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quarta-feira, 24 de setembro de 2025

“There comes a time...”


Na recente edição do festival The Town, fui surpreendido por um Lionel Richie se apresentando em grande forma. Foi um show divertido, pesado e tecnicamente impecável que acionou alguns gatilhos que nem sabia que ainda estavam lá. Cresci praticamente respirando a obra do popstar. Era só passar perto de algum rádio ligado em qualquer estação – FM ou AM – e ser bombardeado por sua longa fileira de hits solo ou nos Commodores, de "Easy" e "Three Times a Lady" a "Hello", "All Night Long (All Night)", "Endless Love", "Say You, Say Me", etc, etc, ad-infinitum-e-além. Sem descanso.

Algumas, confesso, reouvi pela 1ª vez após décadas de molho. E foi um reencontro muito bom. Tanto pela performance energética e bem-humorada de Richie, quanto por ver essas joias pop gabaritando no teste do tempo. Mas uma canção em particular se tornou a grande surpresa do setlist: a emblemática "We Are the World", defendida heroicamente no piano e no gogó abençoados do compositor.

Com essas boas vibrações, resolvi tirar do porão este fenômeno que, em 1985, ajudou a combater a fome na Etiópia, mas que megassaturou rádios e tevês por metade da década de 1980. Que foi um momento histórico, isso nem se discute. E já era tempo de revisitar e estudar a música e seu antológico videoclipe com olhos e ouvidos mais calejados.

Bom, fui atrás – hoje é fácil.

Aproveitei e estendi a estadia sonora com o sensacional documentário A Noite que Mudou o Pop (The Greatest Night in Pop, 2024), disponível na Netflix. O filme foi dirigido pelo americano-vietnamita Bao Nguyen, do igualmente sensacional Be Water, doc de 2020 sobre Bruce Lee. E a experiência foi fascinante, pra dizer o mínimo.

O documentário é revelador e até desmistificador sob muitos aspectos. Espertamente, Nguyen imprimiu à empreitada uma narrativa tensa, com um clima de Missão Impossível (a série sessentista, por favor). E foi exatamente isso, uma missão impossível com uma deadline ridícula entregue nas mãos dos multitalentosos Richie, Quincy Jones e Michael Jackson. Ficou famoso o aviso "check your ego at the door""deixe seu ego na porta" – pregado na entrada do estúdio, mas é lógico que algum percentual daquilo acabou passando de penetra.

O que não sabia era de todo o resto: a operação top secret para convocar os convidados (o que rende a memorável sequência com cada artista chegando ao estúdio da A&M sem saber quem estaria por lá), a logística é-tudo-ou-nada para gravar a coisa toda em uma só noite, Bob Geldof (Live Aid, Live 8) explicando aos astros a importância humanitária do projeto, Quincy Jones regendo e amansando a manada pop enquanto Lionel Richie se encarregava de apagar os pequenos incêndios, a complexidade de harmonizar vozes com estilos tão diferentes, o apoio essencial (e engraçado e brilhante) de Stevie Wonder ao deslocado Bob Dylan, a furada histórica de Prince, a insólita "dificuldade técnica" da Cyndi Lauper, a fofura suprema de Diana Ross, Bruce Springsteen só o pó da rabiola, saído da maior turnê de sua carreira direto para a gravação e por aí vai. Uma delícia de caos.

Para quem curte música, história da música, saber mais sobre a indústria e os bastidores, o documentário é um masterclass.

As interações espirituosas de Springsteen e Ray Charles mais os depoimentos impagáveis de Richie e de Huey Lewis são ouro puro. Podia ter rolado entrevistas com Paul Simon, Willie Nelson, Steve Perry e com os atores Dan Aykroyd (a tirada com os Caça-Fantasmas foi ótima) e Bette Midler, que também bateram ponto no coral gospel. A meu ver, dariam perspectivas atuais bem relevantes.


Como título, A Noite que Mudou o Pop não é acurado. Mas A Maior Noite do Pop, como reza o original, não ouso discordar.

Foi mesmo uma noite daquelas.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

A última nota de Quincy Jones


Quincy Delight Jones Jr.
(1933 - 2024)

Se foi o Quincy Jones. Isso nem parece uma expressão de verdade. É quase como afirmar que "se foi a música" ou "se foi um instrumento". Lendário? Também é muito pouco.

Quincy não foi apenas o produtor, compositor e arranjador que moldou a cara dos anos 1980 com os estelares Off the Wall (1979), Thriller (1982) e Bad (1987), de Michael Jackson. E nem apenas o produtor e condutor de "We Are the World", um dos singles mais vendidos de todos os tempos. Do alto de seus 28 Grammys (e desculpe, mas, sim, isso vale muita coisa), a história de Quincy se confunde com a história da música pop contemporânea e da própria história da comunidade negra da América no século 20.

Neto de uma ex-escrava, a vida não facilitou para Quincy. Desde criança, quando vivia de pequenos roubos, até sua estreia na banda do jazzista Lionel Hampton e suas colaborações com nomes como Frank Sinatra, Ray Charles, Dinah Washington, Louis Armstrong, entre outros gênios, e ainda sentindo na alma toda a violência da segregação racial dos Estados Unidos, pode se dizer que Quincy fez e viveu o seu próprio milagre. Que vida. Que história.

Neste momento, é impossível não recomendar Quincy, documentário da Netflix co-dirigido por sua filha Rashida Jones (também uma ótima atriz) e por Alan Hicks. Se ainda não assistiu, recomendo demais. É excelente e imperdível.


Ninguém é eterno, lógico. Mas algumas vezes, vivenciar um momento histórico traz uma sensação de fim de festa absurdo e que daqui pra frente a ladeira abaixo será ainda mais íngreme. Essa é uma dessas ocasiões.

Rest in Power, Quincy Jones.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Lendas do Amanhã


“Quadrinhos de super-heróis enquanto mitos modernos do nosso mundo pós-Revolução Industrial personificando nossas esperanças, medos e ideais.”

Certeza que já vi isso em algum papo-cabeça McCloudiano ou no prefácio de alguma das trocentas reedições de Reino do Amanhã (alguém aí pegou a versão pocket?). É mesmo lapidar. E se existe um quadrinho que cabe à perfeição é a obra máxima de Mark Waid e Alex Ross.

O documentário The Legend of Kingdom Come promete estudar os processos de concepção e construção que deram origem a esta grandiosa saga de super-heróis, para muitos definitiva. Provavelmente. Entre as 5 mais, pelo menos. Certo, fechemos em 10.

A direção é de Remsy Atassi com produção executiva de Sal Abbinanti, o criador de Atomika: God Is Red, quadrinho indie resenhado aqui em posts imemoriais, e que é só agora soube ser o agente/gerente de negócios do Ross. Daí a presença massiva do reservado ilustrador nas promos do projeto, que além dele e do Waid, trará nomes como Todd MacFarlane, Bill Sienkiewicz, Jimmy Palmiotti, Amanda Conner, Paul Dini e outros – e tomara que entre esses "outros" esteja James Robinson, para quem o Ross propôs a ideia da HQ originalmente.

A campanha do doc no Kickstarter vai até o dia 25 próximo. Com a meta em US$ 50 mil e os apoios rasgando na casa dos 350 mil, as preocupações passam longe dos envolvidos. Mesmo assim, um projeto só acaba quando termina.

Quem acompanha a rotina de produções independentes e financiamentos coletivos sabe que o caminho até a sala de projeção pode ser longo e tortuoso. Vide A Riddle of Steel: The Definitive History of Conan the Barbarian curtindo um hiato eterno e o longa animado The Goon, 100% financiado pelo KS e que simplesmente desapareceu no limbo – este, realmente cheguei a tomar um porre no dia em que meta foi alcançada.

