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sexta-feira, outubro 10, 2025

Martin Scorsese por Rebecca Miller

"A história por trás do contador de histórias", eis a sugestiva frase de apresentação da mini-série de Rebecca Miller sobre Martin Scorsese — Mr. Scorsese é um conteúdo da AppleTV+ e apresenta-se com este magnífico trailer.

sábado, agosto 30, 2025

Eddie Murphy já não mora aqui...

Eddie Murphy e Pete Davidson: saudades da comédia...

Como actor e produtor, Eddie Murphy continua a gerir a sua carreira através de sucessivas cópias de personagens que já assumiu ou situações que já protagonizou: infelizmente, The Pickup (Prime Video) é mais um exemplo dessa deriva profissional — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 agosto).

Há filmes a que, por razões óbvias, o título original basta como identificação — ninguém esperava que Titanic fosse lançado como “A saga do paquete que foi ao fundo”. Ainda assim, há uma lição bizarra que o espectador atento às convulsões do mercado foi aprendendo ao longo dos anos: quando um filme é lançado apenas com o título original (sem sequer se usar a hipótese de um subtítulo português), é mais que provável que quem o distribui não tenha qualquer empenho, muito menos crença, na sua valorização... Assim acontece com The Pickup, uma realização de Tim Story (responsável pela versão de Shaft, com Samuel L. Jackson, estreada em 2019), disponível na Prime Video, sem ter passado pelas salas.
Infelizmente, reencontramos um sintoma do esgotamento de fórmulas e formatações em que se transformou a actividade de Eddie Murphy, brilhante figura do “stand-up” norte-americano e, na década de 80, actor de várias comédias de contagiante sofisticação — a começar, claro, por 48 Horas (1982), de Walter Hill —, aqui, uma vez mais, na dupla condição de actor e produtor. Aliás, na melhor das hipóteses, The Pickup poderá ser encarado como uma tentativa de reactivar o modelo da dupla burlesca que Murphy construiu na companhia de Nick Nolte em 48 Horas e 48 Horas – Parte II (1990), sempre sob a direcção de Hill.
Neste caso, a dupla é constituída por dois empregados de uma firma de transportes especializada em entregas (nomeadamente de dinheiro) que exigem medidas de alta segurança. Russell, a personagem interpretada por Murphy, é um veterano que sai de manhã para o trabalho, prometendo a sua mulher Natalie (Eva Longoria) que, desta vez, não faltará aos seus deveres conjugais, ou seja, o jantar de celebração dos 25 anos do casal. Nesse mesmo dia, Russell acolhe, com evidente má vontade, um novo companheiro de trabalho, Travis (Pete Davidson), especialista em criar confusões mais ou menos comprometedoras...
O modelo é conhecido e convenhamos que todos os seus lugares-comuns se vão cumprindo com duvidosa eficácia, ainda que as personagens femininas — além de Natalie, há também Zoe (Keke Palmer), uma figura susceptível de confundir a moralidade de tudo o que está a acontecer — contribuam, pelo menos, para baralhar um pouco os dados iniciais.
Seja como for, a execução geral de The Pickup reflecte uma lógica cada vez mais influente (e, a meu ver, negativista) em zonas da produção de Hollywood instaladas na repetição de regras que poucos arriscam repensar e reinventar. Ironicamente, as entidades produtoras — Davis Entertainment, Eddie Murphy Productions e The Story Company (fundada pelo realizador) — não deixam de ser símbolos daquilo que é, ou poderia ser, uma produção genuinamente independente.

quarta-feira, agosto 13, 2025

Taxi Driver: a cor do sangue

Mr. Scorsese: assim se chama o documentário (5 episódios) sobre Martin Scorsese, realizado por Rebecca Miller, com estreia agendada para 17 de outubro, na Apple TV+. Eis uma primeira amostra, sobre o tratamento cromático do sangue em Taxi Driver — a história é conhecida, mas contada assim adquire uma nova dimensão.

terça-feira, julho 15, 2025

Andy Kaufman
— a gloriosa solidão do cómico

Andy Kaufman: entre comédia e tragédia

Figura singular da história da televisão dos EUA, Andy Kaufman (1949-1984) deixou uma herança complexa que importa conhecer: é essa a proposta do documentário A Comédia e o Caos: o Legado de Andy Kaufman, disponível na plataforma Filmin — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 julho).

De que falamos quando falamos de Andy Kaufman? De uma das figuras mais inclassificáveis da história da televisão dos EUA. Provavelmente, para a maioria dos espectadores europeus, ele será, sobretudo, a excêntrica personagem recriada por Jim Carrey, numa interpretação de puro génio, no filme Man on the Moon/Homem na Lua (1999), por certo um dos objectos mais radicais e complexos da filmografia de Milos Forman. Agora, podemos descobrir um sugestivo documentário capaz de enriquecer o nosso (des)conhecimento — chama-se A Comédia e o Caos: o Legado de Andy Kaufman, tem assinatura de Alex Braverman, e está disponível na plataforma Filmin.
A vida de Kaufman foi tão breve quanto atribulada. Nascido em Nova Iorque, a 17 de janeiro de 1949, faleceu com apenas 35 anos, em Los Angeles, a 16 de maio de 1984, vítima de cancro no pulmão (não fumava, tendo sido provavelmente afectado pelas ambiências dos clubes noturnos em que trabalhou). As suas raízes artísticas são indissociáveis do universo americano da “stand-up comedy” (por alguma razão a expressão “stand-up” adquiriu valor universal no mundo da comédia), tendo começado a trabalhar em clubes especializados no começo da década de 70.
Foi a televisão que o transformou numa estrela nacional, a começar pelo lendário programa da NBC, Saturday Night Live, actualmente a celebrar 50 anos de existência. Kaufman apareceu mesmo no primeiro episódio, emitido a 11 de outubro de 1975, num segmento de insólito humor (evocado no documentário): surgia como uma figura hierática, vestida de modo convencional, embora “desordenado” (casaco apertado, de aspecto muito usado, lenço preto à volta do pescoço), tendo a seu lado um gira-discos — colocava um disco a rodar e, imóvel, escutava o tema do Rato Mickey, fazendo playback com alguns dos seus versos...


