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domingo, agosto 17, 2025

THE FLY (1986)

A MOSCA

Um filme de DAVID CRONENBERG



Com Jeff Goldblum, Geena Davis, John Getz, Joy Boushel, Les Carlson, George Chuvalo, David Cronenberg, Carol Lazare, etc.


EUA / 94 min / COR / 16X9 (2.35:1)


Estreia nos EUA a 4/8/1986
Estreia em PORTUGAL (Lisboa) a 5/2/1987 (cinema Londres)




«I always knew I had a great insect movie in me somewhere»
(David Cronenberg)



“A Mosca” fez a sua primeira aparição nas telas (sob esta espécie, claro) em 1958, no filme de Kurt Neumann, com Vincent Price no papel do protagonista. Foi uma obra que teve assinalável êxito comercial e péssimas críticas, tanto de cinéfilos como de fans de ficção científica. O êxito comercial (e para a Fox, detentora dos direitos da história de Langelaan foi só por isso que contou) determinou duas “continuações”: “The Return of the Fly” (Edward L. Bernds, 1959) e “The Curse of the Fly” (Don Sharp, 1965). Pela quarta vez, pois, “The Fly” voltou em 1986 para nos assustar (regressaria ainda em 1989, com “The Fly II” de Chris Walas, promovido a realizador). E o susto foi, certamente, muitíssimo maior que o dos fifties ou dos sixties. Se há filme de “arrepiar os cabelos” é o que vamos ver e, nessa perspectiva, ninguém terá decepções, nem mesmo o mais impassível. 



Se as antigas “moscas” eram filmes de Série B, muito baratos (embora a versão original da primeira, já tenha sido em cinemascope numa das primeiras apostas da utilização de tal formato a um género, em 58, ainda votado a gostos e espectadores pouco exigentes), esta obra de Cronenberg foi uma produção caríssima e os efeitos especiais são assinados pela famosa equipa de Chris Walas (“Scanners”, “The Return of the Jedi”, “Raiders of the Lost Ark”, “Gremlins”, ”“The Kiss", “Naked Lunch”) que aqui efectua o seu mais assombroso trabalho. Quando o co-argumentista Charles E. Pogue propôs ao produtor Stuart Cornfield (em 1984) uma nova versão de “The Fly” («a lot more disturbing and nightmarish»), o realizador escolhido foi Mel Brooks. Com tal nome, muita gente pensou numa comédia, embora a Fox se apressasse a dizer que não e recordasse “The horror side of Mel” associado já (como produtor) a um filme tão importante como “The Elephant Man” de David Lynch. 



Mel Brooks veio a afastar-se do filme e entrou David Cronenberg, a princípio relutante. Mas quando lhe foi dada a possibilidade de retrabalhar o script (e mesmo de o re-escrever), o autor de “The Brood” ou de “The Dead Zone”, apaixonou-se pelo tema. E foi sobretudo devido à sua capital colaboração (quer ao nível do argumento, quer ao nível da realização) que “The Fly” é muito mais do que um horror movie para se transformar, como nos seus mais conseguidos filmes anteriores ou posteriores, num filme em que o “horror” é mesmo horrível e não um compromisso entre os efeitos ou com os efeitos. Mais uma vez, com Cronenberg, passamos para o lado de lá: o lado do medo.



Numa das melhores sequências deste filme, essa palavra (medo) surge expressamente e dum modo que permite (muito habilmente) potencializar a passagem da publicidade à da alucinação. É quando Brundle tenta convencer a prostituta a entrar para o telépodo. Esta diz-lhe que tem medo (de modo convencional e em contexto banal) e Brundle responde-lhe no mesmo nível, que o não tenha («don’t be afraid»). Há um corte súbito e um fulgurante raccord com um contra-campo de Veronica (presença totalmente inesperada naquele momento e naquela situação, tanto para os outros personagens como para nós espectadores). E esta faz raccord verbal e sonoro, também, com a última frase de Brundle para dizer (e tudo passa a outro nível): «Be Afraid. Be very afraid». A frase veio em todos os cartazes publicitários, a sequência, a montagem, o plano, inscrevem-se noutro nível de mistério e de medo, o que, desde aí, não mais deixa de povoar o filme e de ultrapassar, em muito, a dimensão de guignol ou de “parada de horrores” (mesmo quando julgamos estar nela - como na sequência do primeiro aborto - descobrimos que nela não estamos e que esse horror “mais fácil” não era real, mas onírico). 



