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domingo, julho 20, 2025

BLACK NARCISSUS (1947)

QUANDO OS SINOS DOBRAM
Um filme de MICHAEL POWELL e 
EMERIC PRESSBURGER



Com Deborak Kerr, Flora Robson, Kathleen Byron, Jean Simmons, David Farrar, Sabu, Esmond Knight, Jenny Laird, Judith Furse, etc.


GB / 100 min / COR / 4X3 (1.37:1)


Estreia na GB (Londres) a 24/4/1947 
Estreia nos EUA (NY) a 13/8/1947 
Estreia em Portugal (Lisboa) a 26/11/1948 (cinema Eden)



Sister Clodagh: "We all need discipline. You said yourself they're like children. Without discipline we should all behave like children"
Mr. Dean: "Oh. Don't you like children, Sister?"

“Black Narcissus” é um filme que faz irresistivelmente pensar em dois cineastas e em dois filmes que estão nos antípodas de Michael Powell: Robert Bresson e “Les Anges du Péché” (1943); John Ford e “Seven Women” (1966). Baseado num romance da escritora inglesa Rumer Godden (a autora do livro que cinco anos mais tarde inspiraria a Renoir o inadjectivável “The River”), “Black Narcissus” foi inteiramente filmado em estúdios (ao contrário do filme de Renoir), numa Índia imaginária e mítica. Powell afirmou que julgava «ter percebido bem o livro, de que gostei imenso. Li-o durante a guerra, anos antes de o filmar, e impressionou-me imenso. Só que não era filme para fazer durante a guerra. Tive imensa vontade de o realizar porque gosto da vida solitária, da vida ao pé das grandes montanhas (...) Sempre quis fazer um filme sobre as lendas sagradas e as gestas da Índia».

Para esta obra, contou Powell com Jack Cardiff e, pela primeira vez, com o concurso simultâneo dos grandes art directors alemães Alfred Junge e Heinz Heckroth (com JungePowell trabalhara antes). Porque um dos prodígios deste filme é a constituição do décor como seu cerne. O palácio hindu de Esmond Knight e Sabu («palácio não no sentido que a palavra lhe evocara») com a sua imagética à “Khamasutra” é revestido, com a chegada das freiras doutra imagética (“saint-sulpiciana” e “Kitsh”) que, mau grado o seu fundo cristão, se revela tão, ou mais erótica do que a primeira, anunciando e enunciando os fantasmas que vão possuir todas aquelas mulheres. «Só há duas maneiras de se viver aqui: como Dean ou como o eremita» diz-se a certa altura do filme. Dean é o homem dos copos e das mulheres (chega a entrar de tronco nu – numa das muitas audácias do filme – no palácio convertido em convento); o eremita é o homem que se recusa a qualquer comunicação, e nem sequer fala.

As freiras que aceitaram um presente envenenado julgaram que bastava substituir um décor e impedir a entrada de homens. Mas não podiam impedir a entrada do vento (reparem na sua omnipresença na espantosa banda sonora) e com ele de todas as suas memórias e de todos os seus fantasmas. Aos deuses hindus chega-se pelo sexo ou pela abulia, como qualquer “vulgata” ensina. Um e outro caminho estavam proibidos àquelas mulheres com voto de castidade e vida de caridade. Daí que elas não pudessem viver ali, onde o perfume do black narcissus contamina até a velha Flora Robson.

Mas tudo se vai passar entre Deborah Kerr e a incrível Kathleen Byron, a portentosa revelação deste filme. Pessoalmente não conheço sequência mais erótica do que aquela (momento supremo deste filme supremamente belo) em que Deborah Kerr lhe entra no quarto e a vê vestida de encarnado. Nenhuma nudez podia ter tido um efeito erótico assim: porque despida de freira, Kathleen Byron não exibe apenas um corpo, mas através da cor, a carne e o sangue oferecidos e escancarados, em suprema provocação ao manto de castidade de Deborah Kerr. O jogo de contracampos em grandes planos (culminando naquele close-up de Kathleen Byron a pintar a boca-sexo) é simultâneamente o cúmulo do exibicionismo e o cúmulo da perversão.