Se for o caso, só o Clark com o emblema preto e surtadão pra dar jeito.

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Americano genioso

Indulgente, não diria. Celebratório, com certeza.


O trailer de Frank Miller: American Genius traz uma vibração que lembra bastante a condescendência de Stan Lee, da Disney+. E a presença do bom, velho e malandrão Stanley Lieber deixa a coisa ainda mais sintomática. Infelizmente, o documentário deve fazer vista grossa ao aspecto mais polêmico e fascinante de sua carreira: o Frank Miller pôs-11/9.

Ao que tudo indica, o tom é 100% chapa-branca e não traz menções às suas epifanias de extrema direita, às tentativas pernetas de redenção e muito menos ao injusto revisionismo negativo que sua obra tem experimentado nos últimos anos. São tópicos de ouro para qualquer documentarista que almeja fomentar o debate e a reflexão. Pelo jeito, não será desta vez. A direção é da estreante Silenn Thomas, produtora executiva de 300 e Sin City: A Dama Fatal e que, por acaso, também é a CEO da Frank Miller Ink, empresa do quadrinista. Pois é.

Curiosamente, a premiere oficial foi no Rome Film Festival, em 2021. Contudo, só agora descolou uma estreia pela rede Cinemark (dos EUA, claro), prevista para 10 de junho. Em seguida, o doc será disponibilizado on demand.

A lista de convivas foi generosa e trouxe de Neal Adams e Zack Snyder a Jim Lee e Robert Rodriguez. E também me pegou de supetão com a indefectível Jessica "Nancy Callahan" Alba ressurgindo e tecendo juras de amor aos gibis do Frank. Melhor que isso, só se aparecesse de cowgirl e recriasse a clássica cena no Kadie's.

O doc é sobre o Miller gênio, mas podia ser também sobre o Miller genioso. Renderia demais em tela. Não vai rolar. E claro que verei e me divertirei mesmo assim. Acima de tudo, é melhor um tributo em vida do que a opção. Ele merece.

terça-feira, 31 de outubro de 2023

No olho da possessão

Deve ser alguma conjunção astral promovida pelo Samhain, mas há exatos 4 anos postei um vídeo que trazia a reação do público de uma sessão do clássico Halloween, em 1979. Então, nada melhor do que escancarar as porteiras do além com o documentário The Cultural Impact of The Exorcist, que também traz as reações do público de sua época.


Em tempos de vídeos react, isto aqui deixa todo mundo no chinelo. Culpa dos "Bills" William Friedkin e William Peter Blatty.

É justo afirmar que O Exorcista deixou muita gente com PTSD após a exibição. E é prova inconteste de que as famosas reações ao filme não eram apenas lenda urbana. Pessoas chorando, desmaiando e/ou se arrastando nauseadas para fora das salas no meio do filme eram uma constante. Filas quilométricas dando a volta em quarteirões também. Policiais organizando as filas e funcionários dos cinemas preparados para dar os primeiros socorros não era algo que se via todo dia.

Mais do que isso, as multidões que esperavam horas debaixo de sol, chuva e neve para assistir um filme é algo lindo de (re)ver – a Warner precisou alugar mais salas em esquema four walling emergencial para dar conta do povão disposto a pagar para sentir medo. É o poder da arte.

Outro aspecto curioso foi o intenso engajamento da comunidade afro-americana pelo filme, algo que ainda suscita algumas boas teorias. No Brasil, a comoção foi similar, mas com aquela gaiatice canarinho, claro.

Encontrei poucas informações sobre o doc. Apenas que foi transmitido originalmente pela TV em Westwood, California. Sua importância, no entanto, é de acervo histórico. Está na MUBI, inclusive.

Em dezembro, O Exorcista completa jovens 50 anos de lançamento. Uma criança ainda. E possuída.

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Além do samba iluminado

A prévia não deixa dúvidas: Andança: Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho, com roteiro de Leonardo Bruno e direção de Pedro Bronz, parece fazer pela Madrinha do Samba o que Vale Tudo com Tim Maia fez pelo Síndico do Soul.

Talvez até mais.


Quem viu o documentário Rush: Beyond the Lighted Stage, de 2000, nunca esqueceu de uma cena icônica e universal: o vídeo caseiro em que o guitarrista Alex Lifeson, então com 17 anos, comunica aos pais que pretende largar a escola para seguir carreira numa banda de rock — e se esqueceu, não me importo em recordar. É sensacional. E o vídeo de arquivo do Prince com 11 anos dando sua opinião sobre uma greve de professores em sua cidade?

Esse tipo de achado arqueológico é ouro puro. E Andança periga ser uma mina gigantesca.

Salta aos olhos a autoconsciência da inesquecível Beth em documentar tudo que vê pela frente. Nem imagino se já tinha consciência de que estava cunhando um material de acervo histórico da música brasileira também. Mas estou louco para descobrir.

sábado, 22 de outubro de 2022

Tim Maia em suas próprias palavras


Difícil pensar numa conexão mais esdrúxula que Frank Zappa e Tim Maia. Mas a docussérie Vale Tudo com Tim Maia, produção da Globoplay codirigida por Nelson Motta e Renato Terra, mostra que existem mais similaridades entre o fusionista de Baltimore e o soulman da Tijuca do que julga a vã filosofia. A começar pela própria natureza musical: compositores multi-instrumentistas autodidatas (apesar de Zappa dominar tudo de teoria) que estrearam na carreira como bateristas. E um dos aspectos mais importantes, que era a saudável mania de registrar tudo o que fosse possível, de conversas informais e coletivas de imprensa a ensaios e bastidores.

Uma semelhança em vida que tornou possível uma bem vinda semelhança póstuma.

No doc Eat That Question: Frank Zappa in His Own Words (Thorsten Schütte, 2016) — que já mencionei en passant, inclusive — fiquei maravilhado com a proposta old school de conduzir o filme apenas com materiais de arquivo. E mais ainda com o volume impressionante desse material, que possibilitava uma narrativa com início, meio e fim amarrando cenas bem difundidas com outras obscuras e/ou raríssimas. Tudo isso sem apresentadores ou narrações em off, apenas com breves legendas para efeitos contextuais e cronológicos.

É muito bom ver que o formato não só foi possível no caso do Síndico, como funcionou à perfeição. Tim Maia era o melhor promotor de si mesmo. A série em três capítulos reúne registros pessoais doces e bucólicos com sua família e com as crianças do orfanato Lar de Narcisa (graças à colaboração de seu filho Carmelo) ao lado de típicos "momentos Tim Maia", antológicos, e muita, mas muita música. As sequências da fase de shows em bailões de subúrbio, em particular, são sensacionais, com lotação sold out e público enlouquecido. E claro que as pirações-Maia também têm seu espaço garantido. A fase Racional tem o merecido lugar de destaque, bem como a entrevista de um Tim doidão para o Otávio Mesquita após um show caótico em que até o Fábio Jr. foi convocado ao palco para dar uma "ajudinha" nos vocais.

Essenciais também são as passagens de Tim pelo Cassino do Chacrinha. O cantor trovejando no palco cercado pelas gostosíssimas Chacretes é o puro suco de Brasil dos anos 80. E bola dentro para a inclusão da bizarra cena que resultou na briga do Síndico com o Velho Guerreiro.

