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domingo, agosto 17, 2025
sábado, agosto 16, 2025
"Se os humanos são tão espertos,
porque somos tão estúpidos?"
— Yuval Noah Harari
Como defender o nosso espírito na idade do lixo informativo — mais do que uma interrogação, eis um método de resistência proposto por Yuval Noah Harari, autor de livros como Nexus em que se pensa e problematiza este nosso mundo de redes e avalanches de (des)informação — ei-lo, partilhando alguns contagiantes minutos de reflexão.
domingo, agosto 10, 2025
Facebook: do virtual aos dramas muito reais
Para Sarah Wynn-Williams, o trabalho no Facebook começou como uma utopia, para desembocar numa cruel frustração. No seu livro Careless People, a rede social de Mark Zuckerberg surge como uma empresa em que os mecanismos de procura de lucro estão longe de ser saudáveis — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 julho).
Como evoluiu a Internet nas últimas duas décadas? Entre as respostas possíveis, das mais radiosas às mais inquietantes, nenhuma pode ignorar a história do Facebook. Tendo chegado recentemente aos 3 mil milhões de utilizadores, talvez possamos resumir o seu peso virtual (mas muito concreto) através de um contraste esquemático. Assim, logo após a sua fundação, em 2004, a rede social de Mark Zuckerberg foi celebrada por vozes de muitos quadrantes (incluindo o espaço político) como o paraíso de todas as comunicações — de repente, era possível praticar uma partilha global de mensagens que garantia a pureza virginal e ecuménica de uma humanidade milagrosamente pacificada.
Depois, o Facebook passou a ser associado a dramas muito reais, como tal questionado e investigado, dramas envolvendo conteúdos que vão desde formas de difamação de pessoas LGBT até à repressão da minoria muçulmana em Myanmar, passando pelo processo (social, justamente) que transformou Donald Trump em presidente dos EUA.
Lembremos um dos ecos artísticos de tudo isso: em 2010, David Fincher realizou o filme A Rede Social, uma das obras-primas que Hollywood gerou neste século XXI, abordando o nascimento do Facebook como uma pueril religião da comunicação “sem contradições”, afinal enraizada numa clássica estratégia de negócio e multiplicação de lucros. Construído a partir de um argumento assinado por Aaron Sorkin (que lhe valeu um Oscar), o filme tinha como base o livro The Accidental Billionaires (ed. Doubleday, 2009), de Ben Mezrich (a edição portuguesa, Milionários Acidentais – A Fundação do Facebook, surgiu em 2010, com chancela da editora Lua de Papel).
Em 2021, Sheera Frenkel e Cecilia Kang, jornalistas do New York Times, publicaram An Ugly Truth (ed. The Bridge Street Press), notável investigação sobre a “batalha pelo domínio” comunicacional do Facebook (a tradução portuguesa, com o título Manipulados, foi lançada em 2022 pela editora Objectiva). Agora, podemos descobrir uma genuína crónica intimista, contada por Sarah Wynn-Williams que viveu sete anos da sua vida profissional no interior do Facebook — chama-se Careless People (ed. Macmillan) e, ao longo dos meses de maio/junho, passou seis semanas na lista de “best-sellers” do New York Times.
Nascida na Nova Zelândia, a autora trabalhou na embaixada do seu país em Washington, tendo entrado para o Facebook em 2011, em pouco tempo ascendendo ao cargo de coordenadora da estratégia global da empresa (“global public policy”). A sua experiência diplomática ajudou-a a abrir vias de diálogo com os poderosos deste mundo. O certo é que aquilo que começou por ser a realização de um sonho, rapidamente se transformou em pesadelo, primeiro por causa da desorganização quase burlesca que encontrou, depois descobrindo-se como peça incauta de um xadrez cujo “ponto de fuga” era sempre a figura intocável de Mark Zuckerberg. Muito cedo deparou com uma centralização que, mais do que empresarial, decorria de uma “psicologia” bizarra: “Foi-me gentilmente sugerido que, sendo Mark um ingénuo político, não é do interesse da companhia colocá-lo em encontros com chefes de estado”.