Repare-se que, antes, nunca víramos Kathleen Byron “profana” ao contrário do sucedido com Deborah Kerr, nos vários flash-backs. Víramos o seu olhar, adivinharamos-lhe o ódio e o amor, mas nada nos preparava para essa ostentação do corpo, como se, literalmente, Sister Ruth atirasse à cara da superiora tudo o que esta fora e tudo o que esta reprimira. Simultâneamente, Kathleen Byron denuncia a hipocrisia de Deborah Kerr, declara o seu cinismo (é depois dessa noite que diz a Dean que o ama) e exibe a natureza do seu amor-ódio por Kerr e Farrar.

E, à luz da vela, na longa vigília, contamina Deborah Kerr, até ao orgasmo-desmaio e até aquele inaudito fondu (que hei-de levar para a cova) onde David Farrar se “freiratiza” em Deborah Kerr na fusão das duas imagens. O décor “distingue” então sobre o filme todo: plano ultra-insólito com o miúdo, o grande plano de “filme de terror” dos olhos de Kathleen Byron, a água, o relógio, os sinos, até à luta de morte (vampírica) que termina, em torno da tensa corda, na morte de Sister Ruth. E o último pedido de Sister Clodagh a Dean é que vele pela tumba de Ruth, o sinal da incrível fusão dos personagens.

E é por aqui que “Black Narcissus” evoca “Les Anges du Péché”. Só que enquanto, no também perversíssimo filme de Bresson (embora com aparências contrárias) a transfusão de Anne Marie em Thérèse se processava através da Graça, em “Black Narcissus” processa-se através do pecado. Mas os extremos tocam-se: se era o Pecado (nesse sentido) que juntava a leiga e a freira do filme de Bresson, aqui é a Graça (o vento, a Índia) que une indelevelmente Ruth e Clodagh. Em estilos completamente diferentes (provavelmente os mais diferentes que imaginar se possam, no extremo do espectro do cinema), Powell e Bresson realizam exactamente a mesma coisa: a experiência poética total.

Raymond Bellour, numa bela análise do filme, cita Blanchot: o texto tradicional como imagem dum círculo branco contendo no centro um núcleo negro. E salienta que Powell procedeu exactamente como Lautrémont: «aumentar o núcleo negro até o fazer cobrir toda a superfície do círculo, desenvolvendo ao máximo as pulsões do inconsciente, de modo a que toda a racionalidade desapareça». É essa entrega ao irracionalismo total que aproxima, a meu ver, o filme de Powell do de Bresson. Se o autor de “Les Anges” escolheu a “écriture blanche” Powell optou pela “oeuvre au noir”. Se Bresson escolheu o despojamento formal, o autor de “Gone to Earth” escolheu o delírio e o excesso, a fuga e a codificação, num imaginário igualmente críptico.

A aproximação com “Seven Women” de John Ford é talvez ainda mais obscura. Porque não a faço pela idêntica situação de clausura em “orientes de sonho ou não” das mulheres de Ford e das mulheres de Powell. Nem pelo paralelismo que se possa fazer entre a relação Margaret Leighton-Sue Lyon no filme de Ford e as de Deborah Kerr-Kathleen Byron no filme de Powell (o lado homossexual). Onde os dois filmes, igualmente antagónicos em estilo e linguagem se aproximam é na inscrição do sexo feminino (o sexo não aparente) como lugar de todos os conflitos éticos e estéticos, é na suprema metáfora vaginal, elidida em Ford pela figura do “grupo” e elidida em Powell pela obsessiva repetição de grandes planos.

Em Ford, o corpo feminino colectiviza-se; em Powell fragmenta-se. Por outro lado, a figura masculina (já em tempos notei que em “Seven Women” Anne Bancroft tratada à John Wayne assume um idêntico papel): David Farrar, misto de Walter Pidgeon e Stewart Granger, é o homem só enquanto catalisador. A guerra é outra e bem mais funda (o que é igualmente visível na personagem de Sabu e no diálogo com Deborah Kerr sobre a masculinidade ou a forma masculina de Cristo).

A conversa vai longa e pode parecer a muitos excessivamente cinéfila ou excessivamente hermética. Abstrusa pode ainda parecer a comparação entre dois cineastas do rigor e da disciplina como Ford e Bresson com este filme completamente desregrado e totalmente indisciplinado. E convém que se diga que para amar “Black Narcissus” é preciso uma boa dose de “infantilismo”, no sentido de uma deixa de Deborah Kerr («Without discipline, we’re all like children»). É preciso amar o gratuito, o excessivo, o maravilhoso, os filmes de terror, os filmes fantásticos e os filmes de aventura. Porque, sobretudo, “Black Narcissus” é tudo isso, ou melhor, está entre tudo isso: os Himalaias, o “holy-man”, Sabu, Jean Simmons (reparem bem nela), as gaiolas, os papagaios, os marajás, os frescos hindus, os santos “Kitsch”, a freira, as jóias (o fabuloso colar de Deborah Kerr), as trompas, os crepúsculos e aquele vento, o black narcissus e as coisas que se julgavam esquecidas «and now they came back home».