O documentário expõe de modo pormenorizado a ascensão de Kaufman, contando com preciosos materiais de arquivo (muitos deles inéditos, descobertos pelo próprio realizador). As evocações vão sendo pontuadas por depoimentos de profissionais que com ele lidaram, do argumentista e produtor Bob Zmuda até actores como Danny DeVito, Marilu Henner e Steve Martin.
Depois do Saturday Night Live, a série Taxi (uma sitcom produzida entre 1978 e 1983) consagrou Kaufman como símbolo de um humor surreal, delicado e ternurento — nos seus sketches, despedia-se com um agradecimento sincopado, “Thank you very much”, expressão que serve de título original ao documentário. A pouco e pouco, essa imagem ligeira foi sendo contaminada por “desvios” nem sempre bem acolhidos pelas audiências, incluindo uma espécie de “alter-ego” agressivo, Tony Clifton, personagem que Kaufman trabalhou como uma caricatura do modelo clássico do cantor de cabaret.
As suas provocações tornaram-se cada vez mais cruas (incluindo os combates de “wrestling”... contra mulheres), criando uma aura de estranheza e inquietação capaz de suscitar movimentos contraditórios de amor e ódio por parte dos espectadores. No limite mais bizarro, houve mesmo quem admitisse que a notícia da morte de Kaufman seria um truque para gerar mais controvérsia...

Verdade e mentira

Sem cair em maniqueísmos moralistas, a realização de Braverman consegue, num tom simples e pedagógico, estabelecer alguns laços entre as singularidades do universo cómico de Kaufman e as componentes mais cruéis, por vezes trágicas, da sua vida familiar — especialmente tocante é o depoimento do pai de Kaufman, recordando o facto de terem escondido a morte do avô (dizendo-lhe que ele andava “em viagem”) e os efeitos dessa mentira no seu dia a dia.
Talvez possamos dizer que Andy Kaufman foi, afinal, um cómico cujo efeito nos outros se enraizava no radicalismo da sua própria solidão. Como se a sua glória nascesse de um gélido bloqueio comunicacional — redescobrir o seu génio é também reconhecer essa contradição visceral.

sábado, março 08, 2025

Elogio dos álbuns... contra os singles
— Rick Beato

Será que o Spotify matou o álbum? — entenda-se: o álbum como peça fundamental e duradoura, artística e comercial, da vida da música e dos músicos; não a aceleração de produção e consumo de singles que, melhores ou piores, existem como "diversões" breves e efémeras, para usar e deitar fora...
Quem o pergunta é Rick Beato, numa magnífica análise em que se cruzam as questões criativas com os modos de consumo das canções, desembocando no futuro, aliás, nos futuros (pensemos plural) que o presente pode conter ou, de algum modo, começar a edificar.
Escutemos a sua exposição e, por fim, lembremos, com o devido espanto, uma das referências citadas por Beato: o álbum Revolver (1966), dos Beatles, e essa obra-prima dentro de uma obra-prima que é a canção Tomorrow Never Knows.
 


sexta-feira, fevereiro 21, 2025

Um filme com notícias da Cisjordânia

No Other Land: Yuval Abraham e Basel Adra

Que dizer de um filme como No Other Land (disponível na plataforma Filmin e nos cinemas)? Como dar conta da saga de dois amigos, Basel Adra e Yuval Abraham, observando as tragédias vividas na Cisjordânia, na região de Masafer Yatta, com as tropas israelitas a destruirem as aldeias palestinianas, porque aquela passou a ser uma “zona” de operações militares?
Na sua energia humanista, o filme tornou-se um genuíno acontecimento global, acumulando distinções nos mais diversos contextos - por exemplo, no Festival de Berlim e nos Prémios do Cinema Europeu, estando nomeado para o Oscar de Melhor Documentário. Que dizer e, sobretudo, como dizê-lo? Talvez começando por reconhecer a dialética, aprendida com Jean-Luc Godard, que nos leva a pensar as relações entre o nosso “aqui” e o “algures” para que as imagens nos convocam.
 
>>> Texto integral na secção de Opinião do Diário de Notícias (21 fev.)

segunda-feira, agosto 12, 2024

Gaga Chromatica Ball

Lady Gaga: cantora, produtora & realizadora

Foi em 2020 que Lady Gaga lançou o álbum Chromatica. A digressão “The Chromatica Ball” foi duas vezes adiada devido à pandemia, só se concretizando em 2022. Gaga Chromatica Ball é o filme-concerto de um momento alto dessa digressão, no Dodger Stadium de Los Angeles, finalmente disponível em streaming — para lá da sofisticação técnica e da enorme quantidade de participantes (no palco e bastidores), estamos perante um espectáculo na primeira pessoa, com a cantora/compositora a assumir a produção e a realização.
A performance de Lady Gaga decorre de uma frondosa árvore genealógica de criadores de concertos em estádios (dos Pink Floyd a Beyoncé, passando por Madonna). Mais do que uma antologia de canções, deparamos com uma exuberante teatralidade em que o palco tradicional se abre a uma elaborada cenografia que não dispensa a proliferação de ecrãs. Daí o paradoxo artístico: Lady Gaga tanto pode encarnar uma personagem saída de uma aventura de ficção científica como uma intérprete que, ao piano, reinventa uma pose clássica.

sábado, fevereiro 10, 2024

A fotografia a fazer cinema

O cavalo em movimento de Muybridge: como se fosse um filme...

Disponível na plataforma Filmin, Revelando Muybridge é um exercício exemplar de revisitação e redescoberta da herança do fotógrafo Eadweard Muybridge (1830-1904): com ele, os avanços técnicos foram também revoluções do olhar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 janeiro).

