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quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

The Duel After


E falando em 2001: Uma Odisséia no Espaço, quando molequinho, esse era tradicionalmente o primeiro filme que eu assistia no ano. Na madrugada de réveillon, todos os canais saíam do ar, exceto a Globo, que exibia 2001 após a Missa do Galo, quase ao alvorecer do dia. Claro... "assistia" é só força de expressão: após alguns minutos, eu dormia como se não houvesse amanhã. Nem a macacada quebrando ossos ao som de Strauss me mantinha acordado.

Conforme fui envelhecendo, fui tomando jeito - alcancei o espaço e aos poucos (bem aos poucos) fui me aproximando da grandiosa sequência final em Júpiter. Finalmente! Não entendia nada daquilo, mas... finalmente!

Até hoje mantenho o ritualzinho de início de ano. Mas no lugar da obra-prima de Kubrick na Globo, o posto foi assumido - now, in D.V.D. - por Encurralado, o famoso Duel (1971) de Steven Spielberg. Esse foi o primeiro longa do cineasta, embora originalmente não tão longo para o cinema (74 min.) e produzido para um programa semanal do canal ABC.

Durante muito tempo, Encurralado foi o filme que inaugurou minha grade anual da 7ª Arte. Por algum motivo, o ano não começava pra mim antes de revisitar a saga de um inofensivo motorista (Dennis Weaver) sendo caçado por um assustador caminhão-tanque ao longo de uma highway no deserto de Mojave. Mas já há uma trinca de anos que o debut Spielberguiano tem dividido a telinha com outro telefilme. E produzido pelo mesmo canal.

Em novembro de 1983, a comportada e superfamília ABC resolveu aterrorizar o público americano - e o resto do planeta - com a exibição de O Dia Seguinte (The Day After). O filme era a dramatização do medo mais recorrente na época: uma guerra nuclear entre Estados Unidos e União Soviética. O momento em que os mísseis são disparados dos silos nas bucólicas paisagens do Kansas e os efeitos old school misturando montagens e cenas de arquivo reais são arrepiantes. E os espólios do conflito fazem os sobreviventes invejarem quem morreu nos ataques.

Ainda hoje o filme traz uma carga deprê incrível. Especialmente para aqueles que se lembram daquela versão de mundo com duas Alemanhas. Isso graças ao olhar clínico do diretor Nicholas Meyer no elenco estelar - todos francamente engajados a fazer do filme um manifesto desesperado, mas sem panfletarismo: apenas se valendo dos apectos mais pungentes que uma grande atuação pode alcançar.

Nunca vi o Steve Guttenberg tão triste e miserável num filme. Difícil não ser impactado pela cena em que uma mãe (Bibi Besch) se recusa a aceitar que as bombas estão vindo e insiste em arrumar o quarto dos filhos. Ou acompanhar a lenta derrocada moral e psicológica de um médico veterano interpretado magnificamente pelo saudoso Jason Robards.


Além da natureza árida e da impiedosa descontrução do elemento humano, o que esses dois filmes têm em comum são seus protagonistas encarando um cenário inglório, quixotesco. São a epítome da máxima "coisas ruins também acontecem com pessoas boas".

Mas acima de tudo, são sobre pessoas que mesmo diante disso tudo, continuam seguindo, olhando para frente, para o futuro, por menos promissor que ele pareça.

Por quê? Não sei. Mas, estranhamente, é uma boa maneira de começar um ano.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

EXTERMINADOR, PARTE 3: O LEGADO


No começo de O Exterminador do Futuro 3: A Rebelião das Máquinas, de 2003, John Connor mostra o quanto pode ser pesado o fardo de um predestinado. Ali, sabemos que ninguém viveu feliz para sempre desde o final de T2, pelo contrário. Num tom amargo e monocórdico, Connor, agora adulto, narra em detalhes o impacto que aqueles eventos tiveram em sua vida. O estrago foi profundo e irreparável. Mesmo anos depois, supostamente "livre" da responsabilidade de juntar os estilhaços que sobrarão da raça humana. Repetindo um lugar-comum na trajetória de vários líderes e messias ao longo da História, John Connor mergulhou no vazio e na obscuridade por um período. Tornou-se pária por opção, ou por falta de. Nada heróico, mas muito humano. É um dos momentos mais realistas e tristes da trilogia.