O livro é tanto mais interessante, até mesmo emocionalmente envolvente, quanto Sarah Wynn-Williams não está a defender uma “tese”, mas sim a percorrer memórias de uma experiência pessoal iniciada em tom utópico para desembocar numa cruel frustração. Daí os elementos pessoais da narrativa, desde logo a experiência da gravidez vivida durante os primeiros tempos no Facebook, a par de diversos dados perturbantes, incluindo a descoberta da partilha de informações sobre novos recursos de inteligência artificial com o Partido Comunista da China, “apenas” para garantir uma maior abertura do mercado chinês ao Facebook. Seja como for, a história de Careless People também não acaba aqui, já que a Meta (proprietária do Facebook), além de denunciar aquilo que considera as “mentiras” da autora, interpôs uma acção legal que a impediu de cumprir a habitual digressão promocional do livro.
Resta recordar a origem do título — à letra “pessoas descuidadas”, embora arrastando também as sugestões de superioridade, indiferença e manipulação. A expressão provém de O Grande Gatsby (1925), de F. Scott Fitzgerald, e surge no parágrafo que serve de epígrafe ao livro: “Tom e Daisy eram pessoas descuidadas — esmagavam as coisas e as criaturas, e depois retiravam-se para o seu dinheiro ou a sua imensa indiferença, ou o que quer que fosse que os mantinha unidos, deixando os outros a limpar a confusão que tinham gerado...”
>>> They were careless people, Tom and Daisy—they smashed up things and creatures and then retreated back into their money or their vast carelessness, or whatever it was that kept them together, and let other people clean up the mess they had made…
F. SCOTT FITZGERALD
segunda-feira, agosto 04, 2025
Pânico cultural
| George Sanders e Ingrid Bergman em Viagem em Itália (1954): como vemos uma imagem? |
Em termos culturais, que significa dizer “tudo é possível”? Eis uma pergunta que se perdeu pelo caminho — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 julho).
Há uma sensação de pânico que passou a contaminar a minha relação com o cinema: um dia destes, alguém vai referir-se a Viagem em Itália (1954), de Roberto Rossellini, proclamando com um sorriso de inocência beata que a personagem de Ingrid Bergman é uma precursora do movimento #MeToo, desse modo expondo o cinismo do marido interpretado por George Sanders, ele que talvez seja mesmo responsável por alguns episódios de violência doméstica.
Quem vai dizer tais disparates? Não sei, a minha presciência não chega tão longe. Ainda assim, atrevo-me a apostar que poderá ser um ou uma “influencer” que sabe tanto de cinema como eu sei do comportamento das ervas daninhas nas encostas do Everest. Ou talvez um ou uma repórter, de microfone na mão, imbuído da certeza de que as suas palavras são lei compulsiva para qualquer mortal que ainda não tenha carregado no botão para desligar o pequeno ecrã.
Tudo é possível — e, agora, a expressão “tudo é possível” não significa o mesmo que significou para a geração que viveu a adolescência nas décadas de 1960/70, mesmo se o preço a pagar pelas ilusões desse tempo feliz continua a assombrar a nossa modesta existência. Tudo é possível, de facto, até mesmo o tratamento de Taxi Driver (1976) como uma muito suspeita exaltação de uma personagem com impulsos violentos. Afinal de contas, vivemos no tempo em que, quase 80 anos depois de Simone de Beauvoir ter publicado O Segundo Sexo, o filme Barbie é consagrado em muitos recantos do planeta como a suprema encarnação da libertação feminina (e esta, lamento informar, não é invenção minha).
Há outra maneira de dizer isto: a crescente violência interpretativa do pensamento “politicamente correcto” instaurou a noção historicamente cega e culturalmente miserável (de miséria cultural, entenda-se) segundo a qual as obras de arte — cinema, literatura, teatro, música, pintura, etc. — não têm nada de específico. Segundo a estupidez de tal mantra ideológico, o que define cada obra é apenas a importância mediática que pode ser atribuída aos seus “temas”.
Observe-se, por isso, o outro lado da questão. Vemos, ouvimos e lemos alguns criadores, muitos deles ainda mal saídos da adolescência, a dar conta de um determinado trabalho que fizeram (filme, livro, etc.) e não têm mais nada para dizer a não ser apresentar um rol de “temas” — a exploração das mulheres, a liberdade para as minorias, a denúncia de alguma forma de repressão, etc. — que, supostamente, caucionam tudo e mais alguma coisa, mesmo que o trabalho seja “apenas” artisticamente medíocre. Shakespeare? A peça, senhoras e senhores, é uma denúncia do “bullying”... não há nada a dizer sobre a respectiva encenação, nem sequer, já agora, sobre o valor do texto escrito há mais de 400 anos.
