narrativo em que as evidências do mundo contemporâneo não anulassem, antes exponenciassem, um gosto fantasista que não prescinde de algumas modernas formas de efeitos especiais; tal demanda tinha a sua expressão mais assumida, a meu ver resolvida de forma incerta, na longa-metragem Diamantino. Agora, para além da qualidade (notável) dos efeitos especiais, o essencial envolve a consolidação de um registo narrativo que se libertou da ironia forçada, esse vício "modernista" do nosso tempo, privilegiando a descarnada verdade da fábula — são 20 deliciosos momentos de cinema, a justificar, por si só, a visita a Vila do Conde.

segunda-feira, outubro 01, 2018

Mapplethorpe, aqui e agora

Auto-retrato
(1988)
Fotografias? Sexo? Democracia? Ou ainda: de que falamos quando falamos de Mapplethorpe? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Setembro).

As notícias em torno da exposição de Robert Mapplethorpe na Fundação de Serralves surgem contaminadas por um impulso moral que, nos nossos dias, se tornou uma espécie de vício mediático. Entenda-se: não discuto a importância dessas notícias e a pertinência do seu tratamento. E acrescento: também não pretendo, com estas breves linhas, contrapor qualquer visão redentora de tudo o que está em jogo.
Em boa verdade, a delicadeza do assunto leva-me a assumir uma distância. Não sei quem tem razão nem conheço todas as nuances da questão. Aceito, sem drama, que a todos os envolvidos assistem razões (no plural) que justificam atenção crítica e disponibilidade mental.
Apollo
(1988)
Seja como for, registo o citado impulso. A saber: há imagens que, desde que envolvam componentes sexuais mais ou menos evidentes, imediatamente suscitam alguma agitação social (incluindo a que se exprime, de forma brusca e irresponsável, nas chamadas redes sociais). Como se fosse necessário e, mais do que isso, compulsivo redefinir todas as nossas práticas democráticas “apenas” porque reconhecemos que estamos a ver algo que envolve elementos de natureza sexual.
Dizer que as fotografias de Mapplethorpe são cândidas e inócuas seria absurdo. O certo é que, extrapolando para o pólo oposto (que, aliás, neste caso, ninguém enunciou), não seria menos absurdo classificá-las como objectos grosseiros que devam ser evitados.
O que eu penso sobre os trabalhos fotográficos de Mapplethorpe é apenas um detalhe: parece-me ser um dos nomes fulcrais da arte americana da segunda metade do século XX, a par, por exemplo, de Patti Smith que sobre ele escreveu esse livro maravilhoso que é Apenas Miúdos (ed. Quetzal, 2011). O certo é que, socialmente, os ecos da actual situação “empurram-me” para voltar a lidar com as imagens de Mapplethorpe unicamente através da problematização da sua exposição pública e respectiva logística. E, para mim, como leitor/espectador dessas imagens, isso tende a menorizar a minha relação com elas. Atrevo-me a pensar que o mesmo se passará com a relação dos outros.
Volto, assim, a reconhecer que vivo num país em que Mapplethorpe provoca esta agitação pública, enquanto se passam anos e anos sem que quem quer que seja — a começar pelos elementos da classe política, direitas e esquerdas confundidas — pronuncie uma ténue palavra sobre a violência moral das representações quotidianas da sexualidade nos programas de “reality TV” (mais ou menos derivados do Big Brother).
Calla Lily
(1984)
Bem sei que relembrar isto tende a atrair um outro impulso (muito popular nos domínios sociais & virtuais), redutível a uma pergunta seca: “Queres, então, que se proíba a reality TV?” Permito-me, por isso, repetir: não se trata de clamar por qualquer lógica de interdição, mas de tentar lidar com o nosso silêncio social face a modos de representação das relações humanas que, entre outras coisas, reduzem a sexualidade a estúpidas performances genitais, nessa medida ridicularizando e, no limite, mascarando a riqueza, complexidade e beleza dos afectos.
Não me reconheço, por isso, nos rótulos que definem a importância de Mapplethorpe (ou, no pólo oposto, a sua falta de importância) através daquilo que seria a sua capacidade de “provocação”. Encaro mesmo essa palavra como um “gadget” pueril, já que a encontro regularmente aplicada, com o mesmo automatismo, a Mapplethorpe ou a uma vedeta de telenovelas que decide mostrar alguns centímetros de pele nua.
Do meu ponto de vista (certamente discutível, porque individual, não universal), considero que a energia afirmativa do trabalho fotográfico de Mapplethorpe não exclui, antes dá a ver, o medo que habita o nosso entendimento da sexualidade (leia-se: a própria vida sexual).
E talvez seja a partir daí que podemos reflectir sobre um dos enigmas do nosso liberalismo: face a Mapplethorpe, hesitamos, especulamos, discutimos exposição e ocultação; ao mesmo tempo, resignamo-nos com o facto de a “reality TV” e toda a sua desumanização (muito para além da sexualidade) se ter instalado na rotina do dia a dia. Esta nossa indiferença define muito do que somos, do que pensamos e, sobretudo, do que não queremos pensar.