A propósito da primeira versão de “The Fly” escrevi, em tempos, que nesse filme se insinuava já uma dimensão kafkiana e recordei o famoso conto de Kafka do «homem que naquele dia acordou transformado num monstruoso insecto», sublinhando as associações (analistas) desse “fantasma” ao da castração (Freud ocupou-se largamente dele) e do horror aos insectos como expressão do pavor do incesto maternal e de horror aos órgãos genitais femininos. Cronenberg - e nisso reside a grandeza deste filme - soube (apesar das aparências e efeitos ou por causa das aparências e efeitos e já me explico) entrar nesses perigosos domínios (ou nesses terríveis domínios) com enorme contenção e sentido de elipse, tornando o que se passa “entre” ou “sob” muito mais importante do que o que nos enche os olhos e introduzir, por aí, essa tal dimensão alucinante. O espaço não me dá para mais do que três ou quatro exemplos e deixo-os a reflectir neles, sem que passe o medo que o filme provoca (e não o deixem passar).



O primeiro tem que ver com a erotização, já evidente na versão de Neumann. Por um lado, pela escolha duma relação triangular como base do filme (sua capital modificação do argumento inicial); por outro, pelo papel conferido ao personagem feminino, Verónica chamada. A relação triangular progride, de modo insólito, neste filme. Da primeira vez que vemos Borans e Verónica juntos, não suspeitamos que exista entre eles outra relação, que não seja meramente profissional, entre “empregada” e “patrão”. Verónica vai comer cheese-burgers com Brundle (já volto a isso, que é capital) e a relação entre estes, nessa sequência e nas seguintes, começa a ser visivelmente mais qualquer coisa. Regressa a casa (que, pela primeira e única vez, vemos) e já há um casal. Nessa altura, a banda sonora informa-nos e informa-a que alguém mais está ali. O espectador que sabe que está num filme de terror, prepara-se para o primeiro susto. A câmara parece prepará-lo, com o lento movimento no corredor obscurecido a acompanhá-la até à casa de banho. Quem lá está, banalmente, a tomar um duche é Borans, que só então sabemos ser o ex-amante dela. Banalmente? Sim e não. Porque está ali contra a vontade dela, contra o novo amor dela (Brundle) e para coisas que ela já não quer fazer com ele. O móbil era sexual, mas o sexo existe em elipse e nem sequer a nudez de Borans nos é mostrada.



A seguir, e durante muito tempo, Borans‚ ora um empecilho, ora um “porco” (como ela expressamente lhe chama) ora um voyeur (fica uma noite inteira a espiá-la) ora um antigo namorado excessivamente ciumento (sequência do Centro Comercial). Borans passa a parecer um personagem a mais. Mas é por causa dele que Verónica deixa Brundle sozinho na noite capital (e se recusa a contar-lhe a verdade) e é por causa dele (dos ciúmes dele) que Brundle, sozinho, se decide à experiência da auto-transmutação. Muito mais tarde, é a Borans que Verónica recorre, e o “porco”, o “homem que só pensava em sexo” transforma-se no elemento salvador, no anjo da guarda. E acaba com o corpo mutilado, metaforicamente castrado pelo “insecto” sem conseguir sequer segurar a espingarda para o matar. É Verónica - a mulher, a mãe - que acaba por ter que agarrar a espingarda e matar. 



Mas os tais pavores e horrores de que falava Freud são-nos docemente servidos. É Verónica quem toma (com Brundle) a iniciativa sexual e é ela quem lhe faz a conversa da carne (a associar com os bifes e os cheese burgers). Literalmente diz a Brundle que lhe apetece comê-lo, “como as velhinhas dizem que apetece comer bebés”. Tal fome passa-lhe quando o apetite de Brundle começa a ser excessivo e quando este a quer penetrar não na carne, mas no plasma. Daí para diante e à medida que todos os elementos carnais apodrecem e se volvem em vómito, em detrito (do apetecido corpo de Brundle, ao apetecido queijo, ao apetecido bife), Verónica fica ligada ao homem apenas pelo amor maternal (se quiserem, amor protector). À “coisa”, o que a liga é um amor que tem que se afirmar sobre (mas com) a repugnância física. E deixo aos analistas o estudo do sonho dela (a forma do imaginário bebé) ou do “resto de carne” que ela mata no final ou que ela castra no final. E é precisamente porque isso é tão decisivo, que todas as cenas de cama são elididas ou cortadas e que nenhuma nudez é mostrada neste filme. Os corpos belos existem em off, numa insinuação que tem a sua máxima expressão na portentosa sequência (quanto a mim, a melhor do filme) inteiramente muda, em que Verónica vê os exercícios físicos de Brundle no início da metamorfose. É o excesso do corpo o que primeiro a apavora, muito antes de se apavorar e todos nos apavorarmos com o excesso de ausência do corpo. 



