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sábado, 15 de novembro de 2025

I see dog people


Antes de tudo, Bom Menino (Good Boy) deve ter dado um trabalho do cão. Segundo o diretor Ben Leonberg, a ideia de um longa de terror pela perspectiva canina foi inspirada por Buzz, o cachorro de Poltergeist (1982). No filme, o talentoso golden retriever foi o 1º a perceber que algo errado não estava certo na casa mal-assombrada. Histórias com um totó sensitivo às forças sobrenaturais de um lugar não é algo novo e remonta até ao valente Harry, de Terror em Amityville (1979). Mas é a primeira vez que esse conceito ganha um filme inteirinho para brincar, passear, morder e chamar de seu.

Quem é cachorreiro sabe. Às vezes parece que ver fantasmas é a única coisa que explica certas maluquices de um cachorro. A trama coescrita por Leonberg e Alex Cannon é bem enxuta e se vale de uma boa dose de sugestão para equilibrar a escassez de texto.

Sofrendo de uma doença pulmonar crônica e de uma depressão severa, o garotão Todd (Shane Jensen) resolve largar tudo e partir com seu cachorro Indy para a afastada casa de campo da família. Vazia desde o falecimento do avô (o veterano Larry Fessenden), a propriedade é a antessala do inferno. O pobre Indy é o único a perceber isso e faz o possível para proteger Todd – certeza que ele se preparou para o papel maratonando Coragem, o Cão Covarde.

Sabiamente, o roteiro evita dar super-habilidades a Indy e se atém ao básico de qualquer doguinho: a lealdade inegociável por seu tutor, a curiosidade instintiva e o dom de ver espíritos malignos tentando ferrar com os vivos. Nesse ponto, é quase um documentário.

O filme tem poucos jump scares (o do close na retina é o melhor) e investe mais na construção de uma atmosfera lúgubre e sombria. Que visualmente funciona muito bem, mas expõe o aspecto mais frágil da premissa. Com Todd imerso em seu próprio inferno pessoal, Indy é o único vetor de medo no filme para o espectador – e um cachorro não tem a visão humanizada de fenômenos sem explicação, esfriando assim boa parte da identificação e da empatia com o protagonista.

Trocando em miúdos, em tela, Indy não rosna e nem demonstra medo frente a eventos que fariam um homo sapiens voltar correndo para as cavernas. A única cena em que ele expressa medo e angústia reais não tem nada a ver com os eventos paranormais da casa.

Talvez o cineasta tenha pegado leve com seu ator canino, evitando situações de estresse animal e futuras dores de cabeça midiáticas. Na minha época®, qualquer aventura do Benji na Sessão da Tarde deixava o espectador empenado de tensão. Cachorros me mordam, ainda lembro do choro desesperado da cadelinha Lucky no filme O Cão do Diabo (1978). Um negócio impensável nos dias atuais.

Isto posto, é notável a engenhosidade visual de Leonberg para driblar o lugar-comum narrativo. O roteiro tem alguns tropeços, mas mantém a linearidade com direito a um final chocante, triste, evocativo e até mesmo belo.

Como terror per se, no entanto, o filme mais ladra do que morde. É realmente um bom menino...

sábado, 25 de outubro de 2025

Não Conta Comigo


A premissa de The Long WalkA Longa Marcha – me causa arrepios já na largada. Baseado no livro de Stephen King (sob o pseudônimo Richard Bachman), o filme acompanha um evento anual em que 50 jovens escoltados por soldados armados caminham por quilômetros sem parar. As regras são simples: manter a velocidade de 4,8 km/h; se ficar abaixo, recebe uma advertência; se não se recuperar em dez segundos, recebe outra; com três advertências, na quarta terá os miolos espalhados pelo chão; se sair da pista, a execução é sumária.

Só há um vencedor e não há linha de chegada. O último em pé, ganhará uma bolada em dinheiro e terá um desejo qualquer atendido.

Tudo isso televisionado e transmitido para todas as boas famílias americanas, lógico. O longa se passa numa década de 1970 alternativa, com os EUA atravessando um pós-guerra atolados num regime totalitário e numa grave depressão econômica. E esse é o pão & circo do momento.

Pra mim, que tenho uma agulhada pontual no pé direito que aparece e some do nada, é um perfeito cenário de terror. Sempre me imaginei indo pro saco por causa disso num apocalipse zumbi e agora tive meus parâmetros de pesadelo atualizados. Isso porque a mais básica das funções – andar – é suscetível a toda a sorte de imprevistos, como tropeços, torções, cãibras, distensões, contraturas, etc. Quanto mais inapropriado o momento, pior.

Isso sem falar na força inadiável da natureza, também conhecida como caganeira. Aquela que desconhece hora, lugar e convenções sociais. O termo "cagando e andando" é muito mais difícil de realizar do que a figura de linguagem sugere, ainda mais durante uma contagem regressiva sob a mira de uma metralhadora. No filme, isso tudo acontece com a deadline literal mordendo os calcanhares.

O aspecto survival horror fica mais acentuado conforme o avançar da história, com a exaustão extrema aliada à privação de sono alterando os humores e a sanidade dos participantes. Até mesmo o recurso narrativo da solidariedade humana em momentos de desespero é uma característica cara ao subgênero, que por vezes me lembrou o filme A Queda, de 2022.


O cineasta Francis Lawrence (do Constantine 2005) tem experiência em distopias embaladas por jogos midiáticos – ele dirigiu cinco dos seis filmes da franquia Jogos Vorazes até aqui. Com o roteiro adaptado por JT Mollner, Lawrence consegue um bom balanço entre a unidimensionalidade da marcha e a jornada pessoal dos personagens. Ênfase no "bom", mas não "ótimo". Nas melhores sequências, saltam da tela as situações nervosas com desfecho imprevisível (remetendo aos contos mais cruéis do Roald Dahl – Man from the South, alguém?) e nas mais, ops, pedestres, a coisa tira tinta do melodrama.

O elenco é uma joia e vivi para ver o Mark Hamill no papel de um líder autoritário. Seu personagem Major é um manifesto fascista sobre rodas, indiferente, impiedoso, irredutível. No núcleo principal, Tut Nyuot, Garrett Wareing, Cooper Hoffman (filho do saudoso Philip Seymour Hoffman), Charlie Plummer, David Jonsson (o andróide Andy, de Alien: Romulus) e Ben Wang estão excelentes. Judy Greer e Josh Hamilton fazem breves e marcantes participações.

O único grande porém, para mim, é comprar a ideia de que cinquenta almas (cem, no livro) se sujeitariam voluntariamente a tal provação sádica. A resposta pode estar em dois lugares. Primeiro, no estado desesperador do mundo que os cerca, sendo que o filme é bastante sucinto nesta questão. Segundo, na própria natureza humana, disposta a mergulhar em situações impensáveis de exposição sem nenhuma concessão à própria dignidade. Vide reality shows tipo Big Brother e suas onipresentes provas de resistência física.

O dia que adicionarem uma metralhadora nessas provas, estaremos perdidos enquanto espécie. Mas a audiência vai estourar.

Ps: após tanta tensão, nada como um gibizinho para relaxar. A 1ª distopia com jogos mortais a gente nunca esquece...

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Go, Giants!


Assistindo Ladrões (Caught Stealing, 2025), foi difícil lembrar que se tratava de um filme do Darren Aronofsky. Não depois das trips metafísico-existencialistas de Pi e Fonte da Vida e das bad trips terminais de Réquiem para um Sonho, Cisne Negro e A Baleia. A impressão é de que o sujeito maratonou a quadrilogia John Wick (+ spin-off) seguida da filmografia tiro-porrada-e-trapaça do Guy Ritchie pré-Sherlock Holmes e resolveu brincar também.

Ladrões me parece a 1ª grande piscadela do cineasta em direção a um nicho mais pop (Noé não conta). Tem lá suas pauladas no meio do caminho que fazem pensar "ah, tinha que ser do Aronofa mesmo", mas o clima geral é de thriller de crime curtido em sanguinolência, humor negro e naquele tipo de comédia de erros que o Tarantino adora. E se saiu muito bem nessa coisa de se divertir trabalhando.

O protagonista é Hank (Austin Butler), bartender no Lower East Side. Ex-promessa do baseball com um passado traumático, Hank alivia seus demônios pessoais com álcool, nas ligações diárias para a mãe e no relacionamento casual com Yvonne (Zoë Kravitz). Uma bela noite, ele recebe um encargo do amigo Russ (um Matt Smith de moicano): cuidar de seu gato mordedor enquanto ele está fora visitando o pai adoecido. O problema é que o bichano traz em seus "acessórios" um tremendo MacGuffin disputado a porrete por violentos mafiosos russos, judeus e outros mais.

O filme é baseado no livro homônimo de Charlie Huston – e adaptado pelo próprio. Mesmo com a profusão de personagens e situações, o roteiro segura as rédeas da ação antes de descambar para um Mandando Bala sem noção e investe em reviravoltas e tramoias em série. A comparação com o Guy Ritchie de várzea não é papo furado. Em vários momentos, o filme remete à impagável fauna de criminosos de Snatch: Porcos e Diamantes, especialmente quando a dupla de bandidões judeus rouba os holofotes. Aliás, Liev Schreiber e Vincent D'Onofrio atuam praticamente incógnitos no filme.