São muitos os filmes disponíveis nas plataformas de streaming que relançam a tradição televisiva dos documentários sobre “artes & letras”, dando-nos a conhecer o trabalho, as proezas, por vezes as revoluções estéticas ou narrativas protagonizadas pelos mais diversos criadores. A maioria fica-se pela convenção informativa, certamente interessante em termos enciclopédicos, mas pouco inventiva no plano cinematográfico. Revelando Muybridge (título original: Exposing Muybridge), disponível na Filmin, é uma bela excepção.
A história e, mais do que isso, a herança técnica e formal do inglês Eadweard Muybridge (1830-1904) apresenta como capítulo central as célebres fotografias de um cavalo em movimento realizadas em 1878, nos EUA, em Palo Alto, por encomenda de Leland Stanford, ex-governador da Califórnia e apaixonado criador de cavalos. Para Stanford, tratava-se de esclarecer se, durante a corrida, em algum momento, um cavalo teria as quatro patas no ar… Para Muybridge, a experiência representou um desafio às próprias potencialidades do aparelho fotográfico e, em particular, à sua capacidade de dar conta do movimento.
Distinguido em 2022 nos prémios da Writers Guild of America (melhor argumento para um documentário), Revelando Muybridge narra, assim, um capítulo fascinante da história dos olhares humanos. Através de uma pedagógica montagem de materiais de arquivo e vários depoimentos, o realizador e argumentista Marc Schaffer mostra como Muybridge soube aplicar a fotografia para lá das tarefas rotineiras de “confirmação” das aparências do mundo à nossa volta. Ou como diz a certa altura Tom Gunning, professor da Universidade de Chicago: Muybridge foi protagonista e mentor de “uma verdadeira revolução”. A saber: “A máquina fotográfica tornava-se mais poderosa do que o olho humano.”
A viagem que o documentário propõe é tanto mais envolvente quanto os entrevistados pertencem a domínios muito variados, incluindo ainda, entre outros, Marta Braun, professora e curadora especialista em Muybridge, o fotógrafo Mark Klett, a escritora Rebecca Gowers e até o actor Gary Oldman, neste caso enquanto coleccionador de arte.
Ironicamente, nos primeiros anos do labor de Muybridge, as suas imagens pareciam corresponder a uma lógica de “fotógrafo da natureza”, de algum modo antecipando as obras de mestres americanos como Edward Weston (1886-1958) ou Ansel Adams (1902-1984). Será, em parte, verdade, mas Marc Schaffer consegue a proeza de expor as relações da própria composição da imagens com elementos muito específicos da vida familiar e da personalidade de Muybridge. Sem esquecer que o seu empenhamento no estudo do movimento — incluindo a combinação de fotografias para criar a ilusão desse mesmo movimento — o define também como pioneiro do olhar cinematográfico. Daí o singular didactismo de Revelando Muybridge: nesta época de aceleração das imagens e comportamentos desatentos, sabe bem redescobrir os sinais de quem nunca desistiu do rigor, e também da emoção, que um olhar pode conter e, de alguma maneira, partilhar.

terça-feira, fevereiro 06, 2024

Jon Batiste — na intimidade da música

Jon Batiste em American Symphony: a música nasceu da alegria e do drama

Popularizado na televisão pelo programa de Stephen Colbert, The Late Show, Jon Batiste é um pianista e criador musical com uma notável trajectória artística. Graças ao filme American Symphony (Netflix), podemos descobrir o processo fascinante, eufórico e dramático, de gestação da sua composição mais ambiciosa.

Para muitos de nós, espectadores interessados nos “talk shows” que chegam dos EUA (pela televisão, plataformas de streaming ou YouTube), Jon Batiste começou por ser o pianista, seguro, versátil e comunicativo, do programa de Stephen Colbert, The Late Show (CBS). Agora, de acordo com as previsões da imprensa especializada americana, com destaque para a “bíblia” de Hollywood que é a revista Variety, o filme American Symphony, sobre a sua monumental composição com o mesmo título, perfila-se como o candidato mais forte ao Oscar de melhor documentário — as nomeações [foram] conhecidas no dia 23 deste mês, estando a cerimónia marcada para 10 de março.
Em boa verdade, estes dados estão longe de abarcar a espectacular variedade de uma trajectória criativa capaz de acolher, homenagear e reinventar as mais diversas matrizes da música popular “made in USA”. Sem esquecer, claro, que na sua galeria de prémios já existe um Oscar (partilhado com Trent Reznor e Atticus Ross), ganho com a música original de Soul: Uma Aventura com Alma, produção dos estúdios Pixar com assinatura da dupla Pete Docter/Kemp Powers — o filme arrebatou também a estatueta dourada de melhor longa-metragem de animação de 2020.
Na verdade, 2024 poderá ser um ano de muitas consagrações para Batiste, já que nos Grammys [realizados a 5 de fevereiro] está nomeado para nada mais nada menos que seis prémios, incluindo o de melhor álbum do ano, com World Music Radio [não obteve qualquer prémio]. Outra das suas nomeações envolve Did You Know That There's a Tunnel Under Ocean Blvd, de Lana Del Rey, também um álbum candidato a melhor do ano; no seu alinhamento encontramos Candy Necklace, canção que conta com a participação de Batiste, por sua vez nomeada para o Grammy de melhor interpretação de um duo ou grupo pop.

Um desafio dramático

American Symphony está disponível na Netflix. Sejam quais forem as distinções que o documentário possa vir a obter, uma coisa é certa: estamos perante uma invulgar experiência cinematográfica. E escusado será sublinhar o modo como tal experiência se apresenta marcada pela contagiante energia da música, cruzando sinais da formação jazzística de Batiste (sempre presente em The Late Show, com a sua banda Stay Human) com muitas contaminações de elementos provenientes da soul, rhythm and blues ou hip hop. Matthew Heineman, realizador de American Symphony, quis corresponder a um convite do próprio Batiste no sentido de filmar a gestação da sua sinfonia, desembocando na estreia, a 22 de setembro de 2022, em Nova Iorque, no palco do lendário Carnegie Hall. Seria o prolongamento de uma colaboração concretizada um ano antes, já que o músico tinha composto a banda sonora de The First Wave (2021), documentário de Heineman sobre o impacto do covid no dia a dia de um hospital de Nova Iorque.
Com o apoio de Barack e Michelle Obama, na condição de produtores executivos, American Symphony rapidamente se pôs em marcha, mas a sua lógica narrativa viria a ser dramaticamente desafiada. Em finais de 2021, num contexto ainda fortemente marcado pela pandemia, Suleika Jaouad, companheira de Batiste, anunciou que tinha sido sujeita a um transplante de medula óssea — era a segunda vez que tal lhe acontecia, já que, desde 2011, Jaouad sofre de uma forma rara de leucemia, tendo dedicado grande parte do seu trabalho jornalístico a temas relacionados com a doença, nomeadamente numa coluna do New York Times, intitulada “Life, Interrupted”.
O documentário de Heineman é o resultado desse angustiante contraste: por um lado, a intimidade, a urgência e as incertezas de um delicado tratamento clínico; por outro lado, o verdadeiro carrossel de acontecimentos, incidentes, euforias e imprevistos que é a preparação de uma complexa composição musical e da sua performance.