«It’s that place, with such a strange atmosphere», responde Deborah Kerr a Flora Robson quando ela lhe fala desses inesperados flash-backs. É exactamente isso. É este filme, é a atmosfera estranhíssima dele, o vento, o vento, o vento, a perda de qualquer identidade («I forgot who I am») e a perversão em qualquer sentido da palavra. «That rare thing, an erotic english film about fantasies of nuns» escreveu David Thompson. “That rare thing” na verdade. Mas o seu erotismo vai muito para além das fantasias das freiras. Digamos simplesmente que “Black Narcissus” é um filme fantástico e erótico. Com Kathleen Byron. E, já agora, para acabar como comecei, outra comparação “insólita”: quem é que se lembrou do “Vertigo” de Hitchcock? Precisamente, na metamorfose de Kathleen Byron, ela também Judy-Madeleine deste filme, ela também morrendo (vertiginosamente) sob o signo do hábito e sob o signo das monjas.
(comentário de João Bénard da Costa)

segunda-feira, julho 14, 2025

THE LADY FROM SHANGAI (1947)

A DAMA DE XANGAI
Um filme de ORSON WELLES




Com Orson Welles, Rita Hayworth, Everett Sloane, Glenn Anders, etc.

EUA / 92 min / PB / 4X3 (1.37:1)

Estreia em França a 24/12/1947
Estreia nos EUA a 9/6/1948
Estreia em Portugal a 28/5/1949





Michael O'Hara: «The only way to stay out of trouble is to grow old.
So I guess I'll concentrate on that»

Em vez de uma intriga perfeitamente elaborada, “The Lady From Shangai” revela uma acção de uma força pouco comum mas, se assim se pode dizer, subterrânea. A intriga policial não é mais do que um pretexto, à moda de um “mcguffin” dos filmes de Hitchcock. O que conta são as personagens e as suas relações, bem como, e sobretudo, o seu simbolismo moral. Digamos que é grosseiramente a história de um rapaz honesto, o irlandês Michel O’Hara (Orson Welles), contratado como marinheiro num iate de milionário e envolvido em obscuras intrigas criminais, às quais a bela Elsa Bannister (Rita Hayworth) não é completamente alheia. Usando os seus encantos de mulher fatal, Elsa funciona como a aranha que vai tecendo a teia para a sua vítima mas mantendo-se sempre afastada, na expectativa.

Com “The Lady From Shangai, Welles subalternizava as pesquisas e as novidades técnicas de “Citizen Kane, virando-se para o classicismo do film noir, sem contudo o levar muito a sério. Poder-se ia dizer que “The Lady From Shangai” é paradoxalmente o mais rico de sentido dos filmes de Welles à proporção da insignificância do argumento: com a intriga a não impedir a acção profunda, os temas desenvolvem-se aí quase no estado puro. Temas fundamentalmente morais e que revelam as obsessões essenciais da ética wellesiana, e antes de mais uma sensibilidade para a liberdade de escolher o bem ou o mal, se bem que a vontade de Michel O’Hara esteja em parte condicionada a uma certa forma de destino. O filme desenvolve-se entre estes dois comentários do protagonista: «Quando começo a conduzir-me como um imbecil, nada no mundo me pode impedir de ir até ao fim» e o que o acompanha no final do filme, «Morta...tenho que me esforçar agora para a esquecer. A minha inocência despedaça-se...; mas, inocente ou culpado, isso não significa nada, o essencial é saber envelhecer bem»

Moralismos à parte, o que perdura neste filme de Welles é o surrealismo da atmosfera, a audácia alucinante de certas cenas. Como esquecer a cena de amor no aquário, diante de polvos e tubarões, a ser drasticamente subvertida pela aparição súbita do grupo de estudantes? Ou toda a sequência do tribunal em que Welles, que sempre detestou autoridades e sobretudo aquele mundo de leis e justiças, se diverte a satirizar os intervenientes? Ou a cena final na galeria dos espelhos (a memória do filme confunde-se frequentemente com este epílogo) em que Elsa e Bannister disparam por estimativa, procurando atingirem-se mutuamente por entre o ruído dos vidros estilhaçados das suas imagens?