Também foi algo surreal rever o Griffin Dunne, coroão, como o hilário dono do bar em que Hank trabalha (cresci nos anos 1980 assistindo reprises de Um Lobisomem Americano em Londres e Depois de Horas, oras!). E Regina King como a detetive Elise Roman está demais.

A despeito de tantas referências, inclusive no desfecho, igualzinho ao de um filme estrelado pelo Ben Affleck, Ladrões é uma horinha e quarenta e sete minutos de pura diversão cinética e roteirística. E não é todo dia que a gente vê um Darren Aronofsky massavéio.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

“There comes a time...”


Na recente edição do festival The Town, fui surpreendido por um Lionel Richie se apresentando em grande forma. Foi um show divertido, pesado e tecnicamente impecável que acionou alguns gatilhos que nem sabia que ainda estavam lá. Cresci praticamente respirando a obra do popstar. Era só passar perto de algum rádio ligado em qualquer estação – FM ou AM – e ser bombardeado por sua longa fileira de hits solo ou nos Commodores, de "Easy" e "Three Times a Lady" a "Hello", "All Night Long (All Night)", "Endless Love", "Say You, Say Me", etc, etc, ad-infinitum-e-além. Sem descanso.

Algumas, confesso, reouvi pela 1ª vez após décadas de molho. E foi um reencontro muito bom. Tanto pela performance energética e bem-humorada de Richie, quanto por ver essas joias pop gabaritando no teste do tempo. Mas uma canção em particular se tornou a grande surpresa do setlist: a emblemática "We Are the World", defendida heroicamente no piano e no gogó abençoados do compositor.

Com essas boas vibrações, resolvi tirar do porão este fenômeno que, em 1985, ajudou a combater a fome na Etiópia, mas que megassaturou rádios e tevês por metade da década de 1980. Que foi um momento histórico, isso nem se discute. E já era tempo de revisitar e estudar a música e seu antológico videoclipe com olhos e ouvidos mais calejados.

Bom, fui atrás – hoje é fácil.

Aproveitei e estendi a estadia sonora com o sensacional documentário A Noite que Mudou o Pop (The Greatest Night in Pop, 2024), disponível na Netflix. O filme foi dirigido pelo americano-vietnamita Bao Nguyen, do igualmente sensacional Be Water, doc de 2020 sobre Bruce Lee. E a experiência foi fascinante, pra dizer o mínimo.

O documentário é revelador e até desmistificador sob muitos aspectos. Espertamente, Nguyen imprimiu à empreitada uma narrativa tensa, com um clima de Missão Impossível (a série sessentista, por favor). E foi exatamente isso, uma missão impossível com uma deadline ridícula entregue nas mãos dos multitalentosos Richie, Quincy Jones e Michael Jackson. Ficou famoso o aviso "check your ego at the door""deixe seu ego na porta" – pregado na entrada do estúdio, mas é lógico que algum percentual daquilo acabou passando de penetra.

O que não sabia era de todo o resto: a operação top secret para convocar os convidados (o que rende a memorável sequência com cada artista chegando ao estúdio da A&M sem saber quem estaria por lá), a logística é-tudo-ou-nada para gravar a coisa toda em uma só noite, Bob Geldof (Live Aid, Live 8) explicando aos astros a importância humanitária do projeto, Quincy Jones regendo e amansando a manada pop enquanto Lionel Richie se encarregava de apagar os pequenos incêndios, a complexidade de harmonizar vozes com estilos tão diferentes, o apoio essencial (e engraçado e brilhante) de Stevie Wonder ao deslocado Bob Dylan, a furada histórica de Prince, a insólita "dificuldade técnica" da Cyndi Lauper, a fofura suprema de Diana Ross, Bruce Springsteen só o pó da rabiola, saído da maior turnê de sua carreira direto para a gravação e por aí vai. Uma delícia de caos.

Para quem curte música, história da música, saber mais sobre a indústria e os bastidores, o documentário é um masterclass.

As interações espirituosas de Springsteen e Ray Charles mais os depoimentos impagáveis de Richie e de Huey Lewis são ouro puro. Podia ter rolado entrevistas com Paul Simon, Willie Nelson, Steve Perry e com os atores Dan Aykroyd (a tirada com os Caça-Fantasmas foi ótima) e Bette Midler, que também bateram ponto no coral gospel. A meu ver, dariam perspectivas atuais bem relevantes.


Como título, A Noite que Mudou o Pop não é acurado. Mas A Maior Noite do Pop, como reza o original, não ouso discordar.

Foi mesmo uma noite daquelas.

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Desafiadores do Conhecido

Onde estávamos mesmo? Ah, sim... no novo filme do Quarteto Fantástico.


Após seis décadas de quadrinhos, desenhos e sofridos quatro filmes (, na verdade), os primeiros passos de Quarteto Fantástico: Primeiros Passos seguem como os mais difíceis de trilhar. É uma ironia paradoxal. A cronologia é vasta e todos os seus clichês e arquétipos são reconhecíveis a parsecs de distância: um núcleo familiar, ou quase, protagonizando histórias que aliam fantasia, misticismo, mitologia e, claro, ficção científica a um contexto pop-aventuresco para toda a família. É um pacotão de entretenimento vencedor que sempre foi mantido atualizado.

Por algum motivo, no caso do Quarteto, a coisa invariavelmente adquire contornos complexos de concepção, transposição e execução. Talvez por lidar diretamente com o material bruto, bizarro e fantasticamente doidão criado por Jack Kirby e Stan Lee. Mais do que qualquer coisa que fizeram na Marvel, a química da dupla no Quarteto era da pura. A fine entry drug, difícil de reproduzir com integridade fora daquela mídia. Então, cada vez que se cogita um novo filme da "Primeira Família", é um drama, quase como se fosse algo infilmável. Primeiros Passos talvez seja o, arram, primeiro passo do mythos original rumo ao sonho descomplicado de uma franquia de verão.*

* não me refiro à performance nas bilheterias, onde o longa afundou drasticamente nas semanas seguintes, mas ao potencial escapista por excelência. A normalidade de sentar em frente à tevê, abrir uma cerveja e ver super-heróis viajando até um universo de antimatéria para sair no braço com um gafanhoto antropomórfico de metal. É pedir muito?

O diretor Matt Shakman é veterano de séries, de Game of Thrones e The Boys a Succession e WandaVision, quase um test drive da abordagem vintage de Primeiros Passos. Sabia exatamente como lapidar e conferir gravitas ao roteiro formulaico escrito a oito mãos (fora o aveludado par da Kat Wood, coautora da premissa). Particularmente, tinha minhas restrições com a ideia do filme se passar no ano de 1964 de um universo/realidade alternativa, apesar da jornada acachapante pelo Multiverso na série Loki – e não existe nada mais over-the-top no MCU do que Loki. Felizmente, a opção teve 99,9% de aproveitamento.

Os personagens parecem pertencer à tal Terra-828 bem mais do que à ilha de cinismo e irreverência da Terra-616 (ex-Terra-199999). A bela direção de arte futurista retrô à Syd Mead, além de um delicioso e irresistível guilty pleasure, também evidencia o impacto social, político e tecnológico causado pela existência de um Quarteto Fantástico naquele mundo. Algo bem Watchmen, se o Grande Barba me permitir a referência.

A trama é o basicão do sci fi pré-apocalíptico. Lá, o Quarteto Fantástico já existe há quatro anos, é adorado pelo público e, através de sua Fundação Futuro, tem parcerias com todos os governos (menos o da Latvéria!). Coisa, Tocha Humana, Mulher Invisível e Senhor Fantástico são celebridades pop defendendo o Silver Age Way of Life de supervilões da 2ª divisão. Isso até a chegada da Surfista Prateada anunciando a vinda de Galactus e o fim do mundo. A partir dali, a escala deixa de ser global e se torna cósmica.

A transição de escopo é sensacional. Dá pra sentir toda a tensão, medo e incerteza do Quarteto – em especial, de Reed Richards – frente ao imponderável pela 1ª vez. Pedro Pascal anda onipresente e triscando na hiperexposição (falta só fazer comercial da Bombril), mas tem uma grande vantagem: é um excelente ator. Transmite com maestria toda a frustração e impotência de Richards, com seu controle emocional e pensamento lógico ruindo diante de uma ameaça com tecnologia e poder vastamente superiores.

Já o Coisa de Ebon Moss-Bachrach (o Richie, de The Bear), visualmente, é o melhor Coisa que o dinheiro da renderização digital poderia comprar. Fidedigno. No texto e na caracterização de Moss-Bachrach, porém, deixa um pouco a desejar com a voz suave e um perfil bonzinho/paciente/conformado demais. Assim fica fácil para a Gangue da Rua Yancy. Prefiro o Michael Chiklis.

