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terça-feira, agosto 15, 2023

Ser ou não ser Zelig

Woody Allen interpretando Leonard Zelig,
ou a comédia da identidade

Há no filme Zelig, de Woody Allen, um jogo entre a verdade e a mentira das imagens que ecoa no nosso presente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 julho), assinalando a data dos 40 anos do seu lançamento.

A obra-prima de Woody Allen, Zelig, estreou-se há 40 anos, em Nova Iorque, a 15 de julho de 1983. Dois dias mais tarde, no New York Times, Vincent Canby comparava-o com o clássico Citizen Kane/O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles: “Zelig é Citizen Kane miraculosamente transformado em delirante comédia.”
O paralelismo está longe de ser um banal juízo de valor. Será preciso lembrar que pensar os filmes é um trabalho que pouco, ou nada, tem a ver com o infantilismo “científico” que, eventualmente, se vai esgotar nas clássicas estrelinhas? A evocação de Welles envolve uma questão cuja perturbação — mediática e política, numa palavra, cultural — continua a pontuar os nossos quotidianos. A saber: não apenas a relação de cada um de nós com a verdade, mas o modo de produção dessa verdade.
Welles encenava a odisseia da personagem que ele próprio interpretava, Charles Foster Kane, um magnate da imprensa com ambições políticas. Em termos esquemáticos, digamos que o filme evolui como um puzzle gerado pela palavra (“Rosebud”) que Kane pronuncia antes de morrer; em sucessivos flashbacks, várias personagens respondem a uma investigação jornalística sobre a identidade de Kane — é um enigma individual que se vai dispersando, não se fixando em nenhuma imagem (nem mesmo através do “esclarecimento” final, dos mais ambíguos que alguma vez foi apresentado por uma narrativa cinematográfica).
Zelig evolui também como um puzzle individual, em torno da figura de Leonard Zelig (interpretado pelo próprio Allen, também responsável pelo argumento). Com uma diferença que está longe de ser secundária: enquanto Kane é aquele que, mesmo com o auxílio de materiais de arquivo e múltiplos testemunhos, se vai escapando a qualquer identificação ou compreensão definitiva, Zelig existe através de uma transfiguração de imagens potencialmente infinita.
Assim, Zelig não se relaciona com os outros, mas com as imagens que os definem. Mais do que isso: Zelig vai existindo através das mais incríveis “duplicações”, adaptando-se, como um camaleão, a qualquer contexto. Vêmo-lo em cenários políticos ou reuniões secretas, assumindo-se como paciente num hospital (veja-se a ilustração deste texto) ou político na Casa Branca, ou ainda gangster num cabaret de duvidosa frequência. A comédia nasce, não daquilo que a personagem faz, mas das “personalidades” que pode assumir para, finalmente, desembocar num mistério romanesco: o amor que encontra na psiquiatra que o trata (Mia Farrow) surge como teste final da sua cura… Será preciso acrescentar que estamos perante uma fábula sobre o ser ou não ser?
Ser ou não ser pessoa, entenda-se, mas também ser ou não ser imagem, filme, transmissão visual. Dir-se-ia que, duas décadas antes da promiscuidade virtual induzida pelo Facebook (e outras redes de discutíveis valores sociais), Allen formula a hipótese de alguém existir apenas através de uma delegação identitária que, em última instância, esvazia a sua dimensão humana — um pouco como as “infuencers” que só existem através das mercadorias que promovem, curiosamente não suscitando qualquer dúvida pedagógica de muitas militâncias feministas.
Há outra maneira de sublinhar a singularidade estética e o génio criativo de um filme como Zelig. Com a fundamental colaboração do director de fotografia Gordon Willis (responsável, por exemplo, pelas imagens da trilogia de O Padrinho), Allen conseguiu uma verdadeira proeza na história dos efeitos especiais. Nada a ver com a destruição de um planeta, cena sim, cena não, à maneira de alguns espectáculos da Marvel & Cª. As imagens (fotográficas e em movimento) de Zelig são trabalhadas para a inserção das várias encarnações da personagem central nos mais diversos cenários, e também para a produção de um efeito de desgaste material (riscos, cortes, etc.) capaz de sugerir o tempo que passou até ao presente do próprio filme.
Esse efeito, de uma só vez dramático e irónico, é tanto mais sugestivo quanto o filme conta com algumas personalidades que aceitaram participar em nome próprio, contribuindo para reforçar a sensação ambígua de assistirmos a um documentário (“mockumentary”, segundo a gíria anglo-saxónica), incluindo Susan Sontag, o nobelizado Saul Bellow e Bruno Bettelheim. Sontag, a primeira a aparecer, coloca mesmo a figura de Leonard Zelig num plano mitológico: “Ele foi o fenómeno da década de 1920. Acreditamos que, nessa altura, era tão conhecido como Lindbergh, o que é realmente impressionante.”
Vale a pena acrescentar algumas palavras da própria Sontag, do seu ensaio “Sobre o estilo” (1965), incluido na colectânea Contra a Interpretação (ed. Gótica, 2004). Resistindo à noção redutora segundo a qual a obra de arte está obrigada a manter alguma proximidade com a nossa “realidade vivida”, diz ela: “Superar e transcender o mundo em arte é também um meio de encontrar o mundo, e de treinar e educar a vontade para estar no mundo.”