Penso que uma parte significativa da responsabilidade de tudo isto é da minha geração. Sem qualquer ponta de ironia — penso mesmo. Educados na ideia, e para a ideia, de que a arte é capaz de deslocar e transfigurar a nossa percepção do mundo, enriquecendo o nosso lugar na dinâmica desse mesmo mundo, deixámos, ainda que de modo incauto, que tal ideia fosse sendo parasitada por uma outra ideia (mas já não é uma ideia, apenas uma vibração consumista) segundo a qual os objectos artísticos são instrumentos legislativos para repor uma ordem temática e simbólica que, por alguma razão, é tratada como única e inevitável.
No domínio do pensamento sobre a arte (logo, também do pensamento artístico), isso traduz-se numa desvalorização sistemática, sobretudo televisiva, do pensamento crítico — se o mundo se organiza e esgota nos “temas” impostos pelas regras do mediatismo dominante, pensar a arte tornou-se irrelevante. Em termos sociais, isto significa que estamos a fabricar multidões insensíveis às singularidades dos objectos artísticos.
sexta-feira, abril 18, 2025
Somos todos australianos
— sobre o consumo da internet
| Imagem promocional do filme Eis o Admirável Mundo em Rede (2016) |
Como é que os mais jovens se envolvem com a internet? Eis uma pergunta de uma só vez cultural e política — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 abril).
Se procurarmos na internet as notícias mais recentes sobre o primeiro-ministro da Austrália, podemos encontrar muitos relatos, fotografias e videos sobre o incidente (benigno) que protagonizou numa sessão de campanha eleitoral, na quinta-feira, em Lovedale, New South Wales: ao posar para os fotógrafos, Anthony Albanese escorregou e caiu do estrado em que se encontrava... Entretanto, no mesmo dia, outra notícia sobre Albanese teve no espaço mediático um tratamento incomparavelmente mais discreto — como se prova, uma queda tem sempre boa cotação junto do jornalismo mais preguiçoso.
Acontece que o chefe do governo australiano deu uma conferência de imprensa em que estiveram em destaque temas nacionais, como o custo do aluguer das habitações, a par da situação no Médio Oriente e das suas relações com Donald Trump. Com um detalhe importante: ao lado dos jornalistas, o evento contou com algumas crianças, convidadas pelo próprio Albanese para poderem questioná-lo para uma emissão de Behind the News (programa televisivo da ABC australiana, criado em 1968, visando os espectadores com idades entre os 10 e os 13 anos).
A certa altura, uma menina de nome Lana, 11 anos de idade, estudante de uma escola primária dos subúrbios de Camberra, questionou o primeiro-ministro: “Considera que as redes sociais têm algum impacto nas crianças?” Albanese não se perdeu em qualquer facilidade retórica: “Certamente que têm, e é por isso que vamos banir as redes sociais para os menores de 16 anos.”
Em termos políticos, a afirmação não era nova, ecoando uma decisão do governo australiano anunciada no final do ano passado. Convém, por isso, evitar ceder à histeria de muitos debates televisivos, recusando esse esquematismo sem pensamento que poderá atrair um qualquer alarmismo do género: “Vamos, então, proibir os telemóveis?” De acordo com um texto do próprio Albanese (publicado no site do governo australiano a 21 de novembro de 2024), trata-se de uma “lei concebida para responder às transformações da tecnologia e dos serviços”. De tal modo que o primeiro-ministro não hesita em dar exemplos de plataformas cujas condições de acesso deverão ser atentamente controladas: Snapchat, TikTok, Instagram e X. Aliás, com a subtileza que o distingue, Elon Musk não perdeu a oportunidade de proclamar que o governo australiano é formado por “fascistas” e que os condicionalismos etários previstos pela nova legislação têm como objectivo assegurar “o controlo do acesso à internet por todos os australianos” (sic).
Em boa verdade, novos e velhos, somos todos australianos. Não que a legislação do governo de Albanese possa ser encarada como um modelo absoluto, automaticamente transponível para qualquer contexto. O que está em jogo é muito diferente e, no caso português, tanto mais difícil de encarar e pensar quanto assistimos a infinitas batalhas navais sobre o orçamento de Estado, os candidatos presidenciais ou, agora, as eleições legislativas sem que haja um dirigente partidário (ou um comentador) que pronuncie a palavra “cultura”.
