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quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

MADRID


Hoje na Sábado.

Madrid me mata

Descobri Madrid há quarenta anos, induzido pela movida de Tierno Galván, o alcaide que fez da capital de Espanha a cidade mais frenética da Europa. Toda a gente ia a Londres fazer compras, ver teatro e museus, mas quem queria “desbocar-se” tinha de ir a Madrid, que naquela época foi uma espécie de Nova Iorque a preço de peseta.

Tenho voltado repetidas vezes. Como no resto do mundo, muita coisa mudou, mas a joie de vivre dos madrilenos continua imbatível, os cafés icónicos ainda lá estão, a oferta gastronómica alinhou pelos padrões europeus mais exigentes, o Prado continua a ser um museu excelentíssimo e, mesmo ao lado, só o mítico Ritz se mantém encerrado há dois anos, alvo de obras de renovação decididas pelo grupo Mandarin Oriental. Por cento e vinte milhões de euros, os novos proprietários garantem devolver à cidade, talvez ainda este ano, o hotel que o rei Alfonso XIII mandou construir pouco depois de casar-se com Victoria de Battenberg.

O Ritz fica no topo do Triângulo de Arte, constituído pelos museus do Prado, o Thyssen-Bornemisza e o Reina Sofía. Com mais de duzentos anos, o Prado é o equivalente espanhol do Louvre. Sem surpresa, Goya e Velázquez estão extensamente representados. A sala de Las meninas (Velázquez) está em permanente engarrafamento. O acervo de pintura europeia inclui Rafael, Bosch, Caravaggio, Rubens, Botticelli, Ticiano, Brueghel, Fra Angelico, Tiepolo, Van Dyck e outros, como o notável Lawrence Alma-Tadema, de quem nunca tinha ouvido falar antes de o descobrir ali. O que saiu do Prado foi Guernica, obra que Picasso pintou em 1937, após o bombardeio da cidade basca. Exposto na Exposição Universal de Paris, enquanto prosseguia a Guerra Civil espanhola, o vasto mural só entrou em Espanha em 1981, ficando exposto no Casón del Buen Retiro, o anexo do Prado onde pela primeira vez o vi. Em 1992 foi transferido para o Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, inaugurado nesse ano. Ao contrário do Prado, mandado construir para albergar as colecções reais, o Reina Sofía ocupa as instalações de um antigo hospital, aumentado em 2005 pelo edifício Nouvel. Focado em arte moderna, permite um amplo tour d’horizon do século XX aos nossos dias. Picasso, Dalí, Calder, Lichtenstein, Picabia, Warhol, Baselitz, Tàpies, Poliakoff, Saura, Rothko, Klee, Miró, Pollock, Barceló e muitos outros, incluindo fotógrafos como Cindy Sherman e Man Ray, fazem do Reina Sofía uma das moradas mais procuradas da cidade.

A meio caminho entre o Prado e o Reina Sofía fica o Thyssen-Bornemisza, com origem na colecção privada da família de industriais alemães Thyssen. As vicissitudes da Segunda Guerra Mundial fizeram com que as obras circulassem entre a Alemanha, a Hungria, a Holanda e a Suíça (em 1988 ainda estavam em Lugano). Foi Carmen Cervera, então casada com o barão Hans Heinrich von Thyssen-Bornemisza, quem convenceu Felipe González, presidente do Governo, a negociar a vinda definitiva das obras para Espanha. Assim, em 1992, o Palácio de Villahermosa tornou-se um museu de referência, visitado em 2019 por mais de um milhão de pessoas, atraídas pelo carácter heterogéneo da colecção. Há de tudo, do Renascimento a Balthus, passando por Willem de Kooning, Natalia Goncharova, Arshile Gorky, Frank Stella, Georgia O'Keeffe, Egon Schiele, etc., sem esquecer os flamengos, os impressionistas e os cubistas. Tal como o Prado e o Reina Sofía, mantém ao longo do ano excelentes exposições temporárias.

Mais recente, ocupando as instalações de uma antiga central eléctrica reconvertida em centro cultural, o CaixaForum Madrid destaca-se pelo jardim vertical de Patrick Blanc. Inaugurado em 2008, exibe exposições temporárias ao longo do ano, muitas delas em parceria com o British Museum, de Londres.

