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sexta-feira, julho 18, 2025

ROSEMARY'S BABY (1968)

A SEMENTE DO DIABO
Um filme de ROMAN POLANSKI




Com Mia Farrow, John Cassavetes, Ruth Gordon, Sidney Blackmer, Maurice Evans, etc.

EUA / 136 min / COR / 16X9 (1.85:1)

Estreia nos EUA a 12/6/1968
Estreia em MOÇAMBIQUE (L.M.) a 12/10/1969 (teatro Manuel Rodrigues)



Rosemary: «What have you done to him?
What have you done to his eyes, you maniacs!"
Roman: "He has his father's eyes»



Em tempo de estreia do novissimo Polanski (“The Ghost Writer” / “O Escritor Fantasma”) sabe bem regressar aos tempos áureos do realizador polaco, em que ele se encontrava no auge de uma clara felicidade na sua vida pessoal. O que não o impediu de arquitectar uma das obras mais inquietantes da sua filmografia. Tudo começa (intencionalmente) num tom cor-de-rosa de novela, em que nos são introduzidos os protagonistas do filme, um jovem casal (Guy e Rosemary Woodhouse) que, como tantos outros nessa mesma situação, procuram um apartamento para poderem iniciar o caminho a dois. Guy (John Cassavetes) é um ambicioso actor, Rosemary (Mia Farrow) uma devota católica desejosa de se tornar mãe. Instalam-se em Manhattan, no edifício Dakota (que muitos anos depois se tornaria célebre pelo assassinato de John Lennon).

A calma idílica do casal continua a ser-nos mostrada pela câmara cínica de Polanski que assim vai acentuando o contraste para tudo quanto mais tarde nos irá confirmar os pressentimentos mais terríveis. E esta transição, lenta e quase imperceptível, é a “chave” que faz com que a história de “Rosemary’s Baby” funcione e o desenrolar do filme vá aumentado a angústia do espectador. Sómente através de pequenos e subtis passos é que Rosemary (e nós, através dela) começa a suspeitar que algo está errado à sua volta. São os vizinhos, os Castevet, que por detrás da sua aparente amabilidade vão denunciando uma impertinência crescente. É a morte de uma inquilina e mais tarde de um amigo do casal em condições misteriosas. É a cegueira súbita sofrida por um colega de Guy que permite a este alcançar um papel há muito desejado. São os seus próprios pesadelos que se lhe apresentam cada vez mais reais. É a afamada reputação do local, onde se teria em tempos praticado magia negra.

Mas Rosemary vai afastando todos os maus presságios, tal o desejo de ser mãe pela primeira vez; e finalmente recebe a boa nova – vai ter um filho. No entanto a espiral de acontecimentos estranhos continuam, e Rosemary vai descobrindo que a “teoria da conspiração” não pertence afinal ao seu imaginário, sendo pelo contrário bem real. Acaba por fim de dar à luz mas dizem-lhe que houve complicações e o bébé morreu, não lhe permitindo sequer vê-lo. Mantêm-na sob o efeito de tranquilizantes mas Rosemary sabe que estão todos a mentir, até porque ela consegue ouvir um choro infantil através das paredes. Finalmente consegue reunir as forças necessárias e descobrir a passagem secreta para o local onde se encontra o seu bébé. Depois é o horror da descoberta (-“o que fizeram aos seus olhos?” - “tem os olhos do pai”, respondem-lhe) e progressivamente a aceitação da inevitabilidade de se ter tornado mãe, nem que seja a mãe do filho de Satanás.

O grande achado do final desta ghost story é de nunca o bebé nos ser mostrado. Presume-se a sua monstruosidade, mas deixa-se o close-up à imaginação do espectador. Técnica de sugestão clássica, aplicada aqui por um virtuoso, e com bons resultados, visto muito gente ter falado no aspecto terrível do bébé. Existe apenas uma breve imagem dos olhos mas essa imagem pertence ao pesadelo que Rosemary teve antes de engravidar. Este drama psicológico, de um horror subtil mas terrivelmente eficaz, é servido por um excelente grupo de actores onde naturalmente se destaca Mia Farrow que tem aqui o papel de uma carreira.

“Pessoalmente não acredito nas sociedades secretas - declarou Polanski na altura - o que me interessa é dar aparências passíveis de se poder acreditar nelas”. Não seria isto brincar com o fogo? Um ano depois, a sua própria mulher, a actriz Sharon Tate, com quem se casaria após a rodagem do filme, era vítima de uma seita satânica liderada por Charles Manson. A realidade tinha largamente ultrapassado em horror a ficção.