quarta-feira, agosto 08, 2018

Uma "t-shirt" demasiado política

O Museu das Notícias de Washington teve à venda “t-shirts” (entretanto, retiradas da sua loja) com uma expressão de Donald Trump; ou como se prova que a política contamina todos os níveis da sociedade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Agosto).

O que é uma boa média? Na arte de mentir, por exemplo: como se pode medir a performance de um mentiroso compulsivo? Digamos que a média diária de 7,6 mentiras é um patamar superior. Quem o conseguiu atingir? Pois bem, o presidente Donald Trump.
Não é um cálculo aproximado. Antes o resultado de um metódico inventário jornalístico realizado por The Washington Post. Ou seja: 4229 afirmações mentirosas (incluindo dados manipulados ou fora de contexto e, nessa medida, enganadores) em 558 dias de presidência — isto de acordo com a notícia publicada a 1 de Agosto.
Há quem considere que a nossa fixação mediática em Trump apenas serve para que os seus acólitos estejam a desmantelar todos os mecanismos de governação concebidos, há muitas décadas, em benefício do povo — Noam Chomsky defendeu esse ponto de vista, tão sugestivo quanto discutível, em declaração ao movimento “Anonymous”. O certo é que não é possível pensar a nossa actualidade global sem ter em conta o delirante contraste entre a fúria de Trump contra as notícias falsas que denuncia — as célebres “fake news” — e a sua própria prática quotidiana enquanto líder político.
Entretanto, nesta atribulada conjuntura surgiu um insólito elemento, à beira do surreal: o Newseum está a vender na sua loja “t-shirts” com a inscrição “You are very fake news” (à letra: “Tu és muito notícias falsas”).
Seja qual for o grau de perversidade do nosso sentido de humor, convenhamos que a comercialização de tal objecto não parece decorrer das muito sérias funções de uma instituição como o Newseum (à letra: “Museu das notícias". Estamos, de facto, perante uma entidade criada com o objectivo de informar sobre a história da comunicação e do jornalismo, tendo como principal missão a celebração da liberdade de religião, expressão e imprensa, tal como garantida pela Constituição dos EUA na sua mítica “primeira emenda” (“first amendment”), redigida em 1791.
Como se passou dessa lógica institucional para a ligeireza política, demasiado política, de uma “t-shirt”? Eis uma questão que está a gerar um evidente mal estar (mesmo sabendo-se que as vendas da loja do Newseum podem servir para atenuar os problemas orçamentais com que a instituição se debate). Robert MacNeil, decano do jornalismo americano, autor de um livro clássico sobre o assassinato de John Kennedy, já veio dizer: “Creio que, obviamente, pretende ser uma brincadeira, mas não me parece que seja uma brincadeira feliz.” Entre as personalidades que deram conta da sua indignação incluem-se Pete Souza, fotógrafo oficial da Casa Branca durante a presidência de Barack Obama, e Hadas Gold, jornalista da CNN; no Tweeter, Gold escreveu: “O Newseum tem um memorial dedicado aos jornalistas mortos em trabalho. Porque é que estão a vender camisolas de “fake news”? Uma coisa é vender parafrenália política, outra é promover uma frase autoritária que regimes de todo o mundo aplicam contra a liberdade de imprensa.”
Como se prova, neste mundo saturado de imagens (e “t-shirts”!...), ainda conta o que se diz, como se escreve e onde se escreve. Afinal de contas, uma “t-shirt” é também uma forma de encenação do nosso próprio corpo.