A Sue Richards de Vanessa Kirby, cheia do soft “girl” power, e o maninho Johnny de Joseph Quinn (keep metal, Eddie!) foram a primeira surpresa para mim. Além de cativantes, ambos têm as melhores cenas entre os quatro e decidem a partida com jogadas individuais em momentos-chave. São os grandes protagonistas do filme.

A outra surpresa foi a controversa Surfista Prateada Shalla Bal, numa escalação que se mostrou muito acertada no final das contas. Primeiro, porque Julia Garner é uma atriz espetacular, saltando do aterrorizante ao fragilizado com uma desenvoltura... fantástica. Segundo, a desconstrução da personagem ao longo do filme deixa sua figura ainda mais trágica e humana, com todos os seus erros, adversidades e superações. E terceiro, é dela as sequências de ação mais eletrizantes do filme, com a Surfista de fato surfando em um rio de lava, em perseguição faster-than-light ao Quarteto dentro de um buraco de minhoca e até no campo gravitacional de uma estrela de nêutrons. A tela grande ficou pequena.

E Galactus. Na cena em que ele é apresentado num crescendo nervoso, emergindo lentamente das sombras, confesso que até esqueci de respirar. Sonho realizado #385, check.

Pode ser a saudável influência de James Gunn em assumir o esdrúxulo para o mundo sem medo de ser feliz. O fato é que o velho Galan enfim saiu das páginas em toda a sua glória live action – armadura roxa e balde na cabeça inclusos. O vozeirão basso profondo do britânico Ralph Ineson confere um tom imponente, solene e ancestral ao Devorador de Mundos. O design segue o padrão clássico das HQs quase à risca, com linhas e detalhezinhos high tech ao longo da gigantesca armadura, lembrando a concepção do artista italiano Giorgio Comolo. Na Terra, ele é um arranha-céu ambulante, muito maior que nos quadrinhos.

Logicamente, algumas bolas batem na trave. Ao invés de consumir os planetas diretamente com o auxílio de seus conversores, Galactus tritura os astros em sua nave como se fosse o Unicron. Bem menos impressionante. A nave, aliás, parece ser a Star Sphere que Galactus usa quando sai de Taa II, sua nave-mãe-pai-e-avós com as dimensões de um sistema planetário. Pena não rolar ao menos uma frase com um fanservice maroto.

Outro detalhe esquisito foi a fuga do Quarteto da nave. Como nas HQs, o Galactus do filme pode imobilizar seus oponentes com o pensamento, assim como faz com a Surfista em dado momento. Então não tem muito sentido aquela correria toda, senão o fruto de uma procrastinação galáctica.

Sobre a celeuma em torno da Mulher Invisível empurrando Galactus, posso listar umas notas de argumentação: 1) Sue é uma mãe defendendo o seu filho (além da Terra, óbvio); 2) A verdadeira extensão de seus poderes nos quadrinhos é tema de discussões a perder de vista e é algo que pode e deve ser aplicado à sua contraparte cinematográfica – e sabiamente evitaram o sanguinho no nariz; 3) Por fim, Galactus estava pronto para sua próxima lauta refeição e, portanto, com fome, enfraquecido e nessas condições, como todos sabemos...

Em suma, nada para ver aí, senão orgulho da Sue.

Me incomodou mesmo foi o Toupeira do canastrinho Paul Walter Hauser, numa repaginada clean e hipster do nosso grotesco favorito. E um desperdício pop do H.E.R.B.I.E. que Jon Favreau, Dave Filoni e, raios, James Gunn não deixariam passar.

Quarteto Fantástico: Primeiros Passos é o filme que os Quatro Fantásticos mereciam há tempos. Não é a Mona Lisa do audiovisual, nem a reinvenção do Universo Marvel nos cinemas, mas reinventa a Primeira Família de uma forma genuína e digna. Digna do legado, da influência, dos gibis e, o mais importante, da pipoca.

Ps: só me faltou mesmo o Balde-Galactus.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Superman #1


Superman é uma celebração e, como tal, neste exato momento está sendo festejado, detestado e discutido por um oceano de gente ao redor do globo. Como deveria ser. Que me desculpem todos os outros companheiros de farda uniforme colorido, mas com o Escoteirão o negócio é mais embaixo acima. É o super-herói raiz, O.G. dos superpoderes. Foi quem começou isso tudo pelos corações e mentes de Jerry Siegel e Joe Shuster. E cá estamos: mesmo sem ser um filme perfeito, é um divisor de águas.

Fiel aos quadrinhos como nenhum outro, com algumas liberdadezinhas que não alteram a essência. James Gunn escreveu e dirigiu um gibizão do mês. Tem lá o Super do Curt Swan, do Mark Waid, do Dan Jurgens, do Jerry Ordway, o Superman contra o 1% do Grant Morrison e muitos outros. Todos lá, devidamente creditados e reverenciados – de sopetão, digo que faltaram Joe Kelly, Max Landis e, heresia-mor, José Luis García-López.

O roteiro é um delivery-monstro das eras de prata, bronze e moderna, com um intensivão de A História do Universo DC logo nos primeiros segundos. E pontuado na marca dos 33 anos, se curtir a analogia pop-cristã. O melhor de tudo é que Gunn não é apenas um devorador contumaz de gibis, mas um perspicaz contador de histórias. Consegue administrar doses pesadas de referências quadrinhísticas a uma narrativa PG-13 universal. Sabe envolver de leitores assíduos a neófitos que não leram nada. Que, por sinal, formam a maioria esmagadora que financia a brincadeira.

A trama vai direto ao ponto e sabiamente dispensa a missão de recontar pela enésima vez a origem mais famosa dos quadrinhos. O filme abre com a já icônica cena do Superman caído em combate e chamando Krypto para o resgate. Krypto. Mesmo após tantos teasers e trailers exibindo o momento, uma corrente de eletricidade surrealista ainda correu pela minha espinha nessa hora. Na sequência, é apresentada ao mundo a nova Fortaleza da Solidão, com acabamento inspirado no Superman de Richard Donner e um paraíso da Era de Prata por dentro, com robôs sencientes e toda a sorte de tralhas hipertecnológicas que o Azulão tem direito. Golaço no meu caderno.

O espectador não fica muito tempo no escuro. Sem pausa pra descanso, Lex Luthor coordena uma campanha massiva contra o Superman em várias frentes de batalha, com apoio dos operativos meta-humanos Ultraman e Engenheira. O bilionário também conta com sua equipe de T.I. e um ditador estrangeiro para plantar fake news e manipular o governo dos EUA e a opinião pública. Não-ficção científica no seu melhor. Mas o bom e velho Super está em boa companhia com seus colegas (e namorada) do Planeta Diário Jimmy Olsen e Lois Lane. E, ainda, uma pré-Liguinha batizada "Gangue da Justiça" composta pela Mulher-Gavião, Senhor Incrível, pelo Lanterna Verde Guy Gardner e, mais tarde, pelo improvável Metamorfo.

Precisamos falar sobre a política.

Lembro do impacto que senti com uma das primeiras cenas de Homem de Ferro (2008), quando o bilionário Tony Stark é atacado com mesmos mísseis que sua Stark Industries fabricou e vendeu mundo afora, escancarando a zona cinza na telona. Se o Homem de Ferro nadou de braçada na política, nada mais natural que o Homem de Aço também. Ainda mais na condição de semideus caminhando entre meros e falhos mortais.

Quadrinhos nasceram políticos. E muitos, woke.

Este Superman se preocupa. Salva tudo e todos (Doreen Green agradece), o que foi, logicamente, uma brincadeira e também uma mensagem: as coisas mudaram. As consequências legais, políticas e ideológicas de seus atos são levadas em consideração. Bryan Singer assumiu essa em Superman - O Retorno (2006), quando fez Lex Luthor sair andando do tribunal, visto que a principal testemunha de acusação estava dando um rolê intergaláctico. Já Zack Snyder, fez questão de esquecer. Aí é fácil.

Em termos de bichinhos fofos sob encomenda para vender bonecos, Gunn continua um Top Gunn. Mesmo com o precedente mui bem sucedido de um guaxinim falante badass, ele sabiamente evita o lugar-comum dos animais antropomórficos e, graças a Rao, Krypto é só um (super)cão. E é mais do que suficiente. Quem é cachorreiro profissional, é garantia de diversão à parte.

Do alto de seus 1,93 m, David Corenswet é, ao lado de Christopher Reeve, o maior Superman de todos os tempos. Literalmente. Dramaticamente, está alguns centímetros abaixo, mas ainda bem maior que os demais. O cara simplesmente pegou o espírito da coisa. É o Superman. É o Clark Kent. E leu All-Star Superman com atenção.

Rachel Brosnahan é mais uma grande Lois Lane para a galeria. Inteligente, charmosa, pró-ativa e inquieta – em especial na cena da entrevista-interrogatório, quando fica nítida a química faiscante entre ela e Corenswet. E, ponto extra pro filme, Lois não é salva pelo Super nenhuma vez. Já Skyler Gisondo como Jimmy Olsen, o melhor amigo do Superman, surpreende pela atuação e presença. O personagem tem peso e realmente auxilia o Azulão em pontos-chave da história. Não se preocupe: Jimmy não é brutalmente assassinado no filme porque "parecia divertido".