Em contrapartida, o mesmo programa foi palco do lindo dueto de Tim e Gal Costa, que simplesmente para de cantar só para ficar admirando o vozeirão do homem. Momento fanzoca total, paralelo ao trecho da entrevista no programa Gente de Expressão, da Bruna Lombardi. Num momento confessional sobre a dualidade da fama e o preço da solidão, Tim derrete o coração da entrevistadora com uma palhinha de "Não me Iludo Mais". E emenda com um "mas a voz é foda, né?", quase como se estivesse se referindo a outra coisa ou pessoa. Um momento que sintetiza todo o embate entre o Tim e o Sebastião.

Uma amostra da esportividade de um dos realizadores foi a inserção do dueto ao vivo de Tim e Marisa Monte. Cantando "Chocolate" abraçadinho com a artista, Tim dá uma provocada: "Nelson Motta, cê tá cheio de ciúme, né? Nós estamos só vendo que música que nós vamos cantar, cara. Calma, bróder." Divertido, com certeza, mas ganha a ressonância de piada interna para quem leu a bio/ensaio Noites Tropicais (2000), do notório produtor.

Vale Tudo com Tim Maia é uma deliciosa (e rápida) viagem pela carreira do Síndico. Imperdível documento histórico para admiradores do músico ou simplesmente de música popular brasileira. E funciona ainda melhor em conjunto com o especial de tevê Por Toda a Minha Vida: Tim Maia, de 2007, e, logicamente, o livraço Vale Tudo: o Som e a Fúria de Tim Maia (2006), de Motta.

Ao contrário do Tim, esses não podem faltar...


sexta-feira, 19 de agosto de 2022

“Let me stand next to your fire...”


Assistindo Desastre Total: Woodstock 99 (Trainwreck: Woodstock '99, 2022) tive a sensação de viajar no tempo, mas num outro espaço. Acompanhei o festival a exatos 7.622 km e dois fusos horários de distância do epicentro: no conforto do meu lar, estirado em minha poltrona favorita, com tira-gostos variados e rodadas incessantes de caipirinhas e latinhas de Skol (outra época!). Na tela, headliners raivosos, som no talo e um maremoto humano ensandecido — com pintos e peitos à mostra e balangando via satélite — que ainda hoje deixa atônitos até habitués em megafestivais.

Tudo levava a crer que estava testemunhando a experiência rock and roll definitiva. Mal sabia do inferno social e humanitário que estava se desdobrando ali em tempo real. Ou melhor, até desconfiava...

Lembro que, a certa altura, um VJzinho qualquer pergunta a um garoto sobre as cenas de violência e quebra-quebra da noite anterior. Ele é categórico: "cara, você tem Limp Bizkit, Rage Against the Machine e Metallica se apresentando um depois do outro... queria o quê?"

Aquele momento, vindo de um guri ressacado, foi didático. A escalação do palco principal não tinha a menor ressonância com os auspícios de paz & amor do icônico Woodstock. Foi uma estratégia adotada já na edição de 1994, quando a marca foi ressuscitada no vácuo das primeiras edições do bem-sucedido Lollapalooza. A gasolina estava lá, só faltava o fogo.

Dividido em três episódios, o documentário da Netflix explora esse e outros pontos nevrálgicos que levaram o Woodstock 1999 a uma quase tragédia sem precedentes. O trabalho de pesquisa e resgate de imagens de arquivo é espetacular. E o diretor Garret Price também sabe do peso dos depoimentos de quem esteve in loco e faz uma boa seleção de woodstockers, com artistas, jornalistas, membros do staff do festival e do próprio público.

E ainda foi esperto — e sortudo — o bastante para colher a versão dos promotores Michael Lang e John Scher. Afinal, eles tinham muito que explicar.



Logo nos primeiros minutos, duas cenas surreais dão conta que até os deuses tentaram avisar: o então prefeito local Joseph Griffo inaugura o evento com a tradicional quebra da garrafa de champagne e só consegue na 9ª tentativa; e o momento em que o Soul Brother Nº 1 James Brown recebe o espírito do Rei do Soul Tim Maia (falecido um ano antes) e se recusa a estrear o palco principal enquanto não receber o cachê integral antes do show, mesmo com a banda já tocando a introdução e o público urrando.

Mas o doc não deixa dúvidas sobre quem foram os grandes vilões do evento: os preços hiperinflacionados e as deficiências de infraestrutura.

O Woodstock '99 foi realizado numa antiga base aérea americana, situada em Rome, NY. É um monstro de 3.600 acres onde cada direção era uma verdadeira peregrinação sob o sol escaldante do verão americano. Para economizar nos custos (e, talvez, amortizar um pouco do prejuízo da malfadada edição de 94), a produção contratou seguranças com pouca ou nenhuma experiência, batizou o contingente de "Patrulha da Paz" e tudo certo.

Outra grande ideia para as contas bancárias foi simplesmente não pagar as prestadoras responsáveis pelo saneamento e fornecimento de água, incluindo aí a manutenção dos banheiros químicos. Tenha em mente um público estimado em 200 mil pessoas ao longo de quatro dias e o resultado é um só: o horror, o horror...

O que veio a seguir foi de revirar o estômago. Aquelas imagens eternizadas na cultura pop do público coberto de lama, mergulhando na lama, rolando na lama e até pegando jacarezinho na lama... adivinha: não era lama. Era merda. Muita merda. Merda pra tudo que é lado. Mesmo num calor senegalesco, a falta d'água era frequente nas bicas e nos chuveiros distribuídos na área, mas talvez fosse até uma providência do destino — testes feitos durante o festival constataram que toda a rede de água estava severamente contaminada por fezes. Eles sabiam. Só não avisaram ao público.

E com as barracas de comida e bebida enfiando a faca sem dó (garrafinha de água: US$ 4) era como vislumbrar a derrocada dos antigos ideais, agora pervertidos pela ambição e pelo materialismo. Era o fogo que faltava. Cansado de ser maltratado, humilhado e explorado, o público se voltou contra tudo e contra todos. Inclusive contra ele mesmo.

De certo modo, foi um intensivão de neoliberalismo.


O diretor Price consegue achados tragicômicos em meio aos crescentes riots, como o momento em que um dos membros da equipe faz uma barricada na porta do escritório, como se estivessem cercados por zumbis. E não hesita em se aventurar por terrenos controversos, como o dilema dos artistas de rock pesado num ambiente instável. Pelo contrário. Korn fez um show visceral, com a vantagem da escalação no primeiro (e relativamente calmo) dia. Mas é difícil não ficarmos menos do que convencidos que o Limp Bizkit e seu frontman Fred Durst acirraram bastante os ânimos já exaltados. E que os caras do Red Hot Chili Peppers podiam ter ido dormir sem tocar "Fire" bem no momento em que se propagavam os incêndios que marcaram o fim do festival.

Desastre Total eventualmente cede a algumas concessões. É nítido que Metallica e Rage Against the Machine foram poupados. No caso do primeiro, lembro bem do coro de "Die! Die!", que a banda sempre puxa no meio de "Creeping Death", destoando de toda a estética psicodélica-flower power do evento. E no caso do Rage e sua incendiária apresentação, ao menos foi registrada a arrepiante cena da turba repetindo o mantra/grito de ordem "Fuck you, I won't do what you tell me" enquanto destruíam, pilhavam e violentavam tudo pelo caminho. Mas dá pra botar na conta da metragem.

Não ajudou a romantizada que deram no Woodstock original. Ficou parecendo um piquenique de fadinhas e hobbits no Condado. E não foi nada disso. Outra bola fora envolve a pior faceta do festival, que foram os vários casos de estupro. Já estava quase no final do último episódio e achei que o assunto não seria sequer mencionado, o que teria dado perda total no doc. Mas foi. Em algo como cinco minutos. Pois é.