"Rosemary’s Baby" foi um enorme êxito logo na estreia, com filas de bilheteira que se estendiam por quarteirões inteiros. Êxito que se prolongou no ano seguinte devido aos trágicos acontecimentos em que Polanski se viu envolvido. Hoje, à distância de mais de meio século, tem-se a noção clara de que “Rosemary’s Baby” foi um filme à frente do seu tempo já que anunciou a psicose de feitiçaria que iria submergir a América nos anos seguintes, além de se ter tornado a primeira referência para filmes do género. E Polanski só dez anos depois nos conseguiria dar outro filme tão ou mais inquietante do que este – “Le Locataire” / “O Inquilino”.

CURIOSIDADES:

- O edifíco Dakota foi rebaptizado de "The Bramford" para o filme.

- Foi durante a rodagem que Mia Farrow recebeu os papéis de divórcio enviados por Frank Sinatra, com quem se casara apenas dois anos antes.

- É a própria Mia Farrow que entoa a canção de embalar ouvida no início e no fim do filme.

- Antes de Mia Farrow uma grande quantidade de actrizes famosas chegou a ser equacionada para o papel de Rosemary: Tuesday Weld, Jane Fonda, Julie Christie, Elizabeth Hatman, até em Sharon Tate, a sua futura mulher, Polanski chegou a pensar. O mesmo se passou com a escolha do papel de Guy: Robert Redford, Richard Chamberlain, Jack Nicholson, James Fox.

- Quando Mia Farrow fala ao telefone com o colega de Guy é a voz de Tony Curtis que se ouve do outro lado.



sexta-feira, junho 13, 2025

REPULSION (1965)

REPULSA
Um Filme de ROMAN POLANSKI


Com Catherine Deneuve, Ian Hendry, John Fraser, Yvonne Furneaux, Patrick Wymark, Renee Houston, etc.

GB / 105 m / P&B / 
16X9 (1.66:1)

Estreia em FRANÇA: Festival de Cannes, Maio de 1965
Estreia nos EUA: 2/10/1965


  
"A Haunting concept of the pain and pathos of the mentally deranged"
(New York Times Review)
"A wicked tale of madness and female paranoia"
(San Francisco Chronicle)


Embora o cinema de Polanski remeta a Buñuel e a Hitchcock (de quem ele sempre foi grande admirador) como protótipos estéticos, não é fácil encontrar na sua trajectória uma poética contínua e precisa. Mais que de uma linha permanente, talvez devesse falar-se no seu caso de películas isoladas, mesmo que, logicamente, se verifiquem sempre algumas constantes em todas elas. Depois de filmar na Polónia, sua terra natal, uma dezena de curtas-metragens e o primeiro filme de fundo, "A Faca na Água" (1962), Polanski vai para Inglaterra rodar este "Repulsion", que o tirará do anonimato aos 32 anos, lançando-o numa carreira notável que perdura até aos nossos dias. Muitos anos depois "Repulsion" será considerada a primeira parte de uma trilogia conhecida pela exploração de apartamentos como cenário privilegiado de histórias de terror psicológico. Os outros dois filmes serão "Rosemary's Baby" (1968) e "Le Locataire" (1976).


"Repulsion", que nos faz penetrar nas frustações de uma jovem reprimida, a manicura Carol Ledoux, uma belga a trabalhar num salão de beleza londrino (um dos papeis mais emblemáticos de Catherine Deneuve, então uma jovem actriz de 22 anos), alia à análise psicológica um factor onírico com elementos fantásticos (ficou para sempre nos meus piores pesadelos aquele assombroso travelling pelo corredor onde mãos ameaçadoras saem das paredes), que revelam os abismos da consciência da doce e virginal Carol. Mais que a potencialidade criminosa da psicopata em que ela se vai tornando, o que nos surpreende é, por um lado, a desproporção entre a sua aparência inofensiva e a brutalidade irracional dos seus crimes e, por outro lado, o que qualquer alteração psíquica encerra de inexplicável e inapreensível, de desafio e de repto lançado à razão e à sociedade que se diz normal. Roman Polanski faz-nos participar aqui de uma viagem rumo à loucura, onde pontificam os terrores sexuais pelos quais a mente e o inocente corpo de Carol se vão deixando envolver, como oposição e repúdio ao sexo masculino. Nesse sentido, a câmara de filmar transforma-se num intruso fálico, que sobre ela se debruça contínua e obsessivamente, captando-lhe os tiques ou os olhares mais nervosos.