E finalmente, o Sr. e a Sra. Kent reencontraram o caminho de casa. Martha (Neva Howell) não tem xarás à vista e Jonathan (Pruitt Taylor Vince) voltou a acertar nos bons conselhos para seu menino kryptoniano.

Sempre imaginei o Nathan Fillion interpretando o Lanterna Verde Hal Jordan e o Lanterna Guy Gardner à imagem e destemperança de Seann William Scott, o eterno Stifler. Talvez em outra realidade. Mas o que tem pra hoje, nesta aqui, funciona. Fillion é indefectível e seu Guy é o babacão estúpido calhorda que conhecemos e adoramos. Faltou a sua notória finesse com as donzelas, mas não se pode querer tudo.

Edi Gathegi como o Senhor Incrível está... incrível. E tem uma cena de ação solo absurdamente... incrível. Anthony Carrigan parece que pulou pra fora dos gibis como Metamorfo, honrando a memória da genial Ramona Fradon com aquele típico personagem outsider que o Gunn adora. Isabela Merced como Kendra Saunders, a Mulher-Gavião V, está apenas OK na função de parecer cool num canto – coisa que Brianna Hildebrand fez bem melhor no papel da Míssil Adolescente Megassônico nos filmes do Deadpool. E as asas mequetrefes voam bem longe da suspensão de descrença.

Com o ritmo frenético do filme, o Lex Luthor do ótimo Nicholas Hoult ficou um tanto unidimensional. Sobrecarregado em maquinações e sem tempo hábil para ângulos mais profundos, o arqui-inimigo do Superman é puro ódio em andamento. Ou talvez esteja mal acostumado, porque sempre associo o vilão ao perfil cerebral e demagógico do Luthor animated na voz cavernosa de Clancy Brown. Minha maior incógnita era a atriz venezuelana María Gabriela de Faría no papel da Engenheira. Adaptações Gunnísticas à parte, a ex-Isa TKM/Eu Sou Franky (orgulho do meu papel de tio!) rendeu uma vilã, hm, engenhosa e verdadeiramente ameaçadora.

Pouca coisa me incomodou. Talvez o Lex louvando reiteradamente seu orgulho em usar o cérebro contra a força, mesmo que a força do misterioso Ultraman seja imprescindível para o seu plano. E utilizar comandos de voz durante uma luta parece ineficiente mesmo numa briga entre seres humanos normais, quanto mais entre superseres com supervelocidade.

O fator Clark Kent também precisa de um bom alinhamento. Está bem melhor do que em sua última incursão na telona e lembraram até dos óculos hipnóticos. Contudo, após sua primeira (e única) cena, o jornalista desaparece e sequer é lembrado por seus colegas de redação. Ficou estranho. Mas nem deveria reclamar. Já deve ter sido difícil o bastante para Gunn manter uma tradicionalíssima redação de jornal impresso nos dias atuais. J.J.J. não conseguiu.

E a mudança de ares na Casa de El? A ideia não é nova. Mas vai dar um caldo.

Com um cão voador, um kaiju, macaquinhos-bot, universos de bolso e a inacreditável vontade de enxergar humanidade e igualdade pelos olhos de um alienígena imigrante ilegal, Superman foi como um afago caloroso na alma de um velho leitor do Homem de Aço. Deu até vontade de revisitar aqueles tesouros nas caixas da garagem. E isso não tem preço.

sábado, 21 de junho de 2025

De volta à terra prometida


Extermínio 3: A Evolução (28 Years Later, 2025) evidencia em cada frame o quarto de século que o separa do filme original, que hoje pode ser considerado um clássico de gênero sem dor na consciência. Ao mesmo tempo, oferece toda a cortesia e reverência ao tropo que fez daquele microcosmo um lugar tão fascinante. O diretor Danny Boyle e o roteirista Alex Garland reformam sua parceria naquilo que vinha sendo cozinhado desde 2007 – e que, tenho certeza, foi adiado deliberadamente até que a punchline dos títulos se alinhassem com a passagem do tempo do lado de cá da telona. Uma piscadela para os espectadores mais resilientes, mas também um abacaxi gigante de expectativa para dar conta.

Algo para se ter em mente antes da experiência do filme, é que o tempo passou também para a dupla. O Boyle 2020 é um diretor diferente daquele dínamo de urgência cinética que entregava estética e narrativa punk para as massas. A energia ainda está lá, porém calculada e compartimentalizada, quase ferramental, sempre servindo a um propósito que não o gore puro e simples.

Quem espera aquela carga de tripas, vísceras e um vomitório de sangue infectado, vai receber. Mas não em um trem desgovernado.

A retomada da dupla está em sintonia fina. Como no 1º filme, a base da trama é uma mistura de drama familiar com o terror à espreita num bucólico cenário rural. Boyle não economiza nos experimentalismos visuais cruzando metáforas históricas com o mythos da franquia, criando uma sensação perturbadora e incômoda. Em certos momentos, chegam a remeter aos recortes psicóticos de Oliver Stone no filme Assassinos por Natureza (1994). Tudo isso no bom sentido.

Em contrapartida, é bom retornar a um inferno conhecido, com a trilha sonora do grupo Young Fathers seguindo a pegada instrumental drone/post-rock eternizada pelo compositor John Murphy. Não existe no cinema uma trilha mais estilosa e tensa para cenas com zumbis/infectados raivosos. É de empenar os braços da cadeira com a ponta dos dedos.


A cena de abertura segue a tradição da série em fazer o espectador assistir ao resto do filme sob o mais absoluto TEPT. Os Teletubbies finalmente foram ressignificados. A sequência não deixa nada a dever ao Boyle raiz e nem à chocante intro que Juan Carlos Fresnadillo dirigiu em Extermínio 2.

A história central é conduzida por Jamie (Aaron Taylor-Johnson), sua esposa enferma Isla (Jodie Comer) e seu filho de doze anos, Spike (Alfie Williams). A família reside em uma pequena comunidade estrategicamente isolada que conseguiu funcionar dentro da quarentena imposta ao devastado Reino Unido.

Numa surpreendente boa atuação de Taylor-Johnson, Jamie é um dos caçadores e escavadores mais experientes do lugar. Orgulhoso e paternalista, ele visa o mesmo destino para Spike e o inicia em sua 1ª saída fora da comunidade, dois anos antes da idade mínima recomendada pela tradição local. Após uma experiência aterradora, Spike se vê diante de algo ainda mais alarmante: a piora no estado de saúde de sua mãe, que sofre de uma doença desconhecida. E justamente lá fora pode estar a única chance de cura, na figura do misterioso e recluso Dr. Kelson, personagem do grande Ralph Fiennes.

Felizmente, o roteiro de Garland não ignora os eventos catastróficos que pontuaram o filme anterior. Pelo contrário, lida sobriamente com todas aquelas nuances da cronologia e vai (muito) além, expandindo o conceito original para níveis inéditos até então. No filme, o status quo dos infectados andou um bom pedaço nesses 28 anos. A tela ferve de tantas possibilidades.

O que é uma faca de dois gumes para Extermínio 3.

☣️ ☣️ ☣️ SPOILERS ☣️ ☣️ ☣️

Um dos aspectos mais marcantes dos dois primeiros filmes é o protagonismo à toda prova do vírus. Ainda mais do que os próprios raivosos, que já no filme original apresentavam indivíduos moribundos, sofrendo de inanição severa ou simplesmente mortos e empilhados em algum canto. O perigo maior sempre foi a da infecção, mesmo pelo mero contato com uma gotinha furtiva de sangue contaminado. Sua ameaça paira sobre os personagens como uma nuvem negra pronta para ferrar com tudo. Invisível e onipresente, o vírus é o grande vilão da série.

Em teoria, era só aguardar uns meses até todos morrerem de fome e fazer uma cuidadosa faxina na base do lança-chamas – o que não deu lá muito certo no segundo filme. Em Extermínio 3 tampouco, visto que os infectados desenvolveram um senso primitivo de sobrevivência. Entre uma e outra regurgitada de sangue infecto, eles passaram a caçar em bandos para se alimentar. Fora isso, uma variante do vírus causou uma mutação mastodôntica em alguns infectados, em que o "vírus age como esteróides", segundo um personagem. Os chamados Alfas são infectados bombados com mais de dois metros de altura, uma rola do tamanho do Peter Dinklage e muito difíceis de matar.

E fica pior.

Os infectados agora conseguem acasalar e procriar. O resultado ainda é incerto, já que o filme apresenta o que pode ser o 1º nascimento do tipo. Aqui, a bebê em questão está aparentemente saudável, sem sinais da infecção raivosa – o "milagre da placenta", como define o Dr. Kelson. Porém, ainda pode ser a hospedeira do vírus inativo (lembra da sofrida heroína de Extermínio 2?). A ver... embora tenha certeza que já vi.