Denominador comum às quatro moradas, o Paseo del Prado, imponente avenida que, ultrapassada a Praça de Cibeles, entronca com o Paseo de Recoletos e o Paseo de la Castellana. Em 2002, o arquitecto português Álvaro Siza Vieira ganhou o concurso internacional para a sua “requalificação”, mas o violento clamor público (um movimento cívico liderado por Carmen Cervera) gerado pelo previsto abate de árvores, congelou o projecto sine die. Ainda bem.

Na Praça de Cibeles o que mais impressiona não é a espectacular fonte dedicada à deusa grega da fertilidade. É o palácio que ocupa o lado sudeste. O edifício, um dos mais monumentais da cidade, destaca-se por ter sido construído em pedra branca. Foi sede dos Correios durante 90 anos, albergando actualmente os serviços culturais do município. Dispõe de uma área de exposições temporárias denominada CentroCentro. A dois passos, encontramos a Praça da Independência, dominada pela Puerta de Alcalá, monumento neoclássico que Sabatini desenhou em 1768 por encomenda de Carlos III. Após uma pausa no Cappuccino Grand Café, a Puerta de Alcalá é o ponto de partida ideal para descobrir o privilegiado bairro de Salamanca, epicentro do comércio de luxo, concentrado nas calles Serrano, Claudio Coello, Ayala, Ortega y Gasset, Hemorsilla, Lagasca, Ramón de la Cruz e Goya, esta última com ofertas mais “populares”. A larga maioria dos melhores hotéis, bem como alguns dos restaurantes mais exclusivos, também se encontram no bairro de Salamanca. O mesmo se diga do Museu Arqueológico, na elegante Calle Serrano.

A título de exemplo refira-se a Calle de Jorge Juan, com mais de duas dúzias de restaurantes. Pela qualidade da cozinha e do serviço, mas também pela atmosfera glossy, destaco cinco: o Quintin, o Paraguas, La Máquina, o Graciano e La Bien Aparecida. Não estamos a falar de restaurantes que têm ou tiveram estrelas Michelin. Esses encontram-se espalhados um pouco por toda a cidade, como o magnífico Club Allard, em tempos um clube privado da monarquia e da alta-finança, o glamoroso Coque ou o incontornável Cebo, do chef Aurelio Morales. Localizado no rés-do-chão do Hotel Urban, decorado por Philippe Starck, o Cebo fica muito próximo das Cortes. No outro extremo do paladar, os amantes de tapas podem optar pela tradição ou pela “desconstrução”… No primeiro caso, a Casa Del Abuelo (Calle Goya) é perfeita. No segundo, convém conhecer o Juana La Loca, na Plaza de Puerta de Moros.

Na bifurcação da Calle Alcalá com a Gran Vía, ou seja, na zona de fronteira entre a Madrid Bourbon e o centro histórico, o Círculo de Bellas Artes é ponto de passagem “obrigatório”, quanto mais não seja por ter a melhor esplanada da cidade. Fundado em 1880, o Círculo está equipado com quatro salas para exposições, auditório para concertos e teatro, sala de cinema, centro de documentação e uma das melhores (senão a melhor) livrarias da cidade. No piso térreo encontra-se o café-restaurante La Pecera, todo art déco, onde é possível almoçar a preço módico. Nos anos 1990, ainda o espaço hoje ocupado pelo restaurante era uma varanda larga à altura da copa das árvores. Convém não confundir o Círculo com a Real Academia de Bellas Artes, que também fica na Calle Alcalá, e tem um espólio riquíssimo de pintura espanhola, de perfil paralelo ao do Prado.

Tão importante como visitar os museus é conhecer o Café Gijón, no Paseo de Recoletos. Aberto desde 1888, por lá passou toda a gente que conta, na literatura, na política e nas artes em geral. As suas tertúlias fazem parte da história da cidade (no Museu de Cera existe réplica de uma delas). No Gijón encontramos velhos intelectuais antifranquistas, poetas, turistas cultos, monárquicos, yuppies da era digital, galeristas, etc. Não tem filas à porta, como os cafés de Viena, mas, sem reserva, é impossível arranjar mesa no interior. Na esplanada sim, mas é outro campeonato.