Tinha prometido dois ou três apontamentos e já vou em muito mais. Mas não resisto, ainda, a chamar-lhes a atenção (quando já tiver passado o estado de choque) para a casa de Brundle. Vagamente assustada com o aspecto sinistro da rua, na primeira vez que lá vai, Verónica reage àquele “exterior”. Brundle responde-lhe que é mais limpo e mais claro “lá dentro”. O resto do filme se encarregará de nos esclarecer e de nos obscurecer. E se a carga erótica deste filme é tão grande (como em todos os grandes filmes de medo), a carga de ludus não é menor. Desde os efeitos especiais (especialíssimos) aos diálogos e às muitas citações cinéfilas. Destas últimas, uma das mais belas reenvia-nos ao arquétipo chamado King Kong quando Brundle (second element is not Brundle) a vem raptar à clínica e a leva pelos ares, depois de, num fabuloso plano subjectivo (em imenso plongé) se ter apercebido que ela e o outro se preparavam para lhe matar o filho. 



E tudo acaba na metáfora da Santíssima Trindade, com a fusão dos três corpos num só, the ultimate folly. Quem se pode impedir de se sentir frustrado, por não ver o resultado dessa experiência? “The Fly” acaba na mais portentosa (e tenebrosa) elipse. Aparentemente, “The Fly” é um filme de excessos. Fundamentalmente, é um filme de ausências. E acabo como a publicidade e como Verónica: «Be afraid. Be very afraid». Há muitas razões disso, muito mais fundamentais e originárias do que as que os sociólogos tentaram quando vos disseram que "The Fly" era um filme dos anos SIDA. Porque é o filme de dois mil anos de pecado. (João Bénard da Costa)



CURIOSIDADES:

- Depois de assistir a alguns de seus primeiros filmes, o director Martin Scorsese pediu para conhecer David Cronenberg. Ao conhecê-lo, Scorsese disse que ele parecia um cirurgião plástico de Beverly Hills. Isso inspirou Cronenberg a fazer uma aparição no filme como médico ginecologista, até porque lhe pedira isso também, para se sentir mais à vontade durante a rodagem daquela cena.

Foram necessárias quase cinco horas para aplicar as etapas mais extensas de maquilhagem de Jeff Goldblum .

David Cronenberg encontrou alguma oposição quando anunciou que queria contratar Jeff Goldblum para o papel principal. O executivo da Fox que supervisionava o projeto achava que Goldblum não era uma estrela rentável, e Chris Walas sentiu que o seu rosto seria difícil de trabalhar para os efeitos de maquilhagem. Ambos, no entanto, cederam ao julgamento de Cronenberg. O próprio Cronenberg mais tarde teve reservas quando Goldblum sugeriu Geena Davis, sua namorada na época, para o outro papel principal, pois ele não queria ter que trabalhar com um casal da vida real. Cronenberg finalmente convenceu-se após a primeira leitura de Davis de que ela era a actriz certa para o papel. E a química entre os dois actores teve uma motivação extra para as rodagens mais íntimas.

Quanto à sua relação criativa com Cronenberg, Walas afirmou que o director «é fascinante de se trabalhar. Ele é muito inteligente, observador e compreensivo, embora também seja desafiador e prestativo. Tem uma ideia muito clara do que quer e de como vê as coisas, então a fase de design tende a ser rápida. As suas orientações também tendem a ser mais emocionais e psicológicas do que as da maioria dos directores. A maioria descreve o que quer fisicamente. Mas as indicações de David eram mais como: 'Precisa sentir mais dor, e eu quero ver confusão em seus olhos'. Eu diria que o estilo de David é muito mais completo e abrange uma abordagem de design mais ampla do que a da maioria dos directores.»

David Cronenberg afirmou frequentemente que não vê o filme como um filme de terror, mas sim como uma metáfora para o processo de envelhecimento e doenças terminais, e como o impacto desumanizador no corpo humano é para a pessoa que o vivencia e para aqueles próximos a ela.

- Chris Walas e Stephen Dupuis venceram o Óscar para o melhor make-up. Cronenberg recebeu o prémio especial do júri do Festival Fantástico de Avoriaz. A Academia Americana de Ficção Científica, Fantasia e Horror atribuíu 7 nomeações ao filme, três das quais foram mesmo ganhas Melhor Filme de Horror, melhor actor (Jeff Goldblum) e melhor make-up (Chris Walas).

sexta-feira, março 02, 2012

PEGGY SUE GOT MARRIED (1986)

PEGGY SUE CASOU-SE
Um filme de FRANCIS FORD COPPOLA


Com Kathleen Turner, Nicolas Cage, Barry Miller, Catherine Hicks, Joan Allen, Kevin J. O'Connor, Jim Carrey, Barbara Harris, Helen Hunt, Don Murray, Sofia Coppola, etc.