Também é traçado um perfil da mentalidade machista e privilegiada do jovem-branco-de-fraternidade que predominou no festival. O que foi um dedo na ferida admirável.

A narrativa aniquila qualquer impressão sobre o promotor John Scher que não seja a de um businessman negligente e ganancioso. Mas curiosamente patina em assimilar a figura serena e enigmática de Michael Lang, falecido pouco depois as filmagens. Ele foi co-idealizador e promotor do festival original e, pelas imagens da época, já era um personagem e tanto. Merecia um doc à parte.

O Woodstock '99 teve apenas 4 dias, mas, pelo jeito, rendeu assunto para 23 anos. E contando...

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O retorno dos reis

Peter Jackson liberou uma montagem/prévia de The Beatles: Get Back, com lançamento previsto para 27 de agosto de 2021, via Disney. O doc trará material extraído de 56 horas (!) de filmagens nunca exibidas, confirmando que o baú de inéditas Fab Four é, sim, um poço sem fundo.


Impressionante o nível de preservação do material. Parece que foi gravado semana passada. Acervo histórico, for sure. Imperdível para beatlemaníacos ou, simplesmente, para admiradores de boa, excepcional música.

Aliás, no início do ano, pela 1ª vez, fiz uma maratona cuidadosa pela discografia dos garotos e, pasmem terráqueos!, eles eram realmente impossíveis. A cada disco avançando a passos largos rumo à excelência técnica, lírica & melódica, ficava imaginando a cara do Brian Wilson quando os ouvia na época.

Só que, assim: ainda prefiro os Stones. Mas é porque sou um tosco que gosta de tomar uma ouvindo "Can't You Hear Me Knocking". Ic!

domingo, 22 de novembro de 2020

Crônicas do compactador de lixo

Que Star Wars nem sempre viveu de spin-offs do nível de Clone Wars e Rebels até minha avó sabe. E que Star Wars Holiday Special, a produção televisiva de 1978, era uma tranqueira ridicularizada até pelos heróis da franquia. O que não tinha era uma noção exata dos pormenores da criatura.

Nesse aspecto, A Disturbance in the Force promete uma autópsia minuciosa...


O doc é dirigido por Jeremy Coon e Steve Koza e ainda não tem data de estreia definida. Mas, como bom louco por histórias de bastidores de produções desastrosas, já quero ver isso pra ontem!

Ah... e feliz Natal para todos, antes que cancelem.



Ops, tarde demais.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

O Artista

Não há casa em Game of Thrones tão impiedosa quanto a casa dos 40. Baque geracional é tenso. Não bastasse o absurdo de ver por aí jovens adultos nascidos no século 21 (e se referindo à cultura pop dos anos 80/90 do mesmo modo arqueológico como nos referíamos à cultura pop dos anos 60/70), nos tornamos suscetíveis a uma nova miríade de reflexões. Sem perceber, começamos a atravessar a temível fase de buscar o Significado de Tudo®.

E aí vai um conselhinho na faixa: jamais a subestime. Ainda mais em tempos de quarentena (mesmo meia boca), com todo o tipo de soturnidades que assolam os pensamentos.

Claro que esse longo acerto de contas com o passado tem um espaço generoso reservado à figura paterna. Hoje sou mais um daqueles pobres sujeitos que lacrimejam ao ouvir "Father and Son" (mentira, choro em bicas com ela há pelo menos uns 15 anos). Então, meu coração não poderia ter ficado mais amolecido com o tocante trecho de uma entrevista publicado nas redes oficiais do genial e saudoso Flavio Colin.


Palavras francas e incrivelmente generosas do velho mestre.

E as notas de amarga resignação me trouxeram identificação imediata. Para muitos outros também, imagino. Matutando a respeito, cheguei a lembrar de um momento de Bastidores da Comédia (Comedian, 2002), doc resenhado aqui em tempos idos sobre a volta do Jerry Seinfeld ao circuito de apresentações stand-up. Inclusive, está disponível na Netflix.

Na cena, o humorista iniciante Orny Adams fala das pressões sociais e familiares que sofre por causa de sua carreira artística. O veterano Seinfeld então conta uma história esclarecedora.


Vida de artista cansa. E nem precisa ser artista. Como dizia o Bardo, "o mundo é um palco..."

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

O pai da invenção

Esquadrinhar a vida, a obra, a genialidade e a transgressão do signore Frank Vincent Zappa é impossível para uma produção de duas horas. Para arranhar a lataria, seriam necessárias algumas temporadas de uma série padrão HBO. Enquanto isso não acontece, Zappa parece ser um ótimo aperitivo. E ainda periga ser o documentário musical mais necessário de 2020.


Só esse trailer já me abriu um sorriso de uma orelha cansada até a outra orelha cansada.

Zappa é escrito, produzido e dirigido por Alex Winter (o Bill, dos filmes da série Bill & Ted), que é curtista e documentarista de longa data. Pelas cenas, dá para ver alguns highlights obrigatórios: a obsessão com a teoria musical, a fase The Mothers of Invention, os shows surreais, a iconoclastia sem prisioneiros, a briga histórica com a PMRC e o ativismo político, quando já alertava para o perigo de um estado democrático se tornando uma "teocracia fascista".

Claro, é só a ponta do iceberg. O terrível incidente em Montreux (a mais famosa citação da História do Rock), o atentado quase fatal que sofreu durante uma apresentação em Londres apenas seis dias depois, a amizade com o presidente (e fã) da antiga Tchecoslováquia e por aí vai. Tudo isso já se encontra do excelente doc Eat That Question: Frank Zappa in His Own Words (Thorsten Schütte, 2016), obrigatório para quem se interessa minimamente pela cultura pop e pela política do século 20 e como elas estão ligadas ao cenário atual. O longa é recheado de trechos de shows, entrevistas raríssimas e filmagens de arquivo até então inéditas – o que me deixa com o pé atrás com a mesma oferta sendo vendida no trailer de Zappa.

Olha lá, Bill...

sábado, 18 de julho de 2020

Amanhã, apesar de hoje, será a estrada que surge pra se trilhar

David A. Weiner é o cara. Ano passado, o jornalista e cineasta esteve envolvido em dois excelentes docs: In Search of the Last Action Heroes e o divertidíssimo In Search of Darkness. Ambos essenciais pra quem curtiu in loco todo o esplendor do cinema de ação e terror da década de 1980. Agora ele volta seus esforços – ou seus raios tratores – ao crème de la crème da ficção científica oitentista. Behold the trailer!


In Search of Tomorrow chegou a abrir um KS no fim de maio e a meta foi superada em mais de quinze vezes – certamente reflexo da competência do moço e seu time nos docs anteriores. Além disso, o projeto é irresistível.

O cast parcial conta com medalhões tipo Sean Young, Ernie Hudson, John Carpenter, Paul Verhoeven, Joe Dante, Keith David e outros, mas também trará surpresas fora da curva como Jenette Goldstein, Catherine Mary Stewart, Vernon Wells, Charles Band e meu guia espiritual Steve De Jarnatt. Melhor que isso, só os filmes mesmo.

Estreia (estimada) para julho de 2021. Já é um motivo para o amanhã continuar existindo por pelo menos mais um ano.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

O Coração do Batman

Live por live, fico com os fantásticos livestream da Warner Bros. (quem diria). Um dos meus prediletos foi The Heart of Batman, doc de 2018 sobre a histórica série animada noventista do Cruzado Embuçado. Paul Dini, Bruce Tim, Kevin Altieri, Alan Burnett, Andrea Romano, Kevin Conroy, Superamigos, Aquaman... a gangue toda esteve lá depondo e destrinchando aquele momento singular da cultura pop.


Sensacional.