Confesso que esse início, bem mais dramático e intimista que o padrão da série, me desarmou em relação ao Nick Stahl. Não o conhecia, ainda não tinha assistido Carnivàle e era algo irregular a substituição de Edward Furlong. Em contrapartida, Furlong cresceu e seu estilo de vida junkie estava estampado bem na cara. Embora John Connor ainda não fosse um personagem de intensidade física, tínhamos de ver alguma raiva ardendo por trás daquela melancolia solitária. Stahl convence, adicionando ao contexto um tanto de relutância, perplexidade e inconformismo pelo inevitável.

Não era lá um papel muito fácil. Não havia catarse e era uma história de transição. Connor tinha que aceitar e abraçar o seu próprio legado - o filme é sobre o processo que o leva a isso. Apesar das sequências retumbantes de ação (a perseguição inicial é pra levantar e fazer uma ola), na maior parte do tempo A Rebelião das Máquinas trafega ao largo das convenções do gênero e, por extensão, das convenções estabelecidas pelo próprio James Cameron para a franquia. Há poucas tomadas noturnas, a fotografia gélida dos filmes anteriores agora dá lugar a um visual sóbrio à luz do dia. A dinâmica e o crescimento moral dos personagens têm mais importância do que o ritmo frenético, o que não é uma proposta muito comercial vindo de um blockbuster.

Mas há algumas verdades incontestáveis a respeito deste filme: é, em essência, um caça-níqueis, tramado pelos produtores Mario Kassar e Andrew Vajna desde a falência da Carolco em 1995; e não se compara aos dois anteriores por simples inferioridade cinemática, por mais que eventualmente tenha acertado.

E acertou. Não o tempo todo, mas o suficiente - pra mim e até para o Cameron, maníaco perfeccionista e detrator do filme durante sua produção.


Desta vez, o único link com o futuro pós-apocalíptico de Salvação (pauta/objetivo dos últimos posts, só pra esclarecer) se dá na forma de um pesadelo de Connor. A cena soa mais como obediência a uma tradição da série do que qualquer outra coisa, mas é de encher os olhos. Começa acompanhando o voo de alguns hunter killers aéreos até uma unidade de exterminadores avançando em uma zona de combate. Embora os modelos reais de Stan Winston ainda sejam imbatíveis, foi uma das raras vezes em que um emprego de CGI me soou convincente - e, de certa forma, até inevitável. Por mais que seja entusiasta dos animatronics e dos efeitos rústicos da velha escola, não há outra maneira disso ser feito nessa escala.

Também em T3 as distorções temporais têm suas variações mais significativas. O "the future is not set" de John Connor entra em rota de colisão com o "Judgment Day is inevitable" do T-850. Ainda que sutis, houveram sim alterações na linha do tempo. Por conta dos eventos de T2, o exterminador não se identifica mais como um modelo Cyberdyne Systems, citada até por Kyle Reese como parte da sua realidade no futuro. A Skynet não é mais uma linha de superprocessadores criada por Miles Dyson baseada no CPU do primeiro exterminador (olha o loop aí de novo). Com a destruição de seu centro de pesquisas, a Cyberdyne quebrou e seus projetos foram adquiridos pela Força Aérea dos EUA e desenvolvidos por seu setor de tecnologia, a CRS (Cyber Research Systems Division) - incluindo o da Skynet, que "reencarnou" como um software de defesa estratégica.

O destino deu seu jeito, mas como se vê, não é totalmente imutável. Como diria o Farraday, de Lost, é preciso um número considerável de variáveis para alterar uma constante.

Os modelos robóticos que aparecem em T3, ainda primários, dão uma noção melhor da evolução dos exterminadores. Curioso ver HKs aéreos em dimensões bem menores, alguns exterminadores T-1 fazendo as primeiras vítimas humanas da Skynet e até o que parece ser um protótipo humanóide dos robôs (no canto à esquerda). Infelizmente, não foi dessa vez que vimos um HK Centurion em ação no front de batalha.

E, claro, a T-X, exterminadora de exterminadores que é uma evolução do T-1000 com endoesqueleto metálico, arsenal generoso e altíssima capacidade de infiltração. De longe, é a que parece mais humana entre os exterminadores - e com direito a reação orgástica quando na iminência de atingir seu alvo primário. E eu morreria feliz. Ah, Kristanna Loken...