Porque é de uma tragédia cultural que se trata. Para lá de qualquer estupidez maniqueísta, importa lidar com esta conjuntura em que, da construção do conhecimento à estruturação dos valores individuais e colectivos — chama-se a isso, justamente, cultura —, tudo se transfigurou.
O cinema nunca desistiu de nos avisar para o que tem estado a acontecer — recorde-se a contundência analítica da obra-prima de David Fincher, A Rede Social (2010), ou o documentário didáctico de Werner Herzog, Eis o Admirável Mundo em Rede (2016). A ilusão libertária com que muito boa gente, incluindo jornalistas, acolheu a eclosão das redes (ditas) sociais afastou-nos de uma necessária reflexão sobre que sociedade se estava a construir. E também que sociedade aceitamos destruir.
domingo, março 16, 2025
A política TikTok
| Spellbound / A Casa Encantada (1945): cenários de Salvador Dalí para um clássico de Alfred Hitchcock |
O povo do TikTok não tem memória nem cultiva o conhecimento. Que pensam disso os políticos? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 março).
I. Politicamente, vivemos numa caixa de ressonância de “mensagens”, saturada de redundâncias, que é também uma máscara do cenário quotidiano em que tudo se produz e reproduz: vogamos num espaço de pensamento enquistado no seu próprio espectáculo, incapaz de se distanciar da pornografia mediática de que, afinal, se alimenta. E penso uma vez mais, como um assombramento que se renova, nas palavras concisas do filósofo francês Claude Lefort (1924-2010): “As democracias modernas, transformando a política num domínio autónomo de pensamento, criam condições para o totalitarismo.”
II. A cruel passagem dos dias obriga-nos a acrescentar um suplemento descritivo às palavras de Lefort. Assim, o seu “domínio autónomo de pensamento” passou a existir como uma paisagem predominantemente televisiva que, porventura na cândida inconsciência dos seus profissionais, desistiu de qualquer metodologia descritiva para, em nome de um naturalismo serôdio, se encenar como tribunal popular, sem centro simbólico nem juiz identificado ou identificável.
III. A regra é esta (sem menosprezo, antes pelo contrário, pelas excepções): a gestão da informação disponível deixou de ser um complexo, vigilante e metódico processo de conhecimento, para ser transformada numa acumulação redundante capaz de gerar uma agitação “informativa” em que, supostamente, se espelham os direitos da nossa cidadania.
IV. O TikTok — aliás, o sistema ideológico e tecnológico que se exprime no TikTok — não se esgota num baú de fragmentos que alimentam o vazio saltitante dos nossos olhares. Se fosse apenas isso, já seria um crime audiovisual contra séculos de elaboração cognitiva sustentados por uma história nobre que vai das pinturas primitivas das cavernas até às maravilhas reais e surreais que o cinema gerou ao longo do seu século XX. O TikTok funciona como uma máquina de desvalorização de qualquer aproximação humanista da experiência humana — a alegria de que falava o filósofo está agora reduzida à vibração efémera de uma existência (a das imagens e também a nossa) que se esgota na rotina de acrescentar pitoresco ao pitoresco, estupidez à estupidez, obscenidade à obscenidade.
V. A palavra “povo” quase desapareceu do nosso vocabulário porque a realidade que nela se encarnava está estilhaçada. Já só há “comunidades”, “seguidores”, “amigos” de polegar ao alto. Até mesmo os plurais que nos uniam se tornaram suspeitos, a ponto de se considerar que quem se dirija aos “portugueses” está a ofender meio mundo — a questão de género deixou mesmo de começar na intimidade mais recôndita de cada ser humano, para ser brandida como uma palavra de ordem militante.
Ignora-se a prática política como uma prática de vida e uma permanente dedicação a uma ideia forte de comunidade. Resta um mero xadrez de poderes jogado pelos membros da classe política, com os cidadãos, munidos de telemóveis e afins, a consumir minutos, segundos cada vez mais curtos, não poucas vezes com o tempero de apoteóticos disparates de alguns “influencers” e seus derivados.