Igualmente imperdíveis são os docs do Shazam, do Clark, do Batmóvel e até o making of do AquaMomoa. 100% diversão e informação. E nada de bebidas alcóolicas – só do lado de cá...

sábado, 20 de abril de 2019

O salmo da Wax Trax!

Pra quem foi tomado de assalto por aqueles loucos de Chicago no fim da década de 1980, o trailer de Industrial Accident: The Story of Wax Trax! Records é puro deleite de bad trip boa. E "com simpatia".


Só mesmo um doc longa-metragem para descrever a importância da Wax Trax! para a cena alternativa americana. A loja/gravadora fundada por Jim Nash e Dannie Flesher foi seminal durante a efeverscência do pós-punk, da new wave, da eletrônica e do industrial do início dos anos 80. Seus padrões artísticos, estéticos e comportamentais transgressores e anti-establishment se estenderam muito além da seara musical - e continuam até hoje, ironicamente inseridos até no universo pop, ainda que a esmagadora maioria do público (e dos artistas) sequer se dê conta disso.

Em terra brazilis, onde as informações chegavam com alguns anos de atraso e à conta-gotas, o selo teve até certa exposição. Principalmente através da revista Bizz e das matérias do jornalista André Barcinski, incluídas também em seu livro Barulho: Uma Viagem pelo Underground do Rock Americano.

Meu 1º contato com a Wax Trax! foi justamente pela icônica revista. O marco zero foi a capa do Sepultura circa Arise levando um corta-luz das verdadeiras estrelas da edição: o Ministry. "Massacre eletrônico"? Já me ganhou só pelo conceito - lembrando que, naquela época, Internet só existia em filmes, livros e gibis; e como importar discos era para ricos, o jeito era viver de conceitos.

Depois vieram os artigos da célebre turnê Ministry/Helmet/Sepultura e do lançamento dos clássicos The Mind Is a Terrible Thing to Taste e Psalm 69 em terra, oh, brazilis. Finalmente. E assim meu salário de office-boy foi pro sal numa tacada só.

Houveram outras convergências pelo caminho, mas o trecho da estrada com tijolos de ouro foi esse. Embora sejam mais do que raros, tenho certeza que existem por aí outros brasileirinhos sobreviventes que ainda curtem Ministry, Lard, Revolting Cocks, Pailhead, Chris Connelly, KMFDM, My Life with the Thrill Kill Kult, Laibach, The Young Gods e outras pérolas WaxTraxianas que trilharam um caminho semelhante. Isso se as vicissitudes do dia a dia - também conhecidas como família, filhos, plano de saúde, aluguel, IPVA, etc. - não expurgaram essas lembranças e sensações à fórceps, deixando no lugar só um toquinho útil pagador de contas.

Se for o caso, uma sessão de Industrial Accident poderá reativar alguns neurônios há muito adormecidos e causar um grande estrago no seio familiar...

domingo, 5 de junho de 2016

Vida longa ao Rei


Não sei explicar a vontade instintiva de recapitular o conjunto da obra de algum grande nome que se vai. Apelando para o psicologês de boteco, talvez seja a necessidade de um senso de conclusão. Em alguns casos raríssimos, até mesmo uma à altura da figura em questão. O bem conhecido e inesquecível Quando Éramos Reis (When We Were Kings, 1996) cabe aí como uma luva. De boxe.

A despeito de toda a comoção em torno da partida do grande-como-a-vida Muhammad Ali, uma sessão com Quando Éramos Reis é dica sazonal, vitalícia, atemporal. Dirigido por Leon Gast, que co-produz com David Sonenberg e Taylor Hackford, o documentário é lembrado como um dos melhores já feitos sobre Ali e o esporte.

Eu diria que é um dos melhores filmes já feitos sobre qualquer coisa.

Conhecia por alto o grande e audacioso evento que foi a luta no Zaire (atual Congo) em 1974. No chamado "Rumble in the Jungle" um redivivo Ali tentaria recuperar o cinturão dos pesos-pesados do campeão invicto George Foreman, então jovem, talentoso e com concreto nas luvas. Quando assisti o doc, na HBO, no final dos anos 90, finalmente fiquei de frente com a fera.

A luta por si só era o rascunho de um roteiro improvável, tremendamente quixotesca para Ali, mas o evento como um todo foi uma afronta ao bom senso. Promovida por Don King (quem mais?) no Zaire do sanguinário ditador Mobutu Sese Seko, o combate teve início muito antes de alguém subir ao ringue: os incontáveis perrengues dos bastidores iam da infraestrutura inexistente e do adiamento da luta por várias semanas até ao contingente de criminosos e presos políticos que abarrotava os porões do estádio onde ocorreria o evento. E isso era a ponta do iceberg.

Sozinha, a história da "organização" é tão incrível que merecia um filme só pra ela (em parte, existe), mas a verdade é que era apenas a escada para um dos confrontos mais espetaculares da história.

Naqueles tempos, a estrela de Ali ofuscava qualquer coisa que estivesse no firmamento. As gerações mais recentes têm aqui uma boa amostra do charme, carisma e magnetismo irreprimíveis do homem. Das poesias absurdas e da metralhadora trash-talk ao mais absoluto terrorismo psicológico que infligia a Foreman, seduzindo até a população local (inspiração desde sempre!). Mas acima de tudo, a consciência da força que tinham suas observações sociais e políticas somada à postura e à vontade inabaláveis frente a um desafio certamente intransponível - e, pra muitos, suicida. Caprichosamente, quis o destino que o protagonista fosse Cassius Clay, o Muhammad Ali.

Contra todas as chances, não podia ser outro. Nem diferente.


"A jovem geração atual, eles não sabem nada. Alguma coisa aconteceu ano passado, eles não sabem nada sobre. Então essas são grandes histórias, grandes eventos históricos, e eu não estou falando sobre coisas de 1850. Eles não conhecem Malcolm X, não conhecem JFK, Muhammad Ali, Jackie Robinson e assim por diante. Isto é assustador. Eles estão perdendo muito, se eles não conhecem o legado de Muhammad Ali. Porque não importa em qual era você vive, você vê muito poucos heróis verdadeiros."
Spike Lee

quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

BASTIDORES DO NADA


Falar de comédia neste país é algo contraditório. O brasileiro é um ótimo público. Adora rir. Mas por uma estranha razão, o filão humorístico oferecido pela grande mídia ainda é aquele mesmo que jaz na UTI há uns vinte anos (pra mais), balbuciando "eu tô doido, eu tô doido". Vai saber porque ainda insistem no formato matusalém de esquetes e gags físicas de salão - coisa que era top de linha lá pelos anos 60, com Bronco, Família Trapo e marcos quetais, mas que, excetuando a genial releitura setentista dos Trapalhões, se converteu em um loop incessante de clichês. O circuito norte-americano de comédia (a referência desde sempre) até hoje mantém religiosamente seu SNL, tão tradicionalesco quanto, mas num esquema de broadcasting quase cooperativo de renovação de elenco, scripts e conceitos. E Hollywood é logo ali. 95% dos coadjuvantes cômicos que você vê em blockbusters vêm de lá. Outros tantos vão direto ao estrelato, sem escalas, naqueles lances da noite pro dia que costumam chamar de american dream.

American dream o cacete. Investe não pra você ver. Aí que entra a mercantilização do produto: para suprir a demanda, uma produção hiperfaturada de sitcoms se fez necessária (aprendam, produtores do Zorra Total). É a mais legítima cultura de massa em ação. A grande maioria dura algumas breves temporadas, mas mesmo isto fornece dados valiosos para as networks. Já as séries bem sucedidas, entre outras coisas, desenvolvem um timing bastante preciso em relação às outras mídias, tanto no jogo de ida quanto no de volta (a proporção de astros saindo e voltando para a telinha é parelha) - Friends, é claro, é a exceção que confirma a regra, mas à essa altura o Matthew Perry já está milionário demais pra se preocupar com isso.