Mas não dá pra comentar sobre o filme sem mencionar o que ele teve de mais surpreendente. Os cinco minutos finais de T3 me pegaram no contrapé. Não esperava mesmo e a partir dali o que perigava ser apenas uma aventura eficiente e derivativa, ganhou peso e substância. E refletiu em tudo o que eu havia visto até ali, expandindo seu significado bem diante dos meus olhos - alterando até, como uma boa viagem no tempo. Sequência final bela, aterradora e emocionante, de longe a mais recompensadora da série.

T3 forneceu a base perfeita para Salvação. E tão importante quanto John Connor finalmente acreditar em si mesmo naquela conclusão, é o fato de me fazer acreditar também.

Até segunda ordem, pelo menos.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

EXTERMINADOR, PARTE 1: FUTURO EM CHAMAS


O Exterminador do Futuro: A Salvação é o filme mais importante da série. O maior clímax da saga desde a sua criação e toda a sua razão de ser. Em tese. Narrativamente, é ao redor de Salvação que os eventos dos capítulos anteriores foram estruturados. Todos os conceitos criados por James Cameron, junto com Gale Anne Hurd: o cenário de pesadelo apocalíptico, exterminadores e hunter killers esterilizando o planeta, a raça humana à beira da extinção e o último foco de resistência encontrando na figura de John Connor o seu messias. É a Caixa de Pandora da série, enfim escancarada.

Além disso, é o período onde todos os deslocamentos temporais convergem na forma de pontos de origem - com todas as motivações e situações tão citadas e nunca mostradas atreladas a cada viagem. Mas, o mais importante, é onde o loop/anomalia se inicia. Se John e Sarah Connor tivessem realmente salvo o mundo de uma guerra em T2, eles estariam condenando a existência de John, visto que seu pai veio daquele futuro caótico. Estava na cara o tempo todo: enquanto John Connor existisse, haveria guerra*.

* pra manter a conversa num nível são, vou pular o Gato de Schrödinger, altamente aplicável neste caso. Mas as pirações estão liberadas nos comentários.

Em geral, o ponto zero desses loops temporais é muito difícil de detectar, já que inverte todos os princípios da causalidade. Eu bem que já tentei, mas nem arranhei a lataria. A última temporada de Lost bate pesado nessa tecla. O excelente Los Cronocrímenes é todo sobre isso. Para esta situação hipotética pode até não haver alguma explicação lógica - ou filosófica, que seja -, mas ao menos em Salvação, ou a partir dele, há a chance de testemunharmos cada momento onde os filmes anteriores nasceram. Isso, mais uma vez, em tese.

Igualzinho ao resto da humanidade, não espero muito de um filme com McG na direção. Tenho evitado spoilers com destreza notável, dada a lista peçonhenta dos meus favoritos, mas 33% no Rotten Tomatoes se faz ouvir até no continuum espaço-temporal.

Pelas prévias, nota-se que o roteiro virtual desenhado nos três filmes anteriores foi ignorado em detrimento ao aspecto bélico do terminatorverse. O que não é nada mal também.


Esquecendo por um momento o vil metal que move tudo isso (e não estou me referindo ao exterminador). Basicamente, quem é fã da série, sempre quis ver aquela guerra. Lembro bem da primeira vez que assisti ao filme original e fiquei fascinado com os flashes daquele futuro aterrador. De repente, o plot principal search and destroy parecia apenas a ponta do iceberg. Os campos de extermínio citados por Reese, caveirões HK gigantescos e as unidades aéreas varrendo os escombros e explodindo guerrilheiros da resistência com raios laser púrpuras. Se você não fosse soldado, seria um moribundo agonizando em um bunker, devorando ratos como se fosse um banquete.

Isso sem falar da aterrorizante possibilidade de, a qualquer momento, alguém na multidão se revelar um exterminador, puxar um canhão de plasma e sair atirando em todo mundo - como o nosso amigo fantasmagórico aí em cima.

Às vezes, uma parte supera o todo. Eu simplesmente queria mais daquilo, muito mais. E o sentimento ficou em stand-by. Até hoje.

