Mostrar mensagens com a etiqueta charles chaplin. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta charles chaplin. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, junho 20, 2025

MONSIEUR VERDOUX (1947)

O BARBA AZUL
Um filme de CHARLES CHAPLIN



Com Charles Chaplin, Martha Raye, Marilyn Nash, Isobel Elsom, Margaret Hoffman, Mady Correll, Ada May, Charles Evans, Barbara Slater, Robert Lewis, etc. 


EUA / 124 min / PB / 
4X3 (1.37:1)


Estreia nos EUA (Nova Iorque) a 11/4/1947 
Estreia em PORTUGAL (Lisboa) a 17/5/1948



Henri Verdoux: «Wars, conflict - it's all business. 
One murder makes a villain; millions, a hero. 
Numbers sanctify, my good fellow!»

Este é, provavelmente, o último filme que ilustra à saciedade todo o génio de Chaplin. “Luzes da Ribalta” (1952), “Um Rei em Nova Iorque” (1957) ou mesmo o derradeiro “A Condessa de Hong Kong” (1967), são todos eles grandes filmes mas não são tocados tão intensamente pela genialidade do artista, como acontece neste “Monsieur Verdoux”. Baseado numa ideia original de Orson Welles (Chaplin pagou-lhe cinco mil dólares pela cedência dos direitos, tendo de imediato concordado que o nome de Welles apareceria no genérico inicial), o filme baseia-se livremente na vida de Henri Desiré Landru, famoso barba-azul francês, na qual Chaplin viu a grande oportunidade de pegar numa tragédia e de a satirizar socialmente. Essa sátira é tremendamente eficaz porque feita através da figura de um perfeito gentleman. 


Ao contrário de Charlot (este é o filme que rompe em definitivo com a personagem que o imortalizou), monsieur Verdoux é um distinto cavalheiro, amável e encantador, que oferece a toda a gente um sorriso teatral, que se delicia com o aroma das rosas ou com as carícias de um gato vadio, enfim, um produto típico da burguesia francesa da época. O seu comportamento é sempre exemplar: no modo como frequenta o café ou viaja de comboio, como marido dedicado ou pai protector que incute no filho a nobreza dos sentimentos. Até a música (uma vez mais composta por Chaplin) vem dar uma ajuda à caracterização do personagem. Repare-se no leitmotiv que acompanha o passeio diante dos grandes cafés dos Champs Elisées: trata-se de uma música animada, falsamente alegre e, na verdade, bastante cruel. Este comentário sonoro evidencia a intenção do cineasta em denunciar a farsa pretensamente brilhante que era aquela época do final dos anos 30, sublinhando simultaneamente a proximidade da Guerra.

Mas por detrás de toda essa bonomia esconde-se um frio e metódico assassino que no entanto só mata as suas vítimas para preservar a sua família e sobretudo para garantir o bem-estar da sua mulher, uma inválida presa a uma cadeira de rodas. Aliás, esse é o motivo principal pelo qual Verdoux poupa a vida da rapariga (magnífica Marilyn Nash), escolhida por ele para servir de cobaia aos efeitos de um novo veneno. Trata-se de uma das sequências-chave do filme, em que o apurado sentido da mise-en-scène se conjuga com a excelência dos diálogos (e dos silêncios), dando-nos algo de sublime, que roça a perfeição da linguagem cinematográfica. Tudo ali funciona frame por frame, palavra por palavra, olhar por olhar; tudo está milimetricamente certo. Se a perfeição na verdade existe, então essa sequência poderá ser dela um dos exemplos mais felizes, devendo por isso ser mostrada em qualquer escola de Cinema.

Por exigências dos produtores (nas suas memórias Chaplin fará referência à minúcia absurda com que o comité de censura examinou cada uma das linhas do argumento) o cineasta teve de recorrer a variadissimas elipses na realização do filme. Fê-lo como sempre exemplarmente (“Monsieur Verdoux” é sem dúvida o filme mais cristalizado ao nível da elipse, uma técnica sempre presente no cinema de Chaplin), conseguindo que o espectador “visualizasse” até melhor o que não pôde ser mostrado. Como a chaminé a deitar um espesso fumo negro no jardim de rosas de Verdoux, desfazendo qualquer dúvida sobre o destino trágico de mais uma vítima. 