Outro crossover interessante do formato sitcom é com o humor dito underground - o stand-up, "a última fronteira da comédia".


A primeira vez que tive contato com o gênero foi através dos filmes O Rei da Comédia (The King of Comedy, 1983) e Palco de Ilusões (Punchline, 1988). O primeiro, uma trip scorceseana sobre decadência moral e aceitação, trazia Robert De Niro como um comediante fracassado e obcecado pela fama, (des)construindo a pior noite da vida de Jerry Lewis. O stand-up, nesse acaso, foi apenas o veículo (dá-lhe Rupert Pupkin: "É preferível ser rei por uma noite do que um tolo a vida inteira"). O segundo, uma comédia dramática com Tom Hanks e Sally Field, destrinchava o impacto pessoal que esse estilo de vida traz consigo. O stand-up é arte performática no seu conceito mais puro e isto tinha de ser assimilado pelo mainstream de alguma forma.

O que nos leva a Seinfeld. A série estreou em 1989, na NBC. Sucesso de público e crítica, reinou absoluta. Criada por Larry David e Jerry Seinfeld, o programa tinha muitas alcunhas, mas a melhor, sem dúvida, era "show about nothing" ("série sobre o nada"). Acertava em cheio. Simples e eficiente, o roteiro era uma transcrição em imagens do material recorrente no stand-up - lembrando que a vertente em questão é aquela mais sofisticada, baseada numa visão ácida sobre os maneirismos da sociedade (portanto, nada de piada de papagaio por aqui).

Sem pautas fixas ou dramáticas, os episódios versavam sobre o 'nada' de maneira ímpar... se é que o nada pode ser ímpar.


Foi um estrondo. Jerry, até então figurinha fácil nos clubes de New York (como o cultuado Gotham) e em participações no David Letterman e no Tonight Show, entrou pro rol das celebridades mais bem pagas da TV americana. E assim foi até maio de 1998, quando a série chegou ao fim.

Nesse ínterim, há muito o que se comentar sobre a saída de Larry David, sobre o Jerry Bizarro, sobre os ótimos Jason Alexander, Julia Louis-Dreyfus e Michael Richards, e sobre a "maldição de Seinfeld" (ainda vigente...), mas o principal você pode ficar sabendo através do filme Bastidores da Comédia (Comedian, 2002).

O que faz um sujeito depois que aposenta a coroa de Rei do Mundo?




Dirigido por Christian Charles, o filme é documental e acompanha o processo de readaptação do Jerry "pós-Seinfeld". Readaptação não... reabilitação. É sempre interessante saber o que se passa pela cabeça de certos seres humanos que estão vivendo uma situação especial. Por exemplo, os milionários. Esta casta privilegiada que não precisa mais trabalhar pro resto da vida. No caso de Jerry, é fácil perceber que nem toda a grana do mundo o seduziu o suficiente para afastá-lo dos clubes, dos velhos amigos que começaram junto com ele (e que continuam na "pista"), de New York. E, principalmente, da paixão pela comédia.

Aos troncos e barrancos, ele sabe que tem de voltar ao que faz melhor, que, por extensão, é justamente o que ele é. Não tem nada a ver com dinheiro, fama ou status. Há uma lição aqui, pessoal.


O objetivo do filme é registrar esta reentrada de Jerry na disputada cena de stand-up comedy. Após dez anos totalmente dedicado ao programa de TV, essa é uma tarefa um tanto árdua. Apesar do comediante ainda manter a simpatia do público - e sendo agora famoso - a teoria que o colega Colin Quinn lhe apresenta durante um bate-papo ainda é a lei vigente: "Você tem uma pequena vantagem, mas ainda tem de ser engraçado. Até Jack Nicholson, que todo mundo adora, se estiver num show de comédia, terá cinco minutos de cortesia. E então eles vão dizer: 'Ok Jack, se não vai nos fazer rir, dê o fora'".

Fora isto, a pressão interna de um infeliz que se atreve a subir naquele palquinho chega a ser um exercício de paranóia ("Será que eles estão pensando o que eu estou pensando que estão?"). Isso rendeu uma cena, hã, tragicômica, em que Jerry "trava" no meio do show. Branco total. E o público não perdoa.

Uma grande sacada de Bastidores da Comédia foi dividir o foco entre Jerry e o comediante Orny Adams. Ambos são iniciantes (Jerry, à maneira dele) e estão tentando encontrar a dinâmica perfeita entre performance, repertório e interação com o público. Orny pode facilmente despertar a antipatia alheia e por isto mesmo é tão importante sua presença aqui. Rende horrores. Temperamental, arrogante, egocêntrico e com um sério problema em ouvir críticas, Orny nem sequer tem certeza se é isto mesmo o que quer da vida - detalhe responsável por um dos melhores momentos do filme, quando Jerry encarna o velho feeling de ironizar nóias pós-modernas e lhe dá um conselho gratuito tão bom que poderia servir perfeitamente para o espectador (eu mesmo dei uma leve adaptada no conceito e agora sou um novo homem).

Apesar de irritadiço/irritante, Orny é talentoso. Talentoso e dedicado. Seu estilo é naquela tocada de "humor mau-humorado", à Lewis Black e Robert Klein (que comparece no filme), carregado de sarcasmo corrosivo - a piada do celular, p.ex, é matadora. Nada que a estrada e uma boa dose de humildade não resolvam.

E Jerry, por sua vez...


...sabe muito bem que os "cinco minutos de cortesia", na prática, não passam de alguns segundos. Ainda mais em se tratando dele. Afinal, existem quantas chances de alguém milionário e famoso descer num night club só pra pagar mico em público? Esperto, ele tirou de letra todas as saias justas que pipocaram (ao contrário de Orny), provando que improvisar é como andar de bicicleta. Mesmo assim, Jerry pena para reencontrar a motivação do início. Em certos momentos, ele parece o sujeito mais solitário do mundo, especialmente quando está na concentração.

Nessa viagem estradeira em busca do seu 'eu perdido', ele vai reencontrando velhos conhecidos, alguns igualmente famosos, como Jay Leno, Garry Shandling, Ray Romano e Chris Rock. Cada um deles tentando entender onde chegaram, como chegaram e se ainda têm a moral de mandar bem num palco - exatamente o que Jerry está buscando. Acompanhar as conversas dos caras é voyerismo de primeira.

A grande virada na busca de Jerry acontece quando ele vai conhecer um ídolo seu, o veterano Bill Cosby. É o clímax, e contrasta com o clima pesadão que vinha crescendo no filme. A seqüência é emocionante pela sutileza envolvida. Jerry pouco fala e, só pelo olhar, mr. Cosby já sabe exatamente o que ele procura. Sensacional.

Não pense que Bastidores da Comédia é algum especial humorístico com quadros produzidos. Longe disso. A série Seinfeld só é lembrada como algo vago e que abriu um gigantesco 'nada' nessa parte da vida de Jerry. O que predomina no filme são conversas soltas, bastidores, macetes de performance e trechos de shows aqui e acolá. A edição segue um tom despojado, meio alternativo, inclusive na trilha (com Águas de Março, de Tom Jobim, já na abertura). A experiência vale principalmente para fãs do stand-up, para os que querem se iniciar na matéria e para os que acham que comédia não precisa ser algo histérico.