EUA / 103 min / COR / 16X9 (1.85:1)


Estreia nos EUA a 5/10/1986
(New York Film Festival)
Estreia em PORTUGAL a 11/9/1986
(Lisboa, cinemas Ávila e 7ª Arte)


Evelyn Kelcher: «Peggy, you know what a penis is? Stay away from it!»

É feio e baço o mundo do início e do fim de "Peggy Sue Got Married", ou seja o mundo contemporâneo da obra (o filme foi rodado em 1985 e estreado em 1986). A festa dos 25 anos da "classe de 1960", as pessoas com 40 anos em vez de 15 (já não com a cara com que nasceram mas com a cara que mereceram), o crazy Charlie, marido ou ex-rnarido (Nicolas Cage) visto em plano subjectivo por Peggy Sue, todo de branco e saracoteante, descendo a escada que o leva ao palco, os reis e as rainhas, o bolo de velas, a falsa, falserrima alegria. Ou Beth, a filha (Helen Hunt), que vem mostrar, como nos anúncios, que tal mãe, tal filha, ao perguntar, por desgraça de cosméticos, qual é uma, qual é outra. Percebe-se, a cada rodopio da câmara, como esse mundo, aquela história e aqueles personagens são repulsivos (sem sequer serem infernais) e, embora a questão nunca seja posta, percebe-se que Peggy Sue se pergunte como foi ali parar, como tudo acabou assim e dali para a frente só pode ser pior.
Percebe-se que Peggy Sue queira morrer e que o coração lhe pare, quando para ela avança o bolo de velas. E é enquanto a protagonista está entre a morte e a vida (como em "A Matter of Life and Death de Powell e Pressburger) que "viaja no tempo", regressando aos 18 anos, a Santa Rosa natal e à época em que "era feliz e ninguém estava morto" e "a alegria de todos e a dela estava certa como uma religião qualquer". E, passada a cena da transfusão de sangue (capital e obscura), quando já se está meio-cá meio-lá, o filme muda 180 graus de tom e de estilo, a partir do plano - o mais bonito, o mais comovente - em que Peggy Sue, ainda com o vestido de alças azul que tinha mandado fazer para a festa de 1985, se imobiliza diante da casa branca - tão branca - em que nasceu e viveu até aos 18 anos.
 Há um travelling minnelliano sobre a casa e depois uma panorâmica à Kazan, que a acompanha até à porta entreaberta, devagar, devagarissimamente. Peggy Sue hesita e bate à porta. De dentro, ouve-se a voz da mãe (Barbara Harris): «Who's there?»; «Peggy ... Peggy Sue» responde, baixa e lentamente, aquela a quem não sei se devo chamar a própria, de tal modo o rosto se lhe transfigurou, enquanto a panorâmica continua para mostrar o interior da casa, subjectivamente visto em maravilha. E, sempre em off, a mãe, com o tom mais quotidiano do mundo, diz-lhe que entre e que deixou a porta aberta para ela. Não entende, nem pode entender, o abraço seguinte, quando Peggy Sue lhe diz que se tinha esquecido como ela fora tão nova e evoca o cheiro tão bom do Chanel 5. E a maravilha continua, quando ela sobe ao quarto de solteira e vê a cama, as bonecas, os jogos, os sapatos, o disco no pick-up.
 Ingmar Bergman escreveu que a génese de "Os Morangos Silvestres" (1957) estava ligada a uma estranha experiência pessoal dele, quando, um dia em que viajava de automóvel de Estocolmo para Dolamo, sentiu um «súbito e irreprimível desejo» de voltar a visitar a casa da avó, onde tanto tempo vivera em criança. Mas, quando entrou na casa, assaltou-o «um medo terrível» de reencontrar o passado intacto, de nada ter mudado. «o que é que aconteceria se, de súbito, voltássemos à infância?», interrogou-se Bergman. E pensou então fazer «um filme completamente realista, sobre alguém que abre uma porta, existente na realidade e, de repente, ao virar de um canto, se encontra noutra época da sua existência. Diante dele, o passado desfila, vivo.» Bergman nunca fez esse filme, nem "Os Morangos", em que o passado também desfila, o é. Esse filme é "Peggy Sue". Com uma capital diferença: o que para Bergman seria o máximo do horror (o medo terrível de nada ter mudado) para Coppola é o céu e não o inferno. A vida ensinou-me que as pessoas se dividem nestas duas categorias: aquelas para quem uma viagem como a de Peggy Sue seria uma experiência infernal (reencontrar o passado intacto, repetir tudo o que foi, como foi) e aquelas para quem tal seria a maravilha das maravilhas: viver com consciência, o que se viveu sem ela.