Perante um filme como "Repulsion" não deixa de ser razoável levantar uma questão: até que ponto esta obra de Roman Polanski é um puro divertimento ou é a visão lúcida de uma sociedade demente na qual não há lugar para a esperança? Se analisarmos a estrutura realista de "Repulsion", verificamos que ela é admiravelmente exemplificada com a descrição do instituto de beleza e do bar, sem esquecer a veracidade dos exteriores filmados em South Kensington. Mas que dizer do astucioso jogo de alucinações em que se encontra envolvida a personagem esquizofrénica magistralmente interpretada por Catherine Deneuve? Polanski afirmou que dirigiu este filme por prazer, com a intenção de dar um soco no estômago do espectador (e também para angariar o dinheiro necessário à rodagem de "Cul-de-Sac", o projecto que na altura queria realmente filmar). Pela minha parte, penso que se trata de um exercício de estilo perfeito, realizado com o máximo de autenticidade. Qualquer coisa que nos faz lembrar os filmes experimentais produzidos na Escola de Lodz.


De resto, o próprio realizador considerou o filme como uma obra honesta ao declarar que situara a heroína em situações pouco vulgares mas pretendendo representar o universo onde ela evolui com o máximo de realismo e verosimilhança. Não há dúvida que Polanski conhece bem o seu ofício, que domina cada cena com mão de mestre. Filmou o tema como o sentiu e mostra até onde se pode ir na expressão realista numa zona limite do sobrenatural. De qualquer maneira, não se pode deixar de apontar uma certa ambiguidade na encenação de "Repulsion". Esta ambiguidade está latente numa determinada óptica surrealista de que os cineastas polacos interessados no cinema experimental nunca conseguem eliminar totalmente - o que se pode ver na obra de Jan Lenica ou Walerian Borowczyk. Sabe-se que a condição de cineasta em qualquer país ocidental - e não acontecerá o mesmo nos países socialistas? - depende, em larga medida, de variadas circunstâncias que, frequentemente, impedem a concretização de projectos acalentados pelos autores, sendo difícil conciliar o gosto do realizador com as imposições dos produtores.



«Para exprimir o universo de Carol», explicou Polanski, «recorri a todas as espécies de lugares comuns que explorei até ao fim. Pegar num tema muito cinematográfico (eu amo apaixonadamente o cinema e, especialmente, o seu aspecto mitológico mas pegar também num assunto ingrato e dele tirar qualquer coisa, conseguir, enfim, uma "proeza ", tal foi o meu objectivo.» E assim se justifica um filme muito difícil de realizar. Repare-se no facto de que muitos planos do apartamento de "Repulsion" são filmados em contra-plongée, mostrando os tectos (à maneira de Welles em "Citizen Kane"), mas de tal modo que aos poucos as dimensões reais vão sendo alteradas, expandindo os corredores ou movimentando as paredes, como que criando uma nova personagem, saída do espírito conturbado de Carol. Por outro lado, Polanski preocupa-se sempre com os objectos, a que presta uma atenção muito particular, quase obsessiva: o progressivo apodrecimento do coelho, as batatas que desenvolvem raízes ou as rachas nas paredes, por exemplo. Esta é no fundo uma das caracteristicas do cinema de Polanski, um autor que sabe criar, como poucos, uma atmosfera realista a partir de elementos surrealistas. "Repulsion" é uma assombrosa e perturbante incursão na esquizofrenia, que ficará para sempre como uma das obras mais inquietantes do famoso cineasta.


O fotógrafo inglês Gilbert Taylor, falecido em Agosto de 2013 com 99 anos, foi um mestre da arte de fotografar no cinema. Nascido em 1914, começou muito cedo a trabalhar, com apenas 15 anos. Em "Dr. Strangelove" (1963), de Stanley Kubrick e "A Hard Day's Night" (1964, o primeiro filme dos Beatles), de Richard Lester, Taylor explorou o potencial do preto e branco com tal força e imaginação que o tornou num dos mais solicitados directores de fotografia. Fascinado pelo seu lado experimentalista, Polanski contratou-o logo de seguida para "Repulsion", onde o forçou, apesar da sua relutância, a usar lentes panorâmicas para filmar os close-ups de Catherine Deneuve. Apesar disso a colaboração entre Taylor e Polanski iria prolongar-se por mais dois filmes: "Cul-de-Sac" (1966) e "Macbeth" (1971), no qual Taylor demonstrou que também conseguia captar atmosferas mórbidas usando a cor. Em 1972 foi Alfred Hitchcock que veio solicitar os seus serviços para filmar "Frenzy". Mas, como atrás já se disse, foi a partir das imagens claustrofóbicas de "Repulsion" que Taylor se tornou um especialista em thrillers e filmes de terror. A sua filmografia, que abarca cerca de 70 títulos, inclui filmes como "The Omen" (1976), de Richard Donner, "Star Wars" (1977), de George Lucas ou "Dracula" (1979), de John Badham.