VI. Perseguindo uma pureza sem história, sancionada por uma agressiva ignorância mitológica, direitas e esquerdas revelam-se igualmente desastradas — sendo a ingenuidade congénita o maior dos seus desastres — na ocupação deste novo território virtual (mas muito real) sobre o qual, afinal de contas, não conseguem produzir a mais pequena ideia operativa.
VII. São as forças mais extremadas do espectro político, invulgarmente hábeis na exploração das contradições de tudo isto, que vão acumulando dividendos: passo a passo, eleição a eleição, garantem a sua crescente legitimação entregue por um povo que, através dos abalos telúricos do espectáculo, julga rever-se nos ecrãs que utiliza. Entretanto, promovem-se muitos, e muito interessantes, debates sobre as ameaças da Inteligência Artificial, ignorando o abandono a que vai sendo votada a inteligência humana.
sábado, dezembro 21, 2024
Que géneros musicais (ainda) existem?
[Rick Beato]
Que aconteceu para que (quase) já não haja géneros musicais?
Será um fenómeno de verdadeira diversificação, ou apenas o resultado de uma nova conjuntura industrial & comercial?
Vale a pena conhecer a luminosa exposição de Rick Beato.
sábado, setembro 28, 2024
Rick Beato: "O YouTube
está a esmagar os meios de comunicação tradicionais"
Fascinante video de Rick Beato — em foco está a presença dominante (esmagadora, precisamente) do YouTube na paisagem em que procuramos, escolhemos e consumimos as mais diversas formas de comunicação.
O título desta nota poderá fazer pensar que Beato não passa de um tradicionalista ressabiado, revoltado contra um instrumento de comunicação que não domina... Nada disso. Aliás, através de números eloquentes, ele demonstra que o seu canal no YouTube é um caso significativo de enorme sucesso. Trata-se, afinal, de expor uma verdade rudimentar, fascinante e perturbante — as nossas relações com as imagens e os sons entraram (já há algum tempo, convenhamos) numa idade moderna, pós-moderna ou pós-pós-moderna, envolvendo novos modos de olhar, diferentes regimes de escuta. Enfim, uma desafiante organização/percepção do mundo à nossa volta.
O video é tanto mais sugestivo quanto se apresenta com um título cuja significação não é o que parece: "Porque é que David Gilmour não vai aparecer no meu canal".
sexta-feira, agosto 30, 2024
Roubar música tem um novo nome: "interpolação"
| Rick Beato |
Eis uma curiosa, e muito pedagógica, descoberta de Rick Beato: o roubo descarado de notas de uma canção para outra canção passou a ser tratado pela designação chique de "interpolação". Ou como ele pergunta: "Isto não é apenas roubo?" — vale a pena ver, ouvir e reflectir sobre o assunto.
domingo, junho 16, 2024
Inteligência Artificial: a ressaca
| [ Rolling Stone ] |
Eis uma eloquente ilustração (assinada por Ruzlat/Adobe Stock) com que a revista Rolling Stone dá conta da ressaca, de uma só vez cultural e industrial, que se segue à esquematização "polémica" das questões colocadas pelos mais recentes desenvolvimentos da Inteligência Arificial — um artigo conciso e didáctico, assinado por Miles Klee, para nos ajudar a reflectir sobre uma conjuntura que não pode ser reduzida a jogos florais mais ou menos moralistas: 'Brands Are Beginning to Turn Against AI'.
terça-feira, janeiro 31, 2023
Nuno Artur Silva
ou a arte de dizer "eu"
| Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves * Foto: Rita Carmo |
1. Vivemos tempos de obscena saturação de individualismos. Não poucas vezes, as equívocas facilidades de expressão oferecidas em rede impuseram um novo espaço de (in)comunicação organizado e, sobretudo, desorganizado a partir da destruição de qualquer forma de responsabilidade e responsabilização. Dito de outro modo: proclamar um "eu" sem fronteiras nem respeito pelos outros "eus" passou a ser um desporto pueril, induzido e consagrado por muitas formas e dispositivos da nossa cultura virtual.
2. O espectáculo Onde É Que Eu Ia?..., de Nuno Artur Silva, corre o risco invulgar de começar por se "aproximar" dessa cultura de lamentáveis narcisismos, acabando, inteligentemente, por expô-la nos seus contrastes, contradições e mentiras — e não tenhamos dúvidas que tal cultura se sente sempre ameaçada por qualquer gesto ou discurso que não abdique do gosto da inteligência.