 Para mudar? Tal como, em "It's A Wonderful Life", James Stewart volta atrás como castigo do desejo de nunca ter nascido, Peggy Sue, desta vez sem intervenção de qualquer anjo, volta como resposta ao lugar-comum que diz no início: «Se eu tivesse vinte anos e soubesse o que sei hoje.» Regressada aos dezoito anos, Peggy Sue sabe (nunca perde a memória do que aconteceu depois) mas esse saber não lhe serve de nada. Repete tudo, e repete sobretudo aquilo que mais chorou no início: o seu amor e o seu casamento com Charlie. Mudam algumas coisas anedóticas e acidentais. Responde ao professor de álgebra que não estudou a matéria porque já sabe que a álgebra de nada lhe vai servir no futuro. Faz amor com o outsider poético que é Michael Fitzsimmons (Kevin J. O'Connor) de quem no princípio diz ter sido o único dos colegas (além de Charlie) com quem desejou ir para a cama e nunca foi. Mas, no essencial, não muda nada e quando o seu único confidente (o único a quem conta a sua estranhíssima história), o rapaz dos "quatro olhos", Richard Norvick (Barry Miller) lhe propõe que mude o destino e se case com ele, recusa, como teria recusado há vinte e cinco anos.
 Na noite "fatal" (a noite dos 18 anos dela, a noite em que sabe que se entregou a Charlie, engravidou e por isso teve de casar) ainda tenta fugir e ir para casa dos avós, esses avós que ainda não estavam mortos e a quem ela ainda não sobrevivia «como um fósforo frio». Mas a persistência de Charlie arranca-a de lá (arranca-a mesmo à estranhíssima cerimónia maçónica presidida por John Carradine) e, na mesma estufa e debaixo da mesma chuva, o desejo dela (e o desejo dele) é mais forte do que o conhecimento do que vai suceder. Peggy Sue Got Married. Dois verbos no passado podem mais do que qualquer substância futura. Nenhum remake altera o original. Porque eu estou a falar de um filme e no cinema estamos. E a aposta genial de Coppola foi opor o filme do passado ao filme do presente. Se sentimos tanta paz e tanta felicidade (tanta nostalgia também) no regresso aos anos 60, é porque Coppola recapitula e retoma a estética e os valores dos anos 60, como quem volta a um paraíso perdido. Em tantos, tantos momentos do filme (a compra do Cadillac pelo pai, as aulas, as canções de Buddy Holly, de Dion, de Fabian, o «She Loves You» dos Beatles, as conversas sobre sexo com os pais ou com os namorados) o que volta - mais do que qualquer realismo "cópia conforme" - é a mítica dos grandes filmes de Hollywood, dos finais dos anos 50 e dos princípios dos anos 60.
 Estamos a ver imagens de Coppola, mas estamos também a ver imagens de "Some Came Running" de Minnelli, de "Strangers When We Meet" de Quine, de "Splendor in the Grass" de Kazan, de "To Kill a Mockingbird" de Mulligan, de "Sweet Bird of Youth" de Brooks e de tantos, tantos outros. Mas estamos a vê-los, como Peggy Sue, do lado de cá e do lado de lá. Toda a viagem carnal é viagem metafísica. O que talvez só o cinema consiga dar, ao dar «que meu amor, como uma pessoa, esse tempo», como queria Álvaro de Campos no poema "Aniversário". Porque todos os tempos se confundem no tempo do cinema. E não julgo que tenha sido por acaso que Coppola situou este filme em Santa Rosa, onde mais de quarenta anos antes, Hitchcock ("Shadow of a Doubt") filmou outra história de personagens que se cruzam nos séculos e desencontram no presente um outrora a que não sabem nem podem voltar. Por mim, se uma fada me aparecesse a perguntar o que eu mais queria da varinha de condão, pedia-lhe a viagem de Peggy Sue. Ver tudo outra vez com outra nitidez. Que só então seria nítida, porque nítida e mesma, e nítida mesmo.
João Bénard da Costa