Relativamente a esta última cena será pertinente entender a ideia de génio que era a utilização dos espelhos para a multiplicação dos personagens, cuja imagem é diferente em cada espelho. Tratava-se de equilibrar o par verdadeiro com as suas diversas imagens e, por arte do enquadramento, de obrigar o olhar a seguir essa multiplicação. Cada imagem está distante dos personagens, foge para o fundo, explora uma profundidade que é fisicamente ilusória, mas que se torna real no écran. O centro é a cabeça e o busto de Rita Hayworth que iluminam o rosto de Orson Welles mas toda a área do frame é usada em profundidade e em largura, resultando a imagem um todo organicamente ligado.


Mas por mais insólitas, por mais estravagantes que sejam todas estas cenas, o essencial de “The Lady From Shangai” para o público americano é a violência com que Welles desmitifica a mulher de que Rita Hayworth era justamente o símbolo. Sob a imagem ideal que o cinema fizera dela, Welles denuncia um monstro, uma devoradora de homens. Pela primeira vez, já não é apenas o homem que é denunciado como criminoso. É também a mulher, que até então se pretendia apresentar como anjo salvador. O espectador médio americano, que já se sentira frustrado com a nova fisionomia que Welles inventara para a diva (cabelo curto e oxigenado), não lhe podia perdoar o tê-la agora assassinado. Pior ainda, deixá-la morrer como uma cadela sobre o soalho, de onde ele sai indiferente, apressado em terminar com aquilo e sem o mínimo vestígio de compaixão. Da mesma forma que jamais perdoou a Chaplin os seus escândalos femininos e o seu “Monsieur Verdoux” (curiosamente uma ideia que partiu do próprio Welles).

A misogenia do cinema americano sempre constituiu um lugar-comum da crítica intelectual e Rita Hayworth foi sem dúvida uma das suas primeiras vítimas. E continua a ser, pelo génio de Welles, a mais gloriosa das mártires. A crítica não acolheu mal “The Lady From Shangai”, mas o público apenas o seguiu de longe. Dessa vez, a causa de Orson Welles foi julgada. Hollywood estava farta do seu wonder boy, que lhe tinha custado em sete anos alguns milhões de dólares.

Apesar dos numerosos meios colocados à sua disposição, Orson Welles nunca conseguiu finalizar o filme que imaginara. A metragem inicial de cerca de duas horas e meia foi amputada em 60 mintuos e, pior, as notas que o realizador escreveu para a montagem do filme foram pura e simplesmente ignoradas, não lhe sendo permitido interferir sequer no cut final. Hoje em dia só podemos imaginar o que é que “The Lady From Shangai” poderia ter sido se, mais uma vez, os produtores não se tivessem imiscuido no lado artístico da obra. Mas, mesmo assim, o filme apresenta todo o virtuosismo de Welles: os enquadramentos caprichosos, os movimentos de câmara geniais, elipses fulgurantes, a dialética de plongées/contreplongées, todo um arsenal expressionista: os sonhos, o combate entre a luz e as sombras, a complexidade da estrutura narrativa, o uso do plano-sequência, a voz-off do comentador que tudo acompanha e que tudo comanda. Mesmo gravemente ferido o génio de Welles conseguia ainda assim sobreviver.

CURIOSIDADES:

- O iate onde parte da acção do filme decorre pertencia a Errol Flynn, que assistiu a muitas das filmagens (o seu cão chega a aparcer numa cena).

- O produtor Harry Cohn retardou a estreia do filme durante um ano, com receio da imagem de Rita Hayworth ser afectada junto do grande público. Chegou inclusivé a ordenar a Welles que filmasse close-ups da estrela para os mesmos serem inseridos ao longo do filme. O mesmo se passou com a cena em que Rita canta “Please Don’t Kiss Me”, que foi posteriormente filmada.

- Chegaram a ser equacionados outros títulos para o filme: “Black Irish” e “If I Die Before I Wake”, este último o nome da novela de Sherwood King onde o argumento foi baseado.


sexta-feira, junho 20, 2025

MONSIEUR VERDOUX (1947)

O BARBA AZUL
Um filme de CHARLES CHAPLIN



Com Charles Chaplin, Martha Raye, Marilyn Nash, Isobel Elsom, Margaret Hoffman, Mady Correll, Ada May, Charles Evans, Barbara Slater, Robert Lewis, etc. 