domingo, julho 22, 2018

Com Joaquim Sapinho, na Gulbenkian

JEAN-HONORÉ FRAGONARD
A Ilha do Amor
c. 1770
Chegamos ao fim do circuito da exposição sobre a colecção de Calouste Gulbenkian e deparamos com esta maravilha de Fragonard, uma ilha do amor (ou "de" amor, segundo o original L'Île d'Amour) que nos faz ver o espaço como uma entidade impossível de reproduzir. O espaço? Sim, é disso que se trata.
O espaço impõe-se, assim, como algo que vemos como um tempo — o tempo de contemplação do quadro, antes do mais —, levando-nos a reconhecer que a nitidez das formas (a água, a verdura, etc.) é também um método de discussão de qualquer sistema formal. Afinal de contas, não é impunemente que se evoca o paraíso — ficamos sempre aquém, mesmo se o gesto artístico se coloca algures, além.
Ainda assim, a ilha de Fragonard não será o fim "final" da exposição. Podemos mesmo percorrê-la através de uma calendarização sensual em que a data de identificação de cada obra tende a ser uma alínea enigmática da pluralidade do presente em que somos espectadores.
Dito de outro modo: na sua qualidade de convidado de Verão da Fundação Gulbenkian, Joaquim Sapinho trabalhou a partir de um princípio tão linear quanto radical. A saber: nunca expomos o passado, antes reconvertemos os padrões do tempo que, de modo mais ou menos consciente, fazem de nós herdeiros de lotes e lotes de objectos incrustados entre o rigor das catalogações e a maravilha primordial do indizível.
Daí que esta exposição/viagem tenha qualquer coisa on the road, a partir de um (novo) mapa em que os objectos até agora invisíveis do cidadão Gulbenkian dialogam, lado a lado, literalmente, com as mais diversas peças da colecção de arte moderna da Fundação.
Trabalho de montagem, sem dúvida, ou não fosse Sapinho um cineasta que sabe o valor da ligação de uma imagem a outra imagem, corrigindo a soma tradicional 1+1=2, gerando um terceiro termo, surpreendente e sensorial, da mais pura fruição, antes do prazer de qualquer fixação teórica — porventura um pouco à maneira de Roland Barthes que, ao olhar para a coroação do czar em Eisenstein, superava evidências ou conotações, doando-nos as pulsações do bem chamado terceiro sentido, conduzindo-nos da presença da imagem à radicalidade imponderável do fotograma.
Daí também a agilidade com que pintura e escultura, malas de viagem e outros objectos pessoais, reaparecem neste contexto, alertando-nos para a existência multifacetada da história, dos seus muitos gestos, rostos e silêncios — incluindo os nossos. Como diz Sapinho, neste breve e didáctico video, o resto só vendo a exposição.

quarta-feira, dezembro 13, 2017

As imagens e o actual clima sexual

BALTHUS
Thérèse Dreaming (1938)
De que falamos quando falamos da percepção pública das imagens? Ou ainda: quando é que a vida pública das imagens bloqueia a vontade de conhecer? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Dezembro), com o título 'O actual clima sexual'.