CURIOSIDADES:

- "Repulsion" foi o primeiro filme onde aparece um orgasmo feminino (apesar de apenas ouvido) que conseguiu passar na censura britânica.
- A revista Premiere votou este filme com um dos "25 filmes mais perigosos".
- Roman Polanski viria a ser distinguido com o Prémio Especial do Júri (Urso de Prata) no Festival de Berlim e obteria o 2º lugar (de parceria com David Lean por "Doctor Zhivago") nos Prémios do Círculo de Críticos de Nova Iorque (o vencedor seria John Schlesinger pelo filme "Darling"). Na categoria de interpretação feminina Catherine Deneuve obteria o 3º lugar, atrás da vencedora Julie Christie ("Darling") e Julie Andrews ("The Sound of Music"). Gilbert Taylor seria nomeado para o BAFTA inglês da melhor cinematografia a preto e branco (o vencedor seria Oswald Morris pelo filme "The Hill").






quinta-feira, setembro 24, 2015

LE LOCATAIRE (1976)

THE TENANT / O INQUILINO
Um filme de ROMAN POLANSKI

Com Roman Polanski, Isabelle Adjani, Melvyn Douglas, Shelley Winters, Jo Van Fleet, Lila Kedrova, Claude Piéplu, Rufus

FRANÇA / 126 min / COR / 
16X9 (1.66:1)

Estreia em FRANÇA em Maio de 1976 (Festival de Cannes)
Estreia em PORTUGAL em Novembro de 1976 
(Lisboa, Cinema Mundial)



Trelkovsky: «If you cut off my head, what would I say...
Me and my head, or me and my body?
What right has my head to call itself me?»

“Le Locataire” encerra uma trilogia de Roman Polanski em que o terror psicológico encontra as suas raízes no espaço claustrofóbico de um apartamento. Tal como em “Repulsion” (1965) e em “Rosemary’s Baby” (1968), assiste-se aqui à lenta descida aos infernos de um personagem que se vai desligando da realidade entre quatro paredes. Quer seja em Londres, Nova Iorque ou Paris, o apartamento é para Polanski o berço ideal de todas as nevroses paranoicas. Baseado num romance de Roland Topor, a história adquire alguns contornos auto-biográficos atendendo a que Trelkovsky, o protagonista principal (incarnado pelo próprio Polanski, mas sem qualquer menção nos créditos) é um tímido polaco recentemente chegado a Paris, à procura de duas assoalhadas para viver.


“Le Locataire” é uma obra perfeita no aspecto formal e que consegue desenvolver dentro do espectador um sentimento de inquietação crescente até ao clímax final. Sem grandes dúvidas, estamos diante de um dos pontos mais altos da filmografia de Polanski - ou a temática não fosse uma vez mais o enclausuramento do personagem no seu trágico destino – que reúne todo o seu pensamento, as obsessões, os fantasmas, o pavor que o cinema deste cineasta deixa entrever, por entre insinuações e silêncios. O beco (designação de um seu filme de 1966) é na verdade o cenário por excelência de Polanski - o lugar sem saída para onde são lentamente empurrados os seus heróis amedrontados, tímidos e sensíveis.


Trelkovsky, empregado de escritório, consegue finalmente alugar o apartamento desejado, depois de saber que a antiga inquilina se suicidara, saltando da janela do seu quarto para o pátio das traseiras. O proprietário do imóvel, um certo senhor Zy (Melvyn Douglas), aceita alugar-lhe o apartamento mas com condições previamente definidas. Casa séria e respeitável, não são permitidas visitas femininas, não se toleram desacatos, crianças e animais domésticos é melhor não os ter, o silêncio é de ouro. O tímido Trelkovsky a tudo diz que sim, confessando tratar-se de uma pessoa pacata que a última coisa que pretende é ter conflitos com os vizinhos.


Pouco depois Trelkosky visita a suicidária no hospital, onde trava conhecimento com Stella (Isabelle Adjani), uma amiga da moribunda. Junto à cama, são ambos surpreendidos por um grito lancinante que Simone Choule (assim se chama a vítima) lança na sua direcção, sem qualquer razão aparente. Trelkovsky tenta reconfortar Stella e vão a um cinema local ver um filme de artes marciais com Bruce Lee (“Enter The Dragon), durante o qual se estabelece uma ligação sexual entre os dois. No dia seguinte, ao telefonar para o hospital, Trelkosky é informado da morte de Simone.