Zack Snyder, ele mesmo, já bateu nessa tecla não apenas uma, mas duas vezes – no remake Madrugada dos Mortos (2004) e em Army of the Dead: Invasão em Las Vegas (2021). Tanto na questão do "bebê zumbi" quanto na dos "super-zumbis Alfas". Visionário, enfim!

Em tempo... Há uma teoria se espalhando raivosamente pelo Reddit na qual o austero Dr. Kelson é o criador do vírus, daí seu comportamento peculiar. Tese interessante, embora contradiga o curta de "quadrinhos animados" 28 Days Later: The Aftermath - Stage 1 escrito por Steve Niles e constante nos extras do DVD do 2º filme (e, portanto, canônico?). Sempre haverá o que se explorar aí, de qualquer forma.

Mais uma amostra das sampleadas marotas de Boyle e Garland: a introdução de Jimmy e sua gangue. No contexto daquele cenário pós-apocalipse zumbístico, Jimmy assume contornos de um Negan (The Walking Dead), liderando um grupo de combatentes e espalhando sua lenda urbana pelas terras arrasadas. Sutileza passa longe.

Aliás, que puta choque estético e sonoro naquele final. 45% Warriors, 45% Laranja Mecânica e 10% vamos-ver-no-que-vai-dar-no-próximo-filme.


☣️ FIM DOS SPOILERS ☣️



Com atuações marcantes da excelente Jodie Comer, do veterano Fiennes e, especialmente, do jovem Alfie Williams, Extermínio 3 é um animal diferente do tour de force de ação & gore dos filmes anteriores. Isso não há o que discutir. No final das contas, se aproxima de um coming of age pós-apocalíptico (e foi impossível não lembrar do curta aussie I Love Sarah Jane, de 2008), por vezes gratificante, por vezes tocante, quase sempre apavorante. Como a própria chegada da idade, por assim dizer.

Mesmo com suas idiossincrasias, Extermínio 1 e 2 mantiveram a alta octanagem como força motriz de suas narrativas. A sensação que eles transmitem é a mesma (deve ser, porra) de participar de um torneio de roleta russa. Extermínio 3 (28 Years Later, porra²) mantém essa qualidade inata, embora divida sua atenção com planos mais abrangentes, mais ambiciosos. O final intrigante e escancarado não deixa dúvidas de suas intenções.

Não por acaso, a continuação 28 Years Later: The Bone Temple foi filmada simultaneamente, com previsão de estreia em janeiro de 2026. Danny Boyle deixa a casa toda desarrumada e a bola da vez está com a cineasta Nia DaCosta. Te vira aí, minha filha.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Para Karla Sofía Gascón, obrigado por tudo!

Ainda não assisti Emilia Pérez. Apenas acompanhei, junto com o planeta, o desmonte público de sua estrela (cadente) Karla Sofía Gascón na corrida pelo Oscar. Polêmicas à parte, só agora acordei: o diretor do filme, Jacques Audiard, tem dois longas espetaculares no currículo: O Profeta (Un Prophète, 2009) e Ferrugem e Osso (De Rouille et D'os, 2012), obsessões que cultivei com muito carinho num grupo de e-mails que participei.

Seguem minhas impressões rápidas & rasteiras da época conservadas em carbonita pelo Gmail.


22 de jan. de 2011 — O Profeta. Impressionante como uma premissa tão simples (novato "se educando" na prisão) ainda pode render tanto. Mas não é por acaso. O roteiro é um primor. Consegue lidar com situações complexas com uma acessibilidade notável, sem soar didático e sem fazer concessões. E as atuações são fantásticas. A tensão entre os dois protagonistas, Malik e Luciani, é de gelar a espinha. O que foi aquele tiroteio, cara. Puta que os pariu. Filmaço. E o último resquício de credibilidade que o Omelete tinha foi pro saco.*

* mas isso faz tempo, hein.


19 de fev. de 2017 — Ferrugem e Osso é muito bom. Um Rocky realista com foco na Adrian. Drama contundente e concussivo, pungente e pugilista. E a Marion Cotillard é fantástica demais.

De lá pra cá, reassisti ambos algumas vezes e sempre achei a experiência ainda melhor que anterior. Já está na hora de revisitar.

Valeu o lembrete, Karla.

Ps: gafanhoto(a), fecha logo esse navegador e corra atrás desses filmes no streaming/torresmo mais próximo!

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Na Weyland-Yutani, ninguém pode te ouvir gritar


Alien: Romulus é o melhor filme da série em 40 anos. Parece muito, mas não é tanto. E ainda por cima, relativo. Confira comigo no replay®:

Alien, o 8º Passageiro (1979) é um clássico do suspense/terror/ficção científica com Ridley Scott curtido no cinemão americano dos anos 1970. Aliens, o Resgate (1986) é James Cameron exercitando o melhor "bigger, stronger, faster" do mainstream hollywoodiano. Alien³ (1992), com um estreante David Fincher perdido numa produção caótica, é uma naba irredimível e, hm, irresgatável – o Assembly Cut de 2003 só expande o estrago. Alien: A Ressurreição (1997) é Jean-Pierre Jeunet: satírico, delirante, perturbador e não se leva a sério. O caça-níqueis Alien vs. Predator (2004), de Paul W. Anderson, foi uma tentativa de revitalização de duas marcas, bem como Aliens vs. Predator: Requiem (2007), dos irmãos Greg e Colin Strause. Ridley Scott à casa retorna no ambicioso Prometheus (2012) e no evasivo e fugaz Alien: Covenant (2017). Ufa.

Foram muitas transfusões de sangue ácido. Isso, porém, não afetou a força da franquia na cultura pop. Especialmente nas HQs e no multimiliardário mundo dos games.

O diretor uruguaio Fede Álvarez sabe disso e joga pra galera. Sagaz, ele seguiu a mesma diretriz que adotou em sua contribuição na franquia Evil Dead: o cânone é sagrado. Tanto a direção quanto o roteiro, co-escrito com o conterrâneo e parceiro de longa data Rodo Sayagues, dispensa invencionices e reviravoltas, optando por extrapolações em cima das regras do jogo. Seja na narrativa ou nos conceitos, Romulus é intimamente ligado aos filmes anteriores – mesmo o 4º, A Ressurreição, que se passa ainda mais no futuro. Não que o filme seja apenas para iniciados no universo do Alien, pelo contrário. É totalmente acessível. Mas é que flui delícia quando você tem aquela bagagem.

Aliás, pelo que pesquei por aí, o filme também tem relações com o game Alien: Isolation, protagonizado pela filha da Ripley, Amanda. E que ainda hei de jogar, com a benção de São Bishop.


Se Álvarez foi minucioso em sua pesquisa, em certos momentos, todas essas referências acabam estourando na telona como um chestburster. O diretor não é sutil em seu fanservice e o que deveria ser uma piscadela cool para o fandom, acaba soando redundante e desnecessário. É um recurso para ser usado com moderação. Nada que embace a experiência, contudo. O uruguaio é dos bons. Sabe administrar personagens e montar cenários de tensão como poucos de sua geração.

Romulus se passa no ano 2142 de Nosso Senhor, ou seja, 20 anos após os eventos de Alien e 37 anos antes de Aliens, o Resgate. Logo na abertura, vemos o que sobrou da nave-cargueiro USCSS Nostromo e aí, confesso, senti aquela baforada criogênica na espinha. Afinal, ali jaz um obelisco do fatídico destino dos tripulantes do filme original.

A história é protagonizada por Rain, uma jovem que tenta sobreviver em uma colônia de mineração de propriedade, adivinha, da megacorporação Weyland-Yutani. O ambiente é inóspito e repleto de doenças relacionadas à carga absurda de trabalho. Tudo é piorado por um sistema burocrático criado para impossibilitar a evasão de trabalhadores, remetendo à odiosa e muito real escravidão por dívida – coisa que só um latino se daria ao trabalho de transpor para um blockbuster. Órfã e acompanhada apenas de Andy, seu "irmão adotivo", Rain sonha em se mudar para uma colônia com um mínimo de qualidade de vida, onde se pode ver um sol e não precisa respirar pó de minério até solidificar a alma.

A oportunidade surge quando seu ex-namorado Tyler, ao lado da irmã Kay, do primo Bjorn e sua namorada Navarro, descobrem uma espaçonave da companhia à deriva e em rota de colisão com os anéis que circundam o planeta. A ideia é alcançar sua órbita antes do choque e catar as suas câmaras de crioestase – o único modo de burlar os 9 anos necessários para chegar até a colônia independente Yvaga ("céu" ou "paraíso" em guarani!). Chegando lá, descobrimos que o lugar passou por um inferno de Aliens e Facehuggers. E ainda não saiu dele.

Uma coisa que Alien e Aliens, o Resgate (e, neste mérito, O Predador também) legaram aos jovens cineastas é o valor de um coadjuvante. Mesmo com o espectador antecipando quem iria pro saco já nos primeiros minutos de filme, o carisma do personagem era tão grande que batia aquela dorzinha no coração quando o mesmo virava presunto. É uma arte que se perdeu com o tempo, infelizmente. Em Romulus não é diferente, embora tenha boas atuações e motivações do pequeno núcleo principal.