4. Digamos, para simplificar, que nem tudo foi fácil. Ou ainda: as experiências saldaram-se por uma lição de vida amarga e doce. Para usarmos a linguagem do velho e incontornável Godard, diremos que Nuno Artur Silva foi sujeito — e objecto, hélas! — de uma metódica lição de coisas.
5. O facto de o espectáculo ser pontuado pelos desenhos que António Jorge Gonçalves vai improvisando, ao mesmo tempo que informa o espectador das várias alíneas da performance, conferem a Onde É Que Eu Ia?... a respiração insólita, subtilmente envolvente, de uma memória que apetece dar a ver através de novas imagens, ao mesmo tempo que o distanciamento decorrentes das próprias imagens apela a mais palavras — e à contundência sem equivalente do verbo.
6. O resultado é um belo e sofisticado exercício de contemplação das grandezas e misérias do nosso mundo português, das convulsões próprias da cena política, incluindo os bastidores fornecidos pelas casas de banho (nada de impróprio ou chocante, podem crer), até às vergonhas e desvergonhas da expressão virtual de alguns cidadãos, cada vez mais banal e menos expressiva, tendencialmente (e orgulhosamente) medíocre.
7. A mensagem do espectáculo é... não haver mensagem. Fica, em qualquer caso, um conselho sábio: cada vez que decidirmos retomar a palavra, convém perguntar "onde é que eu ia" — a humildade é, afinal, uma virtude humana que vale a pena reabilitar.
* ONDE É QUE EU IA?...
Teatro São Luiz, Lisboa
> até dia 5 de fevereiro
>>> Instagram.
sábado, dezembro 03, 2022
Um pouco mais do que 280 caracteres
| A Rede Social (2010) ou as ilusões do paraíso virtual |
A saga de Elon Musk no Twitter está para lá do pitoresco: é urgente discutir o próprio conceito de “rede social” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 novembro).
As convulsões que Elon Musk trouxe ao Twitter constituem um fenómeno dramático. Como se tornou claro através da multiplicidade de notícias e análises que a situação tem suscitado, esta é uma saga que envolve questões muito complexas, desde a vida de uma companhia realmente global até aos valores éticos inerentes a qualquer forma de comunicação.
Estamos perante atribulações que, directa ou indirectamente, afectam pessoas em todos os recantos da Terra. Segundo dados recentes, o Twitter é usado todos os dias por 237 milhões de pessoas. Isto sem esquecer que a respectiva aquisição por Musk foi consumada através de 44 mil milhões de dólares (cerca de 55 vezes o orçamento da Cultura em Portugal).
Na sua clássica frieza, os números são a ilustração eloquente de uma verdade rudimentar das (chamadas) redes sociais — essa verdade foi exposta há mais de uma década nesse filme genial que é A Rede Social (2010), de David Fincher, com argumento de Aaron Sorkin (a partir do livro The Accidental Billionaires, de Ben Mezrich, publicado em 2009 pela editora Doubleday). A saber: as (ditas) redes sociais transfiguraram toda a cultura económica do planeta, consolidando novas formas de negócio e acumulação de lucros.
Daí a abordar as vidas de Mark Zuckerberg e seus pares como quem inventaria “santos” e “demónios” vai um passo que importa não favorecer. Assim, não me estou a colocar fora de tudo isto, até porque, se não consigo sequer imaginar-me a participar na agitação diária do Facebook, tenho duas contas no Instagram (plataforma que pertence ao Facebook, aliás à companhia Meta, aliás a Zuckerberg).
O que está em jogo começa por ser a própria percepção das “redes” que somos compelidos a chamar “sociais”. Deixámos até de reconhecer que tal classificação funciona como um recalcamento das singularidades (sociais, justamente) de milhares de anos da história da humanidade. Esquecendo que sempre vivemos através de muitas redes — familiares, profissionais, religiosas, etc. —, aceitámos consagrar as comunicações via Internet como as únicas “redes” a que damos o nome de “sociais”.
Um dos fenómenos mais perturbantes desta conjuntura é o facto de algumas formas de jornalismo terem adoptado a referência às (tais) redes sociais como uma espécie de oráculo que existe num limbo sem dramas nem contradições, porventura sem pessoas. Cada vez que uma notícia nasce daquilo que “dizem as redes sociais”, desaparecemos numa comunidade pobremente virtual, consumindo uma generalização vertiginosa feita de desreponsabilização individual e colectiva.