Ou como a sugestão das relações sexuais havidas com duas das mulheres - uma delas, a mal-encarada Lydia Floray (Margaret Hoffman), que virá a ser assassinada (a cena hitchcockiana do patamar da escada, com a noite a transformar-se em manhã, e a continuação lógica na cena do pequeno-almoço, em que Verdoux se dá conta da chávena e do prato que estão “a mais”) e outra, a excêntrica Annabella Bonheur (Martha Raye) que conseguirá ficar imune às várias tentativas levadas a cabo por Verdoux (a cena da dispensa da criada durante o período da tarde) – ou ainda aquela outra elipse, muito mais longa no tempo, e que nos deixará adivinhar que Verdoux assassinou a mulher e o filho para os poupar à miséria originada pela sua falência económica. Este acto, envergonhado no fundo da sua consciência, é o mais trágico acontecimento do filme, sendo o transbordar da amargura de monsieur Verdoux.

Na parte final do filme Verdoux reencontra a rapariga que poupou à morte muitos anos antes, a qual, com o eclodir da guerra na Europa, se tornou rica através do casamento com um industrial de material bélico. Conversando dentro da limousine dela, ambos falam consigo próprios: dois monólogos se sobrepõem. Um ao outro fingem dizer, então, quais os resultados da sua vida, qual o fim a que chegaram. E é esse encontro que, indirectamente, irá originar a prisão de Verdoux. Ou melhor, a sua entrega deliberada às autoridades policiais. Para “cumprir o seu destino”. Ele mesmo o diz, quando à saída do restaurante se despede da sua protegida de outrora. Depois é aquele gag genial (mais um, entre tantos) quando a polícia chega e Verdoux os acompanha na captura dele próprio.

No tribunal Chaplin põe em cheque a sociedade, obrigando-a a reagir não só aos seus actos como também à sua justificação. Como Sócrates, Verdoux é condenado por desvio moral. Esse desvio não é, porém, relativo aos crimes de morte que praticou: eles são apenas pretexto – ao filme e à condenação. É referente, sim, à consideração da moral vigente. A justificação que Verdoux apresenta, integrando em tal moral os seus actos condenáveis, não pode deixar de assustar os seus algozes. Depois das visitas na cela da morte (a cena com o padre é paradigmática do ateísmo profundo do filme: «Em que o posso ajudar, padre?») Verdoux irá morrer no cadafalso. Não por ter assassinado várias mulheres (último recurso do negócio, como a guerra é o último recurso da política), mas por ser um pequeno comerciante da morte. O número é o que separa o assassino do herói: «matam-se várias pessoas e é-se um assassino; matam-se milhões e é-se um herói. O número santifica».

Finalmente a cena final, a da caminhada para a guilhotina, Foi a primeira a ser rodada e é duma qualidade e duma subtileza tão raras, que mesmo na riquissima obra de Chaplin não encontraremos mais do que três ou quatro exemplos. Como argutamente referiu André Bazin, é a cena da “revelação” final: ao longo de todo o filme o público esteve sempre convencido que Verdoux nada tinha que ver com Charlot e afinal, pelo caminhar saltitante, visto de costas, é com ele que Verdoux se identifica. Foi a derradeira ironia de Chaplin: fazer com que o público se desse conta de que afinal Verdoux era Charlot disfarçado (encarnando, se quisermos, o seu lado “obscuro”), que era o popular vagabundo que ia a caminho de ser executado.