A ótima Cailee Spaeny, que tem feito um 2024 impecável, honra a camisa e o underwear das heroínas da série. E o britânico David Jonsson brilha no papel de Andy com duas composições assustadoramente diferentes. O modo como o roteiro usa a sua natureza como um mecanismo para o desastre é nada menos que espetacular.

O filme também é bastante engenhoso em criar situações com deadline curta/sendo encurtada e literalmente mordendo os calcanhares. São momentos de quebrar o encosto da cadeira. A dinâmica das cenas em gravidade zero é sensacional. Como se não bastasse, Romulus traz as maiores sequências de ação Facehugger da série. Os sirizinhos transudos finalmente dominaram os holofotes e nunca foram tão esforçados em tela. Francos candidatos ao próximo Oscar.

Já na parte das extrapolações em cima do cânone, a coisa fica ainda mais interessante e, por que não, controversa.


☣️ ☣️ ☣️ SPOILERS ☣️ ☣️ ☣️

Rolou uma celeuma online por causa do uso da imagem gerada por IA do saudoso Ian Holm como o andróide Rook. Sou totalmente a favor dos atores em relação ao uso indiscriminado de IA, porém o caso foi de inserção digital póstuma. E numa referência óbvia a um dos personagens mais icônicos de sua brilhante carreira, o psicopático robô Ash, do 1º filme. Essa passa, junto com o Peter Cushing/Moff Tarkin virtual de Rogue One. São homenagens, pô.

A substância negra extraída pela Weyland-Yutani de um casulo Alien nos destroços da Nostromo remete à arma biológica criada pelos Engenheiros em Prometheus/Covenant. O que talvez explique a semelhança facial do The Offspring (o grotesco híbrido humano-xenomorfo) com os gigantes albinos. Gah!

Um dos efeitos negativos da volta dessa substância é o fato dos Facehuggers agora serem escuros, sendo que a cor de pele humana meio amarelada que eles sempre tiveram era muito mais aflitiva. Inclusive, em determinadas cenas, os Aliens ficam parecendo o Venom.

E o mais grave: a fascinante cenografia biomecânica criada pelo gênio H. R. Giger deu lugar a um reboco de piche disforme e genérico. Blasfêmia.

Casulo Alien pós-troca de pele. Boa adição ao mythos! E rendeu a nervosa e nojentíssima cena da colonoscopia elétrica que culminou na morte de Bjorn.

Na saída do cinema, pensei: Aliens respeitando um trabuco não faz sentido. Mas lembrei que provavelmente foi o que eles enfrentaram quando tomaram a estação. Os ETs cabeçudos não são burros.


☣️ FIM DOS SPOILERS ☣️


Mesmo em suas poucas deficiências, Alien: Romulus incita bons papos de boteco – só para, no final, chegar à conclusão que valeu muito o preço (salgado) do ingresso. Sem contar que os efeitos são de cair o queixo. É um filmão que merece ser visto numa telona.

Foi maravilhoso e inesperado esse reencontro com a franquia em grande forma. E mais ainda a vontade de conferir o filme no cinema de novo. Fazia um tempinho que não rolava...

terça-feira, 4 de junho de 2024

O diabo mora ao lado


Diferente da maioria dos prequels, A Primeira Profecia (The First Omen, 2024) teve à disposição um farto material sugerido para elaborar. O clássico que Richard Donner legou em 1976 tinha planos mais urgentes e ambiciosos, mas deixou algumas migalhas pelo caminho. O remake de 2006 – excomungado pela crítica e sucesso estrondoso de público – se limitou a atualizar a história. Já a subestimada série de 2016 foi uma sequência alternativa do original. Ficou com a cineasta Arkasha Stevenson a missão de triangular as raízes do mal em orfanatos católicos e cidadezinhas da velha Roma.

E essa nova investida entrega. Ainda não é aquela mega turnê por ruínas e cemitérios etruscos, mas o resultado é favorável. E promissor.

Stevenson é estreante em longas, mas já exibe uma assinatura cinemática bem particular. Sua câmera é atenta, quase documental, provavelmente influência dos seus tempos de fotojornalista no Los Angeles Times. Com habilidade, ela faz questão de capturar as pessoas ao fundo e a atmosfera das locações, elevando quase ao nível dos protagonistas. Isso confere uma sensação de imersão e tensão muito interessante e pouquíssimo hollywoodiana. O que é um baita elogio.

Essa opção de perspectiva mais, digamos, popularesca remete ao prólogo de O Exorcista, com o saudoso Max von Sydow vagando pelas ruas de Mosul, Iraque. Recortes do dia a dia do cidadão comum que sugerem certo realismo mágico, ainda que aliado a uma presença sinistra e invisível. E isso faz todo o sentido do mundo. Afinal, antes de falar do Anticristo é preciso falar do mundo e das pessoas que vivem nele.

Preparar o palco é essencial. Ou, no caso, fazer a cama.


A história começa com dois padres discutindo uma suposta conspiração dentro da igreja. Corta para a Roma de 1971, onde a jovem noviça Margaret é enviada para trabalhar num orfanato e, talvez, ser ordenada freira – tudo em meio a protestos de estudantes, trabalhadores e militantes de esquerda (opa!). Margaret é conduzida pelo Cardeal Lawrence até o orfanato, que é dirigido pela austera Irmã Silva. Aos poucos, ela vai desvendando o lugar, suas peculiaridades e algumas residentes singulares, como a misteriosa jovem Carlita.

Claro que não demora até Margaret topar com o dedinho do pé bem na quina da conspiração pró-Anticristo.

O roteiro, de Stevenson, Tim Smith e Keith Thomas, toca em alguns pontos bem relevantes, como a opressão sistêmica e a luta pela autonomia das mulheres sobre seus corpos. Em termos de terror per se, não deixa muito espaço para ambiguidades. Aliás, não deixa nenhum. Com exceção, talvez, de uma reviravolta que dá pra antever a quilômetros de distância. O casting, em contrapartida, foi bastante feliz.

Nell Tiger Free – que, apesar do nome, não é nativa americana, mas inglesa – faz uma protagonista genuína e cativante. A bela espanhola Maria Caballero, mesmo com pouco tempo de tela, se destaca como a colega de quarto de Margaret. O mesmo para a adolescente italiana Nicole Sorace, como a introspectiva Carlita. Do lado dos veteranos, o grande Bill Nighy empresta altivez e confiabilidade ao Cardeal Lawrence, bem como Ralph Ineson no papel do renegado Padre Brennan, com o auxílio extra do seu vozeirão estrondoso (não é à toa que será o Galactus!). E a Irmã Silva está muito bem representada pela nossa Sônia Braga, cravo & canela.

O único desagravo foi a mera ponta reservada à Charles Dance, o eterno Tywin Lannister. Devia ser proibido por lei um ator desse porte aparecer menos de duas horas por filme.

Também desceu esquisita a participação-relâmpago da atriz aussie Ishtar Currie-Wilson como a insana Irmã Anjelica. Os trailers e imagens promocionais venderam a sua expressão assustadora como se fosse o carro-chefe do filme. E passa bem longe disso.


A bem da verdade, o plano dos servos do cramulhão é digno dos vilões mais camp do 007. E se a trama não tem muitos trunfos, o jeito foi fazer algumas rendições aos clássicos. As (poucas) mortes do filme são transposições quase literais de cenas famosas do A Profecia original. Planos e enquadramentos se embriagam em cenas icônicas de O Exorcista e O Bebê de Rosemary – impressão reforçada pela fotografia obsessivamente simétrica de Aaron Morton nas tomadas fechadas em contraponto com a pegada mais solta de Stevenson nas externas.

Eventualmente, a coisa cruza o limite e abraça o plágio descarado: a impressionante e visceral cena de possessão na reta final foi reeditada da famosa performance de Isabelle Adjani em Possessão, filme dirigido pelo cineasta polonês Andrzej Żuławski em 1981. É ver – e comparar – pra crer.

* o curioso é a presença do Sam Neill em Possessão no mesmo ano em que interpretou o Damien adulto em A Profecia III. De certa forma, fecha-se aqui um ciclo bastardo. Vade retro, fio de Satanás!

Pode parecer estúpido (e é), mas o grande momento de A Primeira Profecia é o final. Para os adeptos do filme de 1976, como este que vos rascunha, é recompensador em vários aspectos. Não posso elaborar aqui por questões de spoiler, mas dou minha palavra que vale a pena.

Ao menos 66,6% de satisfação garantida.

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Godzilla Plus One (Million)


Godzilla Minus One talvez seja o maior retorno às raízes de Godzilla desde, bem, Godzilla, de 1954. Inicialmente criado como uma metáfora às bombas nucleares – lembrando que o Japão levou duas delas apenas 9 anos antes – e à perseverança humana sob os cenários mais adversos, a franquia do Rei dos Monstros revela muito sobre aquele povo e seu ethos. Quiçá, sobre o resto do mundo.