A ideia de "Peggy Sue Got Married" (a dos argumentistas) era anterior a "Back To The Future", filme rodado na mesma altura, mas as complicações de produção atrasaram o projecto; e as inevitáveis comparações - ambos os filmes tinham como pretexto o regresso de um personagem ao seu próprio passado - desfavoreceram "Peggy Sue", prejudicando a compreensão da sua especificidade e fazendo muito boa gente tomá-lo erradamente por mais um produto juvenilizante do cinema americano. Com efeito, a crítica aprontou as suas armas para a liquidação de mais um Coppola: "Peggy Sue" não tinha (nem queria ter!) a infantil graciosidade de "Back To The Future", dizia-se; Debra Winger (inicialmente prevista para o papel de Peggy Sue Bodell) teria sido muito mais indicada do que Kathleen Turner, acrescentava-se; Penny Marshall (a primeira realizadora à frente do projecto) teria acentuado o tom de comédia que Coppola deitava a perder, comentava-se.
 O que salvou o filme e o que salvou Coppola foi o New York Film Festival. Como referiu Andrew Sarris: «"Peggy Sue" teria sido arrasado se o Festival não tivesse aparecido a saudá-lo como uma obra-prima no estilo de Capra». E é em grande parte devido a essa pressão de juízo do Festival que sucede essa coisa pouco frequente na carreira de Coppola: um filme seu conseguiu alcançar o ponto de convergência da maioria da crítica (ainda assim sem a unanimidade) e o aplauso generalizado do público, garantindo-lhe o sucesso no box-office. Partindo da mesma premissa de "Back To The Future", o filme de Francis Coppola dirige-se numa direcção completamente diferente, evocando a melancolia e os dilemas do herói capriano de "It's a Wonderful Life".
Ao contrário do que acontece em "Back To The Future", em "Peggy Sue" não é a questão exterior do confronto entre o passado e o presente (ou o futuro), mas sim a questão interior da protagonista, que determina a construção dramática do filme. Não são as peripécias anedóticas que interessam Coppola, mas sim a maturação da personagem, o reconhecimento da sua identidade. De certa maneira os dois filmes complementam-se, dadas as diferentes gerações abordadas. No filme de Zemeckis temos um adolescente, Marty McFly, que vive em casa dos pais, frequenta o liceu, experimenta o seu primeiro romance, ou seja, tem toda a vida à sua frente. Aqui, pelo contrário, Peggy Sue é uma mulher madura, com filhos, em início de divórcio e já sem grandes ilusões face ao que o futuro lhe reserva. Tal como no filme de Capra, também no de Coppola a escolha do happy-end encobre a resignação e a dor que o reconhecimento da própria identidade comporta, levando "Peggy Sue" a abrir-se a uma diversidade de sentidos, muito por causa da ambiguidade da cena final.

A importância de "Peggy Sue Got Married" na filmografia de Coppola não deve ser negligenciada, pois encerra em si muito do universo do cineasta. Como é regra na trajectória dos personagens coppolianos, a protagonista move-se no sentido de uma realização utópica que transcende a banalidade do quotidiano (esse mesmo impulso anima a Nathalie de "The Rain People" ou a Frannie de "One From The Heart", só para evocarmos personagens femininos). Como em obras anteriores, aquela realização utópica, até por definição, nunca chega a ter lugar. Em vez dela, com uma evidência nunca vista nos filmes chamados à comparação, chega o reconhecimento íntimo de si mesmo. No acidentado périplo de Coppola, "Peggy Sue" é, definitivamente, a sua canção de experiência.
 Pode, portanto, dizer-se que "Peggy Sue Got Married" é a negação de uma vertente do cinema americano que, desde os anos 60, se convertera à exaltação da adolescência e à nostalgia de um mito da eterna juventude. E talvez o filme não seja a negação desse movimento, mas somente a sua necessária conclusão lógia. O que Coppola traz com "Peggy Sue " é uma nova "idade da razão", recompondo o cinema como linguagem e trama dramática, em vez de aumentar a tendência que desemboca na pose maneirista ou numa consolada iconografia mítica. E, tal como Peggy Sue Bodell, é pela experiência que o cinema de Coppola, subitamente desamparado da sua vertente mais megalómana (a que outros chamarão mais wellesiana), descobre a sua identidade e se reconcilia com a sua memória, aquela mesma com que, através dos anos 60, tanto se debatera.