Monsieur Verdoux” foi o filme ideal (e necessário) para fechar o conjunto da obra maior de Chaplin. Entre o tímido e infeliz amoroso de “The Gold Rush” e este cínico Don Juan, a sociedade é completamente apanhada na dialética do mito. No espaço de tempo que medeia entre as duas obras (1925 – 1947) Chaplin escreveu o seu testamento mais importante – desde o capítulo inicial, em que a personagem de Charlot se torna inteiramente boa (não o era nas comédias antigas da Keystone) até este epílogo, em que uma nova luz é lançada sobre o universo chaplinesco, ordenando-o e carregando-o de significado.

A situação social é radicalmente oposta: Charlot, mesmo milionário, permanece um eterno mendigo; Verdoux é rico. Quando Charlot tem o azar de casar, é com pavorosas megeras, que o aterrorizam e lhe extorquem o salário até ao último centavo; Verdoux é um polígamo que engana invariavelmente as suas mulheres, domina-as, mata-as e vive do seu dinheiro. Charlot é por essência o inadaptado social; Verdoux é um superadaptado. Charlot passa a vida a ser aterrorizado pela polícia; Verdoux intruja facilmente essa mesma policia e até a aniquila. Ou seja, as relações de Charlot com a sociedade (e com as mulheres em particular - «Gosto das mulheres mas não as admiro», diz Verdoux à rapariga) mudaram todas de valor. Chaplin virou todo o seu universo do avesso: qualquer elemento presente em Charlot tem invariavelmente o seu oposto em Verdoux.

Na sociedade dos anos 40 ou na nossa sociedade deste novo século XXI existem coisas que permanecem imutáveis; e o homem continua a ser o lobo do homem. Chaplin sabia do que falava. Quando referia as perseguições, a intolerância ou o egoísmo, era de si mesmo que falava. Sabia bem o que custava criticar os podres da sociedade americana e a sua responsabilidade no conflito que ensanguentava o mundo. Acusado de comunista, interrogado e boicotado pela sinistra Comissão do senador McCarthy de triste memória, foi definitivamente expulso em 1952 do País da “liberdade”.

A estreia de “Monsieur Verdoux” nos Estados Unidos foi um flop monumental, devido em grande parte ao boicote de que foi alvo em diversas cidades americanas. Na estreia em Nova Iorque o filme é apupado; e, no dia seguinte, a conferência de imprensa é particularmente agitada, com Chaplin a incentivar os jornalistas para “continuarem com a carnificina”. Mas o mesmo não se passou na Europa, onde “Monsieur Verdoux” teve um grande sucesso, quer ao nível do público quer sobretudo ao nível da crítica . O próprio Chaplin, sem falsas modéstias, e em resposta a uma crítica contra o filme, feita pelo cineasta soviético Sergei Eisenstein, viria a declarar: «Eu disse o que devia ser dito, mais tarde entenderão o que eu quis dizer. “Monsieur Verdoux é o filme mais brilhante e inteligente da minha carreira». Afirmação que 65 anos depois não tenho qualquer dúvida em corroborar.




DECLARO GUERRA A HOLLYWOOD!
«Decidi-me a declarar guerra de uma vez para sempre a Hollywood e aos seus habitantes. Não gosto das pessoas que resmungam, acho-as cheias de suficiência e de futilidade, mas visto que já não tenho nenhuma confiança em Hollywood em geral e no cinema americano em particular, estou resolvido a dizê-lo. Sabeis qual o acolhimento dado ao meu último filme, “Monsieur Verdoux”, em certos cinemas americanos e particularmente em Nova Iorque. Sabeis que alguns inoportunos me trataram como comunista e antiamericano. Isto simplesmente porque não quero pensar como toda a gente; porque magnates de Hollywood consideram que se podem ver livres de qualquer pessoa. Mas em breve perderão as suas ilusões e tomarão consciência de certas realidades. Digo-o claramente: eu, Charles Chaplin, declaro que Hollywood agoniza. Hollywood não tem mais nada a ver com o cinema que se supõe ser uma arte: aí o trabalho consiste somente em produzir quilometros e quilometros de película.