Nestes tempos em que tudo se “globaliza”, sentimo-nos perturbados pelo que, estando longe de nós, afinal parece imiscuir-se no nosso quotidiano, baralhando evidências e certezas. Por exemplo, que está em jogo quando, dos EUA, surge uma petição contra a exposição de um quadro de Balthus (Thérèse Dreaming, 1938) nos salões do Metropolitan Museum of Art (MET)?
Sabemos que os protestos se “fundamentam” no facto de o quadro figurar uma jovem numa pose que contribui para uma visão “romântica” do voyeurismo, reduzindo as crianças a “objectos”. Os assinantes da petição (perto de 12 mil) argumentam que tal não se justifica tendo em conta “o actual clima em torno das agressões sexuais”.
REMBRANDT
Auto-retrato (1652)
Escusado será dizer que o episódio possui algum valor sintomático. E não apenas por causa do “actual clima” (refira-se que o MET recusou satisfazer a petição). Sobretudo porque as suas componentes são reveladoras de uma percepção muito frequente, porventura dominante, das imagens e da sua existência pública: em muitos circuitos de (des)informação, deixou de ter qualquer relevo o facto de haver uma história humana das imagens, das grutas de Lascaux às piscinas de David Hockney, passando pelos auto-retratos de Rembrandt — as imagens apenas existem em função dos efeitos “perniciosos” que alguém lhes possa atribuir.
Há em tudo isso uma renúncia existencial infinitamente mais perturbante que qualquer imagem. Porquê? Porque o que está em causa nada tem a ver com os jogos florais de “pureza” ou “impureza” que adquirem imediata visibilidade mediática. O que está em causa implica uma metódica desqualificação de qualquer gesto artístico, negando todas as componentes fantasmáticas da natureza humana, como se Shakespeare, Goya, Dostoyevski, Freud e Buñuel nunca tivessem existido — ou devessem ser interditos à nossa humaníssima vontade de conhecer.
Este é, afinal, o mesmo mundo em que o Big Brother e seus derivados televisivos todos os dias promovem uma visão grosseira, mecanicista e performativa da sexualidade (feminina e masculina), sem que se assista a grandes indignações da parte da classe política ou dos vigilantes dos bons costumes. No limite, podemos vir a ser forçados a renegar determinadas obras por causa das “associações” daquela mentalidade liofilizada. Alexandre Nevsky (1938), por exemplo — tendo em conta que o filme foi encomendado pelo líder comunista Josef Staline, responsável pelo genocídio de milhões de pessoas, devemos evitar qualquer contacto com a obra-prima de Sergei Eisenstein?
EISENSTEIN
Alexandre Nevsky (1938)

quinta-feira, agosto 25, 2016

"Na Cama com Madonna", 25 anos

Madonna esteve numa projecção especial de Na Cama com Madonna (título original: Truth or Dare), no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMa), assinalando o 25º aniversário do filme — realizado por Alek Keshishian, trata-se de um documentário histórico, historicamente inovador, sobre a 'Blond Ambition Tour' (1990). No seu Instagram, Madonna lembrou que "há tantas liberdades que damos por adquiridas e que não tínhamos nessa altura"; agradecendo a Keshishian, remata dizendo: "Mudámos a história com este filme."
A frase não tem nada de pomposo ou exagerado. Na Cama com Madonna é um exercício sobre o espectáculo e os bastidores, o ser personagem pública e viver uma vida privada, em última instância problematizando a ética e a estética do cinema no interior de tais dialécticas. Nada a ver com qualquer "antecipação" da reality TV, uma forma específica, moralmente viciada e viciosa, de manipulação e encenação — é o próprio Keshishian que faz questão em sublinhar tais diferenças, numa excelente entrevista dada a Louis Virtel, da revista Paper.
Estamos, afinal, perante uma experiência indissociável de todo um sistema de reconversão iconográfica e superação simbólica do(s) sexo(s) que Madonna protagonizou como ninguém. Num belo texto publicado no site do MoMa, Izzy Lee lembra tudo isso, chamando-lhe, não 'Rainha da Pop', mas 'Mãe da Pop'.

quarta-feira, agosto 24, 2016

"A vingança da vagina" [L'Obs]

Vale a pena ler o dossier proposto pela revista francesa L'Obs (herdeira de Le Nouvel Observateur), na sua edição de 11/17 Agosto, sobre as representações do sexo feminino: é a "história de um tabu", como se diz na capa, alimentado por discursos prisioneiros de lógicas masculinas; e é também "a vingança da vagina", de acordo com o título do artigo principal, assinado por Cécile Deffontaines. A abordagem é especialmente sugestiva, sobretudo porque não se apresenta prisioneira das pulsões imagéticas — o sexo (feminino ou não) é também o modo como o dizemos e escrevemos; esta é também, é mesmo sobretudo, uma história de palavras.
Em qualquer caso, sublinhe-se a singularidade da capa da revista, mostrando (literalmente) que a história que se conta não pode ser reduzida aos seus efeitos contemporâneos: nela encontramos uma reprodução do célebre quadro A Origem do Mundo, produzido por Gustave Courbet há exactamente 150 anos e exposto em Paris, no Museu d'Orsay.
Para além da saudável ironia que contamina esta abordagem das questões muito sérias que envolvem o ver & dizer das imagens do(s) sexo(s), há também em tudo isto um humor amargo, amargamente involuntário. Assim, num divertido artigo intitulado '"Pussy" rap', Fabrice Pliskin propõe uma sugestiva antologia do modo como, entre outras, Rihanna, Missy Elliott ou Azealia Banks, integram a sua vagina naquilo que dizem e cantam... Assim é. Mas talvez valha também a pena lembrar que, há mais de um quarto de século, quando uma tal Madonna (nomeadamente fotografada pelo grande Herb Ritts) punha a mão "onde não devia", meio mundo protestava contra os gestos gratuitos de uma estrela mimada... Encore un effort... 