O prolongamento de Recoletos é o Paseo de la Castellana, com início na Praça Colón. Ao longo de seis quilómetros, a avenida vai mudando de perfil. Na primeira secção fica o muito recomendável Museu de Ciências Naturais. Na segunda, denominada Nuevos Ministerios, vários departamentos do Governo. E, na terceira, o CTBA, ou seja, o Cuatro Torres Business Area (os quatro arranha-céus que vemos do ar, muito antes do avião aterrar). Portanto, como o nome indica, uma área de negócios.

Há trinta anos, ainda a Gran Vía era o coração de Madrid: comércio de todo o tipo, teatros, cinemas, cafés, bares, restaurantes, casas de diversão nocturna, hotéis, galerias, edifícios magníficos. Não havia como ignorar o eixo que liga o bairro de Salamanca com o de Argüelles. Nada disso desapareceu (nem os grandes cinemas), as obras modernistas continuam a ser um íman fortíssimo para quem gosta de arquitectura, mas o downsizing é evidente, em especial no comércio e na hotelaria. Sirva de exemplo o Bar Chicote, que nos anos 1970 ainda era considerado um dos dez melhores do mundo, ponto de encontro de celebridades planetárias, e é hoje um antro incaracterístico para os turistas low cost que tornam a circulação da Gran Vía um inferno. Contudo, a comunidade LGBT ainda a utiliza como ponto de passagem para Chueca, o gueto gay do bairro Justicia que tem inspirado livros, filmes e muita lenda urbana.

Outro grande atractivo é a Plaza Mayor, sobrevivente de três incêndios desde o século XVI. Mantém as nove entradas em arco, sendo a Casa de la Panadería o ponto de maior interesse. O “progresso” transformou a praça num conglomerado de restaurantes, esplanadas e lojas sem interesse. A duzentos metros fica outra praça famosa, a Puerta del Sol, centro de manifestações políticas e de festejos do réveillon. Quem quiser ver a estátua do Urso e do Medronheiro, símbolos de Madrid, tem de lá ir. Na Carretera San Jerónimo, que parte da Puerta del Sol, fica o Lhardy, loja gourmet com restaurante no primeiro andar. O estabelecimento tem quase duzentos anos, e ainda me lembro do tempo em que, ao domingo, antes do almoço, toda a gente lá ia comer (aliás beber, pois era servido em almoçadeiras) consommé. Hoje, os turistas fazem filas homéricas à porta da loja.

No centro histórico merecem visita o Mosteiro das Descalças Reais (com obras esplêndidas de Zurbarán, Murillo e Ribera), o Museu Cerralbo, que acolhe a colecção particular do marquês do mesmo nome (notável sobretudo pelas peças de arqueologia), bem como o Teatro Real, ou seja, a Ópera. E na Calle de los Cuchilleros, o Botín, que hoje se chama Sobrino de Botín. Estamos a falar do restaurante mais antigo do mundo, aberto desde 1725. Em quatro pisos, um labirinto de salas, algumas com uma única mesa, serve comida tradicional, valendo sobretudo pela experiência.

Como escrevi um dia, é mais fácil viver nestas cidades que conservam os seus cafés, a sua vegetação e a sua loucura.

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quinta-feira, 18 de julho de 2019

VIENA


Impressões minhas de Viena, hoje na Sábado.

A literatura e o cinema ajudam-nos a conhecer as cidades muito antes de as visitarmos. Nova Iorque, Paris e Londres são exemplos extremos, onde nos orientamos com facilidade. Não se pode dizer o mesmo de Viena. Sucede com a capital austríaca o que acontece com certos livros: toda a gente cita sem os ter lido.

Resisti o mais que pude. A minha geração não esqueceu o Anschluss (a conexão nazi), nem, mais tarde, o estatuto de satélite adormecido de Moscovo. Verdade que o Círculo de Viena faz parte do nosso imaginário, não tanto por causa dos fundadores, mas pela irradiação internacional deste grupo de filósofos, cientistas, artistas plásticos e escritores que durante grande parte da primeira metade do século XX fizeram de Viena um dos epicentros da política e da cultura europeia. O domínio do Terceiro Reich alemão e a ideologia nacional-socialista levaram à diáspora os seus membros mais ilustres, mas o mundo académico anglo-americano, que os acolheu, preserva o legado.