Posso acrescentar que nesta cidade é impossível para qualquer pessoa obter sucesso cinematográfico se se recusar a identificar a sua conduta à de todos os outros, se se apresentar como um pioneiro que ousa desafiar as regras estabelecidas pelos grandes comerciantes do filme. Não penseis que estou a defender a minha própria causa. Consideremos, por exemplo, o caso de Orson Welles. Não estou de maneira alguma de acordo com ele sobre todos os pontos da sua concepção de cinema. Mas ele ousa dizer NÃO aos homens da indústria. E agora morreu para Hollywood. Sobretudo, não imagineis que sou um revolucionário, um incendiário, como escreveu um jornalista de Boston. Mas é evidente que cometi um crime. Declarei em várias ocasiões que, do meu ponto de vista, o patriotismo ignora as fronteiras. Isto é tão verdadeiro para o cinema como para a política.

Hollywood trava neste momento a sua última batalha e vai perdê-la, a menos que acabe de produzir filmes em cadeia, a menos que compreenda finalmente que as obras-primas cinematográficas não podem nascer do trabalho em série, como os tractores numa fábrica. Penso objectivamente que já é tempo de enveredar por um novo caminho e de fazer com que o dinheiro não seja mais o deus todo-poderoso de uma comunidade decadente. Deixarei provavelmente os Estados Unidos dentro em breve, embora me tenham dado tantas satisfações morais e materiais. E no país onde vá acabar os meus dias, tentarei lembrar-me de que sou um homem como os outros e que tenho direito, por conseguinte, ao mesmo respeito que os putros homens.

(Charles Spencer Chaplin in “Reynolds News”, Dezembro de 1947)



segunda-feira, agosto 17, 2015

A AMÉRICA CONTRA CHAPLIN

Nascido a 16 de Abril de 1889, em Londres, Inglaterra
Falecido a 25 de Dezembro de 1977, em Vevey, Suiça
"I remain just one thing, and one thing only, and that is a clown. 
It places me on a far higher plane than any politician"

Charles Spencer Chaplin morreu num dia de Natal. Como por força dum destino implacável, neste dia em que quase todos os homens suavizam um pouco a sua existência, desapareceu também aquele que, para os da minha geração (e outras gerações mais antigas) personificava de certa forma os nossos tempos de crianças sonhadoras. Ainda hoje me lembro daquelas sessões de filmes de 8 mm que costumavam acontecer na minha meninice, e nas quais o meu pai projectava na parede (e mais tarde num pequeno écran cuja montagem me estava invariavelmente atribuída) os últimos filmes de família recebidos em pequenas bobinas de caixa amarela, com cerca de 3 minutos cada, e que ele tinha a paciência enorme de colar uns aos outros. Mas nenhuma dessas sessões acabava sem que fossem passados alguns pequenos filmes do Charlot, a figurinha do vagabundo que entrou no meu imaginário infantil, muito antes de que me apercebesse do significado dessa arte chamada Cinema. Tal como escreveu o cineasta francês  Jean-Claude Biette pouco depois da morte de Chaplin: «antes da multiplicação das televisões, Charlot era uma das primeiras pessoas que uma criança deste século conhecia, logo a seguir aos pais».


Recebido por chefes de estado e cumprimentado por reis, Chaplin foi um dos mais geniais criadores da primeira metade do século XX. Para exprimir o seu pensamento, para dar vida à personagem que lhe permitiu alcançar a glória universal, Chaplin serviu-se do cinema, isto é, de uma forma de expressão que practicamente não existia antes dele. Pegou naquelas maquinetas, ainda rudimentares, e descobriu-lhes o verdadeiro uso, que em poucos anos levou ao mais alto grau de perfeição. O filme mudo parece ser hoje em dia, e cada vez mais, um aspecto incompleto do cinema; mas nele reside, contudo, a essência da arte cinematográfica. As invenções técnicas que lhe foram sendo trazidas ao longo dos anos fizeram, em geral, desviar esta arte do seu caminho em vez de enriquecê-la. O suporte de uma obra admirável que Chaplin construíu durante dezenas de anos desmoronou-se, deixou de existir – é, agora, uma forma caduca, que tem apenas um encanto arcaico e um valor de museu.