Aos poucos o nosso inquilino vai-se começando a familiarizar com as redondezas da nova residência. No café da frente dão-lhe conta dos hábitos de Simone e servem-lhe o leite com chocolate que ela bebia todas as manhãs naquele mesmo local, naquela mesma mesa. E quando Trelkovsky pede os seus cigarros preferidos (Gauloises) não os há, vendem-lhe Malboro, a marca que Simone fumava. A história do “Inquilino” de Polanski afasta-se do tradicional filme de terror (em que a morte é sempre o medo principal), confundindo-se antes com a história da perda progressiva de uma identidade (com a loucura no horizonte), uma transformação dramática que Franz Kafka já descrevera em “A Metamorfose”, obra que terá influenciado seguramente quer a imaginação de Roland Topor, ao escrever “Le Locataire Chimerique”, quer a mestria de Polanski ao dar-lhe vida no écran.


Acatando primeiramente as condições impostas para o apartamento, depois os cigarros e o leite com chocolate que lhe servem contra a sua vontade, e de um modo geral todas as convenções e regras estabelecidas à sua volta, Trelkovsky vai lentamente aceitando o seu destino, um destino a que o ambiente irrespirável circundante condena os mais fracos como ele. É o cerco que se aperta (como as mãos que estrangulam), a ameaça que se agiganta, os rostos que se reproduzem, a animosidade que progride, a agressão que se pressente por detrás de cada olhar desconhecido e já inimigo. Tentando libertar-se de todas as pressões, Trelkovsky vai-se isolando cada vez mais, refugiando-se por detrás do rosto, da silhueta, dos maneirismos de quem o precedeu naquele espaço fechado – e sofrendo as mesmas ameaças, envolvendo-se no mesmo pesadelo quotidiano, caminhando inexoravelmente para um fim idêntico.


“Le Locataire” corporiza essas ameaças em nós, espectadores, lembrando-nos das nossas próprias angústias ao personalizar um estado de espírito colectivo que todos sentimos, uma vez por outra, na agressividade latente que nos circunda nas nossas vidas de todos os dias. Razão de ser de grande parte das esquizofrenias de graus variados que a mesquinhês engendra no seio de uma civilização altamente egoísta e competitiva, onde o homem vacila na procura de um lugar e do horizonte claro de um destino a cumprir em plenitude.


Retratista admirável desses temores secretos que atormentam o cidadão normal, Polanski revela-se simultaneamente um cineasta de um realismo de décors e de figuras inultrapassável e um autor particularmente atento à realidade que se esconde para lá das aparências. O fantástico que se respira numa obra como “Le Locataire” é um fantástico que parte de dados absolutamente concretos. O segredo de Polanski é a forma como os manipula, como os interliga uns aos outros, como, em meia dúzia de planos, instala o horror e sabiamente o prolonga até à exaustão, à loucura, ao suicídio. Um suicídio que mimeticamente se imita, um suicídio que se reedita, que se reforça, que encontra forças para recomeçar tudo de novo.


Na adaptação do romance de Topor, Polanski contou com a preciosa colaboração de um seu auxiliar de sempre, Gérard Brach (falecido em 2006, com 79 anos). Ambos reconstruiram o pesadelo da história com a voluptuosidade mórbida de um fabulista requintado. Na cinematografia um mestre, Sven Nykvist (também falecido em 2006, com 83 anos), que neste filme usou pela primeira vez uma câmara dirigida à distância (a Louma IV), que permite filmar em espaços muito reduzidos. Philippe Sarde assinou a partitura musical (além de protagonizar um pequeno cameo – é o homem que se senta atrás de Trelkovsky e Stella no cinema) inovando também através da utilização de uma harmónica de vidro (instrumento de difícil execução e para o qual Mozart compôs algumas peças no seu tempo). Enfim, e não falando já no naipe de excelentes actores que povoam o filme, poder-se-á dizer que Polanski soube rodear-se de muito boas companhias para o seu “Inquilino”. O resultado é brilhante.


Com “Le Locataire” Polanski evita qualquer efeito espectacular, que aliás não se coadunaria com o aspecto kafkiano da obra. Não existem monstros, algozes ou rios de sangue, todos os clichés do género de terror se encontram ausentes. Mas em contrapartida (ou por causa disso mesmo), o cineasta dá-nos um grande filme, provavelmente um dos seus melhores de sempre (pelo menos o mais assustador), servindo-se de pequenos detalhes (os planos da casa de banho tornaram-se numa imagem de marca do filme) num ambiente onde habita o terror mais íntimo e surrealista. “Le Locataire”, ao longo dos seus anos de existência, nunca deixou de me causar o mais genuíno dos prazeres cinéfilos, independentemente das muitas vezes a que a ele já assisti. Incluindo aquele último plano de gelar o sangue, responsável por tantos pesadelos, mesmo entre os menos sugestionáveis dos espectadores.