O valor da música

Talvez possamos definir Jon Batiste como um paradoxo artístico: aos 37 anos de idade (nasceu a 11 de novembro de 1986, na zona de Metairie, na área metropolitana de Nova Orleães), a sua carreira multifacetada faz dele um verdadeiro veterano. E não apenas porque se estreou em palco aos 8 anos, integrando a banda da família (Batiste Brothers Band); afinal de contas, lançou um primeiro álbum, Times in New Orleans, no verão de 2005, ainda antes de completar 19 anos [e usando o nome próprio Jonathan].
A sua carreira inclui uma longa lista de colaborações com nomes como Prince, Stevie Wonder, Mavis Staples, Willie Nelson, Lenny Kravitz ou a já citada Lana Del Rey. Além do Oscar, o seu trabalho no filme Soul: Uma Aventura com Alma foi distinguido com um Globo de Ouro, um Grammy e um BAFTA. E antes de World Music Radio, We Are (2021) valeu-lhe quatro Grammys, incluindo melhor álbum do ano e melhor teledisco (com a canção Freedom).
Numa entrevista publicada na Variety, a 31 de agosto de 2023, por altura da estreia absoluta de American Symphony no Festival de Cinema de Telluride, no estado do Colorado, Suleika Jaouad resumiu de forma exemplar a aventura emocional do filme: “Hoje em dia, na cultura popular, o facto de encontrarmos tantas narrativas sobre doenças fez-me sentir que o realmente importante não era apenas contar uma história do ponto de vista de alguém que sobreviveu e acabou por encontrar um final feliz. Tratava-se de mostrar em detalhe o que significa, não só estar doente, mas viver como um ser humano que está também a tentar criar coisas novas e viver em comunidade.”
Jon Batiste reflecte sobre isso mesmo, logo numa das primeiras cenas de American Symphony. Assim, depois de o revermos no programa de Stephen Colbert, descobrimo-lo ao piano, em sua casa, ao mesmo tempo que, em off, a sua voz desmente uma ideia tradicional: “O que adoramos na música não é o facto de soar bem.” Como explicar, então, o nosso fascínio? “O que adoramos na música é o facto de parecer inevitável.”

quarta-feira, novembro 22, 2023

O mundo que está a morrer [David Fincher]

Michael Fassbender em O Assassino:
vivendo um "presente imóvel ou de eternidade"

Com o seu novo filme, O Assassino, David Fincher redescobre a montanha mágica do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 outubro).

Hans Castorp, personagem central de A Montanha Mágica, o romance do alemão Thomas Mann à beira de completar um século — a edição original é de novembro de 1924 —, experimenta o esplendor contraditório da natureza, outrora redentora, agora potencialmente trágica, como se fosse o derradeiro ser humano. Por uma coincidência impossível de racionalizar, lembremos que no mesmo ano, também na Alemanha, F. W. Murnau retratava a agonia de um velho porteiro de hotel, interpretado por Emil Jannings, num filme com um título, por assim dizer, paralelo ao romance de Mann: O Último dos Homens.
Para recordarmos a odisseia do seu olhar, citemos com alguma demora os sobressaltos da sua aventura física e mental (recorro à tradução de Herbert Caro, editada pelos Livros do Brasil): “Quando Hans Castorp parava, a fim de não se ouvir a si próprio, o silêncio era absoluto e perfeito, e o menor vestígio de som era como que abafado, um silêncio ignoto, jamais sentido, que não existia em nenhum outro lugar. Nenhuma brisa, por mais leve que fosse, roçava as copas das árvores; não se ouvia nenhum sussurro, nenhum pio de pássaro. Era o silêncio primitivo, aquele que Hans Castorp contemplava ao deter-se assim, apoiado no bastão, com a cabeça inclinada para um dos ombros e a boca entreaberta. E suave, incessantemente, a neve continuava a cair, a cair tranquilamente, sem um ruído.”
A figura central do novo filme de David Fincher, O Assassino (primeiro nas salas, a partir de 10 de novembro na Netflix), é um herdeiro paradoxal, porventura perverso, não exactamente de Castorp, mas desse misto de observação e mágoa em que Mann o envolve. Nos cenários da “antiga” natureza ou na nossa selva urbana, ambos vivem a mesma dificuldade de pertencer a um mundo que se desagrega — aliás, um mundo que alienou a crença na sua própria lei.
A imersão de Castorp nas maravilhas da natureza tem mesmo algo de luto silencioso por esse mundo que está a morrer, esvaziando o lugar clássico do ser humano. As medidas do tempo deixaram de ser acolhedoras, uma vez que “Hans Castorp já não sabia distinguir o “ainda” e o “de novo”, de cuja mistura e confusão resulta o “sempre” e o “nunca”, situados fora do tempo.”
Para o assassino de Fincher, interpretado pelo genial Michael Fassbender, o tempo é uma máscara impossível de decifrar. Como? Rasurando o passado, dispensando qualquer imaginação do futuro: tudo é vivido, percebido e habitado como um presente absoluto. Esse presente cristaliza no tempo de execução do próprio crime. A longa espera do alvo humano que abre o filme tem qualquer coisa desse tempo em que, sob o signo da doença, vive Hans Castorp. Como dizê-lo? Mann descreve-o como um “presente imóvel ou de eternidade.”
Observem-se as imagens recorrentes do relógio usado por Fassbender, não tanto para medir o tempo exterior, mas sim os seus ritmos interiores, tudo aquilo que faz dele um humano que descolou da própria humanidade, vivendo como uma entidade sempre em movimento no espaço, mas congelada no tempo. E lembremos o relógio de Hans Castorp: “A minúscula agulha saltitava pelo seu caminho, sem se importar com os números que alcançava, percorria, ultrapassava, ultrapassava muito, aproximava-se e alcançava de novo. Era insensível aos objectivos, às divisões e aos marcos. Deveria demorar-se por um instante no sessenta ou pelo menos assinalar de qualquer maneira que alguma coisa findara ali.”
Há uma noção de destino que se desagrega quando “o passado é idêntico ao presente e ao futuro.” As caminhadas de Hans Castorp na natureza atraem um niilismo que, no plano simbólico, não é estranho ao gelo existencial que o assassino de Fincher também experimenta e, ao experimentá-lo, partilha connosco. Esta frase de Mann poderia pertencer ao obsessivo monólogo de Fassbender: “Na imensa monotonia do espaço afoga-se o tempo, o movimento de um ponto para outro deixa de ser movimento, não existe tempo.”
O Assassino é esse filme em que as medidas do tempo, porque interiores, despidas de qualquer “mensagem” ecuménica, se afogam na ambígua sedução das imagens e na vibração ritualizada da música de Trent Reznor e Atticus Ross. Não é, ironicamente, e ao contrário de Oppenheimer, de Christopher Nolan, um cinema que reivindique a grandeza da sala clássica, o que não o impede de se demarcar do mercantilismo narrativo que alagou as plataformas de “streaming”. Com a agilidade de muitos telediscos (área em que Fincher se distinguiu no começo da carreira), deparamos com um ecrã que não “reproduz” o que quer que seja, antes fabrica um mundo novo, colado ao mundo a que chamamos “real”: o olhar do atirador e a disponibilidade incauta do nosso olhar de espectadores partilham a mesma energia primitiva. A saber: o desejo de ver, insaciável, pecado primordial da arte cinematográfica.
O Assassino nasce da ética ancestral do espectáculo em que recusamos a ideia segundo a qual um filme existe para expor “temas” do nosso mundo — o mundo evolui de forma selvagem, não cabe nos “temas” em que tentamos aprisioná-lo. Fincher actualiza, assim, as lições de Alfred Hitchcock, colocando no centro dos acontecimentos o desejo ambíguo que faz da personagem um espectador dentro do filme, transfigurando o espectador em personagem que poderia entrar no filme. Raras vezes o cinema sabe aceder a esse desencanto feliz que o fez nascer: personagem e espectador partilham as histórias de uma só solidão.