[trilha do Brad Fiedel aqui]


Nos extras do DVD do primeiro filme, há uma extensa galeria onde James Cameron mostra que, além de tudo, é um grande ilustrador. Os designs e concepções foram meticulosamente criados e desenhados por ele. Impensável nos dias atuais, onde existem equipes pra tudo (e talento inversamente proporcional). O material é de cair o queixo e bota muito desenhista famoso aí no chinelo. Três amostras:


Vamos descontar o terminator tentando pegar a Sarah com uma faca de cozinha. Todo mundo tem sua fase Stephen King.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Operação Resgate
Goose depois de horas... e antes de Cloverfield


Em meados dos anos oitenta, Anthony Edwards sentia o gostinho frisante do estrelato. Personificando a entidade nerd suprema (foi o Gilbert, de A Vingança dos Nerds, 1984) e disputando com Tom Hanks a supremacia das comédias de garotão criado a sucrilhos (Gotcha!, 1985), ele viu as portas do 1º escalão se abrirem quando interpretou o sidekick boa-praça de Top Gun, em 1986. Goose era o cara - e ainda pegava a jovem Meg Ryan (qualquer subtexto gay presente no longa deveu-se exclusivamente ao chororô suspeitíssimo do Maverick!). Nessa trajetória ascendente só faltava mais uma prova para o carisma de Edwards. Algo que o desafiasse dramaticamente e atestasse sua capacidade de protagonização extrema. De segurar um filme praticamente sozinho.

Miracle Mile (EUA, 1988) é um daqueles casos em que uma produção já nasce pertencendo a um ator. E até vice-versa, eu diria neste caso. É um pequeno grande filme que poderia ter alçado a carreira de Edwards a novos patamares, não fosse sua quase total obscuridade. Mesmo nos Estados Unidos, Miracle Mile é o que se pode chamar de pérola do anonimato - termo clichê, mas absolutamente fiel. Provavelmente agora, após o relançamento em dvd, suas inovações tenham finalmente a apreciação que merecem. E isto se estende até as "inovações" de produções recentes, em particular Cloverfield.

Escrito e dirigido por Steve De Jarnatt, Miracle Mile tem um início que sugere uma comédia romântica com um toque one-crazy-night, na cola de Depois de Horas, de Scorcese. Mas aos poucos o roteiro vai montando um retrato de sua real natureza: uma espécie de thriller incidental de Guerra Fria com narrativa em 1ª pessoa e, após os quinze minutos iniciais, transcorrendo em tempo real.


O comecinho do filme não dá qualquer pista do que está por vir. Edwards é Harry Washello, um músico trintão e solitário em busca de raízes e de uma alma gêmea - artigos raros na Los Angeles superficial dos anos oitenta. Mas ele acaba conseguindo as duas coisas, casualmente, quando conhece a garçonete Julie (a brat pack albininha Mare Winningham). Ambos estão no mesmo momento da vida, na mesma sintonia, curtem as mesmas coisas e estão afim. No dia seguinte, Harry conhece os simpáticos avós de Julie, a acompanha até a lanchonete onde trabalha e marca de pegá-la, em todos os sentidos, ao final do expediente, à 00:15. Enfim, um beijo acontece. Empatia total.

Mas do mesmo jeito que o acaso apresenta Harry à Julie, também começa a conspirar contra o rapaz utilizando todos os rigores da Lei de Murphy. Harry volta ao seu hotel, pensa na grande noite, programa o despertador e vai curtir uma rápida e revigorante soneca. Num lance incrível de azar, que só pode ser explicado como uma traquinagem quântica (envolve uma pomba e um cigarro descartado por Harry), ocorre um blecaute no prédio inteiro. Desta forma, o despertador não cumpre seu papel, Julie fica plantada por 1 hora na frente da lanchonete e Harry bate o recorde de atrasos, acordando às 3:45 da manhã.

No desespero, ele pega a caranga e sai rasgando até a lanchonete, na vã esperança de ainda encontrá-la por lá. O estabelecimento fica situado bem na Miracle Mile, área de forte concentração comercial e cultural de Los Angeles. A partir daí acompanhamos Harry minuto a minuto.


Chegando lá, alguns indícios soam como pequenas travessuras do destino: a "chuva de ratos", um sem-teto bêbado resmungando sobre caos e destruição, um telefone público 'ringando' insistente... mas tudo bem, afinal é Los Angeles, a cidade que nunca dorme. No interior da lanchonete isto é perfeitamente comprovado, com uma clientela até generosa para as quatro da madruga - e sobretudo, bastante diversificada. Estão lá dois motoristas de caminhão de limpeza, uma bitolada com roupa de aeromoça, uma senhora babando de sono, um travesti jogando conversa fora com o próprio Dr. Silberman (Earl Boen, num personagem não-batizado que bem poderia ser o bom doutor aqui... o impagável ar monótono é o mesmo) e a corretora Landa (a bela Denise Crosby, de Cemitério Maldito e Mortuária), além dos funcionários e o dono do lugar, Fred (o excelente Robert DoQui).