Se pegar King Kong, de 1933, como contraparte, vira tese. Diante da sua criação, os cowboys do velho oeste se portavam como... cowboys do velho oeste. Vieram, viram, venceram e não se fala mais nisso. Vinte anos depois, o país do sol nascente não só adotava o subgênero, como o reinventava, expandia e colocava seus titãs para fazer de Tóquio um octógono.

Era patente a diferença nas abordagens: Hollywood abatia a tiros os monstros que ousavam atentar contra o american way, varrendo pra baixo do tapete toda a sua verdade inconveniente; o Japão os reverenciava como uma força da natureza, imparáveis, onde as únicas opções eram correr ou ser pisoteado. Era um fantasma que não dava para exorcizar – no máximo, dava para se adaptar a ele.

Isolados os devidos traumas do pós-Guerra, seria a cura pela destruição-reconstrução-repetição? Só o Dr. Gori explica.

O filme passa longe de toda a filosofia de boteco e trata suas reflexões com peso, dramaticidade e, diria até, bastante ousadia em se tratando da honorável Toho Studios. Méritos de Takashi Yamazaki, diretor, roteirista, supervisor de efeitos especiais, contrarregra, ascensorista, zelador, cozinheiro, encanador e flanelinha do filme. Embora não seja das tarefas mais fáceis, o cineasta não hesita em ir fundo nas antigas feridas.


Ryunosuke Kamiki interpreta um protagonista pra lá de improvável, o ex-piloto kamikaze Shikishima. Vagando por um país moralmente derrotado e estruturalmente arrasado, aos poucos ele vai reconstruindo a vida ao lado da jovem Noriko e da bebê Akiko, duas sobreviventes igualmente sozinhas em meio ao caos. Ironicamente, Shikishima passa a ganhar a vida num serviço mortal: recolher e/ou detonar as milhares de minas americanas que agora flutuam pelos mares japoneses. Não demora até eles toparem com algo muito pior vindo das profundezas do oceano.

A trama básica coexiste com o subtexto denunciando os efeitos catastróficos das ações do homem na natureza, um tópico obrigatório na série e desgraçadamente atual. Mas um aspecto que salta da tela logo no primeiro terço do filme é o forte tom de autocrítica política. Coisa rara, ao menos dessa forma tão direta e num Godzilla-movie. Sem cerimônia, Yamazaki aponta o dedo (médio) para as fuças de Hirohito e seus militares pelas mazelas impostas ao povo na 2ª Guerra. Isso não em apenas um diálogo ou cena, mas no filme inteiro. Considerando sua natureza mainstream, diria que é até transgressor.

O roteiro aproveita essa passagem de boiada – alô, ex-ministrinho! – e faz questão de dar nome aos bois do cenário geopolítico da Guerra Fria, notadamente as duas superpotências, bastante ocupadas dividindo os espólios da guerra. O discurso é inesperado, sobretudo contundente: governos fazem a merda e deixam a batata quente para a população civil resolver. Um viés que remete a O Hospedeiro (The Host), espetacular kaiju sul-coreano de 2006.

Todo esse contexto é magistralmente integrado e desenvolvido com o elemento humano. O Shikishima de Kamiki é real, introspectivo, devastado pela síndrome do sobrevivente. E ainda assim, crível quando tenta retomar os trilhos de sua vida. Seu núcleo de colegas de trabalho é divertido e ligeiramente caricato, quase daquela forma que nos acostumamos a ver em filmes e séries orientais. Já a Noriko, da belezura Minami Hamabe (mega-estrela no Japão), é um farol de esperança para o quebrado Shikishima, além de protagonizar simultaneamente a melhor e a pior sacada do filme.

E o que Takashi Yamazaki consegue atingir com um orçamento de 10 milhões de doletas é de tirar o fôlego atômico do Godzilla


O CGI não é indefectível. Isso tanto pelo teto de gastos quanto por opção estilística. Por exemplo, Yamazaki não quis a renderização de músculos na criatura em homenagem aos heróis fantasiados dos primeiros filmes. Então dá para perceber a mecânica dos movimentos do bichão em algumas cenas. Felizmente, acaba conspirando a favor da estranheza geral, que é ver um monolito de milhares de toneladas com um coral do tamanho do Everest nas costas arremessando navios e destruindo edifícios por esporte.

As sequências de ataque do Godzilla são apoteóticas. A nova Baforada Atômica é simplesmente a melhor já feita até aqui.

Durante a ação, o caldeirão de influências pop fica bem evidente. Vai desde os filmes antigos e dos mais recentes da franquia (caso do excelente reboot Shin Godzilla, de 2016), a clássicos sci fi como A Guerra dos Mundos e muito Steven Spielberg – principalmente, Tubarão e Jurassic Park, utilizados com inteligência e diligência, não do modo preguiçoso e esquemático de Godzilla, a bagaça yankee dirigida por Roland Emmerich.

Godzilla Minus One é para ver, rever e guardar no coração. É, antes de tudo, uma experiência cinematográfica. Que, estupidamente, perdi. E tento reeditar caseiramente, da melhor maneira possível.

É... tenho que conviver com o fato de que vi o Godzilla '98 no cinema ao invés dessa maravilha. Trauma de guerra é fogo.

Ps: a versão Godzilla Minus One/Minus Color, em p&b (dã) e com uma pegada mais documentarista, também é imperdível.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Um minuto para os comerciais... e já voltamos com o diabo!


Crescer à base da televisão dos anos 1970 e 1980 foi louco. Aquele ambiente outrora 100% familiar e controlado, passou a flertar com o imprevisível e a necessidade de esticar os limites do espectador. Na guerra pela audiência, cada pontinho contava. Não demorou para descobrirem que o povão gostava de sentir medo.

No Brasil, a festa da imprensa marrom logo migrou para os sinais de TV. E dá-lhe Documento Especial, Linha Direta, Globo Repórter e segmentos inteiros do Fantástico, do Programa Flávio Cavalcanti e do Programa Silvio Santos dedicados ao choque e ao oculto, sempre precedidos pelo aterrorizante aviso "as imagens a seguir são fortes, por favor, tirem as crianças da sala."

Desnecessário dizer que sempre assistia a tudo com um sorriso trêmulo por fora e um trauma dilacerando minh'alma por dentro.

Late Night with the Devil traz todo esse zeitgeist e essa bagagem, vá lá, vintage que tem uma ressonância-monstro em quem já cruzou a marca dos 45. O filme foi escrito e dirigido pelos irmãos Colin e Cameron Cairnes, que certamente comeram, beberam e respiraram materiais de arquivo da época.

O resultado em tela é nada menos que impressionante.


No filme, o ótimo David Dastmalchian interpreta Jack Delroy, apresentador do programa Night Owls with Jack Delroy, mistura de programa de variedades e talk show. Para a sua infelicidade, Jack concorre com o icônico The Tonight Show Starring Johnny Carson e, logicamente, vai de mal a pior. Numa medida desesperada para levantar a audiência, Jack e seu produtor decidem fazer um programa especial de Halloween. Como convidados, um médium, um cético, uma parapsicóloga e uma adolescente supostamente possuída por um demônio.

É claro que, no decorrer do programa, o circo literalmente pega fogo. E ao vivo.

Mesmo curtinho (93 min.), Late Night with the Devil tem um pano de fundo complexo. Na abertura, a vida e a carreira de Jack Delroy são devassadas em uma espécie de documentário com a narração em off do veterano Michael Ironside. Daria material para uma minissérie, fácil. O filme em si é o próprio programa em tempo real – e sem cortes quando entram os comerciais. Com habilidade, os irmãos Cairnes conduzem as transições da exibição de TV para o formato found footage cobrindo as cenas de bastidores e vice-versa.

A cenografia e os figurinos são um espetáculo à parte. Jogam aquele espectador +45 de volta ao passado como se fosse a dupla Doug & Tony despencando pelo continuum em O Túnel do Tempo. Fora que é uma grande homenagem à cultura televisiva de massa (para o bem ou para o mal). Por vezes, lembra uma reedição do Isto É Incrível, adaptação do Silvio Santos para o original americano That's Incredible! – do qual o filme pega emprestado boa parte da estética.

Isso também se reflete nos trejeitos e inflexões de época adotados pelo elenco. Dastmalchian está no topo do seu jogo. Laura Gordon, que interpreta a parapsicóloga June, e a promissora Ingrid Torelli no papel da endemoniada Lilly D'Abo (a sutileza do sobrenome) também estão sensacionais.

Mas os meus favoritos em cena são os underdogs: Fayssal Bazzi como o psíquico Christou, Rhys Auteri como o assistente de palco Gus e Ian Bliss, genial como o ilusionista, cético e caçador de fenômenos sobrenaturais Carmichael Haig. Divertidíssimos de assistir.


Late Night with the Devil mostra o quão esses irmãos Cairnes são talentosos. Com a câmera atenta aos detalhes, eles montam um engenhoso mix de humor, suspense e terror, incluindo um inesperado toque folk horror. E sempre mantendo a atmosfera pra lá de tensa, na veia slow burn, como se cada intervalo fosse a última chance de fugir antes das câmeras voltarem a rodar e o pandemônio se instalar mais uma vez.