EUA / 124 min / PB / 
4X3 (1.37:1)


Estreia nos EUA (Nova Iorque) a 11/4/1947 
Estreia em PORTUGAL (Lisboa) a 17/5/1948



Henri Verdoux: «Wars, conflict - it's all business. 
One murder makes a villain; millions, a hero. 
Numbers sanctify, my good fellow!»

Este é, provavelmente, o último filme que ilustra à saciedade todo o génio de Chaplin. “Luzes da Ribalta” (1952), “Um Rei em Nova Iorque” (1957) ou mesmo o derradeiro “A Condessa de Hong Kong” (1967), são todos eles grandes filmes mas não são tocados tão intensamente pela genialidade do artista, como acontece neste “Monsieur Verdoux”. Baseado numa ideia original de Orson Welles (Chaplin pagou-lhe cinco mil dólares pela cedência dos direitos, tendo de imediato concordado que o nome de Welles apareceria no genérico inicial), o filme baseia-se livremente na vida de Henri Desiré Landru, famoso barba-azul francês, na qual Chaplin viu a grande oportunidade de pegar numa tragédia e de a satirizar socialmente. Essa sátira é tremendamente eficaz porque feita através da figura de um perfeito gentleman. 


Ao contrário de Charlot (este é o filme que rompe em definitivo com a personagem que o imortalizou), monsieur Verdoux é um distinto cavalheiro, amável e encantador, que oferece a toda a gente um sorriso teatral, que se delicia com o aroma das rosas ou com as carícias de um gato vadio, enfim, um produto típico da burguesia francesa da época. O seu comportamento é sempre exemplar: no modo como frequenta o café ou viaja de comboio, como marido dedicado ou pai protector que incute no filho a nobreza dos sentimentos. Até a música (uma vez mais composta por Chaplin) vem dar uma ajuda à caracterização do personagem. Repare-se no leitmotiv que acompanha o passeio diante dos grandes cafés dos Champs Elisées: trata-se de uma música animada, falsamente alegre e, na verdade, bastante cruel. Este comentário sonoro evidencia a intenção do cineasta em denunciar a farsa pretensamente brilhante que era aquela época do final dos anos 30, sublinhando simultaneamente a proximidade da Guerra.

Mas por detrás de toda essa bonomia esconde-se um frio e metódico assassino que no entanto só mata as suas vítimas para preservar a sua família e sobretudo para garantir o bem-estar da sua mulher, uma inválida presa a uma cadeira de rodas. Aliás, esse é o motivo principal pelo qual Verdoux poupa a vida da rapariga (magnífica Marilyn Nash), escolhida por ele para servir de cobaia aos efeitos de um novo veneno. Trata-se de uma das sequências-chave do filme, em que o apurado sentido da mise-en-scène se conjuga com a excelência dos diálogos (e dos silêncios), dando-nos algo de sublime, que roça a perfeição da linguagem cinematográfica. Tudo ali funciona frame por frame, palavra por palavra, olhar por olhar; tudo está milimetricamente certo. Se a perfeição na verdade existe, então essa sequência poderá ser dela um dos exemplos mais felizes, devendo por isso ser mostrada em qualquer escola de Cinema.

Por exigências dos produtores (nas suas memórias Chaplin fará referência à minúcia absurda com que o comité de censura examinou cada uma das linhas do argumento) o cineasta teve de recorrer a variadissimas elipses na realização do filme. Fê-lo como sempre exemplarmente (“Monsieur Verdoux” é sem dúvida o filme mais cristalizado ao nível da elipse, uma técnica sempre presente no cinema de Chaplin), conseguindo que o espectador “visualizasse” até melhor o que não pôde ser mostrado. Como a chaminé a deitar um espesso fumo negro no jardim de rosas de Verdoux, desfazendo qualquer dúvida sobre o destino trágico de mais uma vítima. 