LOBBY CARDS:


NOTA: Vale a pena dar uma olhada no texto que o Sérgio Vaz escreveu sobre este filme no seu blogue, "50 Anos de Filmes"

quinta-feira, novembro 21, 2013

ENTREVISTA COM ROMAN POLANSKI A PROPÓSITO DE "VENUS IN FUR"


O cineasta polaco não temeu passar para cinema e para francês uma peça da off-Broadway (de David Ives) com apenas duas personagens refugiadas num teatro vazio. Thomas (Mathieu Amalric) é o encenador que procura em vão uma actriz para o papel de Vanda, a “Vénus das Peles” da novela de Leopold Von Sacher-Masoch (de quem o termo masoquismo deriva). Até que lhe aparece no casting, tarde e a más horas, uma Vanda “real” (Emmanuelle Seigner). Parisiense dos subúrbios que entra em cena a mascar pastilha eçástica. Vanda parece não dar uma para a caixa dos requintes que o erotismo exige. Acontece que dá, e até transvasa. No ano do seu 80º aniversário, falámos com Polanski, em Maio passado, no termo do Festival de Cannes, a propósito do filme de alcova em que o cineasta voltou a dirigir a sua mulher.


- “Vénus de Vison” adapta uma peça confinada a um décor único. Passa-se tudo em cima de um palco. Gostava que me falasse da dificuldade de fazer um filme neste espaço tão cerrado.
- A abordagem à peça foi tão instintiva, tão pouco cerebral, que eu não tenho uma explicação óbvia para lhe oferecer. Gosto da peça, simplesmente. Impressionou-me, trespassou-me o coração, do mesmo modo que houve filmes que me impressionaram quando eu era jovem: o “Hamlet”, do Laurence Olivier, ou o “Twelve Angry Men”, do Sidney Lumet, nos anos 50. Nessa altura, eu já tinha estudado Belas Artes e começava a dar os meus primeiros passos no cinema. Andava particularmente obcecado pela pintura flamenga e pela construcção de interiores de alguns quadros de Van Eyck, sobretudo “O Casal Arnolfini”, com aquele par que tem atrás de si um espelho holandês redondo que reflecte a sua imagem, bem como a do pintor no seu trabalho. Em miúdo, estas eram as atmosferas que eu preferia. Espaços em que eu sentia que “estava lá”. Creio que “Venus in Fur” vem subterraneamente desses quadros. Mas há outro motivo: fazer um filme com duas pessoas, num espaço fechado, é um risco incrível – e só quem tentou fazê-lo o sabe. Eu tinha medo de aborrecer o público. E perguntava-me: «gostará das interpretações? Antecipará os passos das personagens?» Não, não é nada fácil.


- Mas a “jóia” do filme, digamos assim, o seu segredo, é a palavra, concorda?
- Concordo. É um óptimo texto. Li-o aqui em Cannes, exactamente há um ano. Estive cá em 2012 para apresentar uma cópia restaurada de “Tess”. Foi o meu agente, Jeff Berg, que me pôs o manuscrito nas mãos numa certa tarde, dizendo-me: «Aqui está a sua taça de chá.» Sem grande coisa que fazer, comecei a ler as primeiras páginas, não resisti à sua ironia, ao sarcasmo, ao seu lado feminista e desatei a rir sozinho no meu quarto. E um ano depois aqui estou, com o filme pronto, na competição.

- A peça é influenciada por “A Vénus das Peles”, o mais célebre livro de Sacher-Masoch, e o filme, por sua vez, adapta a peça, tanto quanto sei com alguma liberdade. O que me pode dizer desta fase do trabalho?
- Tenho de confessar isto: com a passagem dos anos, tornei-me tremendamente preguiçoso com a escrita. Já não tenho a disciplina que tinha. Agora, acho um horror ter de escrever um argumento sozinho. Já não tenho paciência. Colaborei na adaptação com o autor da peça, David Ives. O meu trabalho limitou-se a cortar a maioria dos diálogos e também modificámos certas cenas.

- É um bom leitor?
- Ai, não, sou um leitor lento, sempre fui. Nasci na Polónia em 1933, sou um filho da II Guerra Mundial, só fui para a escola aos 12 anos. E era o pior aluno, o último dos últimos, lutei muito tempo contra esse estigma. Safava-me no desenho. Foi por saber desenhar que me aceitaram em Belas Artes. E tudo o que eu gostava estava nas Belas Artes. Já com os livros… Quando eu vivia em Los Angeles, nos anos 60, matriculei-me nos cursos de leitura rápida da professora Evelyn Wood, que então estava na moda. Ela tinha um método de ensino especial e, de repente, aprendi a ler depressa. Lembro-me de ter lido “O Triunfo dos Porcos” em vinte minutos! E ainda me lembro do livro!