quinta-feira, junho 03, 2021

Orson Welles
— assim nasceu o cinema moderno [3/3]

Com O Mundo a Seus Pés, depois do teatro e da rádio, Orson Welles estreou-se na realização de filmes: a sua visão, marcada pelo gosto da experimentação, mudou a arte de contar histórias em cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias, por ocasião do 80º aniversário da respectiva estreia (1 maio).
 
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Para Welles, a realização de O Mundo a Seus Pés foi também, num certo sentido, uma passagem do universo das palavras para a dinâmica das imagens. Se ele conseguiu concretizar um projecto tão ambicioso e “marginal” no interior de um grande estúdio, isso ficou a dever-se, em grande parte, à popularidade angariada com uma emissão de rádio que se tornou um fenómeno nacional: em 1938, a sua adaptação de A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, gerou verdadeiras cenas de pânico em ouvintes que acreditaram que o planeta Terra estava mesmo a ser invadido por marcianos.
A Guerra dos Mundos
foi um dos episódios de “The Mercury Theatre on the Air”, programa para a rádio CBS, derivação do labor que Welles ia desenvolvendo no Mercury Theatre, companhia independente, em Nova Iorque, que fundara em 1937 com o actor e produtor John Houseman. No essencial, o elenco de O Mundo a Seus Pés — Joseph Cotten, Agnes Moorehead, Everett Sloane, etc. — é constituído pelos seus actores, aliás devidamente identificados (“The Mercury Actors”) nos cartazes originais do filme.
Apesar de já há alguns anos não ser reposto nas salas de cinema de todo o mundo, o filme de Welles ressurgiu na actualidade graças a Mank, a realização de David Fincher, produzida e difundida pela Netflix, sobre o trabalho de Herman J. Mankiewicz (1897-1953) enquanto argumentista de O Mundo a Seus Pés. Através de um admirável golpe dramático, nele encontramos Mankiewicz (Gary Oldman) frente a frente com Hearst (Charles Dance), além da sua amante, a actriz Marion Davies (Amanda Seyfried) e o próprio Welles (Tom Burke).
O filme de Fincher relança a energia criativa, e também o gosto de experimentação, herdados da obra de Welles. E não deixa de envolver algum simbolismo o facto de Mank ter sido distinguido com um Oscar para a sua fotografia, da autoria de Erik Messerschmidt (o filme ganhou também na categoria de cenografia). As prodigiosas imagens a preto e branco assinadas por Messerschmidt constituem uma homenagem muito directa ao visual de O Mundo a Seus Pés, da responsabilidade de Gregg Toland (1904-1948). Na altura já “oscarizado” pelo seu trabalho na versão de 1939 de O Monte dos Vendavais, Toland viria a revelar-se decisivo na realização de Welles.
“É impossível dar conta de tudo o que devo a Gregg”, diz Welles no livro com Bogdanovich. Além de, na altura, ser “o operador nº 1 do mundo”, foi ele próprio que manifestou o desejo de “trabalhar com alguém que nunca tivesse feito um filme.” Welles recorda-o com tanto mais carinho quanto reconhece que, nos primeiros dias de rodagem, se assumiu como criador da iluminação das cenas… Demonstrando infinita paciência e disponibilidade, Toland disse-lhe, mais tarde, que trabalhar “com alguém que não sabe nada” (de fotografia) é uma boa maneira de “aprender alguma coisa”.
Toland soube potenciar a ousadia de experimentação de Welles, nomeadamente na composição das imagens e na exploração de uma grande profundidade de campo (com os objectos próximos e distantes igualmente focados) — e no modo como tudo isso abria fascinantes possibilidades à arte de contar histórias. A oito décadas de distância, a herança de tal experimentação é cristalina: há um “antes” e um “depois” de O Mundo a Seus Pés, como se Welles tivesse sido o derradeiro dos clássicos e o primeiro dos modernos.

quinta-feira, maio 27, 2021

Orson Welles
— assim nasceu o cinema moderno [2/3]

Com O Mundo a Seus Pés, depois do teatro e da rádio, Orson Welles estreou-se na realização de filmes: a sua visão, marcada pelo gosto da experimentação, mudou a arte de contar histórias em cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias, por ocasião do 80º aniversário da respectiva estreia (1 maio).
 