E para um senso geral de (incontestável) bom gosto, vale a pena pelo finalzinho mais cool que vi este ano, ao som de Deacon Blues, do Steely Dan.


"Drink, scotch, whisky... all night long... and die behind the wheel..."

sexta-feira, 5 de agosto de 2005

"METLLICA"

O cinegrafista Bob Richman e James Hetfield na concentração

Eu era um garoto que amava Metallica e Faith No More. Obviamente, isso pouco interessa a você, fã de Franz Ferdinand, do novo hit do Gorillaz ou mesmo da sua velha radiola que só pega AM. Também não adianta vir com muita grosseria na matéria (tem gente que acha que qualquer coisa mais leve que o Krisiun já é pop). Até piora. É essa nesga de público restante que pode ter uma bela surpresa com Metallica: Some Kind of Monster (2004), documentário que cobre o período 2001-2003 da carreira do grupo.

Dirigido heroicamente por Joe Berlinger (de A Bruxa de Blair 2) e Bruce Sinofsky, essa foi justamente a fase mais turbulenta da história do Metallica. É catarse filmada com todas as situações-limite e/ou constrangedoras que possam sair de uma relação desgastada. Três caras criativamente exaustos, sentindo o peso do tempo chegando junto (mais de 20 anos de estrada), a desmistificação de seus antigos ideais no future (hoje eles são milionários e a banda, um ícone do estabilishment), a saída traumática do baixista Jason Newsted, o caco de relação que sobrou entre o vocalista e guitarrista James Hetfield e o baterista Lars Ulrich, e os bastidores da gravação de St. Anger, disparado o seu pior álbum. E é aí que está a questão.

'tallica jammeando e lá no canto, Robert Trujillo, o novo candidato a bass hero

Até então, eu só sabia que St. Anger era uma decepção multi-facetada. Em primeiro lugar, veio a produção propositalmente ruim - contraste flagrante com a mesma banda que gravou o Black Album (1991), um marco da engenharia de som, com o mesmo produtor Bob Rock. Em segundo, já se podia esperar por um material no mínimo conturbado, dados o break interminável no processo de composição e a saída ríspida de Newsted, que, sem dúvida, abalou a banda - e principalmente Hetfield, de quem se tornou um grande amigo. Embora isso não tenha livrado Newsted de um belo flagra, quando um dos roadies mostra um recadinho mal-criado que ele deixou gravado em uma secretária eletrônica (nos extras do disco 2).

De resto, sabíamos por alto que as coisas já não andavam lá muito bem dentro do grupo. Vez ou outra chegava a notícia de um eventual arranca-rabo entre James Hetfield, o deus do metal (pense nesse adjetivo de forma bem pejorativa e psicologicamente prejudicial a longo prazo), e o explosivo Lars Ulrich, herói que virou vilão mega-capitalista e que acabou com a farra-do-boi do Napster, iniciando uma caça às bruxas que dura até hoje. As cenas em que os dois discutem chegam a ser engraçadas de tão nervosas.

No meio disso tudo, o guitarrista Kirk Hammett, sempre passivo e concluindo que os bons tempos foram mesmo pro saco, Bob Rock (que já trabalha com a banda a 15 anos), demonstrando um jogo de cintura invejável quando escapa de algum fogo cruzado, e um conceituado psiquiatra... isso mesmo, um psiquiatra... que tenta somatizar toda a zona que anda acontecendo com a banda. O mesmo profissional acaba sendo vítima de um "motim" por parte dos rockeiros.

Mustaine, o recalcadoAlguns velhos elementos recorrentes na "metallogia" do grupo acabam dando as caras e quando menos se espera... voilá: Dave Mustaine entra em cena e de repente faz dessa locação um daqueles investimentos superfaturados. Ah, sim. Pra você, que gosta de The Killers, Keane, Altemar Dutra, etc, eu explico.

Mustaine estava lá, nos primórdios do Metallica, junto com Hetfield, Ulrich e Ron McGovney. Foi chutado da banda em 1983, porque conseguia chapar mais álcool e drogas que todos os outros juntos. Reza a lenda que eles colocaram o cara doidaraço dentro de um ônibus que ia de LA para San Francisco. Mustaine, puto, montou o Megadeth e também vendeu seus milhões de álbuns, mas sem nunca sair da sombra perseguidora do Metallica.

Então essa lavagem de cueca suja adiada por 20 anos finalmente acontece, e com juros - embora a banda tenha sacaneado Mustaine pra valer nessa mesma seqüência, com a opção "Comentários da banda" ativada. Mas que foi engraçado, foi.

Metallica ao vivo... até 1989 eles eram os melhores nesse negócio

Essas são as peças no tabuleiro. Claro que você quer saber é se Some Kind of Monster pode ser palatável ao gosto de quem não é fã do Metallica. Sim, com certeza. Mas como o próprio título já diz, esse monstro aqui não se encaixa em nenhuma categoria pré-definida. Não é bem um "rockumentário", não é nem um pouco redentor e pinta os integrantes do grupo com cores pra lá de cinzentas. Estar no Metallica Inc. é quase como estar no elenco de O Aprendiz (o original americano com o Donald Trump, muito mais hardcore). Reuniões, campanhas de promoção, contratos com gravadoras e distribuidoras, investimentos e conflito de interesses. Isso tudo e ainda um novo disco a ser gravado, enquanto os músicos penam com um teimoso bloqueio criativo. A coisa fica bem mais séria quando se tem dinheiro envolvido. Aliás, muito dinheiro - o Metallica já vendeu mais de noventa milhões de discos desde 83.

Não deixa de ser curioso o modo como cada integrante lida com isso. Hetfield acompanhando sua filhinha na aula de balé e passando uma temporada numa clínica de reabilitação, Lars levando seu pai (que figura) ao estúdio e investindo alto em leilões, e Hammett, cansado do "deixa-disso" habitual e se isolando em sua fazenda idílica. E para fãs (agora sim!), chega a ser tocante quando imagens de várias fases da banda são colocadas em seqüência, deixando claro o quanto isso tudo já foi especial um dia.

Talvez esteja aí a força de Some Kind of Monster e o que faz dele uma experiência tão peculiar. A pressão do profissionalismo, a deslocada condição humana e a fragilidade de relações desgastadas por longos anos de convivência. Onde foi que você já viu isso mesmo?



COMEÇOU EM PIZZA


Literalmente. Durante uma esticada turística na Terra, o Senhor do Fogo, ex-arauto de Galactus e chato de plantão, é confundido com um portador de gene X no auge da febre anti-mutante. Confusão armada e logo o Amigão da Vizinhança tem de salvar alguns pescoços. O problema é que a treta é tão desigual que poderia ser tranqüilamente adicionada ao cartel de pepinos do Aranha (Rino, Hulk, Fanático, Mr. Hyde, etc). Como sempre, só resta ao nosso esforçado herói lançar mão de muito improviso, corre-corre e do providencial Sentido de Aranha. Não faltam situações inusitadas (como o Senhor do Fogo na pizzaria), prédios destruídos, explosões a rodo, aquelas infames piadas do Aracnídeo, J.J.Jameson numa seqüência hilária, e, claro, a indefectível cena em um metrô. :)

Por incrível que pareça, esse tipo de história minimalista sempre rendeu horrores com o personagem. Provavelmente seja porque o Aranha se garante em personalidade e é de fato o super-herói mais complexamente humano dos quadrinhos. A seqüência (genial) em que ele fica tentado a sumir na multidão é um ótimo exemplo. Méritos do roteiro esperto de Tom DeFalco e do traço limpo e eficiente de Ron Frenz (por que não existem mais desenhistas assim?).