- A peça não se passa num teatro, pois não?
- Não, passa-se tudo numa sala de ensaios, fria e impessoal. Lembrei-me depois que, em França – e sabendo de antemão que este filme seria francês e em francês -, as audições são frequentemente feitas em palco. Foi isto que me fez transpor a acção da peça para uma sala de teatro. Tudo mudou então: os actores beneficiaram com o palco, e os bastidores da sala permitiram-nos colocar a câmara em locais em que não havíamos pensado.

- É engraçado ter falado de feminismo: “Vénus de Vison” é mais um filme seu de confronto entre homens e mulheres, e mais um em que nós, homens, não ganhamos…
- Ah,ah! E não é assim na vida? Uma vez mais: não estou consciente disso, mas você é bem capaz de ter razão. Talvez venha do facto de eu gostar de homens perturbados. E de gostar tanto de mulheres. Ou do facto de ter sempre vivido com mulheres fortes e de continuar a viver com uma assim. Quando li a peça, vi que havia aqui um belo papel para a minha mulher, a Emmanuelle Seigner. E já há muito tempo que eu tinha vontade de voltar a trabalhar com ela. Mas deixe-me falar de sexismo: em “Venus in Fur”, há uma enorme ironia sobre esse tema, ao ponto deste se tornar apenas um subplot, bastante risível, de resto. Ao pensar nisso, é óbvio que não pude deixar de pensar na recente polémica da minha vida privada, da qual não gosto nem vou falar. Há outra coisa que é preciso referir: a peça de David Ives permitia-me fazer um regresso às origens em termos de produção de cinema, ou seja, trabalhar num filme de baixo orçamento, com amigos, e em plena liberdade, sem passar cartão à vontade dos estúdios e às estúpidas mensagens dos produtores. Como é que lhes chamam agora? E-mails…


- Agora parece estar a falar como o Woody Allen…
- Porque o Woody Allen ou alguém neste métier sofre com o mesmo. A indústria de cinema nos dias que correm é uma coisa patética. Outra coisa de que eu gosto neste filme é que ele não está de todo relacionado com a indústria e com o que se vê hoje nos ecrãs. Estou farto destas “coisas” cheias de crueldade e de ruído, com gargantas cortadas e carros a explodir. Tudo coisas, deixe-me dizer-lhe, que me excitavam muito quando eu era um jovem cineasta. Acreditava que dali se podiam extrair emoções. Mas, com os diabos, agora não são as emoções que contam. Só a mercadoria.

- Continua a ir ao cinema?
- Muito, muito. Ainda guardo essa paixão pura de ir ao cinema e de ver o que se faz. Vou muito com a Emmanuelle. A maioria dos filmes que vejo já estão sumarizados nos seus trailers. Tudo o que eles têm para dar está concentrado nesse minuto e meio! Mas eu quero ver pessoas no ecrã, quero ouvi-las, quero rir-me com elas.


- Voltando às mulheres fortes e, segundo as suas palavras, à Emmanuelle: é difícil dirigi-la, sendo ela a sua mulher? Na rodagem, Emmanuelle é apenas a actriz, ou mais do que isso?
- Ela faz o trabalho. O profissionalismo vem dela. Sabe o texto de cor, pega nele a partir de qualquer ponto. Quando ela era mais novinha, no filme que eu fiz com ela e o Harrison Ford, agora esqueci-me do nome… “Frantic”, isso… a Emmanuelle era tramada nessa altura. Reagia, barafustava, fartava-se de fazer perguntas. Às vezes, chateava-me com ela. Enfim, era uma miúda, tinha 21 anos. Fez depois tantos filmes, tantas peças de teatro que acabou por se tornar actriz profissional. Enfim, isto sou eu a falar da minha mulher…

- Na sua opinião, quais são as melhores qualidades de Emmanuelle para este papel?
- O seu aspecto físico. E o que sai dele. A Emmanuelle consegue passar instantaneamente de uma emoção a outra. Eu tive algum receio: tinha a certeza de que ela ia dar-se bem com a Vanda mundana, mas receava a Vanda requintada que vem no livro. Tal não aconteceu: ela muda de atitude e de postura com a maior naturalidade.