Através de uma colega de Julie, Harry tem a noção do furo que deu e vai até a cabine telefônica ligar pra ela, mas só consegue deixar uma mea culpa na secretária eletrônica. Quando desliga, o telefone volta a tocar sem parar e Harry, por que não, resolve atender. Do outro lado da linha, um homem de nome Chip, bastante transtornado, dá a entender que trabalha num silo de mísseis em Dakota do Norte. Sem dar tempo para Harry responder e acreditando falar com seu pai ao telefone, Chip afirma que eles acabaram de lançar uma ofensiva nuclear que atingirá seu alvo em cinqüenta minutos.

E o pior: segundo Chip, um contra-ataque em larga escala já está cruzando o globo naquele exato momento e levará cerca de setenta minutos para atingir os Estados Unidos. Subitamente, Chip é "retirado" da linha e uma voz seca diz pra Harry esquecer tudo e voltar a dormir.

O trote de 1º de abril mais sádico de todos os tempos?


A principal questão do roteiro é: como um telefonema de credibilidade duvidosa poderia desencadear a série de acontecimentos posteriores? A resposta vem logo em seguida, dentro da lanchonete, no que se poderia comparar a uma panela de pressão esquentando lentamente até explodir. Harry perdido em turbilhão de incertezas e tentando convencer os demais sobre a gravidade da situação, num crescendo sufocante cujo clímax, embalado pela trilha dramática do grupo Tangerine Dream, é de expelir o coração até a altura da garganta.

Sem exagero: pra mim, é um dos momentos mais antológicos do cinema em todos os tempos. A cena é perfeitamente montada, dirigida, interpretada e, acima de tudo, convincente. Transcende até o declínio do anticomunismo na época (fim dos anos 80), mostrando que, na prática, nenhuma paranóia é velha demais.

Após algumas ligações para seus contatos no governo, Landa descobre que quase todos deixaram o país. É o suficiente para incendiar aquele microcosmo, em especial o personagem Fred, que imediatamente prepara sua van pra cair na estrada. Sob a orientação de Landa, eles rumam direto ao aeroporto mais próximo, deixando alguns incrédulos pra trás. Harry embarca na fuga, mas não vai muito longe, pois quer voltar pra pegar Julie e seus avós. E o faz sozinho, pois ninguém ali quer perder um décimo de segundo. Antes de Harry pular da van (em movimento), Landa avisa que reservou um helicóptero nas proximidades para garantir uma última retirada para o aeroporto em menos de quarenta minutos.

Assim, nosso herói retorna ao coração da Miracle Mile para salvar a garota dos seus sonhos. No processo, topa com figuras urbanóides de todo o tipo, a começar pelo ladrão Wilson (um Mykelti Williamson pré-Forrest Gump, creditado aqui como Mykel T.).

O que, a princípio, parece uma tarefa simples, se torna uma montanha-russa de idas e vindas. O clima é de pesadelo recorrente. Toda vez que Harry tem de voltar pra encontrar algum personagem crucial para tirá-lo daquela situação, é como se a deadline apertasse mais forte o pescoço do espectador.

Num clima de tensão absurda, o cenário vai se tornando mais caótico e violento a cada minuto.


Steve De Jarnatt já mereceria todos os créditos só pela brilhante sequência da lanchonete (sendo mais preciso, da cena arrepiante do telefonema até Harry saltar da van), mas são nas tomadas externas ao final, que o cineasta se revela um gênio blockbuster. Senão vejamos... A cidade amanhece em meio a um rush na avenida mais congestionada do inferno, com milhares de veículos, turbas enlouquecidas, tiroteios e explosões pra todo lado. Isso tudo construído pra montar um panorama totalmente desordenado. Conduzir essa bagunça multilateral de maneira verossímil numa era pré-CG não é pra qualquer um. Criar bons ganchos de ação no meio disso tudo, muito menos. Com certeza, os diretores da segunda unidade, Leo Zisman e David C. Anderson, tiveram dias complicados.