Mais do que a sua pessoa, é a presença dessa humilde, solitária e apaixonada figurinha de vagabundo clownesco que ficará eternamente gravada na memória do mundo. É extremamente difícil falar do que se sente parte integrante de nós próprios. Charlot simbolizava o mito, ou melhor, a sua expressão viva. Por causa da sua forma tão peculiar de encarar a vida, de fazer sobressair a injustiça, a dor e a alegria, vimo-nos obrigados a herdar pedaços desse comportamento simples e desinteressado dos oportunismos mundanos. Também nós desejamos intimamente essa visão chaplinesca do universo. E o espaço ilusório que ele representava, e que no fundo constituía o verdadeiro segredo para a conquista dos corações do mundo, continua ainda a existir, apesar de todas as transformações ocorridas nestas últimas décadas. E pessoalmente ficaria muito agradado se soubesse que a sua obra poderá ainda vir a cativar muitas outras gerações. Penso que sim, que isso irá acontecer.


Charlot só teria sido possível na América. E, no entanto, Chaplin manteve-se sempre europeu: ele é verdadeiramente inglês pelas raízes da sua arte pantomímica e pela sua experiência de criança esfomeada nas ruas da Londres vitoriana («Nesses dias longínquos, lutava contra a fome e o medo do amanhã, o medo constante do amanhã. Nenhuma prosperidade me poderá libertar desse medo. Sou como um homem que estivesse habitado por um espírito: o espírito da pobreza, o espírito da privação»). Da América, aproveitará a sua ingenuidade, a sua pureza esquemática, mas não só não se alienou à cegueira da civilização yankee como manteve a nobreza do seu coração e a acutilância da sua inteligência ligadas às lembranças da sua Europa.


Chaplin teve sérios problemas com as autoridades americanas, que não lhe perdoavam a independência e a liberdade de pensamento. Isso hoje poderá parecer um contra senso mas convém recordar que, na América, os  anos 30 e 40 não foram propriamente tempos de grandes tolerâncias. Depois de vários escândalos sentimentais em que se viu envolvido, a sua obra-prima de 1936, “Tempos Modernos”, é acolhida com frieza pela crítica que o acusa de fazer propaganda comunista. A partir daí inicia-se uma autêntica perseguição ao cineasta. Em Outubro de 1940, aquando da sua estreia em Nova Iorque, “O Grande Ditador” é uma vez mais ostracizado, desta vez também pelo público, que não se quer ver envolvido na Guerra Mundial em curso na Europa. E o hoje célebre discurso que encerra o filme é mal compreendido tanto pela esquerda, que o acha ingénuo, como pela direita, que o vê apenas como mais uma provocação “comunista”.


Em 1947 um deputado da Câmara de Representantes chega mesmo a pedir a sua expulsão dos E.U.A., ao mesmo tempo que “Monsieur Verdoux” (mais uma obra de puro génio) é proibido em vários estados, depois de ter sido apupado na estreia, em Nova Iorque. Um representante dos Antigos Combatentes Católicos acusa Chaplin de manchar a imagem da América e sucedem-se as convocações para prestar declarações ao Comité McCarthysta de Actividades Anti-americanas. Chaplin recusa comparecer, declarando à imprensa ser apenas um pacifista, mas as pressões constantes levam-no a vender as suas acções da United Artists. Dois anos depois Chaplin começa a trabalhar num novo filme, “Luzes da Ribalta”, cujas filmagens se concluem no início de 1952. Em Setembro a família embarca para Londres e, ainda durante a viagem, é-lhes comunicado que o Ministro da Justiça, James MacGranery, anunciou a abertura de uma averiguação sobre Chaplin, pelas suas “simpatias comunistas”, negando-lhe o visto de retorno para assim o impedir de voltar a pisar solo americano.