CURIOSIDADES:

- Temas presentes na banda sonora: "Peggy Sue Got Married" (Buddy Holly); "Tequila" (The Champs); "Teenager In Love" (Dion & The Belmonts); "Shimmy Shimmy Ko Ko Bop" (Little Anthony & The Imperials); "I Wonder Why" (Dion & The Belmonts); "The Stroll" (The Diamonds); "Just Because" (Lloyd Price); "Just A Dream" (Jimmy Clanton); "You Can't Sit Down" (Phil Upchurch Combo); "Dance By The Light Of The Moon" (The Olympics); "You Belong To Me" (The Duprees); "Finger Poppin' Time" (Hank Ballard); "He Don't Love You" (Nicolas Cage): "America (My Country)" (Kathleen Turner)

- Debra Winger foi a primeira escolha para o papel de Peggy Sue

- Sofia Coppola, que mais tarde haveria de dirigir Kathleen Turner em "The Virgin Suicides" [1999], faz aqui de irmã mais nova dela

- Nicolas Cage quase foi despedido pelos produtores do filme devido ao sotaque da voz, que o actor adaptou da personagem Pokey da série televisiva "The Gumby Show" (1957-1968)

- Helen Hunt, que faz de filha de Charlie e Peggy Sue, é um ano mais velha do que Nicolas Cage e nove anos mais nova do que Kathleen Turner

- O poema ("When You Are Old") citado por Michael Fitzsimmons na cena da colina com Peggy Sue, pertence a William Butler Yeats (1865-1939)

segunda-feira, janeiro 23, 2012

THE SINGING DETECTIVE (1986)

O DETECTIVE CANTOR
Um filme em 6 partes de DENNIS POTTER
e JON AMIEL


Com Michael Gambon, Patrick Malahide, Janet Suzman, Joanne Whalley, Jim Carter, Janet Henfrey, Bill Paterson, Alison Steadman, Sharon D. Clarke, Ron Cook, George Rossi, etc.


AUSTRALIA - GB / 415 min /
 COR / 4X3 (1.33:1)


Estreia na GB em 16/11/1986



Philip Marlow: «Am I right, or am I right?»