Viena, portanto. Ficamos em Hofburg, o anel central da cidade, a dois passos de tudo o que interessa: museus e galerias de arte, grandes hotéis, livrarias sofisticadas, lojas de luxo, três cafés históricos — Mozart, Central e Sacher —, o Loos American Bar, vários dos melhores restaurantes, mercearias gourmet, chocolatarias para todos os gostos, o Palácio Palfy, sala de concertos low cost, a famosa Graben, artéria pedonal com casino e comércio de todo o tipo, a Spanische Hofreitschule (escola de arte equestre), o parque Burggarten e a elegante Kohlmarkt, que desemboca em Michaelerplatz, entrada principal do Palácio Imperial de Hofburg para onde convergem todos os nostálgicos de Sissi, a imperatriz imortalizada por Romy Schneider. Dito de outro modo: explorar Hofburg é conhecer o essencial de Viena.

Por exemplo, é no vasto complexo do Palácio Imperial que estão instalados os museus canónicos: o Kunsthistorisches, ou Museu de História da Arte, e o Museu de História Natural. Situados defronte um do outro, são obra da mesma dupla de arquitectos, Karl von Hasenauer e Gottfried Semper. Em Viena, tudo o que é relevante saiu das mãos deles.

No Kunsthistorisches há sempre grandes exposições temporárias, de Bruegel (embora A Torre de Babel faça parte das colecções permanentes), Rothko, Caravaggio e outros que tais. O acervo é riquíssimo. Há de tudo, do antigo Egipto à pintura flamenga, sem esquecer o mundo grego e romano, os renascentistas italianos, pintura inglesa, joalheria e até o extravagante Arcimboldo. A escadaria central é dominada por Teseu e o Centauro, a monumental escultura de Canova. Os magníficos painéis do tecto são de Klimt, também presente com o célebre Nuda Veritas. Os despojos escultóricos de Éfeso estão depositados no Castelo Novo, denominado Ephesos Museum, uma extensão do Kunsthistorisches, onde funciona a Biblioteca Nacional Austríaca.

Mas há mais. Após uma caminhada de cinco minutos, ocupando o espaço outrora reservado aos estábulos imperiais, o Museum Quartier (com cinco entradas viradas à Museumplatz) alberga mais de meia centena de instituições, de que fazem parte quatro museus importantes: o Leopold, incontornável para quem gosta de Schiele, Klimt e restante arte austríaca; o Mumok, de arte moderna e contemporânea; o Kunsthalle, feudo dos performativos abstractos; e o Architekturzentrum, ideal para perceber a evolução da arquitectura. Separados por talvez cem metros, o Leopold e o Mumok são edifícios modernos, muito diferentes entre si, construídos de raiz no vasto pátio central, coberto de neve no Inverno e de esplanadas no Verão.

No Leopold tive a grata surpresa de descobrir a obra de Richard Gerstl, o primeiro modernista da Áustria, suicidado aos 25 anos quando Schönberg rompeu a ligação amorosa de ambos e o expulsou do Círculo de Viena. Quem prefere Schiele a Klimt, como acontece comigo, encontra no Leopold a razão dessa preferência. Ainda no Leopold, Ferdinand Georg Waldmüller foi outra descoberta auspiciosa. Como notou um amigo atento, Waldmüller é uma espécie de Henrique Pousão ‘mais luminoso’. O Mumok acolhe parte da obra de Ernst Caramelle. No Kunsthalle há muita fotografia e vídeos: Andrzej Steinbach, Ingel Vaikla, Joanna Piotrowska (que tem uma galeria em Lisboa), Peter Wächtler, Tobias Zielony, Ian Wallace e outros. À chegada ou partida do Museum Quartier deve visitar-se o MQ Point, que tem uma das melhores livrarias de arte que me lembro de ter visto dos dois lados do Atlântico. Infelizmente não é para todas as bolsas. Saí de mãos vazias e a ranger os dentes: o álbum de Lucian Freud custa 750 euros.