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O assombramento de [William Randolph] Hearst pesou, e continua a pesar, na definição “temática” de O Mundo a Seus Pés. Sempre que se elabora alguma lista de clássicos sobre jornalismo, o filme de Welles surge com grande destaque. E há boas razões para isso: através do seu New York Inquirer, o “Cidadão Kane” constrói um império jornalístico contaminado por mecanismos viciados, especulação e difamação, ao mesmo tempo que vai alimentando as suas ambições políticas (chegar a governador do estado de Nova Iorque). Através do seu anti-herói, Welles filmou um conto moral sobre um tema de perturbante actualidade. A saber: o modo como a imprensa é, para o melhor ou para o pior, um factor decisivo na nossa percepção do mundo.
Seja como for, um filme nunca se reduz à “ilustração” de um tema. Um filme é também (é mesmo sobretudo) uma encruzilhada de informações e emoções que, em última instância, nos confronta com a intimidade da nossa condição humana. Este Kane que tudo possui ou pode possuir — vive mesmo num imenso domínio privado, Xanadu, que vai povoando com todo o tipo de aquisições, desde os objectos de arte até aos animais selvagens —, é também um ser que parece ter perdido algo de vital. Sinal emblemático da sua perda é a palavra que, logo na cena de abertura, balbucia antes de morrer: “Rosebud”.
 

Que significa Rosebud? A construção do filme confunde-se com o mistério que a palavra instala. Num ziguezague espacial e temporal, seguimos um repórter que entrevista diversas personagens que conviveram com Kane, cada uma delas confrontada com o enigma de Rosebud… Ninguém sabe o que significa, mas todos (incluindo o espectador) pressentem que é um pormenor vital para organizar a sua biografia.
Welles desafiava os modelos dramáticos tradicionais, a começar por aquele que trata a morte de uma personagem como uma espécie de pontuação final que encerra o “sentido” da sua vida. Ora, em O Mundo a Seus Pés, não é apenas a morte de Kane que, em vez de fechar, abre o filme; além disso, a palavra Rosebud desenha uma ponte insólita entre a realidade física e as convulsões da metafísica. Dir-se-ia que a morte de Kane não se aquieta enquanto não houver alguém que seja capaz de “decifrar” Rosebud…

terça-feira, maio 25, 2021

Orson Welles
— assim nasceu o cinema moderno [1/3]

Com O Mundo a Seus Pés, depois do teatro e da rádio, Orson Welles estreou-se na realização de filmes: a sua visão, marcada pelo gosto da experimentação, mudou a arte de contar histórias em cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias, por ocasião do 80º aniversário da respectiva estreia (1 maio).

O “melhor filme” de todos os tempos? Cada espectador elege o seu. O certo é que, numa espécie de memória oficiosa da história do cinema, O Mundo a Seus Pés (título original: Citizen Kane), primeiro filme de Orson Welles (1915-1985), continua a ser o mais associado a tão honrosa classificação. A sua sedução permanece para lá da passagem do tempo, das revoluções estéticas e dos ditames das modas, através de novas gerações de espectadores. Celebremos, por isso, a sua memória: foi há 80 anos, no dia 1 de maio de 1941, no RKO Palace Theatre, na Broadway, que ocorreu a estreia da obra-prima de Welles.
A condição de “melhor filme” não é estranha a muitas formas de subjectividade, ainda que conjugada com factos objectivos. Bastará citar a sondagem realizada, de dez em dez anos, pela Sight & Sound (revista do British Film Institute, fundada em 1932). Trata-se do mais respeitado inquérito internacional sobre os “melhores filmes de todos os tempos” — em boa verdade, à letra, os “maiores filmes de todos os tempos” (“the greatest films of all time”). Realizado pela primeira vez em 1952, consagrou Ladrões de Bicicletas (1948), de Vittorio De Sica. Nas cinco edições seguintes, de 1962 a 2002, O Mundo a Seus Pés surgiu sempre em primeiro lugar. Em 2012, com um recorde de votantes (846, incluindo críticos, jornalistas da área cinematográfica, programadores de festivais, etc.), o nº 1 passou a ser Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock, surgindo O Mundo a Seus Pés em segundo lugar.
Todo este cruzamento de memórias não seria possível se O Mundo a Seus Pés não existisse… Óbvio? Não necessariamente, já que foi encarada a possibilidade de destruir o negativo do filme. Motivo: o alegado paralelismo entre a personagem de Charles Foster Kane, interpretada por Welles, e o magnate da imprensa William Randolph Hearst (1863-1951). Convencido que Kane era uma paródia de si próprio, Hearst nem sequer esperou pela estreia: por um lado, proibiu qualquer abordagem do filme nos seus jornais; por outro lado, as suas pressões levaram o estúdio produtor, RKO, a optar por um lançamento de escala reduzida, contribuindo para resultados medianos nas bilheteiras.
Welles nunca reconheceu tal paralelismo, embora sempre dissesse que algumas cenas foram inspiradas por episódios da vida de Hearst e outros homens de negócios, como Harold McCormick ou Howard Hughes. Em qualquer caso, a destruição do negativo era mesmo uma “alternativa” quando foi organizada uma projecção para que o filme fosse avaliado por Joseph Breen, responsável pela aplicação do Código Hays (sistema de censura interna que os estúdios de Hollywood aplicaram de 1934 até finais da década de 50). A pressão de Hearst levara alguns sectores de Hollywood a considerar que seria melhor “não fazer ondas” e, pura e simplesmente, destruir o filme. Breen acabou por não interditar a sua difusão, dir-se-ia que graças a uma intervenção “divina”…
O próprio Welles assim o explicou a Peter Bogdanovich, no livro de entrevistas This Is Orson Welles (ed. HarperCollins, 1992): “Arranjei um rosário, meti-o no bolso e quando a projecção acabou, levantei-me, em frente de Joe Breen, um bom católico irlandês, deixei cair o rosário no chão e disse ‘Oh, peço desculpa’. Apanhei-o e voltei a metê-lo no bolso.” Resultado prático? Welles esclarece: “Se não o tivesse feito, não haveria Citizen Kane.”