>>> Música do genérico de O Assassino (Trent Reznor & Atticus Ross).

sexta-feira, novembro 17, 2023

Sylvester Stallone
— o resgate de Rocky Balboa

Stallone: há mais vidas para lá de Rocky...

Num documentário lançado pela Netflix, Sly, revisitamos a carreira de Sylvester Stallone, desde os tempos do anonimato até ao sucesso planetário de Rocky (1976): uma memória que tem a sedução e os limites de um discurso “terapêutico” — este texto foi publicaco no Diário de Notícias (9 de novembro).

O adjectivo inglês “sly” designa uma pessoa astuta, porventura maliciosa, mas também alguém que só o é através de um desafio aos seus próprios limites profissionais e emocionais. No cinema de Hollywood, Sly tornou-se o cognome de Sylvester Stallone e, agora, é o título de um documentário disponível na Netflix sobre as convulsões de uma carreira realmente alheia às regras tradicionais do “star system”.
Entre as entidades produtoras está a empresa que o próprio Stallone fundou em 2018, Balboa Productions, começando a sua actividade com Rambo - A Última Batalha (2019), de Adrian Grunberg; na sua carteira de títulos encontramos, por exemplo, Samaritan (2022), filme também por ele protagonizado, sob a direcção de Julius Avery, apostando na possibilidade de lançar um novo registo no território ficcional dos super-heróis. Não há nisso nada de invulgar, muito menos suspeito, mas ajudará a compreender um pouco melhor o facto de Sly ser, no essencial, um discurso na primeira pessoa, dir-se-ia “auto-terapêutico”: revisitamos as atribulações de alguém que, graças ao filme Rocky (1976), por ele escrito e interpretado, ascendeu da condição de actor à deriva, sempre com imensas dificuldades para encontrar trabalho, ao estatuto de estrela planetária.
Realizado por Thom Zimny, colaborador regular de Bruce Springsteen (foi ele que dirigiu Springsteen on Broadway, também disponível na Netflix), Sly cedo define o seu programa narrativo e, nessa medida, os limites da sua “introspecção” algo repetitiva. Tudo acontece a partir de duas premissas explicitadas logo nas primeiras cenas: primeiro, uma juventude vivida no interior de uma família desconjuntada e, em particular, marcada pela violência repressiva do pai; depois, o inesperado impacto de Rocky (três Oscars, incluindo o de melhor filme de 1976) e os prós e contras de uma carreira marcada pelo dilema de renovar a imagem desse filme ou arriscar em projectos claramente diferentes.
Dir-se-ia que estamos perante um processo de resgate da personagem do pugilista Rocky Balboa, devolvendo-o a um contexto em que podemos perceber melhor o efeito singular (simbólico & comercial) da sua condição de herói solitário marcado por feridas emocionais em tudo e por tudo idênticas à do seu criador. O filme de 1976 é tratado com a merecida atenção que não é dada às suas sequelas (francamente menores), o mesmo acontecendo, aliás, com a série de aventuras de Rambo, em que todo o destaque vai para o primeiro título, First Blood/A Fúria do Herói (1982), de Ted Kotcheff (muito mais interessante do que tudo o que se seguiu).
A outra “franchise” a que está ligado o nome de Stallone, The Expendables/Os Mercenários, surge prudentemente (e justificadamente) reduzida a uma nota de rodapé. No sector dos depoimentos encontramos, entre outros, o irmão Frank Stallone, Talia Shire (intérprete da mulher de Rocky) e Quentin Tarantino. Graças a Tarantino, é também evocado aquele que é, por certo, o melhor filme em que Stallone já participou apenas como actor: Cop Land-Zona Exclusiva (1997), de James Mangold.

domingo, outubro 29, 2023

Assassinos da Lua das Flores
— a cor do dinheiro

Lily Gladstone em Assassinos da Lua das Flores:
que cor é esta?

Martin Scorsese volta a enfrentar as convulsões históricas do seu país, perguntando: quem está a narrar a própria história? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 outubro).

No novo filme de Martin Scorsese, Assassinos da Lua das Flores, na primeira conversa entre Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), o veterano da Primeira Guerra Mundial que regressa ao Oklahoma, e Mollie (Lily Gladstone), uma mulher da tribo dos índios Osage, ele contempla demoradamente o rosto dela: “Tens uma linda cor de pele.” E pergunta-lhe: “Que cor é essa?”. Ao que Mollie responde: “É a minha cor.”
Na sua singeleza, as palavras de Mollie expõem a banalidade do racismo em que Ernest se move, em particular através da influência do tio William Hale (Robert De Niro). Podemos até supor que a crueldade mansa da sua pergunta se duplica pelo facto insólito, literalmente irracional, de permanecer fora da sua consciência moral. Talvez Assassinos da Lua das Flores se possa mesmo resumir como a história do esvaziamento moral do próprio Ernest, a ponto de encarar como natural o modo como explicita o seu fascínio por Mollie — qualquer ideologia discriminatória procura alguma forma de “naturalização”.
Ao dizer apenas “é a minha cor”, Mollie atrai um genuíno paradoxo. Como? Esvaziando a própria possibilidade de identificar essa cor através de um nome de… cor. Naquela circunstância, se o fizesse, se desse um nome à sua cor, mesmo de uma forma a que poderíamos chamar realista, estaria a inscrever-se num território humano totalmente encerrado na sua codificação “colorida”. Dito de outro modo: aceitaria definir-se como uma unidade intermutável, sem peso específico, diluída num grupo definido a partir da cor da pele.
A riqueza da textura dramática de Assassinos da Lua das Flores, a par da complexidade das suas implicações simbólicas, aconselha a que não tratemos o filme como banal “ilustração” de uma colecção de “temas” que justificariam a sua própria existência. Scorsese não é, nem de longe nem de perto, um oportunista a explorar a moda pueril da história politicamente correcta. Nada a ver, portanto, com essas narrativas que reduzem o passado a um jogo maniqueísta entre “inocentes”, mais ou menos incautos, e “culpados” sempre iguais entre si — tão estupidamente iguais que são tratados como clones que nasceram para alimentar a boa consciência dos espectadores (incluindo os críticos, se for caso disso).