“Luzes da Ribalta” estreia-se nesse mesmo ano em Inglaterra e a Legião norte-americana proíbe a sua exibição em alguns estados. Oona O’Neill (a quarta esposa de Chaplin, filha do famoso dramaturgo Eugene O’Neill) liquida os bens do marido nos E.U.A., e renuncia ela própria à nacionalidade americana. A família fixa-se então na Suíça, numa propriedade situada em Corsier-sur-Vevey. Em 1954 Chaplin recebe o Prémio Internacional da Paz e três anos depois estreia “Um Rei em Nova Iorque” . Na América a campanha contra o cineasta não pára de crescer, chegando ao ponto do seu nome ser retirado do Passeio da Fama de Hollywood. Em Setembro de 1964 é publicada a sua auto-biografia “A História da Minha Vida” e no início de 1967 sai aquele que seria o seu derradeiro filme, “A Condessa de Hong Kong”, com Marlon Brando e Sophia Loren nos principais protagonistas. Finalmente, em 1972, a América resolve fazer as pazes com o velho cineasta e, muito diplomaticamente (ou muito cinicamente, conforme o ponto de vista), confere-lhe um Óscar Especial, ao mesmo tempo que repõe o seu nome no Passeio da Fama. Depois de vinte anos de exílio, Chaplin chega a Nova Iorque a 2 de Abril e a 16 de Abril recebe o Prémio em Hollywood. A 4 de Março de 1975 é condecorado em Londres pela Rainha Isabel II e, até ao fim da sua vida, refugia-se no seu solar na Suiça. Tinha 88 anos quando adormeceu naquela noite de Natal, para nunca mais acordar.


Recordemos o que Dinis Machado escreveu na revista Opção, nessa quadra natalícia de 1977: «Hoje, dia de Natal (que notícia mais estranha, ouvida a olhar para o pinheiro), morreu a alegria ela mesmo, a melancolia ela mesmo, a esperança ela mesmo, a geometria exacta do lirismo: morreu Charles Chaplin. Realmente, só faltava esta: morrer o Chaplin. Não era possível, realmente, descobrir notícia mais interessante, realmente, para dar no dia de Natal, do que nos virem dizer que morreu o Chaplin. O que vale, menino, é que já nada nos surpreende. Cá por mim, íntimo de Charlot até à última costela, que passei com ele as passas do Algarve, já nem ligo. O meu amogo Charlot, ninguém o mata. É o matas. Seria matar esta gargalhada que ainda houje dou, esta fraternidade de estar de pé, para estar de pé. Nisso, sou intransigente. Ninguém mata o Charlot porque eu não quero. Ninguém mata as luzes da cidade, ninguém mata as quimeras de oiro.»



FILMOGRAFIA (Longas-metragens):

1967 – A Countess from Hong Kong / A Condessa de Hong Kong
1957 – A King in New York / Um Rei em Nova Iorque
1952 – Limelight / Luzes da Ribalta
1947 – Monsieur Verdoux / O Barba-Azul
1940 – The Great Dictator / O Grande Ditador
1936 – Modern Times / Tempos Modernos
1931 – City Lights / Luzes da Cidade
1928 – The Circus / O Circo
1925 – The Gold Rush / A Quimera do Ouro
1923 – A Woman of Paris / A Opinião Pública
1921 – The Kid / O Garoto de Charlot


sábado, agosto 15, 2015

A COUNTESS FROM HONG KONG (1967)

A CONDESSA DE HONG KONG
Um filme de CHARLES CHAPLIN

Com Marlon Brando, Sophia Loren, Sydney Chaplin, Patrick Cargill, Tippi Hedren, Angela Scoular, Margaret Rutherford, etc.