Esta histórica produção da britânica BBC – uma mini-série de 6 episódios, num total de 415 minutos – é hoje considerada como uma obra-prima absoluta do século XX, o “Citizen Kane” da televisão, para usar uma expressão de Stephen King. Vi-a em directo no final dos anos 80, quando a RTP teve o bom gosto de a incluir na sua programação. Passou-se entretanto um quarto de século, mas foi coisa que nunca mais me saiu da cabeça. Tive agora oportunidade de a rever, depois de ter encomendado a respectiva caixa de DVD’s (dois com os 6 episódios e um terceiro com extras) na Amazon inglesa, e constatei que “The Singing Detective” mantém todo o seu brilho. Da autoria de Dennis Potter (1935-1994), realizada por Jon Amiel e com Michael Gambon no papel principal, a história fala-nos de um escritor de novelas policiais, Philip Marlow, que sofre de uma dolorosa e degenerativa doença de pele (“psoriatic arthropathy”). Preso a uma cama de uma enfermaria hospitalar, Marlow é um homem amargurado que já desistiu de viver. Impossibilitado de escrever, deixa-se levar pela sua fértil imaginação, fundindo memórias e traumas do passado com momentos actuais, num caleidoscópio onde o real e o ilusório constantemente se misturam.
De facto, é dentro da cabeça de Marlow que quase tudo se passa. Conforme referiu o próprio Potter, «a necessidade que Marlow sente em recriar a sua novela é apenas um exercício mental para não ficar louco.» E nessa recriação Marlow vai buscar os episódios mais traumáticos do seu passado para os exorcizar, adaptando-os à realidade do momento. No fio condutor da série podemos dividir os factos em quatro patamares distintos e sobrepostos: a infância, a intriga do livro policial (que dá o nome à série), a estadia no hospital e ainda um último patamar onde todos os outros três se misturam. Marlow usa a sua doença como uma metáfora, uma manifestação física dos seus traumas e das suas angústias. Por outro lado, a noção de culpa - um tema constante na obra de Potter - está sempre presente no seu espírito, desde o suicídio da mãe à acusação do colega de escola. Bem como a sua atitude perante o sexo, exemplarmente assumida naquele jogo de palavras que ele tem com o psiquiatra: "woman" - "fuck" - "dirt" - "death". O evoluir da história vai contudo no sentido da recuperação (física e mental) de Marlow, que no fim acabará por deixar o hospital, iniciando, quem sabe, uma etapa menos problemática da sua vida. E a última despedida será para a enfermeira Mills (lindissima Joanne Whalley), o seu “anjo da guarda”, a causa principal de todas as canções.
Depois de “Pennies From Heaven” [1978] e antes de “Lipstick on Your Collar” [1993], também imprescindíveis e também já disponíveis em DVD, “The Singing Detective” mantém-se a obra mais representativa de Potter (como escreveu Stephen Gilbert, «é o seu Hamlet, o seu Ulysses, o seu Album Branco») e aquela que mais influência teve numa nova maneira de se encarar o cinema e o espectáculo musical. E os seus descendentes não são apenas os mais óbvios, como Alain Resnais - "Smoking/No Smoking" [1993], "On Connait La Chanson" [1997] (filme que lhe é dedicado) ou "Pas Sur La Bouche" [2003] ou Jacques Demy - "Une Chambre en Ville" [1982]. A sua influência, directa ou indirecta, estende-se por vários campos artísticos, como o da música popular por exemplo (os Manic Street Preachers usaram frases da sua autoria no single "Kevin Carter" e Guy Garvey designou a sua banda de Elbow por causa de Philip Marlow ter dito em "The Singing Detective" que era a palavra mais bela de se pronunciar da língua inglesa).
Uma das características mais marcantes da obra de Potter é a música, ou melhor, a sua sábia utilização. À semelhança de "Pennies From Heaven" (onde se recorreu a canções conhecidas dos anos 30) temos também aqui uma colecção de temas, agora dos anos 40 (os anos 50 ficariam guardados para mais tarde, para a série "Lipstick On Your Collar"), introduzidos ao longo dos diversos episódios ("Skin", "Heat", "Lovely Days", "Clues", "Pitter Patter" e "Who Done It?") com grande dose de humor e sentido de oportunidade. Nas palavras de Potter, as canções que povoam as memórias de Marlow não são mais do que «hard little stones thrown at him.» Devido à sua grande importância disponibiliza-se neste blogue a banda-sonora original de "The Singing Detective".
In “Pennies From Heaven”, Dennis Potter's earlier 'play with music in six parts', the popular songs of the 1930s were used in a new, exciting but essentially simple way to counterpoint the hero's ecstatic longings and his 'real' rather squalid life. In “The Singing Detective” there are fewer songs but Potter now uses them in a much more tense, layered and ambiguous way. The film itself is perhaps well described as a psychological case-history unravelled in convoluted thriller style and set to dance music. An unsuccessful writer named Philip Marlow, wracked by a skin disease, passes awful hospital time by remembering his childhood, enacting the plot of one of his detective stories and fantasizing himself through a long trip to some degree of recovered reality and health. And the songs are there to connect, underline, comfort, distract, tickle, upset and ultimately turn stale memories into insight and true feeling. Sometimes the musical setting is wrenched or conjured out of the heat of Marlow's bedridden fever, as when a rather nasty old fellow patient 'sings' "It Might As Well Be Spring" bizarrely in the voice of the youthful Dick Haymes and then suddenly we are listening to Marlow's father performing the same thing 40 years earlier in a working men's club.
That Second World War leit-motif, "Lili Marlene", first comes from a 1945 gramophone, then like a clip from some lost and priceless Ealing film-noir, in the lips of a mysterious woman by a river and finally prompts a ghastly anecdote about Hamburg frauleins and victorious tommies. The bland period obliviousness of the Mills Brothers' "Paper Doll" also 'sung' by three sets of characters, accumulates ironies and implications well beyond the normal reach of either rubbishy old songs - or serious television drama. "Dry Bones" transforms the oppressive hospital ward into a hallucinating night club with high-kicking nurses, and bossy doctors made into chorus boys. Other songs do simpler work, comic or poignant. "Blues In The Night" almost saves the bedridden Marlow from acute sexual embarrassment with a pretty nurse, "The Very Thought Of You" becomes a mourning elegy better than a Psalm and "We'lI Meet Again" - an unpromising source for fresh associations - is triumphantly used by Potter to top off a Finale where the elaborate wrought bitter and iron of the Singing Detective's twisted shape becomes as straight, clear and whole as Vera Lynn's early voice. (Kenith Trodd)
 CURIOSIDADES:

- O título original da série era “Smoke Rings”

- Tal como Philip Marlow, a personagem central de “The Singing Detective”, também Dennis Potter sofreu daquela doença de pele ("psoriatic arthopathy") no final dos anos 50

- A cena da retirada do corpo nu da mulher do Rio Tamisa foi rodada em pleno inverno. Kay McKenzie, Alison Steadman e Janet Suzman foram as actrizes que tiveram de interpretar essa mesma cena, devido às imposições do argumento

- Michael Gambon sujeitava-se diariamente a mais de 6 horas de maquilhagem, a qual só durava duas ou três horas devido ao calor da iluminação

- As sequências do hospital foram todas rodadas num hospital de Tottenham, em Londres

- A sequência em que um doente salta para a cama de Marlow julgando tratar-se da sua mulher aconteceu na realidade a Potter durante uma das suas inúmeras estadias em hospitais