sexta-feira, maio 21, 2021

O mundo (não) é a preto e branco

Erik Messerschmidt

O Oscar para Erik Messerschmidt, pela fotografia de Mank, fica para a história como uma referência marcante dos prémios de 2021 da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 abril).

O Oscar de melhor fotografia para Erik Messerschmidt, pelo filme Mank, distinguiu aquele que é, por certo, um dos mais prodigiosos trabalhos de imagem que o cinema gerou neste século XXI. Trata-se de uma proeza tanto mais admirável quanto resolve uma insólita “quadratura da círculo”: a recriação de um “look” ligado às películas e ao cinema de Hollywood das décadas de 30/40 — revisitando os bastidores de O Mundo a Seus Pés, o clássico de Orson Welles estreado em 1941 —, utilizando agora algumas das mais modernas e sosfisticadas câmaras digitais (RED).
Com um pormenor que quem viu o filme não poderá deixar de valorizar: a direcção fotográfica de Messerschmidt tem como pressuposto criativo e simbólico o “reencontro”, precisamente, com o visual de O Mundo a Seus Pés. Entenda-se: através de imagens a preto e branco.
Dá que pensar que uma das marcas do classicismo de Hollywood, a fotografia a preto e branco, tenha sido recuperada, em anos recentes, por dois títulos produzidos por uma plataforma de streaming (Netflix): primeiro, Roma (2018), realizado e fotografado por Alfonso Cuarón, e agora Mank. Com a particularidade de ambos terem sido distinguidos nessa mesma categoria.
Aliás, a estatística revela-nos um daqueles curiosos fenómenos que, infelizmente, nunca adquire valor mediático. Assim, até à produção de 1966, inclusive, a Academia de Hollywood atribuiu dois Oscars de fotografia, a preto e branco e a cores — o derradeiro vencedor na categoria a preto e branco foi Haskell Wexler, por Quem Tem Medo de Virginia Woolf?. Depois disso, antes de Roma (portanto, ao longo de 52 anos), apenas Janus Kamisnki tinha ganho um Oscar pelas imagens de um filme a preto e branco: A Lista de Schindler (1993). Pelo meio, ficou uma excepção paradoxal: O Artista (2011), a preto e branco, foi eleito melhor filme, mas não recebeu o Oscar de fotografia, embora estivesse nomeado na respectiva categoria.
Em 1947, 88 por cento da produção de Hollywood era filmada a preto e branco. Em 1954, numa altura em que os novos “formatos largos” (CinemaScope) funcionavam como arma concorrencial face à televisão, os filmes a cores já eram mais de metade. Mais tarde, o novo-riquismo associado ao período de vulgarização dos televisores a cores, levou muitos espectadores a interiorizar um preconceito que ainda dura: o preto e branco seria um percalço criativo e, pior um pouco, a expressão de uma insuperável indigência técnica…
Ao mesmo tempo, importa reconhecer que a multiplicação de reposições de filmes em cópias restauradas (sendo o mercado português um bom exemplo) tem contribuído para devolver aos filmes a preto e branco, não apenas a dignidade artística, mas também o seu lugar emblemático na história global do cinema. Como se prova, esse lugar continua a ser ocupado por notáveis formas de tratamento das imagens a preto e branco. Neste caso, falta o mercado corresponder à actualidade. Como? Por exemplo: organizando a reposição de O Mundo a Seus Pés.

terça-feira, janeiro 05, 2021

Orson Welles num segundo
— a propósito de "Mank"

A rapariga com uma sombrinha branca
filmada por David Fincher: memórias das palavras ditas em Citizen Kane

A cinefilia não se faz de filmes que copiam outros filmes, mas sim do ziguezague de memórias e desejos que entre eles se pode desenhar. Assim acontece em Mank, de David Fincher, lembrando Citizen Kane, de Orson Welles — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 dezembro). 