A ORIGEM DO MUNDO (1866), de Gustave Courbet
Museu d'Orsay
Interview (Junho 1990)
FOTO: Herb Ritts

terça-feira, julho 19, 2016

Sokurov filma o Louvre

Nem documentário, nem ficção: Francofonia é mais uma proposta admirável de Aleksandr Sokurov — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Julho), com o título 'O museu do mundo todo'.

Decididamente, para Aleksandr Sokurov, um museu não é um armazém. Nem uma colecção de cromos. Em A Arca Russa (2002), a sua câmara percorria o Hermitage, em São Petersburgo, numa vertigem de continuidade (era um filme feito num único plano, convém recordar) que se ia tornando paradoxalmente descontínua, expondo as memórias, deslumbradas e magoadas, de uma Rússia ainda desconhecedora das convulsões do comunismo. Agora, em Francofonia, Sokurov vem-nos dizer o que já sabíamos — o Louvre como imensa galáxia de história e histórias —, embora levando-nos a discutir muitas certezas correntes sobre a conservação do património artístico.
Aleksandr Sokurov
Será, por isso, irrelevante encaixar Francofonia em qualquer modelo de “documentário” ou “ficção”. Este é o filme em que o próprio Sokurov se coloca em cena, perante o ecrã do seu computador, inquirindo sobre as inusitadas atribulações a que os humanos sujeitam os objectos artísticos. Mais do que isso: a frieza jornalística dos factos evocados não impede que Napoleão “saia” das telas, vagueando pelas salas do Louvre, apontando os quadros e proclamando, com compreensível orgulho, “sou eu”.
Em qualquer caso, o cerne da questão está na relação que, durante a ocupação alemã, se estabeleceu entre o director do museu e o oficial nazi encarregado de administrar a “cultura” (interpretados, respectivamente, por Louis-Do de Lencquesaing e Benjamin Utzerath). Nessa relação, Sokurov descortina uma cumplicidade tão discreta quanto tácita que, por abençoada perversidade, conseguiu conter o desejo de “exportação” de muitas obras-primas do Louvre, alimentado, em Berlim, por Hitler e Goebbels. São memórias multifacetadas da Segunda Guerra Mundial que, além do mais, conduzem o cineasta a evocar as feridas da sua pátria e, em particular, a resistência trágica de Leninegrado (aliás, São Petersburgo).
Daí a luminosa moral de Francofonia: um museu não é exactamente um lugar para contemplar a arte do mundo, mas mais uma paisagem viva que, no limite, nos permite ver o mundo todo.

segunda-feira, fevereiro 22, 2016

Erwin Olaf — a moda no museu

ERWIN OLAF
Ymre Stiekema usando um vestido de 1759
Em Amsterdão, até 16 de Maio, o Rijksmuseum apresenta a exposição Catwalk, dedicada à moda tal como os holandeses a viveram (e usaram) entre 1625 e 1960. Organizada pelo fotógrafo Erwin Olaf, a exposição foi também pretexto para a realização de um breve, mas admirável, filme promocional — são imagens que cruzam a herança do passado e o experimentalismo do presente.

quinta-feira, dezembro 31, 2015

Museu Chaplin abre em 2016

The Criterion Collection
O Museu Chaplin será uma realidade em 2016, relançando para as novas gerações as memórias do homem que criou o mais célebre vagabundo da história da humanidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Dezembro), com o título 'A actualidade do legado de Charlie Chaplin'.

O ano de 2016 vai trazer, por certo, um renovado interesse pela figura lendária de Charles Spencer Chaplin, ou apenas Charlie Chaplin, como ele assinava os seus filmes — ou ainda: Charlot. Assim, na Primavera, o Museu Chaplin será, finalmente, uma realidade. Anunciado como um empreendimento que cruzará as memórias de uma obra universal com as componentes da mais moderna tecnologia de preservação, divulgação e estudo das matérias cinematográficas, o museu resulta da adaptação da propriedade de Manoir de Ban, na Suíça, próximo do Lago Léman, onde Chaplin viveu os últimos 25 anos da sua existência [video: Euronews].