GB / 120 min / COR / 
16X9 (1.85:1)

Estreia na GB: Londres, 5/1/1967
Estreia nos EUA: 15/3/1967
Estreia em PORTUGAL: Lisboa (cinema Mundial), 25/12/1968


Chaplin não inspira sómente o riso, nem unicamente a simpatia, nem tão-pouco a fria admiração intelectual. Antes de tudo, inspira-nos uma inconfessável, emocionante e incontida ternura


Simplicidade. O que há de genial nos homens geniais é precisamente a simplicidade com que se colocam diante do seu público, olhando-o de frente, para de seguida representarem o seu número sem qualquer tipo de subterfúgio. No caso particular de Chaplin, reinventando o riso, contorcendo de gargalhadas as gargantas. Fazer, como Picasso, de um pequenino pedaço de barro uma pomba que voe em direcção à liberdade, ou esborratar de ternura uma tela branca, como o sabia fazer Modigliani. Tropeçar num qualquer objecto ou debater-se furiosamente  nos lençóis de uma cama, são coisas simples que quase toda a gente consegue mostrar num écran. Diz-se mesmo que o riso é fácil. E é-o na maioria dos casos. Em Chaplin, contudo, o humor que daí se extrai é simultâneamente fácil (porque espontâneo) e complexo (na medida em que ultrapassa a mediocridade dos outros risos fáceis). Chaplin seria, creio bem, o único realizador capaz de dirigir “A Condessa de Hong Kong” e fazer dela não uma comédia vulgar, mas uma película tocada pelo génio.


Contrariando o que a grande maioria da crítica escreveu na época sobre este filme (entre outros mimos, que se tratava de uma obra esclerosada, fora do seu tempo, indo ao ponto de a considerarem o “pior” filme da carreira de Chaplin), há, na verdade, mais ternura e ferocidade em qualquer plano desta Condessa do que em muitas outras obras de esférica perfeição, onde a emoção se perde, a vida se extravia. De acordo que esta “Condessa de Hong-Kong” tem erros de escrita, falhas de raccord (ou seja, planos que se intercalam de forma defeituosa), transparências das mais evidentes possíveis (a sequência na praia, toda filmada em estúdio com fundos pintados), pedaços de outros filmes aqui introduzidos consoante a necessidade do argumento (um dos mais clamorosos é a partida do barco do Hawai), etc., e, no entanto..., poucas vezes sentimos tão próxima a presença de um artista como neste filme, que se alimenta dos processos burlescos do cinema mudo, aplicando-lhes um verniz de modernidade. Mesmo assistindo a esta obra sem previamente conhecermos o seu autor, o nome de Chaplin seria de imediato associado a memórias antigas.


A história de “A Condessa de Hong Kong” (última obra de Chaplin, realizada 10 anos depois de “Um Rei Em Nova Iorque”, numa altura em que muitos já o tinham prematuramente colocado na prateleira das velharias) é linear e simples. Ogden Mears (Marlon Brando, em mais um registo espantoso de comédia, provando, caso ainda fosse preciso, que o genial actor podia interpretar na perfeição qualquer tipo de personagem que lhe pusessem à frente), embaixador americano em viagem para Washington, onde vai tomar posse do seu lugar de plenipotenciário na Arábia Saudita, encontra, nos seus aposentos do transatlântico em que viaja, Natascha (Sophia Loren), uma condessa russa que pretende emigrar clandestinamente para os Estados Unidos. Natascha tinha conseguido fugir da Rússia depois da Revolução de 1917, indo parar a Hong-Kong, na altura uma colónia britânica. Ganha a vida num cabaret, prostituindo-se e dançando com marines, “a 50 cêntimos a dança”. Por seu lado, Ogden é casado com Martha (Tipi Hendren), e prepara-se para o divórcio quando é nomeado embaixador. O fim do casamento passa, portanto, para um plano secundário, em virtude das imposições do novo cargo. O aparecimento de Natascha nos seus aposentos (mais concretamente dentro de um guarda-roupa) apresenta-se, consequentemente, como uma ameaça latente à sua posição e à carreira futura, pelo que terá de ser rapidamente ultrapassada. Só que a urgência inicial de Ogden, quase em desespero, de resolver o problema, vai-se esbatendo com o tempo e com a convivência intempestiva entre os dois. 