Na edição de outubro da revista Sight and Sound, numa entrevista com Philip Horne, Scorsese chama a atenção para as tensões que definem a personagem de DiCaprio: “Ele é fraco, e é perigoso, mas há amor por ali. E isso é perturbante, mas ao mesmo tempo humano. Somos assim.” Digamos que o episódio citado, algo como o capítulo zero da história do casamento de Ernest e Mollie, envolve uma pergunta cuja perturbação existencial atravessa muitos momentos da história cultural da América — pontuando, ao longo das décadas, de John Ford a Steven Spielberg, o grande cinema de Hollywood. A saber: que nome posso dar à tua diferença?
São muitos os exemplos da cultura popular americana em que podemos encontrar ecos de tal problemática, incluindo a derivação poética contida na canção Black or White, de Michael Jackson, do álbum Dangerous (1991). “Não importa se és branco ou preto”, diz-se na canção, abrindo para uma lógica em que, obviamente, não se trata de escamotear as formas de racismo que encontramos na história dos EUA (bem pelo contrário), mas de desafiar os limites das linguagens com que essa mesma história se encontra coligida — e, mais do que isso, é transmitida.



[Real.: John Landis]

Há outra maneira de dizer isto, tanto mais significativa quanto se demarca de qualquer discurso piedoso, não poucas vezes procurando legitimar os mais variados disparates artísticos. Assim, não se trata de multiplicar as formas de vitimização, mas de recusar a menorização do “outro” que é alvo de violência física ou opressão paternalista. Scorsese cita mesmo uma afirmação que escutou durante a sua longa convivência com o povo Osage: “Não queremos ser retratados como vítimas.”
A saga dos Osage, convém não esquecer, é uma tragédia gerada pela ganância: as mortes suspeitas dos seus elementos (que são, na verdade, assassínios friamente premeditados) começam a acontecer quando as suas terras se revelam ricas em petróleo. O que Scorsese encena está longe de se reduzir a um mero inventário de factos e “reconstituições”. Por amor da América, aquilo que o seu filme pergunta envolve a própria cristalização da história em memória colectiva: quem protagoniza essa história e, mais do que isso, quem está a narrá-la?
Até porque cedo compreendemos o factor primordial das convulsões históricas evocadas, quando William Hale diz ao sobrinho que “o dinheiro circula livremente por aqui.” Sendo um factor de riqueza, a sua circulação é cúmplice de uma tragédia humana.



domingo, julho 30, 2023

Rita Moreno por Rita Moreno

Uma actriz com uma carreira de mais de sete décadas

Do West Side Story de 1961 ao West Side Story de 2021, a carreira de Rita Moreno é um caso invulgar de talento e perseverança: um documentário disponível na Netflix ajuda-nos a perceber como tudo aconteceu — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 julho).

A série American Masters, com chancela da PBS (televisão pública dos EUA), continua a ser um caso modelar do documentarismo contemporâneo. Retratando personalidades da cena cultural norte-americana há quase quatro décadas — o título inaugural, emitido pela primeira vez a 23 de junho de 1986, foi dedicado a Arthur Miller —, nela encontramos a história viva de figuras das artes & letras que, além do mais, nos ajudam a compreender as dinâmicas criativas e industriais das mais diversas formas de expressão.
Agora, a Netflix dá a ver Rita Moreno: A Mulher que Decidiu Ousar, uma realização de Mariem Pérez Riera, nascida em Porto Rico tal como Rita Moreno. O documentário teve especial impacto no Festival de Sundance de 2021, a ponto de conseguir distribuição em algumas salas dos EUA, antes da sua apresentação na PBS.
Duas referências balizam a narrativa. Assim, a abrir vemos Rita Moreno a preparar a festa do seu 87º aniversário, celebrado a 11 de dezembro de 2018. Depois, numa das cenas finais, ela dialoga com Steven Spielberg durante a preparação de West Side Story (estreado em finais de 2021). Recorde-se que, ao convidá-la para a personagem de Valentina, Spielberg estabeleceu uma ponte simbólica com o primeiro West Side Story, lançado 60 anos antes, em que Rita Moreno assumiu a personagem de Anita — a sua interpretação valeu-lhe o Oscar de melhor actriz secundária referente a 1961.
O filme de Mariem Pérez Riera segue o modelo tradicional, articulando uma conversa com Rita Moreno, realizada em sua casa, com diversos depoimentos de gente directa ou indirectamente ligada ao mundo do espectáculo — entre eles surgem dois dos produtores executivos do próprio filme, Norman Lear, personalidade emblemática de muitas décadas de televisão (produtor, por exemplo, da série Uma Família às Direitas), e Lin-Manuel Miranda, actor, músico e encenador (consagrado pelo musical da Broadway, Hamilton).
Sublinhando a “ousadia” de Rita Moreno, o título está longe de ser banalmente panfletário. Desde logo, porque a sua entrada no mundo do espectáculo se deu através de personagens em que, de algum modo, foi obrigada a reproduzir estereótipos do porto-riquenho mais ou menos (des)integrado na sociedade dos EUA. A personagem de Anita, em West Side Story, poderá ser definida de modo paradoxal: a sua origem é ainda estereotipada, mas o seu desenvolvimento liberta-a (libertando também a actriz) das convenções que diminuiam a sua própria humanidade.
A dimensão mais crua, sem dúvida mais surpreendente, de tudo isto provém do misto de alegria e desencanto com que Rita Moreno comenta os contrastes da sua carreira, e também as convulsões da sua vida privada (incluindo o doloroso processo de separação do marido). Ao mesmo tempo, esta é uma história de invulgar sucesso, já que ela é uma das poucas figuras do entertainment que conseguiu o chamado EGOT, ou seja, um Emmy, um Grammy, um Oscar e um Tony. A mais recente dessas figuras é Viola Davis que, já este ano, ganhou um Grammy na categoria de melhor audio-livro.

quinta-feira, novembro 03, 2022

Buster Keaton a cores???