Outro detalhe digno de nota é a edição nacional pra lá de capenga, como de praxe. Dia desses mesmo eu estava tirando sarro com as pernadas de editoração da Ebal, mas atrocidades como essa também eram habituais durante a era Abril Jovem. Fazer o quê, né. Eu cresci achando que o uniforme do Fantasma era vermelho...


Clique na capa pra baixar a HQ
(link já off, é claro, mas é fácil de achar por aí!)


"You will do, what I say, when I say... BACK TO THE FRONT!"

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2005

HOUDINI PUNK


"Now i'm really freaking out!" É o que você mais vai ouvir em David Blaine: Street Magic (idem, 1997), especial produzido pela rede americana ABC. A primeira vez que assisti a esse semi-documentário, em 2000 (exibido no Brasil pela HBO), fiquei simplesmente estupefato com a tal "técnica de rua" do ilusionista new yorker David Blaine. Distante anos-luz de magnatas do ramo (como David Copperfield), sua performance em nada lembra aquelas mega-façanhas quase onipotentes transmitidas via-satélite, como "fazer desaparecer" um boeing 737 ou um porta-aviões. Muito pelo contrário. Blaine é um artesão de detalhes. O que ele faz é arte manual e em tempo real, bem ali, em meio às pessoas que estão transitando (os tais transeuntes...). Mas apesar de sua performance embasbacante, seu principal feito foi devolver a arte do ilusionismo às ruas, ao gosto popular. Nada daquele glamour inatingível movido a palcos gigantescos, equipamentos de última geração e showgirls turbinadas pra prender a atenção (tsc!).

Nascido em 4 de abril de 1973, David Blaine teve o seu primeiro contato com o ilusionismo aos 4 anos, assistindo a performance de um velho mágico no metrô de New York. Estudou teatro em Manhattan, fez alguns comerciais e pontas em séries de TV, e aos 17 saiu de casa para fazer o que sabia melhor: confundir as pesso... digo, praticar o ilusionismo. Seu estilo personalizado e peculiar o tornou habitué em concorridas festas da alta sociedade. Foi nessa época que ele conheceu celebridades como Madonna, Al Pacino, Arnold Schwarzenegger, Mike Tyson, e, particularmente, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio. Todo o hype não foi pra menos, afinal, Blaine é, antes de tudo, um entertainer nato, um relações públicas corpo-a-corpo de si mesmo. Talvez tenha sido esse o detalhe que o livrou de ocupar o lugar daquele velho mágico no metrô.

Com uma edição exalando espírito underground, Street Magic é praticamente uma turnê no asfalto. Blaine leva ao pé da letra a máxima "o artista tem que ir aonde o povo está", e além das movimentadas avenidas de sua New York natal, ele passeia pelas ruas de Dallas, Mojave Desert, Nashville, New Orleans, Atlantic City, Los Angeles, Compton, e até lugares mais improváveis, como o Haiti e a reserva da tribo Yanomami, na Floresta Amazônica. É incrível notar, na parte norte-americana da "aventura", como as pessoas comuns são tão parecidas com as pessoas que sempre vemos nos filmes. Em Nashville, vemos Blaine abordando alguns "white trash" interioranos (por mais cruel e pejorativo que esse termo seja), como um dono de oficina e uma senhora dona de uma casa caindo aos pedaços. Só faltou o tradicional conjunto habitacional formado de trailers (verdadeiras favelas sobre rodas). Já a seqüência no vestiário do time de american football Dallas Cowboys me lembrou na mesma hora o elenco do filme Um Domingo Qualquer, sem exageros. Até a postura dos jogadores, cheia de "damn", "hell no" e "whataf...". Eles falam daquele jeito mesmo, que nem nos filmes. E eu achando que era só a interpretação estereotipada de algum ator. Aliás, confesso que fiquei meio tenso na parte filmada em Compton (uma quebrada pra lá de sinistra). A impressão que dava era que a qualquer momento algum daqueles niggas fãs de Tupac Shakur iria sacar uma arma, estourar a cabeça de Blaine e gritar à plenos pulmões: "Die, muthafuckin' bitch! Deceive the devil, your fuckin' asshole!"

Quanto à seqüência filmada na tribo indígena é digna de nota a preocupação de Blaine em adaptar a sua trucagem para um contexto mais simples, mas nem por isso menos impactante. Ficou até mais bonito de se ver. E os registros de um ritual vodu no Haiti é pra lá de interessante (e macabro).

A habilidade de David Blaine é sensacional, tanto na execução das suas ilusões quanto em sua desenvoltura pra ganhar a atenção de um público 100% incidental e imprevisível. Tanto é que grande parte da força de Street Magic está na reação das pessoas, mezzo catatônica mezzo excitada (mas sempre surpreendente) diante de suas demonstrações aparentemente impossíveis. Às vezes ele até chega de uma forma mais despojada (se intencional ou não, não dá pra saber), e isso acaba rendendo situações divertidas e, ao mesmo tempo, constrangedoras ("Ei, deixa eu te mostrar uma parada diferente, que vai expandir sua mente!" - e só dá nego correndo achando que ele é traficante). Mas algumas vezes, Blaine se revela um senhor estrategista, como na cena do píer, em que ele mexe com as focas que estão na enseada (fazendo um barulhão) só pra atrair a atenção de um grupo de turistas orientais que estava passando.

Recortado por takes com Leonardo DiCaprio fazendo as vezes de entrevistador, Blaine esclarece que segue a velha escola do ilusionismo. Velha mesmo... cerca de dois mil anos antes de Cristo. Tratam-se de artimanhas bem simples, mas pra lá de eficientes, como girar o braço em 360° (com um estalo de "creck" e tudo), fazer miséria com as cartas (o que ele faz é incrível), adivinhar o que as pessoas estão pensando (!) e fazê-las adivinhar o que ele está pensando (!!), e a parte mais sinistra... levitar no meio da rua, sem fios ou cabos, e com todo mundo olhando.

Blaine ainda protagonizou outro especial, Fearless (idem, 2002), naquela mesma tocada "street", mas depois disso, cortou na tora todo o seu hype proeminente e mergulhou em uma pesada bad trip existencial. Claro que isso se refletiu em suas performances, que se tornaram seguidos testes de resistência física. Ele ficou 3 dias em pé dentro de um bloco de gelo, sem camisa, com apenas 5 cm de espaço entre seu corpo e o gelo. Logo após, ficou enterrado durante 7 dias em um caixão de vidro. Em 2002, ficou durante 35 horas em pé num pilar de 24 metros em plena 5ª Avenida, New York. E em 2003, realizou a sua masterpiece à Survivor: ficou 44 dias sem comer dentro de uma caixa de vidro pendurada na Tower Bridge, perto do rio Tâmisa, em Londres. Virou até atração turística local. Foi recorde na época (batido meses depois pelo médico chinês Chen Jianmin, que agüentou 49 dias de jejum - coisa de doido mesmo). Leia mais sobre essa façanha suicida aqui.

De qualquer forma, David Blaine e seu Street Magic preservam o verdadeiro espírito da arte do entretenimento e da ilusão, longe da brochante velocidade nonsense atual. Seja pela performance irrepreensível, pela inegável simpatia e tranqüilidade envolvente ou pelo simples calor humano que permeia a coisa toda. Todo mundo, de todas as procedências, se divertindo como crianças, por causa de alguns breves gestos manuais. E por alguns instantes, a impressão era de que não haviam tantas diferenças no mundo e que nós não estávamos tão distantes uns dos outros. Como nos velhos tempos.


dogg, ouvindo um show matador do Whitesnake no Donnington de 1990... pena que o som do bootleg não é dos melhores... David Coverdale rulz!