Dir-se-ia que a sua figura lendária atrai os números redondos das efemérides. Lembremos que o homem que criou o mais célebre vagabundo da história da humanidade, nos deixou numa data simbólica, entre todas: faleceu no dia de Natal de 1977, contava 88 anos (nasceu a 16 de Abril de 1889, em Londres). 2015 foi o ano em que se assinalou a passagem de um século sobre a produção de The Tramp (O Vagabundo), precisamente a curta-metragem que consolidou essa personagem que, através das suas aventuras e desventuras, se inscreveu no imaginário colectivo como a encarnação de uma lógica de sobrevivência sempre enredada com as grandezas e misérias da condição humana.
O ano que está a chegar envolve uma especialíssima efeméride: passam 80 anos sobre a estreia (em Nova Iorque, a 5 de Fevereiro de 1936) de Tempos Modernos, por certo a longa-metragem de Chaplin cuja simbologia, tanto ética como política, há muito transcendeu qualquer barreira histórica ou ideológica.
Fábula sobre a desumanização ligada a muitas formas de desenvolvimento industrial, Tempos Modernos representa o encerramento daquilo que poderíamos designar como o “ciclo clássico” do seu criador. Desde logo, porque se trata do derradeiro filme em que surge a personagem do vagabundo, identificado no genérico como “trabalhador fabril”. Charlot é uma figura anónima no interior de uma gigantesca cadeia de produção, vivendo um dia a dia de horários austeros e rotinas severas que, em última instância, foi formatando os seus gestos — a sequência em que tenta manter o ritmo imposto pelas máquinas, repetindo movimentos que transformaram o seu corpo num bizarro autómato, consolidou-se como metáfora deliciosamente burlesca dos excessos da industrialização.
O projecto de Tempos Modernos surgiu durante uma digressão mundial de 18 meses (1931-32), tendo como objectivo principal a promoção de Luzes da Cidade, cuja estreia americana ocorrera nos primeiros dias de 1931. O conhecimento da crise económica na Europa, contaminada pelos sinais de ascensão das forças nacionalistas, levou Chaplin a estudar com afinco as convulsões da economia, defendendo publicamente a sua visão de uma sociedade utópica em que a liberdade humana nunca seria condicionada pelo progresso tecnológico. Numa entrevista dada ainda em 1931, condensou tal visão, afirmando: “O desemprego é a questão vital. A maquinaria deve beneficiar a humanidade, não gerar uma tragédia em que os seres humanos não têm trabalho.”
Curiosamente, Tempos Modernos ficaria também como derradeira expressão da resistência estética de Chaplin à mais radical evolução técnica do próprio cinema: o advento do som que, convém lembrar, se impusera no mercado quase uma década antes (O Cantor de Jazz, com Al Jolson, surgira em 1927). Sem ser exactamente um filme mudo, Tempos Modernos distingue-se por uma banda sonora em que as vozes escasseiam e quase tudo se exprime através de ruídos e música. Nele encontramos Smile, uma das mais célebres canções compostas por Chaplin, ao longo das décadas recriada por nomes como Nat King Cole, Tony Bennett [video] ou Barbra Streisand — Robert Downey Jr. interpreta-a no filme biográfico Chaplin (1992), realizado por Richard Attenborough.