De que se faz a verdade? A pergunta pressupõe uma dúvida que não foi inventada pela candura naturalista dos ecrãs que usamos e contemplamos (incluindo na frágil intimidade do nosso telemóvel). A sua simples formulação acompanha-nos há milénios, como um assombramento feliz: a fixação de uma verdade pode ser posta em causa pela verdade seguinte. O que, convenhamos, não justifica grandes lamentações — chama-se a isso a arte de conhecer. 
Veja-se o novíssimo filme de David Fincher, Mank (Netflix). Estamos perante uma prodigiosa revisitação desse mistério que envolve as convulsões da verdade e do conhecimento. Por razões que começam, como é óbvio, no seu dispositivo cinéfilo: este é um apaixonado reencontro com as memórias do próprio cinema, numa paisagem em que verdade objectiva e verdade mitológica são duas faces da mesma moeda. 
Fincher fixa-se na figura de Mank, o admirável Herman J. Mankiewicz (1897-1953), argumentista do clássico Citizen Kane/O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles. E não é a menor maravilha do filme que a personagem, composta em tom de metódico delírio por Gary Oldman, viva do desejo visceral da escrita. Para lá da sua dependência do álcool, através da atribulada relação com Welles, prevalece o amor primordial pela palavra escrita como matéria orgânica do cinema, invertendo o lugar-comum: nenhuma imagem vale mais que uma palavra. 
Fincher herdou o argumento de Mank de seu pai, Jack Fincher (1930-2003), tendo alimentado o desejo de o filmar desde finais da década de 1980, quando era “apenas” um brilhante realizador de telediscos, tendo dirigido, por exemplo, o revolucionário Express Yourself (1989), de Madonna. A sua primeira longa-metragem, Alien 3, surgiu em 1992. 
Dir-se-ia que a demorada concretização do projecto levou Fincher a assumir até às últimas consequências a condição de herdeiro de Welles. Não de acordo com a lógica banal do discípulo que “copia” o mestre, antes para enfrentar o desafio mais linear, porventura também o mais difícil. A saber: qual a verdade que ele me legou?
Há um momento sublime de Mank que, creio, pode ajudar a conhecer o misto de precisão histórica e vertigem poética que define a visão de Fincher. Para o descrevermos necessitamos de evocar uma cena emblemática, filmada por Welles em Citizen Kane
Assim, na investigação jornalística que se segue à morte de Charles Foster Kane (Orson Welles), há, a certa altura, uma conversa com o fiel Mr. Bernstein, empregado do jornal de Kane, The Inquirer. Ao ser-lhe pedido que recorde factos da vida de Kane, Bernstein, interpretado pelo maravilhoso Everett Sloane, responde em tom muito pessoal: “Uma pessoa lembra-se de muitas coisas que poderíamos pensar que nunca se lembraria. Veja o meu caso. Um dia, em 1896, fazia a travessia de barco a caminho de Jersey; quando estávamos a partir, havia outro barco a chegar e nele estava uma rapariga à espera para sair. Tinha um vestido branco. Trazia uma sombrinha branca. Vi-a apenas por um segundo. Ela nem sequer me viu, mas aposto que desde então não se passou um mês que eu não tenha pensado nessa rapariga.” 
A evocação desta cena de Citizen Kane está em Mank através de uma referência da personagem de Mankiewicz. Que acontece, então? Num fogacho, Fincher dá-nos a ver uma jovem vestida de branco, com uma sombrinha branca, no cenário de um barco… E é importante referir que se trata de um cenário, uma vez que nos são mostrados os artifícios técnicos do estúdio. 
A verdade visceral da cena enraiza-se num delicado jogo de espelhos. Não se trata, como é óbvio, de compensar aquilo que Welles não filmou: a “amostragem” da memória de Bernstein iria reduzi-la a uma detalhe pitoresco. Trata-se, isso sim, de reconhecer que os filmes podem falar entre si, e não apenas por motivos “temáticos”. O que Mank coloca em cena é o próprio desejo que a verdade transporta, como se a utopia de Bernstein tivesse vivido oito décadas de pudor, aguardando que Fincher encontrasse a imagem da sua própria vulnerabilidade. É a coisa mais bela que este ano vi num filme. E Bernstein tinha razão: dura apenas um segundo.

segunda-feira, dezembro 21, 2020

10 filmes de 2020 [2]

David Fincher

Paradoxos, mágoas e euforias deste tempo: um dos mais admiráveis filmes que se fizeram sobre a história mitológica de Hollywood — é da escrita de Citizen Kane que se trata... — tem chancela de uma plataforma de streaming (Netflix). Ou como o retrato do argumentista Herman J. Mankiewicz (1897-1953) nos devolve ao coração vivo da cinefilia: a sublime arte das imagens em movimento começa na energia da palavra e na sigularidade da escrita.



