O episódio completo pode ser conferido abaixo...
...ou aqui, para fazer um agrado às garotas com um buquê de page hits.
Jornalista, roteirista e ex-editora na Marvel, Nocenti sempre rendeu ótimas entrevistas. Ela não é de fazer média: normalmente solta o verbo até o limite possível antes de incomodar (muito) alguém, mas sempre com franqueza e bom humor adoráveis. E, mais importante: zero frescurite. Talvez seja herança da época pré-redes sociais, quando as pessoas conversavam olhando nos olhos e não se ofendiam tão fácil.
Sendo assim, salta aos ouvidos como as podcasters Sana Amanat e Judy Stephens desperdiçam o Fator Nocenti para um bom papo de boteco. Apesar da eventual quadrinhista se mostrar articulada e generosa, a condução é respeitosa e bem chapa branca. E termina dez minutos antes do tempo regulamentar. Sintomático.
Ainda assim, Nocenti fala bastante sobre sua juventude lendo velhas antologias do Pogo (o Bone original) e do Dick Tracy - cujos inimigos caricatos e disformes lhe criou um fascínio por vilões e monstros ainda criança - e sobre a dinâmica interna da Marvel com alguns causos de bastidores da era Jim Shooter - o ponto onde a entrevista poderia ter virado puro rock & roll, não fossem as comportadas apresentadoras/funcionárias da editora.
Outros pontos interessantes: a importância de Louise Simonson e da grande Marie Severin em sua carreira, a perícia de Archie Goodwin em mecânicas de plots, a ocasião em que Mark Gruenwald a pediu para matar a Mulher-Aranha logo num de seus primeiros trabalhos, como é a transição de editor-assistente para mentor ("e então você se demite"), suas crias (Longshot, Mojo, Espiral, Coração Negro), a influência de Chris Claremont na composição de personagens femininas fortes e os conselhos de Dennis O'Neil - também um jornalista - sobre como inserir questões políticas e sociais em gibis de super-herói.
Um dos trechos em que fica evidente a diferença entre as cascas-grossas gerações 1970-1980 e a superprotegida geração pós-milênio, é quando ela comenta sobre a "experiência de campo" necessária para contar uma boa história - coisa a própria Ann conhece bem. Curiosa também era a estratégia quase suicida do processo criativo. Com deadlines absurdas e trabalhando literalmente madrugadas adentro, "trazíamos muitas ideias malucas porque achávamos que elas iriam acabar numa lata de lixo".
A melhor parte, pra mim, é sobre os primórdios da relação com John Romita Jr. e a escalação da dupla, por intermédio de Ralph Macchio, para assumir o Demolidor pós-Miller/Mazzucchelli. Uma senhora responsabilidade. E, claro, o trecho onde que ela fala sobre uma de suas maiores personagens: Mary Tyfoid.
Segundo ela, a vilã tem uma dualidade e contradição equivalentes às do próprio Matt Murdock/Demolidor, que, por sua vez, ainda tem uma queda por garotas malvadas. Tal qual o Destemido, Mary lida o tempo todo com um reflexo distorcido dela própria. E Nocenti não se furtava em ir fundo na ferida. Isso bate com a impressão que sempre tive da personagem, cuja complexidade ia muito além do perfil crazy bimbo de uma Arlequina, por exemplo.
Perturbação de identidade dissociativa num contexto pop com super-heróis e supervilões? Você já via (lia) muito antes de Shyamalan e a trilogia Corpo Fechado.
Num dos meus trechos favoritos, Nocenti reflete sobre a evolução de Tyfoid, ficando mais e mais sombria até virar uma matadora de homens. Ou, nas palavras dela, "alguém que poderia invadir um abrigo para mulheres e checar nos arquivos o que cada homem fez com cada mulher e então ir atrás deles para retribuir cada ferimento".
Uma excelente ideia.
Lógico que a Mary Tyfoid é uma das minhas vilãs do coração. E a primeira a conquistar um lugarzinho na (disputada) estante...