O roteiro, além de esperto nas referências (O Exorcista compels you!) e no subtexto ponderando as consequências do sucesso a qualquer preço, também guarda uma boa parcela de reviravoltas para alguns personagens. Mesmo o final que ensaia contornos Lynchianos – o que me fez tremer nas bases pelo risco inerente – acaba devidamente contextualizado. No fim, remete ao bom e velho e impiedoso Rod Serling mesmo.

Não falta vontade de comentar mais a respeito, mas longe de mim entregar o final do show...

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Rápido & rasteiro: Papai Noel está chegando... 🎅🎄

De volta com a mão-na-rodíssima sessão R&R para garantir a diversão nesse tempo de festas num mundo pré-apocalíptico. Não é à toa que Papai Noel esteja tão puto!

"Então é Natal..." ♪ ♫ ♬


NATAL SANGRENTO / SILENT NIGHT, DEADLY NIGHT (Charles E. Sellier Jr., 1984) — o infame slasher natalino de 1984, finalmente em versão unrated. De fato, as cenas inéditas são bem pesadas – além de fáceis de serem identificadas pela má qualidade dos recortes, já que os negativos originais foram perdidos – e certamente embaçariam a censura R que o estúdio queria para o lançamento nos cinemas. De resto, atuações ruins, muitos peitinhos, humor involuntário e às vezes se leva a sério demais, sendo que nem o roteiro e nem a direção têm cancha pra isso. Mesmo assim, rendeu quatro sequências e um remake. Crássico.


FELIZ NATAL / CHRISTMAS BLOODY CHRISTMAS (Joe Begos, 2022) — Papai Noel robô perde o controle e massacra meio mundo. Tem chupações descaradas de Hardware: O Destruidor do Futuro e O Exterminador do Futuro, porém, antes do machado comer solto, os diálogos são bem legais. Deu a impressão que o diretor-roteirista queria fazer um Antes do Amanhecer punk rock, mas aí o estúdio pediu gentilmente que ele incluísse sexo, gore, robôs assassinos e temática de Natal. Só pra dar aquela agitada.


FUTURAMAFuturama é vida. Devo estar no trilionésimo rerun da série de Matt Groening e David X. Mas a ocasião é especial e só pode ser estrelada pelo Papai Noel Robô, uma máquina assassina de todos que foram maus durante o ano em sua lógica distorcida (ou não). A persona sacana à Lobo e o vozeirão do John Goodman (no 1º episódio) completam a mágica. O caminho das pedras: S02E04 - Xmas Story, S03E03 - A Tale of Two Santas, S06E13 - The Futurama Holiday Spectacular e S08E06 - I Know What You Did Next Xmas. Aceitamos Pix.


NOITE INFELIZ / VIOLENT NIGHT (Tommy Wirkola, 2022) — Duro de Matar com Papai Noel no lugar de John McClane. O cineasta norueguês Wirkola (de Dead Snow, lembra?) aproveita bem a sacada e o filme até zoa com isso. David Harbour, de Stranger Things e Viúva Negra, caiu como uma luva no papel. É o único "herói" da leva, mas não se engane: esse Noel é decadente, beberrão e badass. Divertido demais.


UMA NOITE DE FÚRIA / SANTA'S SLAY (David Steiman, 2005) — revejo Natal sim, Natal não, pra não gastar. As piadas são dementes, o brucutu Bill Goldberg é o próprio Noel from Hell e a Emilie de Ravin...


...é incrivelmente fofa!

(ai, ai)

Fora que o elenco de apoio é surreal para um trashão – Robert Culp, Saul Rubinek, Fran Drescher, James Caan. Tá bom ou quer mais?


🎅 🎄 😈 🎄 🎅


Essa maratona é garantia de uma Noite Feliz. Melhor que isso, só uma Noite com Final Feliz.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

A verdade está aqui dentro


No One Will Save You é sob medida para aficcionados por UFOs – ou UAPs, na terminologia recente – e causos de abdução extraterrestre. Mas a verdade é que mira em voos muito mais altos. Ou mais intimistas, para ser exato. A entrega é garantida: o filme faz uma construção que remete aos relatos mais bizarros e absurdistas já registrados, como o infame Caso Kelly-Hopkinsville, que, aliás, parece ter sido o molde para várias coisas aqui. Sem dúvida, o roteirista, produtor e diretor Brian Duffield mergulhou de bico no assunto.

Muito disso foi antecipado no trailer, que era instigante, mas deliberadamente superficial. O homem tinha outros planos.

Duffield roteirizou o razoável A Babá, de 2017, e o ótimo Amor e Monstros, de 2020. Debutou na direção com o fofo, gore e esquisito Espontânea, também em 2020. Todos conciliando, ou tentando conciliar, comédia, romance e terror, trinca que parece ser o grande barato do cineasta. Em No One Will Save You, porém, ele tenta passar de fase, abandonando a comédia e o romance e investindo no drama e no terror. É um thriller de abdução que não é bem sobre abdução, mas explora o assunto quase ao esgotamento para que Duffield conte a sua história.

Um dia ele pagará por seus crimes, mas, como atenuante, No One Will Save You subverte espetacularmente o gênero. Ao mesmo tempo em que o revitaliza, diga-se.

A protagonista é Brynn, uma jovem costureira que ainda mora na mesma casa onde cresceu, numa bucólica cidadezinha do interior. Isolada e persona non grata na comunidade por motivos nebulosos, Brynn ainda lida com o luto da perda recente da mãe. Para enfrentar a solidão, ela passa os dias escrevendo para sua amiga Maude e construindo uma miniatura idílica da cidade em sua sala de estar. Uma noite, ela acorda e percebe que há um intruso na casa. E que, apesar de humanoide, a estranha figura não é nada humana.

A partir daí, o filme vira uma montanha-russa infernal do espaço sideral.


Em termos de estrutura, é patente a inspiração em "The Invaders", episódio clássico de Além da Imaginação. Os aliens também seguem o perfil padrão dos chamados Greys: olhos imensos, riscos no lugar da boca e nariz, comunicação através de grunhidos. Nesta versão, eles também têm movimentos curtos e abruptos, algo mecânicos, e são dotados de uma telecinese muito forte. O que faz muito sentido, dada a compleição física, por assim dizer, slim ao extremo. Outro arrojo foi estabelecer uma inédita diversidade da espécie. Temos pelo menos 3 tipos de Grey bem diferentes aqui.

As referências, involuntárias ou não, vão mais além. Em certo momento, é impossível não lembrar da Clemência Negra, do quadrinho Para o Homem que Tem Tudo, do Barba. As naves, no formato discoide habitual, lembram uma versão tecnológica do Jean Jacket, de Não! Não Olhe! (Nope, 2022), já bem assustador por si só. Felizmente, Duffield não se limita a simples convenções (ainda que eficientes) e lá pela marca dos 20 minutos, opera um "contato imediato" do tipo que nunca vi antes. É quando as coisas ficam realmente imprevisíveis, com direito a uma atordoante e muito bem tramada reviravolta na reta final.

Nada disso teria um milésimo do impacto sem a performance excepcional de Kaitlyn Dever. Sendo filme-de-uma-personagem-só, por 90 minutos ela tem apenas uma linha no script. E funcionou como uma autêntica libertação dos diálogos (quem precisa deles?). Sem a obrigação de mastigar nada para o espectador, a expressividade e a imersão da atriz explodem na tela, além de deixar tudo mais dinâmico, orgânico e intrigante. No fim, a sensação é de ter assistido a um magnífico dueto entre Dever e Duffield.

Discussões sobre projeção de falsa moralidade, ausência de empatia, ansiedade social e saúde mental cabem. São muito necessárias, até. No One Will Save You é esperto e nunca toma partido. Mas o tempo todo deixa a porteira escancarada para quem se aventurar em julgamentos preconcebidos.


SPOILERS
E que final. O mundo varrido pela invasão alienígena, sem chance de salvação. Apesar de protagonista, Brynn nunca foi a salvadora da pátria. Nem dela mesma. Desde o início, estava profundamente perturbada pelo seu trauma e pela rejeição, à beira da desconexão com a realidade. Ficou mais barato para os aliens dar a ela o que ela sempre quis: aceitação e socialização. E nem precisaram de um novo implante de controle mental. Brynn nunca iria querer sair de seu paraíso particular – afinal, ela não deve mais nada ao mundo. Em outra leitura, os aliens, após acessarem suas memórias e pensamentos, testemunharam a intransigência dos habitantes da cidade em relação a Brynn. Então foi um ato de pura justiça poética enquanto uniram o útil ao agradável. Uma inesperada conclusão feliz apocalíptica com danças e musicais ensolarados contrastando furiosamente com a sinistra trilha dos créditos finais. É um final que não vai agradar a todos e se agradasse, não teria cumprido seu objetivo. Filmão que só vai ficando melhor.