* * * * *

[ 1. Uma Vida Alemã ]

terça-feira, janeiro 07, 2020

10 filmes que marcaram a década [8]


[ A Rede Social ] [ A Árvore da Vida ] [ Adeus à Linguagem ] [ Cavalo Dinheiro ] [ Silêncio ] [ Paraíso ]
[ Jackie ]


O OUTRO LADO DO VENTO (2018), de Orson Welles


Paraíso cinéfilo ou inferno virtual, Netflix é uma das palavras da década. Antes de nos trazer a obra-prima de Martin Scorsese (O Irlandês), a plataforma de streaming financiou a conclusão do lendário projecto de Orson Welles, iniciado há mais de 40 anos. Premonição genial: através da personagem de um cineasta, interpretado pelo seu amigo John Huston, Welles encena as perplexidades e angústias de um tempo em que a noção clássica de espectador de cinema pode estar a morrer — eis o mais actual dos filmes.

sábado, setembro 14, 2019

Memórias de Orson Welles

Welles + Perkins
Kafkiano, como bem sabemos. Realizado em 1962 por Orson Welles, o filme O Processo é uma prodigiosa reinvenção do romance de Franz Kafka (1883-1924), publicado postumamente, em 1925. Com Anthony Perkins, na altura celebrizado pelo papel central de Psico (1960), de Alfred Hitchcock, trata-se de um objecto de impressionante vertigem visual e dramática, contando ainda com interpretações de Romy Schneider, Jeanne Moreau e Akim Tamiroff (além do próprio Welles).
Filmado em grande parte em estúdios franceses, trata-se de uma coprodução França/Itália/Alemanha cuja rodagem foi acompanhada pelo fotógrafo francês, de ascendência russa, Nicolas Tikhomiroff (1927-2016), da agência Magnum. Cumprindo a sua excelente rotina de divulgação de imagens dos bastidores de muitos clássicos do cinema, a Magnum recuperou recentemente algumas das fotografias do portfolio de Tikhomiroff — memórias cinéfilas de um filme a rever, sempre.

Romy Schneider
Welles

terça-feira, janeiro 08, 2019

10 filmes de 2018 [9]


* O OUTRO LADO DO VENTO, de Orson Welles (EUA)

O filme chama-se The Other Side of the Wind porque o filme dentro do filme se chama The Other Side of the Wind... Eis o princípio de um jogo de espelhos que Welles encena com a angústia metódica de quem pressente a morte simbólica do cinema através da decomposição das matrizes clássicas de produção, da vulgarização mediática dos filmes e, por fim, da desagregação dos sistemas tradicionais de difusão. Dir-se-ia uma reflexão elaborada nos (e para os) tempos atribulados da Netflix e do desenvolvimento exponencial das plataformas de streaming... Acontece que estamos no cerne do mais cruel, e também mais fascinante, dos paradoxos cinéfilos. Porquê? Porque The Other Side of the Wind foi rodado há mais de quarenta anos, no início da década de 70 e, devido aos muitos dramas de financiamento que Welles encontrou (para a maior parte dos seus filmes), permaneceu num limbo de problemas de pós-produção que só agora foi resolvido, em grande parte graças ao indefectível empenho de Peter Bogdanovich (também um dos actores) e, enfim, graças a um investimento de 6 milhões de dólares feito pela... Netflix! Através da personagem do realizador Jake Hannaford, interpretado por John Huston, companheiro de Welles no esplendor criativo de Hollywood dos anos 40 (as suas primeiras longas-metragens, Relíquia Macabra e O Mundo a seus Pés, são ambas de 1941), deparamos com a solidão primordial do criador — como fazer filmes quando o próprio conceito de espectador está em crise?

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HAPPY END
BLACKKKLANSMAN - O INFILTRADO
GIRL
GEADA
NO CORAÇÃO DA ESCURIDÃO
ROMA
TULLY
CUSTÓDIA PARTILHADA

sexta-feira, novembro 16, 2018

Orson Welles nunca existiu

O lançamento de um filme póstumo de Orson Welles na Netflix envolve um especial dramatismo: afinal, que é feito da cinefilia? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Novembro).