Ou como a sugestão das relações sexuais havidas com duas das mulheres - uma delas, a mal-encarada Lydia Floray (Margaret Hoffman), que virá a ser assassinada (a cena hitchcockiana do patamar da escada, com a noite a transformar-se em manhã, e a continuação lógica na cena do pequeno-almoço, em que Verdoux se dá conta da chávena e do prato que estão “a mais”) e outra, a excêntrica Annabella Bonheur (Martha Raye) que conseguirá ficar imune às várias tentativas levadas a cabo por Verdoux (a cena da dispensa da criada durante o período da tarde) – ou ainda aquela outra elipse, muito mais longa no tempo, e que nos deixará adivinhar que Verdoux assassinou a mulher e o filho para os poupar à miséria originada pela sua falência económica. Este acto, envergonhado no fundo da sua consciência, é o mais trágico acontecimento do filme, sendo o transbordar da amargura de monsieur Verdoux.

Na parte final do filme Verdoux reencontra a rapariga que poupou à morte muitos anos antes, a qual, com o eclodir da guerra na Europa, se tornou rica através do casamento com um industrial de material bélico. Conversando dentro da limousine dela, ambos falam consigo próprios: dois monólogos se sobrepõem. Um ao outro fingem dizer, então, quais os resultados da sua vida, qual o fim a que chegaram. E é esse encontro que, indirectamente, irá originar a prisão de Verdoux. Ou melhor, a sua entrega deliberada às autoridades policiais. Para “cumprir o seu destino”. Ele mesmo o diz, quando à saída do restaurante se despede da sua protegida de outrora. Depois é aquele gag genial (mais um, entre tantos) quando a polícia chega e Verdoux os acompanha na captura dele próprio.

No tribunal Chaplin põe em cheque a sociedade, obrigando-a a reagir não só aos seus actos como também à sua justificação. Como Sócrates, Verdoux é condenado por desvio moral. Esse desvio não é, porém, relativo aos crimes de morte que praticou: eles são apenas pretexto – ao filme e à condenação. É referente, sim, à consideração da moral vigente. A justificação que Verdoux apresenta, integrando em tal moral os seus actos condenáveis, não pode deixar de assustar os seus algozes. Depois das visitas na cela da morte (a cena com o padre é paradigmática do ateísmo profundo do filme: «Em que o posso ajudar, padre?») Verdoux irá morrer no cadafalso. Não por ter assassinado várias mulheres (último recurso do negócio, como a guerra é o último recurso da política), mas por ser um pequeno comerciante da morte. O número é o que separa o assassino do herói: «matam-se várias pessoas e é-se um assassino; matam-se milhões e é-se um herói. O número santifica».

Finalmente a cena final, a da caminhada para a guilhotina, Foi a primeira a ser rodada e é duma qualidade e duma subtileza tão raras, que mesmo na riquissima obra de Chaplin não encontraremos mais do que três ou quatro exemplos. Como argutamente referiu André Bazin, é a cena da “revelação” final: ao longo de todo o filme o público esteve sempre convencido que Verdoux nada tinha que ver com Charlot e afinal, pelo caminhar saltitante, visto de costas, é com ele que Verdoux se identifica. Foi a derradeira ironia de Chaplin: fazer com que o público se desse conta de que afinal Verdoux era Charlot disfarçado (encarnando, se quisermos, o seu lado “obscuro”), que era o popular vagabundo que ia a caminho de ser executado.

Monsieur Verdoux” foi o filme ideal (e necessário) para fechar o conjunto da obra maior de Chaplin. Entre o tímido e infeliz amoroso de “The Gold Rush” e este cínico Don Juan, a sociedade é completamente apanhada na dialética do mito. No espaço de tempo que medeia entre as duas obras (1925 – 1947) Chaplin escreveu o seu testamento mais importante – desde o capítulo inicial, em que a personagem de Charlot se torna inteiramente boa (não o era nas comédias antigas da Keystone) até este epílogo, em que uma nova luz é lançada sobre o universo chaplinesco, ordenando-o e carregando-o de significado.

A situação social é radicalmente oposta: Charlot, mesmo milionário, permanece um eterno mendigo; Verdoux é rico. Quando Charlot tem o azar de casar, é com pavorosas megeras, que o aterrorizam e lhe extorquem o salário até ao último centavo; Verdoux é um polígamo que engana invariavelmente as suas mulheres, domina-as, mata-as e vive do seu dinheiro. Charlot é por essência o inadaptado social; Verdoux é um superadaptado. Charlot passa a vida a ser aterrorizado pela polícia; Verdoux intruja facilmente essa mesma policia e até a aniquila. Ou seja, as relações de Charlot com a sociedade (e com as mulheres em particular - «Gosto das mulheres mas não as admiro», diz Verdoux à rapariga) mudaram todas de valor. Chaplin virou todo o seu universo do avesso: qualquer elemento presente em Charlot tem invariavelmente o seu oposto em Verdoux.