Mais afastado, mas ainda em Hofburg, instalado no Palais Erzherzog Albrecht, o Museu Albertina é do melhor que há na Europa: Dürer, Chagall, Lichtenstein, Magritte, Kandinsky, Degas, Kirchner, Rubens, Bosch, Monet, Picasso, Warhol (o retrato Mao), Brassaï, Rafael e Leonardo são alguns dos artistas melhor representados. Estes e a nata da arte austríaca, que inclui o pouco citado mas insigne Kokoschka. O museu fica em Albertinaplatz — morada do Café Mozart, onde Graham Greene, nos seus tempos de espião, marcava encontros com outros agentes do MI6 —, e é porventura o melhor museu ‘moderno’ de Viena.

Na fronteira de Hofburg temos Stephansdom, a imponente catedral medieval de Santo Estevão. Assombrosa, com uma nave espectacular, fica ‘entalada’ entre edifícios vulgares. Portanto, a melhor forma de apreciar a torre gótica e as telhas de vidro colorido que forram o telhado é ir tomar um copo ao bar do 6.º andar do DO&CO, mesmo em frente.

Pelo contrário, a Karlskirche, igreja barroca dedicada a Carlos Borromeu, mandada construir por Carlos VI, imperador do Sacro Império Romano, está enquadrada pelo cenário desafogado de Karlsplatz. Lá dentro, os frescos de 1726 que Johann Michael Rottmayr pintou na cúpula são impressionantes. Uma estrutura metálica, com elevador, leva-nos a uma plataforma elevada a mais de trinta metros que permite apreciar os detalhes. Quem não queira subir, vê os frescos reflectidos em dois globos transparentes de grande diâmetro. Na Karlskirche também se realizam concertos de música clássica: no dia em que fomos era Ave Maria, de Schubert.

Karlsplatz é um parque de grandes proporções que tem na sua moldura a fabulosa Karlskirche, a Universidade Técnica de Viena, o Wien Museum, o cubo de vidro que serve de extensão ao Kunsthalle e, do lado oposto, já em Innere Stadt, a Musikverein, sede da Filarmónica de Viena, conhecida sala de concertos que toda a gente identifica por causa da gala de Ano Novo. Não confundir com a Staatsoper (imagem ao alto), a mítica ópera de Viena, que domina Ringstrasse e fica ali perto. A enorme mais-valia de Viena é essa: podermos ir a quase todo o lado a pé, sem necessidade de táxis ou metro. Por falar em ópera: não é um espectáculo barato em lado nenhum, a Staatsoper tem uma programação invejável, mas pratica preços de extorsão, superiores aos de Nova Iorque e Londres.

Voltando a Karlsplatz, o discreto Wien Museum é muitíssimo recomendável. Vimos uma notável exposição documental e fotográfica sobre a implosão do Império Austro-Húngaro (1918) e subsequente proclamação da República (1919), organizada por Anton Holzer: Die erkämpfte Republik. As maquetas da cidade, desde 1400, são outro atractivo. A sala dedicada aos indígenas ilustres dá a medida daquilo que Viena representou até 1940.

No outro extremo de Karlsplatz, já em Friedrichstrasse, fica a Wiener Secession, fundada em 1897 por Klimt, Moser e outros adversários da arte conservadora que então dominava. Conhecido simplesmente como ‘a Secessão’, trata-se de um dos edifícios mais pequenos e belos de Viena, rapidamente identificado pela cúpula dourada de Olbrich (a sua efígie está cunhada nas moedas austríacas de 50 cêntimos). Serviu de escola de arte e ofícios de artistas novos. É lá que podemos ver os famosos murais de Klimt, bem como exposições temporárias vanguardistas, como são as de Kris Lemsalu, Ed Ruscha e Philipp Timischl. Pelo tipo de visitantes percebe-se que estamos num museu muito exclusivo. Se atravessar a rua encontra o confortável Café Museum, poiso de Musil e outros intelectuais da cidade.

Não é despiciendo falar de cafés, traço distintivo da cultura vienense. A UNESCO classificou-os como património imaterial da humanidade. Já referi o Mozart, o Central e o Sacher, que têm filas homéricas à porta (assunto que se resolve fazendo reserva online), mas o Sperl, o Frauenhuber e o Landtmann são igualmente de visita “obrigatória”. Acoplado ao hotel homónimo, o Sacher serve a famosa tarte e, dizem os entendidos, a melhor melange da cidade. Além de bolos, o Mozart serve pratos da cozinha local, como Wiener Schnitzel com salada de batata e compota de framboesas, ou Tafelspitz, o prato preferido do imperador Francisco José, com puré de maçã. No Central come-se um Goulash decente e Apfelstrudel aquecido a nadar em creme de baunilha. A cozinha mais elaborada é a do Landtmann. Habitué, Freud tinha a mesma opinião. Paul McCartney e Hillary Clinton corroboram. Se quer ver rapaziada jovem e descontraída tem de ir ao Sperl, fora do anel central.