Ecoando também o gosto de Chaplin pelo cinema como um evento a que, no limite, basta o som da música, a divulgação da sua obra para os espectadores do séc. XXI está a passar por muitos “filmes-concerto”. Consultando o seu site oficial, podemos verificar que, da Suíça a Hong Kong, passando por Espanha, Alemanha, EUA, etc., há cerca de quatro dezenas de concertos agendados para o primeiro semestre de 2016 — A Quimera do Ouro (1925), Luzes da Cidade e Tempos Modernos são os filmes mais frequentemente projectados em tais espectáculos.
Na sequência da reposição de vários títulos de Chaplin em magníficas cópias restauradas, o ano que agora termina foi também particularmente rico no espaço específico dos livros. A edição mais surpreendente terá sido Charlie Chaplin – L’Album Keystone: L’Invention de Charlot (Xavier Barral, Paris), uma memória iconográfica dos primeiríssimos títulos rodados por Chaplin, para os estúdios Keystone, ao longo do ano de 1914. Os fotogramas desses pequenos filmes foram recolhidos e preservados, durante a década de 40, por H. D. Waley, na altura um dos directores do British Film Institute. Entretanto, na sua série de álbuns gigantes dedicados a grandes referências cinematográficas, a editora Taschen publicou The Charlie Chaplin Archives [capa], com coordenação de Paul Duncan, integrando documentos cedidos pelos herdeiros de Chaplin, compilados e tratados pela Cinemateca de Bolonha.
Em Luzes da Ribalta (1952), respondendo às angústias da bailarina Terry (Claire Bloom), o envelhecido palhaço Calvero (Chaplin), dizia-lhe: “Há uma coisa tão inevitável como a morte — é a vida” [video, com legendas em espanhol]. Tendo em conta que esse filme possui o fôlego de um genuíno testamento artístico, podemos condensar a herança do homem que inventou Charlot nesse paradoxo: a frieza do destino não exclui a energia da vida. Ou ainda: o riso e as lágrimas são apenas duas faces da mesma moeda.

quinta-feira, junho 11, 2015

Visita ao Museu Bonnard (2/2)

A Amendoeira
1930
Um pouco ao norte da zona nuclear do Festival de Cannes, é possível visitar o museu dedicado a Pierre Bonnard — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Junho), com o título 'Pierre Bonnard ou a arte de viver a pintura'.

[ 1 ]

Um sobrinho de Jean Terrasse, o historiador de arte Antoine Terrasse (1928-2013), é responsável por uma magnífica recolha de notas escritas por Bonnard, intitulada Observations sur la Peinture, publicada em Janeiro deste ano (ed. L’Atelier Contemporain). Aí encontramos uma antologia de pequenas frases, desde breves memórias de trabalho até observações de carácter filosófico, muitas delas registadas nos cadernos de apontamentos que o museu dá a ver. Bonnard usava tais cadernos para esboços (poses de Marthe, paisagens, muitos cães e gatos) e também para uma espécie de boletim meteorológico privado (“bom tempo”, “chuvoso”, “nublado”, etc.).
Numa das notas finais, escrita em 1946, Bonnard faz uma síntese admirável: “Não se trata de pintar a vida, trata-se de dar vida à pintura”. Neste aparente trocadilho exprime-se, afinal, uma fundamental lógica de acção e pensamento. Assim, é verdade que, desde o começo da sua actividade (inclusive em cartazes e litografias), Bonnard sempre foi um meticuloso observador da natureza, seduzido pelas nuances da cor e pelos enigmas da luz. Ao mesmo tempo, nunca se assumiu como “ilustrador” dos elementos naturais: o seu método consistia em observar, memorizar, para depois fabricar o quadro na solidão do atelier.
Numa excelente biografia lançada há poucas semanas, Bonnard, Jardins Secrets (ed. La Table Ronde), Olivier Renault cita uma frase de Bonnard ao seu amigo George Besson, reivindicando, justamente, o tempo de maturação de cada quadro: “É preciso que as coisas amadureçam como uma maçã, não há maneira de superar o tempo”.
Um dos quadros mais famosos da colecção do museu, A Amendoeira (1930), corresponde a esse sentimento de um tempo denso e envolvente que nada tem a ver com o instantâneo fotográfico (embora Bonnard, com o seu amigo Édouard Vuillard, tenha sido um apaixonado das primeiras máquinas fotográficas). Nesta sua visão dos jardins em torno de “Le Bosquet”, deparamos com uma visão dos elementos naturais que supera qualquer impressão imediata, porventura impressionista.
Vale a pena lembrar que, apesar de contemporâneo dos impressionistas (Manet, Monet, Pissarro, etc.), Bonnard nunca se confundiu com eles, do mesmo modo que não se integrou nas convulsões que se seguiram, nomeadamente o cubismo. No seu livro, Renault sugere que essa “exterioridade” terá contribuído para o demorado reconhecimento da sua grandeza. Picasso, por exemplo, chegou mesmo a declarar que ele não era um “pintor moderno” porque “obedece à natureza, não a transcende”. Consta, em todo o caso, que Picasso foi visto, um dia, sozinho numa galeria de Paris, a observar demoradamente alguns quadros de Bonnard — podemos supor que o seu génio lhe terá permitido perceber que a transcendência se pode atingir, também, através de alguns gestos de obediência.