Outro "detalhe". Estas cenas começam no fim da noite, se desenrolam durante o nascer do sol e seguem adiante. Ao ar livre, com o céu ao fundo e a luminosidade aumentando gradualmente até o dia ficar totalmente claro. Sem querer dar uma de expert em processo cinematográfico, mas isso é extremamente difícil, lento e trabalhoso. Muitos diretores consagrados evitam esse tipo de cena justamente por depender de inúmeros fatores fora de qualquer controle. Nas produções recentes, o único exemplo corajoso que me lembro é o de Jonathan Mostow, que filmou nestes mesmos moldes uma sequência importante de Exterminador do Futuro 3: A Rebelião das Máquinas (e, acredite se quiser, numa escala bem menor do que a de Miracle Mile). Aliás, foi pelo próprio Mostow, nos comentários do dvd, que eu soube do tamanho desse abacaxi radioativo. Não esquecendo que Jarnatt ainda estava regendo um apocalipse logístico nessas cenas.

O filme ainda traz algumas citações espertas no subtexto. Uma delas é o livreto que Landa tira de sua maleta. É uma referência ao livro "O Arco-Íris da Gravidade" (Gravity's Rainbow, 1973), épico pós-modernista/histórico/digressivo/conspiratório/fatalista de Thomas Pynchon. O livreto em questão é um cliffsnotes, espécie de guia de estudos para obras consideradas muito complexas - o que se aplica bem no caso de um livro cujo plot soma mais de 400 personagens e se utiliza de uma vasta gama de estilos narrativos interseccionados, com conhecimentos avançados em diferentes disciplinas. A trama, ambientada no final da Segunda Guerra, é centrada na produção alemã dos mísseis V-2 e a busca por um misterioso dispositivo chamado "Schwarzgerät", que seria incorporado a um foguete específico com o número serial "00000".

Controverso, o livro bagunçou até o Pulitzer de 1974, quando foi desautorizado da indicação. Recentemente, ganhou uma edição especial com arte de capa assinada por ninguém menos que Frank Miller - dizem, a pedido do próprio Pynchon.

Outra referência interessante também é relacionada à personagem Landa. Assim que ouve os fatos narrados por Harry, ela considera a possibilidade do governo já ter uma contingência para a situação. Nesse momento, revela que um ex-namorado trabalha na RAND Corporation (Research ANd Development), organização criada há sessenta anos com o objetivo de projetar análises e cenários para as forças armadas norte-americanas. Com o tempo, se diversificou e passou a trabalhar também com fundações privadas, internacionais e até com outros governos. Em suas fileiras, já estiveram mais de trinta vencedores do Nobel, entre outros notáveis. Donald Rumsfeld e Condoleezza Rice são afiliados.

Atualmente a RAND opera low profile em assuntos como terrorismo, economia e serviços de saúde. Mas durante sua longa trajetória foi acusada de incentivo ao militarismo e associada a um sem-número de teorias da conspiração. Segundo o livro Soldiers of Reason, do jornalista Alex Abella, a RAND, habitué nos corredores do poder, persuadiu o alto escalão do governo de que era possível vencer uma guerra nuclear.

No filme, por coincidência (?), a fixação por eficiência impressa nas atitudes de Landa é puro objetivismo de Ayn Rand ("a philosophy for living on earth"). As cenas em que a personagem monta o cenário mais provável, organiza mentalmente sua agenda e distribui tarefas revela uma Randista nata.

Outras citações incluem nomes como Carl Sagan, Linus Pauling, John A. "Shorty" Powers e Mensa International. Coisa fina.


Um inesperado efeito colateral: Miracle Mile apaga bastante o brilho de Cloverfield. É chato admitir. Acho o filme do diretor Matt Reeves um dos mais divertidos do ano passado, mas a verdade é que, em determinado momento de Miracle Mile, o plágio é evidente. Não se trata nem de um elemento ou outro, mas uma estrutura narrativa inteira do filme sendo copy-pasteada para o cartão de memória da câmera de Cloverfield. Isso sem falar em algumas cenas-chave pontuais e conceitos básicos da premissa.