Se somos cinéfilos, a amargura dos tempos não se vence com nostalgias. Observe-se o fenómeno Netflix. Há um ano ou dois, quando este serviço de streaming começou a consolidar a sua base de consumidores, surgiu um vício “social” (com ou sem rede) que, aliás, persiste: ser espectador seria poder desenrolar uma longa lista de séries televisivas descobertas, e avidamente consumidas, na Netflix...
Mas não é verdade que a Netflix, precisamente, passou a ser um dos lugares de eleição para estarmos a par de algumas das mais notáveis proezas narrativas do actual espaço televisivo? Claro que sim, não é isso que está em causa: por razões que vão da produção à difusão, a Netflix tornou-se mesmo um dos fenómenos da linha da frente do audiovisual contemporâneo.
O que importa reconhecer é a fragilidade deste novo modelo de “telefilia” instantânea. Há nele um espírito consumista, gerado pela abundância da oferta, que já não possui qualquer desejo de procura. Dir-se-ia que a relação com os pequenos ecrãs (do computador ao telemóvel) tende a transformar muitos espectadores em acumuladores de produtos, não necessariamente descobridores de narrativas.
O caso de O Outro Lado do Vento é sintomático. Que temos à nossa frente? Nada mais nada menos que um prodigioso filme póstumo de Orson Welles (1915- 1985), rodado nos primeiros anos da década de 70 e, depois de muitas atribulações, finalmente concluído e estreado pela... Netflix!
As comparações de extremado entusiasmo não serão exageradas. Mesmo as mais esquemáticas: estamos, afinal, perante uma revelação equivalente à que seria a descoberta de um quadro de Rembrandt ou uma partitura de Mozart... Daí a pergunta: será que o nosso agitado espaço “social” tem gerado, já não digo algum entusiasmo pelo renascido Welles, mas pelo menos um leque de informações idêntico ao que tem acompanhado tantos produtos da Netflix, dos mais brilhantes aos mais medíocres?
Há outra maneira de dizer isto: nos nossos dias de relações virtuais, muitas formas de consumo audiovisual são desprovidas de memória, dispensando qualquer relação (nem que seja de mera curiosidade) com a história do cinema — como se essa história de mais de um século não existisse. Enfim, não será por acaso que a narrativa dramática de O Outro Lado do Vento, centrada num velho cineasta interpretado pelo maravilhoso John Huston (1906-1987), formula a possibilidade de o cinema morrer.

quinta-feira, novembro 08, 2018

Redescobrindo Orson Welles

A preservação, descoberta e conclusão de O Outro Lado do Vento, de Orson Welles, é uma odisseia que vai ficar nos anais da cinefilia: este filme datado de 2018 conta uma história cuja rodagem aconteceu no início da década de 70 — eis um video da Netflix sobre esse processo que, em última instância, nos trouxe um prodigioso objecto de cinema, transparente e enigmático, tocado por uma paradoxal modernidade.

terça-feira, novembro 06, 2018

"O Outro Lado do Vento"
— o filme do ano

Simplifiquemos. Sem receio de o espaço crítico ser confundido com uma prática banalmente panfletária — até porque convém não ceder ao cinismo ambulante da nossa vida "social", lembrando que um panfleto, se for caso disso, pode não ser coisa banal.
Simplifiquemos, então: lançado na Netflix, O Outro Lado do Vento, de Orson Welles (1915-1985), é, muito simplesmente, o filme do ano. Depois de um silêncio de décadas (Welles iniciou a rodagem no começo da década de 70, só tendo sido possível concluir a sua pós-produção em 2018), deparamos com um objecto assombrado pelo mais actual dos temas. A saber: a morte anunciada do cinema, à deriva na vertigem de uma nova ordem — económica, política e simbólica — do audiovisual.
Simplificando, para já: o génio de Welles não é uma voz ténue, resgatada do passado, já que reflecte um labor criativo em tudo e por tudo ligado aos impasses do nosso presente.
O cinema existe, hélas! E isso não é simples.

domingo, novembro 09, 2014

À espera de Orson Welles

De uma maneira ou de outra, The Other Side of the Wind, o filme "perdido" de Orson Welles, vai ser um dos grandes acontecimentos cinematográficos do próximo ano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Novembro), com o título 'O melhor filme de 2015?'