Na sociedade dos anos 40 ou na nossa sociedade deste novo século XXI existem coisas que permanecem imutáveis; e o homem continua a ser o lobo do homem. Chaplin sabia do que falava. Quando referia as perseguições, a intolerância ou o egoísmo, era de si mesmo que falava. Sabia bem o que custava criticar os podres da sociedade americana e a sua responsabilidade no conflito que ensanguentava o mundo. Acusado de comunista, interrogado e boicotado pela sinistra Comissão do senador McCarthy de triste memória, foi definitivamente expulso em 1952 do País da “liberdade”.

A estreia de “Monsieur Verdoux” nos Estados Unidos foi um flop monumental, devido em grande parte ao boicote de que foi alvo em diversas cidades americanas. Na estreia em Nova Iorque o filme é apupado; e, no dia seguinte, a conferência de imprensa é particularmente agitada, com Chaplin a incentivar os jornalistas para “continuarem com a carnificina”. Mas o mesmo não se passou na Europa, onde “Monsieur Verdoux” teve um grande sucesso, quer ao nível do público quer sobretudo ao nível da crítica . O próprio Chaplin, sem falsas modéstias, e em resposta a uma crítica contra o filme, feita pelo cineasta soviético Sergei Eisenstein, viria a declarar: «Eu disse o que devia ser dito, mais tarde entenderão o que eu quis dizer. “Monsieur Verdoux é o filme mais brilhante e inteligente da minha carreira». Afirmação que 65 anos depois não tenho qualquer dúvida em corroborar.




DECLARO GUERRA A HOLLYWOOD!
«Decidi-me a declarar guerra de uma vez para sempre a Hollywood e aos seus habitantes. Não gosto das pessoas que resmungam, acho-as cheias de suficiência e de futilidade, mas visto que já não tenho nenhuma confiança em Hollywood em geral e no cinema americano em particular, estou resolvido a dizê-lo. Sabeis qual o acolhimento dado ao meu último filme, “Monsieur Verdoux”, em certos cinemas americanos e particularmente em Nova Iorque. Sabeis que alguns inoportunos me trataram como comunista e antiamericano. Isto simplesmente porque não quero pensar como toda a gente; porque magnates de Hollywood consideram que se podem ver livres de qualquer pessoa. Mas em breve perderão as suas ilusões e tomarão consciência de certas realidades. Digo-o claramente: eu, Charles Chaplin, declaro que Hollywood agoniza. Hollywood não tem mais nada a ver com o cinema que se supõe ser uma arte: aí o trabalho consiste somente em produzir quilometros e quilometros de película.

Posso acrescentar que nesta cidade é impossível para qualquer pessoa obter sucesso cinematográfico se se recusar a identificar a sua conduta à de todos os outros, se se apresentar como um pioneiro que ousa desafiar as regras estabelecidas pelos grandes comerciantes do filme. Não penseis que estou a defender a minha própria causa. Consideremos, por exemplo, o caso de Orson Welles. Não estou de maneira alguma de acordo com ele sobre todos os pontos da sua concepção de cinema. Mas ele ousa dizer NÃO aos homens da indústria. E agora morreu para Hollywood. Sobretudo, não imagineis que sou um revolucionário, um incendiário, como escreveu um jornalista de Boston. Mas é evidente que cometi um crime. Declarei em várias ocasiões que, do meu ponto de vista, o patriotismo ignora as fronteiras. Isto é tão verdadeiro para o cinema como para a política.

Hollywood trava neste momento a sua última batalha e vai perdê-la, a menos que acabe de produzir filmes em cadeia, a menos que compreenda finalmente que as obras-primas cinematográficas não podem nascer do trabalho em série, como os tractores numa fábrica. Penso objectivamente que já é tempo de enveredar por um novo caminho e de fazer com que o dinheiro não seja mais o deus todo-poderoso de uma comunidade decadente. Deixarei provavelmente os Estados Unidos dentro em breve, embora me tenham dado tantas satisfações morais e materiais. E no país onde vá acabar os meus dias, tentarei lembrar-me de que sou um homem como os outros e que tenho direito, por conseguinte, ao mesmo respeito que os putros homens.

(Charles Spencer Chaplin in “Reynolds News”, Dezembro de 1947)