O poster é a cores, mas o filme é a preto e branco...
Dito de outro modo: a arbitrarieade comercial e a irresponsabilidade histórica com que algumas plataformas de streaming tratam os seus produtos (os profissionais do marketing trocaram a palavra "filme" por "produto") é, no mínimo, chocante — e, para dizê-lo com todas as letras, um factor de deseducação cinéfila.
Acontece agora com The General (1926), filme entre nós conhecido como Pamplinas Maquinista, em que Buster Keaton, partilhando a realização com Clyde Bruckman, interpreta um frágil condutor de uma locomotiva que, em plena Guerra Civil, faz tudo para salvar a sua querida máquina... Acontece que na Prime Video o filme está disponível numa cópia "colorizada" e, como se tal horror estético não bastasse, com uma banda sonora que "acrescenta" ruídos à acção...
Não existe sequer uma qualquer informação a dar conta das "invenções" que alguém decidiu acrescentar a tão imaculada obra-prima da comédia clássica durante o período do mudo. Confirmando o "tanto-faz" de tudo isto, a ficha do filme apresenta-o com a data de 1929...

domingo, outubro 23, 2022

As mulheres da Netflix

Nunca percebi porquê, mas cada vez que alguém chama a atenção para o défice informativo de algumas plataformas de streaming (sobre os filmes que difundem) há sempre vozes preconceituosas capazes de um protesto pueril: ... queriam, então, que as plataformas fossem institutos de produção de textos críticos?
De facto, a pergunta, de tão absurda, desmonta-se a si própria. Seja como for, o preconceito mantém-se e os desastres informativos também. Hoje mesmo, encontro na Netflix uma daquelas zonas temáticas (?) em que, além do triunfo da banalidade da escrita, se promove a mais absoluta arbitrariedade (des)informativa...
... que acontece, então? Numa proposta intitulada "Mulheres atrás das câmaras" encontramos Uma Vida Inacabada (2005), de Lasse Hallström, e A Raiz do Medo (1996), de Gregory Hoblit. Não creio que tal seja razão para Hallström e Hoblit se sentirem ofendidos — não se trata de lançar mais uma falasa polémica sobre "géneros" e "identidades". Resta apenas saber se na Netflix alguém já pensou o que implica escolher um filme, difundi-lo e, já agora, promovê-lo.

sexta-feira, outubro 21, 2022

Marilyn Monroe nunca existiu

Ana de Armas no papel de Marilyn Monroe, aliás, Norma Jeane

Entre memória e esquecimento, o filme Blonde é um espelho fascinante da morte adiada do próprio cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 outubro).

Não sabemos o que Jean-Luc Godard poderia ter pensado sobre o filme Blonde, de Andrew Dominik, baseado no romance homónimo de Joyce Carol Oates sobre Marilyn Monroe, disponível na Netflix. Convenhamos que o seu militante cepticismo em relação ao consumo caseiro de cinema o levaria, no mínimo, a manifestar alguma (também militante) indiferença. Ou então a reconhecer a contradição que ele próprio foi alimentando, trabalhando regularmente, desde os anos de ressaca de Maio de 68, em produções televisivas — sem esquecer que, agora, o “streaming” tem sido uma via privilegiada para descobrirmos ou revermos os filmes de Godard.
A esse propósito, lembremos apenas que a Netflix, entidade que produziu e difunde Blonde, apresenta no seu catálogo algumas preciosidades da filmografia “godardiana”. Entre elas está o raríssimo Détéctive (1985), com Johnny Hallyday, disponível com o título Mafia em Paris, devidamente (des)acompanhado pela banalidade informativa daquela plataforma de “streaming”.
Godard faleceu no dia 13 de setembro. Blonde chegou à Netflix quinze dias mais tarde. Essa “proximidade” é irrelevante, mas suscita algumas ideias que vale a pena evocar. Assim, algures na década de 1980, quando os mecanismos tradicionais de difusão do cinema sofreram renovados abalados comerciais (desde logo, através do novo papel das televisões), Godard foi questionado sobre o modo como encarava o facto de os seus filmes poderem ser vistos numa sala escura ou num ecrã caseiro. O autor de História(s) do Cinema (1989-1999) retorquiu com uma distinção que, do ponto de vista social e simbólico, não se alterou: dizia ele que, apesar de tudo, numa sala havia espectadores concretos que tinham tomado uma decisão no sentido de verem determinado filme; na televisão, pelo contrário, “não sei para onde os filmes vão”.
Objecto singular e fascinante, Blonde participa dessa estranheza que faz com que os filmes se percam, ou possam perder, na actual “generalização” que rege a sua difusão (realmente planetária). É verdade que Blonde é um dos sucessos do momento na Netflix, continuando a ocupar o respectivo Top 10 (em terceiro lugar, depois de se ter estreado na liderança). Mas não é menos verdade que isso está longe de lhe garantir a condição de fenómeno social que “todos” andamos a comentar ou discutir, e não apenas a trocar milhões de mensagens digitais a dizer que é “bom” ou “mau”… Como se se confirmasse outra máxima de Godard, expressa em 1987 (numa entrevista à televisão!): “A televisão fabrica esquecimento, o cinema sempre fabricou memórias.”
Fiel à escrita de Joyce Carol Oates, Andrew Dominik apresenta Marilyn como uma personagem convocada pela morte. O romance começa mesmo com a visita da Morte (a maiúscula é da escritora) à solitária Marilyn: “Assim chegou a Morte avançando ao longo do Boulevard em agonizante luz sépia.” O seu processo de aniquilamento passou, afinal, pelo nome falso de “Marilyn Monroe”, quer dizer, pela perda irreparável do nome original, Norma Jeane.
Várias vezes ao longo de Blonde, vemos e ouvimos a protagonista protestar em nome do recalcamento da sua identidade: Marilyn não está “aqui”… mas Norma Jeane vive marcada pela exigência de trazer para o ecrã essa Marilyn que, para ela, não existe. A certa altura, Joyce Carol Oates coloca na sua boca o carácter insustentável de tal contradição: “Porque nós não somos aquilo que nos dizem que somos, se não o disserem. Ou somos?”
O filme vive também dessa tensão irresolúvel entre uma história que avança de modo trágico, mesmo (ou sobretudo) quando nela se convoca um passado que já não pode ser resgatado, e um presente que nenhuma racionalidade parece capaz de organizar. Assim, Blonde envolve o confessionalismo de Norma/Marilyn, ao mesmo tempo que o seu despojamento e vulnerabilidade são sempre superados por um “outro” narrador que, no limite, só pode ser a própria Morte.
Há algo de raro, precioso e profundamente comovente no facto de uma actriz como Ana de Armas, dispensada de satisfazer um banal jogo mimético com a iconografia de Marilyn (que, obviamente, o filme evoca), ser capaz de se expor nessa condição de personagem que existe contra a desagregação a que o seu nome e a sua mitologia a condenam. Joyce Carol Oates anuncia isso mesmo numa das citações com que abre o romance. É de Michael Goldman e pertence a um livro publicado em 1975 (The Actor’s Freedom, ed. The Viking Pressa, Nova Iorque): “A área de representação é um espaço sagrado… onde o actor não pode morrer.”
Estranhos tempos estes em que milhões vêem filmes em casa e quase ninguém fala deles. Como se a possibilidade de refazermos, relançarmos e, num certo sentido, reinventarmos as nossas memórias estivesse a ser vencida, com o nosso beneplácito de espectadores, pelo conformismo televisivo do esquecimento. Perante o nosso torpor, Marilyn Monroe resiste no interior dessa morte impossível de morrer, fazendo de Blonde um também raro e cristalino filme de terror.