Os restaurantes propriamente ditos são outra coisa. Mesmo ao lado do Landtmann fica o Burgtheater, o esplêndido teatro ‘alemão’ desenhado por Hasenauer e Semper. É no Burgtheater, virado à Universitätsring e ao Rathaus (a Câmara Municipal de Viena), que fica o Vestibül, um dos melhores restaurantes da cidade, elegante, formal, absolutamente Habsburgo, porém acessível a bolsas portuguesas — tal como o Dstrikt, o DO&CO, o Eight e o feérico Palmenhaus, que fica na antiga estufa imperial, mesmo atrás do Museu Albertina. Noutro patamar, com preços proibitivos, o Steirerek, do chef Heinz Reitbauer, divide com o Opus, de Stefan Speiser, o pódio dos eleitos. Mas Le Ciel, de Toni Mörwald, e Konstantin Filippou, do próprio, também estão em alta. Conseguem todos a proeza de serem mais caros que os equivalentes de Londres.

A visita não ficaria completa sem conhecer o Palácio de Schönbrunn, residência de Verão dos Habsburgos, situado em Hietzing, a cerca de oito quilómetros do centro de Viena. A comparação com Versailles torna-se inevitável, mas, apesar das suas mil e quinhentas divisões, a casa de Maria Tereza ganha em escala humana. No topo dos jardins, a Gloriette, epifania absoluta. Quem não queira ir tão longe tem muito para ver no Belvedere, em especial no Belvedere Superior, que acolhe arte moderna (Klimt, Gerstl, Kokoschka) em alas de estatuária barroca. Os jardins do Belvedere estão no centro da cidade, e são, juntamente com o Prater — o parque de diversões onde se realizou a Exposição Mundial de 1873 —, dois hot spots durante a Primavera e o Verão. Em 1949, Orson Welles filmou ali, na roda gigante do Prater, O Terceiro Homem

Não vi centros comerciais, mas decerto haverá. O mais parecido foram as arcadas Freyung e Ferstel, com lojas de gama alta e pequenos cafés, ambas em Herrengasse. Também não vi sinais da comunidade LGBTI ou fumadores.

Aquela que foi a última fronteira entre o Ocidente e a Cortina de Ferro mantém-se suspensa no tempo. Se lá voltasse, Graham Greene encontraria quase tudo na mesma. O século XXI ainda não chegou ali.

Clique na imagem da Staatsoper.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

VIENA


Cinco dias em Viena deixaram o blogue a hibernar. Gostei da cidade? Não posso dizer que não, mas há meia dúzia de cidades europeias de que gosto mais.

Coisas boas de Viena: a escala humana, apesar da arquitectura imperial / a limpeza geral / a extensa área pedonal / o trânsito disciplinado fora do centro pedonal / os magníficos museus  / o serviço competente em cafés e restaurantes / comércio de luxo, a sério / oferta musical clássica de primeiríssima qualidade / comércio popular decente / os passeios de pedra lisa / ausência total de jeans com buracos nos joelhos / ausência quase total de grafitos nas paredes / os cafés históricos / as livrarias / as galerias de arte / os imensos parques verdes / o palácio imperial de Schönbrunn (a seis quilómetros do centro) / a catedral de Stephansdom / a possibilidade de ir a quase todo o lado sem ter de recorrer a táxis e outros transportes públicos / Etc.

Coisas más de Viena: as ruas sem árvores / a luz fosca / o urbanismo monótono em tom sépia / os taxistas turcos e croatas ostensivamente enfadados / os austríacos com ar de quem sofre de prisão de ventre permanente / a quase total ausência de adolescentes / a quase total ausência de jovens adultos (excepto empregados de mesa) / a iluminação deficiente das ruas principais / Etc.

Na imagem, a fabulosa Karlskirche, igreja dedicada a Carlos Borromeu, fotografada por mim. Clique.