Um dos efeitos mais perversos da banalização televisiva do cinema, escandalosamente arredado dos horários nobres, é o esvaziamento da sua história. E o consequente ataque a qualquer sensibilidade cinéfila — porque a cinefilia começa na consciência de que o cinema tem uma história.
Há dias, tivemos mais um exemplo das singularidades dessa história e da sua dinâmica, não como uma linha recta de significação unívoca, mas sim uma paisagem de muitos cruzamentos e ziguezagues. Assim, de acordo com um artigo do New York Times (28 Out.), o derradeiro filme de Orson Welles, The Other Side of the Wind, poderá, finalmente, ser visto em 2015.
Infelizmente, vivemos um tempo em que qualquer banalidade dita por um concorrente da Casa dos Segredos adquire maior ressonância mediática que uma notícia em torno do nome de Orson Welles... A atrevida ignorância da cultura televisiva dominante poderá mesmo insinuar a pergunta letal: mas, afinal, quem é Orson Welles?
Não receemos, por isso, ser panfletários, apelando ao que resta da sensibilidade cinéfila. Sendo o realizador de O Mundo a Seus Pés (1941) um dos autores decisivos para compreendermos toda a modernidade cinematográfica, não tem nada de abusivo considerar, desde já, que a revelação de The Other Side of the Wind será um dos grandes eventos cinematográficos de 2015 — a sua estreia poderá acontecer no dia 6 de Maio, data em que o actor e cineasta completaria 100 anos (Welles faleceu em 1985).
Peter Bogdanovich
Como muitos outros projectos do seu autor, também The Other Side of the Wind sofreu os efeitos das mais diversas dificuldades de financiamento. Na prática, Welles filmava nos intervalos das produções em que ia participando como actor (ao longo do período 1970-76), para isso contando com a cumplicidade de um elenco que integrava dois cineastas, John Huston e Peter Bogdanovich — o primeiro interpreta um realizador que, ao tentar concluir um filme, se vê envolvido num conflito com um grande estúdio de Hollywood, tema que, por certo, integrará ecos de muitas atribulações do próprio Welles (que começaram logo com a sua segunda longa-metragem, O Quarto Mandamento, rodada um ano depois de O Mundo a Seus Pés).
Através de Oja Kodar, companheira e colaboradora de Welles, conheciam-se fragmentos em que era possível detectar, no mínimo, um ousado trabalho de montagem. Seja como for, aquilo que agora se anuncia decorre de uma reorganização de todo o material filmado, tendo por base os muitos apontamentos deixados por Welles — Bogdanovich e o produtor Frank Marshall são os coordenadores de tão delicada tarefa.
Nos últimos anos de vida, Welles fez tudo o que pôde para concluir The Other Side of the Wind. Bogdanovich recorda mesmo que, um dia, durante um almoço, Welles lhe disse solenemente: “Quero que me prometas que, se alguma coisa me acontecer, hás-de conseguir acabar este filme.”

terça-feira, maio 10, 2011

Nos 70 anos de "Citizen Kane"


Citizen Kane, de Orson Welles, estreou-se no dia 1 de Maio de 1941; Peter Bogdanovich fez uma comovente evocação — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 de Maio), com o título 'A herança de Orson Welles'.

Há dias, numa entrevista a Steve Paikin, numa televisão estatal do Canadá (TVOntario), o crítico e cineasta americano Peter Bogdanovich evocava Citizen Kane/O Mundo a Seus Pés, de Orson Welles, referindo-se à sua própria descoberta do filme (tinha 16 anos). Segundo Bogdanovich, foi aí que teve a noção de que podia existir um autor detrás de um filme: da realização à interpretação, passando pela escrita do argumento (e Welles acumulava tudo isso), ele assistia à contundente expressão de um universo eminentemente pessoal.
A entrevista tinha como motivação próxima uma data que a nossa banalidade televisiva, sempre disponível para criar ruído em torno de algumas efemérides, olimpicamente ignorou: no dia 1 de Maio, passaram exactamente 70 anos sobre a estreia de Citizen Kane no RKO Palace, na Broadway. Em todo o caso, como Bogdanovich [foto] relembra, a indiferença começou logo nessa altura, já que o filme teve um impacto apenas mediano, mesmo se desde o seu lançamento encontrou alguns empenhados defensores (incluindo o escritor argentino Jorge Luis Borges). O reconhecimento de Citizen Kane como um clássico absoluto, várias vezes citado no primeiro lugar de listas dos “melhores filmes de sempre”, só aconteceria a partir do seu relançamento na década de 50, sendo indissociável do boom da crítica de cinema por essa altura ocorrido nos mais diversos contextos (americanos e europeus).
Rodado quando Welles tinha apenas 25 anos, Citizen Kane representa uma herança riquíssima que, escusado será sublinhá-lo, não se desvaneceu. Desde logo pelo seu tema: a personagem de Welles, o magnata da imprensa Charles Foster Kane, condensava a questão (actualíssima) do poder dos jornais e do jornalismo. Os paralelismos com um verdadeiro magnata, William Randolph Hearst, conferiram ao filme um perturbante efeito de espelho (a ponto de Hearst ter movido as suas influências para tentar impedir a própria rodagem). Enfim, Welles foi um genuíno e radical experimentador e a inteligência narrativa de Citizen Kane, com a sua teia de flashbacks que se cruzam num tempo íntimo e enigmático, reduz a pó muitos disparates contemporâneos que confundem a proliferação de “efeitos especiais” com a própria assinatura do cinema.
Vale a pena ver e ouvir o diálogo de Paikin e Bogdanovich  (reproduzido aqui em baixo). É um exemplo cristalino de como é possível utilizar a televisão, não para acumular soundbytes mais ou menos conflituosos, mas para, realmente, conversar. Acima de tudo, trata-se de um diálogo que celebra a passagem do tempo cinematográfico com sageza e humor, sem reduzir o passado dos filmes a uma colecção de anedotas mais ou menos pitorescas. O tempo, aliás, lembra-nos também que Bogdanovich (autor do livro This Is Orson Welles) nasceu a 30 de Julho de 1939. Ou seja: no momento da estreia de Citizen Kane, estava à beira de completar... 2 anos!


>>> Citizen Kane na Wikipedia.