Abaixo, as similaridades menos sutis - algumas listadas no fórum tosco do IMDb. Marque pra ler (atenção, SPOILERS!)


o cara que volta ao inferno pra salvar a garota, contrariando todo mundo;

a cena na loja de eletrônicos, com as tevês ligadas noticiando o caos;
 
o helicóptero levantando vôo rumo à salvação, sendo atingido e caindo rente aos prédios (sequência idêntica);

referência ao Superman - aqui, fazendo mais sentido;

a história retornando karmicamente ao seu ponto de partida, num parque;

o final, quando a garota quer sair e ele diz "não resta mais nada lá fora";

o casal trocando as últimas palavras num ambiente claustrofóbico, diante da morte iminente;

o impacto-conclusão, vitimando a dupla de protagonistas.


Não é difícil entender por que Miracle Mile foi um fracasso. Mesmo o cartaz original não traduz corretamente a proposta do filme - e olha que é um fabuloso pôster de filme-catástrofe:


É certo que muita gente saiu das salas de cinema perguntando se alguém anotou a placa do caminhão. Os dois últimos atos de Miracle Mile são radicalmente diferentes do primeiro. Charlie Brooker, roteirista e crítico do Guardian, escreveu que o filme tem a maior mudança de tom que ele já viu. Jay Carr, do Boston Globe, o considera bagunçado, mas com uma energia e urgência difíceis de esquecer. A cultuada revista britânica Neon o elegeu o filme mais depressivo de todos os tempos (IMHO, não, mas quase chega lá). O consenso da crítica na época era de que Miracle Mile era um tour-de-force caótico e perturbador.

Mas quem chegou mais perto, como sempre, foi o crítico Roger Ebert, com sua visão contundentemente sóbria e enxuta. Seu review no programa Siskel & Ebert at the Movies, logo a seguir, é genial (razão pela qual optei por postá-lo ao invés do trailer). Mas funciona apenas pra quem já viu o filme - caso contrário, o mais interessante é checar sua crítica escrita.




O paralelo que Ebert faz entre Miracle Mile e Depois de Horas é perfeito. Interessantes também são os comentários divergentes entre ele e seu colega Gene Siskel sobre a estética 80's na direção de arte. Deliciosamente datada e, pra mim, conferindo até um charme a mais ao filme, ela é um contraste flagrante com porradas na boca do estômago, como Testament e O Dia Seguinte, ambos de 1983.

Após Miracle Mile, a carreira de Anthony Edwards no cinema não deslanchou, mas também não foi uma nulidade total. Coadjuvou em vários filmes, dirigiu um infanto-juvenil e protagonizou outros menos cotados (entre eles, Cemitério Maldito II). Foi melhor sucedido em produções mais recentes, como Os Esquecidos, com Julianne Moore, e escondido ali no meio de Zodíaco, de David Fincher. Mas, sem dúvida, sua grande projeção foi na telinha, no papel do Dr. Mark Greene, do popular seriado E.R. (no Brasil, Plantão Médico), onde permaneceu de 1994 a 2008.

Mare Winningham percorreu um caminho parecido, ainda mais focado na televisão. Participou de várias séries, de E.R. e A Sete Palmos a Boston Legal e Grey's Anatomy.

Miracle Mile foi o segundo longa de Steve De Jarnatt. Considerando que sua estréia foi no cult trash Cherry 2000, apenas um ano antes, é algo a se admirar. Antes de ser produzido, o cineasta rodou com o script em Hollywood durante dez anos, quando conseguiu carta branca da Warner. A gigante, porém, queria uma produção mais comercial com algum diretor famoso e não um iniciante como Jarnatt. Diante do impasse, o filme seguiu engavetado por mais três anos, quando o diretor o arrematou por 25 mil dólares. Ele o reescreveu e o estúdio ofereceu 400 mil para comprá-lo de volta, no que foi prontamente recusado. Finalmente, Jarnatt recebeu 3 milhões de dólares da pequena Hemdale Films para iniciar a produção.

Posteriormente, Jarnatt também seguiu carreira na TV, dirigindo, roteirizando e produzindo diversos seriados. Nunca mais retornou ao cinema, mas deixou a sua marca. Bom pra ele que Miracle Mile conste no portfolio. Afinal, não é todo mundo que tem cacife pra dar uma de Terrence Malick ou Edson Arantes do Nascimento.


ICBLinks:
Depois de Horas na Miracle Mile: A lógica dos pesadelos no cinema
Separados no nascimento: "Cloverfield" & "Miracle Mile"
Soldiers of Reason (review do Washington Post)