“A Condessa de Hong Kong” define-se desde logo, nas suas premissas iniciais. O filme será o que ocorre dentro desses aposentos entre duas salas, duas portas, um armário, uma casa de banho e duas ou três incursões no exterior. Será nesse cenário único que Chaplin irá improvisar o seu número. Aí temos o artista num palco quase deserto fazendo sair as pombas das cartolas. Um toque de campainha será a faísca necessária às explosões que se repetem. E a cada explosão inventará Chaplin um novo gag. Mas o seu humor é inimitável. A sua prodigiosa imaginação não se limita a encenar mecânica e friamente o que quer que seja. Chaplin ama os seus personagens (na proporção inversa com que sempre tratou os seus actores), e isso nota-se em cada olhar que a câmara lhes deita. Ama-os com ternura, sem lamentos. E quando é necessário vergastar, Chaplin não é menos brutal, como nessa sequência final em que Marlon Brando e Sophia Loren dançam envolvendo-se com a dignidade que souberam conquistar, enquanto, à sua volta, meia dúzia de pares, engelhados pelas convenções, arrastam os pés e abanam, ridículos, as abas das casacas. Falando ainda de brutalidade, que dizer do casamento que se arquitecta entre o mordomo Hudson (fabuloso Patrick Cargill) e Natascha, situação que, nas suas múltiplas consequências, é a mais violenta crítica à instituição que nos lembra ter assistido?


Não, Charles Chaplin, aos 77 anos de idade, ainda não estava na prateleira das velharias (lugar que não ocuparia nunca), porque não tinha abdicado de nada do que o tinha feito famoso. Nos finais da sua carreira encontrávamos ainda o mesmo lirismo, a mesma ternura, a mesma virulência, os mesmos temas, o mesmo estilo de cinema. A sua grandeza continuava a ser a simplicidade de processos, a facilidade com que chegava ao público, contagiando-o. Fugindo a qualquer tipo de estereotipo, Chaplin teve a coragem de prosseguir o seu caminho, mantendo-se igual a si próprio. Na interpretação, e deixando de lado Marlon Brando e Sophia Loren (simplesmente impecáveis), saliente-se Patrick Cargill (um mordomo notável e inesquecível), Angela Scoular (a menina da sociedade que, «como dizia o seu pai», é uma verdadeira revelação) e Margareth Rutherford (numa excelente rábula, feita de equívocos e mal-entendidos). “A Condessa de Hong Kong”, único filme a cores de Chaplin (e também o único rodado em widescreen, formato com que o realizador embirrava, mas que lhe foi imposto pelos estúdios da Universal), continua a ser, quase meio século volvido, uma comédia inteligente, por vezes delirante, aqui e ali atravessada por laivos de génio, que urge (re)descobrir, sobretudo por parte das novas gerações que do riso não têm outra alternativa que não seja a da actual boçalidade, que sistematicamente invade os écrans das salas de cinema.


POSTERS



LOBBY-CARDS



CURIOSIDADES

- Apesar de Marlon Brando sempre ter admirado Chaplin, a relação entre ambos não foi famosa. Na sua autobiografia, Brando descreveu Chaplin como «provavelmente o homem mais sádico que conheci». Por sua vez, o realizador diria que tinha sido quase impossível trabalhar com Brando, tendo inclusivé referido a sua frustração por não ter podido contar com Cary Grant ou Rex Harrison. Também Sophia Loren teve uma má relação com Brando, sobretudo depois deste lhe ter dito que ela tinha pelos no nariz, durante a rodagem de uma cena de amor.

- Na exibição nos EUA, a extensão do filme seria encurtada em cerca de 12 minutos.


- Como era usual na grande maioria dos seus filmes, também aqui Chaplin foi o homem dos sete instrumentos: produziu, dirigiu, escreveu o argumento e toda a partitura musical, de onde sobressaía o tema principal. Gravado por Petula Clark com o título de “This Is My Song”, a canção tornar-se-ia um grande sucesso, atingindo o nº 1 de vendas nos charts britânicos.

- Chaplin teve a ideia central para este filme muitos anos antes, ainda na década de 30. Nessa altura pensava ser o veículo ideal para Paulette Goddard, com quem se encontrava casado.

PORTFOLIO