quinta-feira, outubro 20, 2022

Blonde
— um filme é um filme é um filme

Ana de Armas, Blonde

Como se Marilyn Monroe estivesse condenada a intermináveis mortes simbólicas...
No jornalismo de vários países, cá dentro e lá fora, o filme Blonde, de Andrew Dominik, tem suscitado a proliferação de uma contabilidade pueril: assim, através de inúmeros artigos de "informação", ficamos a saber esse saber de coisa nenhuma segundo o qual foram “muitos” (ou foram “poucos”) os que “elogiaram” (ou “denegriram”) este retrato de Norma Jeane...
Porque será que as produções Marvel não suscitam o mesmo tipo de contabilidade?
Esperando apenas que o leitor continue a gostar de pensar pela sua cabeça (comportamento ameaçado nos tempos que correm), vale a pena lembrar o mais simples, porventura também o mais essencial: estamos perante um objecto de cinema realmente desafiante.

quarta-feira, setembro 28, 2022

Luca Guadagnino
— o realismo é uma questão de pele

Jordan Kristine Siamón e Jack Dylan Grazer:
ser ou não ser, eis a questão

Quantos realismos existem? Para Luca Guadagnino, na série We Are Who We Are, trata-se de questionar os mistérios da identidade: depois da HBO Max, chega agora à plataforma Filmin — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 setembro).

O cineasta italiano Luca Guadagnino filmou a mini-série We Are Who We Are (à letra: “Somos quem somos”) com a Red Gemini 5K, uma sofisticada câmara digital, usando lentes Leica da série Summicron. São referências técnicas cuja actualidade os especialistas da fotografia saberão explicar na sua imensa sofisticação e, mais do que isso, contextualizar na prodigiosa evolução do registo das imagens em movimento. Acontece que nada disso é alheio a uma proeza — visual, dramatúrgica e simbólica — que o trabalho de Guadagnino concretiza de modo fascinante, raro no actual contexto televisivo e cinematográfico. A saber: a procura de um realismo com tanto de intensidade como de pudor a que corro risco de atribuir o “rótulo” de à flor da pele.
Daí a pergunta: de que falamos quando falamos de realismo? Lembremos apenas a pluralidade que a questão atrai. Não há “um” realismo, mas muitos desejos de realismo que a história dos filmes integra através de objectos tão diversos como Greed (1924), de Eric von Stroheim, Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini, ou Platoon (1986), de Oliver Stone.
Mesmo quando o cinema se aventura por labirintos espirituais — penso no exemplo sublime de A Palavra (1955), de Carl Th. Dreyer, e na sua encenação de um milagre —, talvez possamos dizer que a perturbação realista envolve uma obstinada paixão pela matéria. Ou se preferirem: pelo esplendor esquecido das coisas concretas. Tudo tem valor, tudo é singular e irredutível, tudo apela à disponibilidade do olhar: a rugosidade da pele, a textura de uma peça de roupa, a nitidez paradoxal da água, o brilho fugaz de uma onda, a brancura de um piano, a presença vigilante de uma nuvem lá ao fundo, etc., etc., etc.
O contexto em que Guadagnino situa a acção desafia a própria transparência do concreto, até porque, resumindo (e muito…), se dirá que a teia dramática de We Are Who We Are propõe uma fábula contemporânea sobra a noção de pertença. No sentido individual: quem sou eu, de onde venho, a que lugar pertenço? E também no plano colectivo: que acontece, ou pode acontecer, para que a infinita diversidade dos indivíduos produza, ou possa produzir, um laço afectivo de pertença?
Tudo se passa numa base militar americana (fictícia), situada nas imediações de Chioggia, cidade italiana (verídica) na região de Veneza. Somos introduzidos nesse universo paradoxal — muitas regras de organização colectiva, muitos “desvios” individuais de comportamento — através de alguns jovens cujos pais e mães desempenham funções na hierarquia militar. Duas personagens vão destacar-se: Fraser e Caitlin (interpretados pelos magníficos Jack Dylan Grazer e Jordan Kristine Siamón, respectivamente), ambos algo à deriva no interior dos respectivos universos familiares, vivendo as ambiguidades da sua sexualidade num misto de solidão e partilha, euforia e angústia.
Por aqui perpassam variados elementos críticos do modo como vivemos (ou julgamos viver) neste atribulado século XXI: a decomposição dos laços familiares tradicionais, o lugar das mulheres em universos marcados por uma pesada herança masculina (Sarah, a mãe de Fraser, interpretada por Chloë Sevigny, é a comandante da base), o conflito entre modelos tradicionais de responsabilização e uma cultura da gratificação imediata… O certo é que nada disso adquire o determinismo de muitas ficções contemporâneas que, em boa verdade, se limitam a inventariar “temas” na moda para se auto-proclamarem como elementos de inquestionável “progresso” social.
Tal como nos seus filmes, Guadagnino filma as dores e alegrias do ser (ou não ser). Cada personagem vive num ziguezague impossível de tipificar, muito menos generalizar — entre uma identidade que resulta da sua inscrição num determinado estatuto ou modelo de comportamento e as convulsões de um ego povoado de identidades instáveis. O realismo de Guadagnino não é programático nem moralista: uma cena de conflito familiar pode ser tão reveladora quanto uma canção de Blood Orange (que, aliás, participa no derradeiro episódio), a luz cristalina do areal possui algo de tão comovente quanto o mais secreto momento de intimidade.
A série foi programada pela Quinzena dos Realizadores, em Cannes, na edição de 2020 que, devido à pandemia, acabou por não se realizar. Entretanto, os seus oito episódios andam por aí. Entre nós, podem ser vistos na HBO Max [e na Filmin]. Infelizmente, na ficha da HBO Max nem sequer se propõe qualquer informação sobre o facto de Guadagnino ser também o autor de dois filmes de peculiar impacto comercial como Eu Sou o Amor (2009) e Chama-me pelo Teu Nome (2017), isto apesar de ambos estarem disponíveis na própria HBO Max — o primeiro também pode ser visto na Filmin; outro título mais recente de Guadagnino, Suspiria (2019), está na Prime Video. Enfim, We Are Who We Are existe como um objecto de identidade ambígua: série, mini-série, produção para o streaming, narrativa de sensibilidade cinematográfica… Para mim, é um belíssimo filme com oito horas de duração.