- Para si, quem é a Vanda?
- É uma mulher que sabe o que quer. Este filme é a história de um homem enrolado por uma mulher com a facilidade com que se enrola um charro. Eu queria fazer um filme para mulheres. E ter uma que diz as coisas certas, numa linguagem divertida, sem banalidades.


- O actor Mathieu Almaric, que é também realizador, foi a sua primeira escolha para o protagonista?
- Ah sim, foi. E que actor fantástico ele é! Um grande actor e uma pessoa perfeitamente normal, que é coisa rara. Mathieu está familiarizado com o palco, é também encenador, é inteligente e tem a idade certa para o papel. Desfrutámos cada momento.

- A personagem de Thomas (Amaric) impressiona também pelo modo como se parece consigo fisicamente, isto é: aquele corte de cabelo “é o seu”. Através dele, recordamo-nos de papéis que você interpretou nalguns filmes seus como “The Fearless Vampire Killers”, ou “Le Locataire”. Foi de propósito?
- Mas nem por sombras! É provável que ele tenha pensado nisso, mas não foi por vontade minha. Aliás, eu só me dei conta dessa semelhança após a rodagem. Mas há uma coisa engraçada nisto: eu conheci o Mathieu graças ao filme “Munique”. Foi o Steven Spielberg que nos apresentou. E nesse primeiro encontro, o Mathieu disse-me logo que, ao longo da sua vida, muita gente lhe disse que ele se parecia comigo. Por falar noutros filmes, é engraçado: há muito tempo que eu acho que ando a fazer o mesmo. Para aí desde o “Cul de Sac”, e não tenho qualquer problema em assumi-lo. Isto deve dar um bom assunto de discussão no divã do psicanalista. Mas eu nunca fiz psicanálise.


- Acho que está a ser demasiado severo consigo próprio…
- Mas não, olhe que os filmes são o argumento, os actores, o director de fotografia, os técnicos… Eu sinto-me apenas o canalizador. Estou lá só para abrir a torneira.

- Acha que há algo sado-masoquista na relação entre um realizador e um actor?
- Acho que há sempre alguma coisa, sim. Este filme diverte-se com essa ideia e acho que foi por causa dessa relação que eu adaptei a peça.

- Trabalha desde há muito tempo na Europa, começou na Polónia comunista, esteve em Inglaterra, mas também viveu e fez filmes nos EUA antes de voltar para o lado de cá do Atlântico. Este facto oferece-lhe uma perspectiva global sobre o cinema contemporâneo. Quer comentá-lo?
- Prefiro fazer um comentário a uma nova geração de espectadores que nem sabe nem sonha o que foi fazer cinema debaixo da censura. Nem lhes interessa. É uma coisa que me magoa e com a qual lido muito mal.


- O seu filme anterior, “Carnage”, também adaptava uma peça de teatro. Essa experiência favoreceu o seu trabalho em “Vénus de Vison”?
- Claro, vai-se vivendo e aprendendo. Mas nesse filme eu tinha quatro personagens, dois casais. A palavra estava bem distribuída. Lembro-me de que, quando filmei “A Faca na Água”, a minha primeira longa-metragem, dirigi três actores e vi-me aflito. Teimoso, lembro-me de pensar: «isto foi difícil mas, um dia, ainda vai ser mais se eu fizer um filme com apenas dois actores». Foi o que aconteceu agora, tantos anos depois. “Venus in Fur” tem apenas duas personagens. Talvez ainda faça um filme só com uma, quem sabe… Ou nenhuma!

- Parece que Bertolucci pensou em realizar o último filme dele, “Eu e Tu”, em 3D, desistindo depois da ideia. Filmar em 3D já lhe passou pela cabeça?
- Já. Pensei em fazer um filme erótico em 3D em 1972 ou 1973. Trabalhei bastante nele, aliás. Fiz muitos testes de câmara, acabei por recusar e, em vez disso, filmei “What?”. E depois tornei-me inimigo do 3D. Claro que o actual 3D é diferente, mas há uma coisa que chateia à brava nestes novos filmes: são muito negros. Os óculos escuros não me convencem. Parece que a técnica não permite que se faça de outra maneira.


- Acha que alguém lhe vai dar um argumento a ler em Cannes este ano? Voltará no seguinte?
- Não sei, mas não preciso. Estou já a trabalhar noutro filme com o Robert Harris, o argumentista e autor da novela que deu origem a “The Ghost Writer”.

- Qual é o assunto desta vez?
- Uma adaptação do caso Dreyfus. O livro de Robert sairá primeiro, depois começamos a filmar. Não posso contar mais.

(Entrevista de Francisco Ferreira, publicada na revista Atual do semanário Expresso, 16/11/2013)