O que está em jogo não é a proverbial questão da comunicação. Porquê proverbial? Porque, de facto, comunicamos através de infinitos canais, incluindo Fabebook, Instagram, Twitter, etc. Porque não? O que está em jogo é o modo como fomos permitindo que o novo conceito de “social” ocupasse todas as nossas formas de vida, a ponto de minimizarmos a riqueza e a complexidade dos laços humanos. Julgar que somos “amigos” de um respeitável cidadão que vive no outro hemisfério apenas porque com ele trocámos alguns polegares ao alto corresponde a uma automática desvalorização, e consequente esvaziamento, de qualquer relação (humana, justamente).
Daí a escassez de pensamento com que estamos a lidar com o “apocalipse now” da plataforma Twitter. Por um lado, a confusão gerada por Elon Musk — envolvendo um trágico vazio de ideias e o afastamento, ora compulsivo, ora voluntário, de muitos trabalhadores do Twitter — configura uma incrível derrocada empresarial; no dia 18 de novembro, na CNN, numa intervenção de rara concisão analítica (disponível no YouTube), Oliver Darcy utilizava mesmo a expressão “caos total”. Por outro lado, torna-se difícil compreender que tal cenário não conduza, pelo menos, a alguma reflexão sobre outra derrocada. A saber: a do próprio conceito original de “rede social”.
Ainda que a acção de Elon Musk pareça enraizar-se num liberalismo, no mínimo, demagógico, a redução de tudo isto às suas “excentricidades” apenas reforça uma visão pitoresca da comunicação, infelizmente frequente no espaço (dito) mediático. Acontece que, como se prova, o comportamento de um homem pode perverter, de um instante para o outro, o mito fundador da própria “rede social” que passou a simbolizar.
Que mito é esse? A noção, algo cândida, por vezes apenas ridícula, segundo a qual o “social” da Internet existiria à margem das convulsões do mundo, casto, inerte, numa virgindade ontológica sem equivalente: vogávamos num infinito paraíso de comunicação, aberto, transparente e redentor, numa harmonia global alheia a todas os sobressaltos existenciais com que, ao longo dos séculos, fomos enganados por narradores medíocres como William Shakespeare, Marcel Proust ou Ingmar Bergman.
Subitamente, no outono triste de 2022, a nossa muito humana fragilidade leva-nos a pressentir que a criação de genuínos laços sociais talvez exija um pouco mais do que mensagens com um máximo de 280 caracteres. E vemo-nos confrontados com aquilo que quisemos recalcar: qualquer forma de comunicação começa, afinal, no reconhecimento da solidão de cada um de nós.
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terça-feira, novembro 01, 2022
O saber não ocupa lugar
| 2001: Odisseia no Espaço (1968): nas entranhas do computador |
A informação disponível na “cloud” transformou-nos em habitantes de um mundo realmente virtual — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 outubro).
Num recente artigo da revista The Economist (“The hard edge of the cloud”, 8 outubro), encontramos uma curiosa série de dados sobre a evolução dos sistemas de conservação da informação computorizada. A célebre “cloud” onde, mediante um preço, qualquer um de nós pode guardar os seus ficheiros — das listas do Spotify aos “milhões de selfies perversas” — tem crescido de modo exponencial, a ponto de ter gerado um mercado global de servidores & chips de computador avaliado em 600 mil milhões de dólares.
Para lá da consolidação da nossa biblioteca virtual, com grande impacto no comportamento de cada um de nós face à informação disponível, procurada ou coligida, a “nuvem” de informação gerou uma gigantesca, verdadeiramente global, rede de negócios. Exemplo revelador: grandes empresas envolvidas na “cloud” (a revista cita os exemplos de Amazon e Google) recorrem a design de origem japonesa, depois tratado por uma firma especializada sediada em Taiwan…
Há uma maneira mais básica de dizer isto: a nossa relação com a informação computorizada foi deslizando para um espaço realmente virtual — e dizer “realmente” a propósito de algo a que damos o nome de “virtual” é uma contradição reveladora do misto de estranheza e transparência da nossa actual relação com o império da tecnologia.
O cinema pode ajudar-nos a lidar com o labirinto de questões e perplexidades que tudo isso arrasta. É verdade que, nos dias que correm, há toda uma ideologia de marketing, fortemente dependente de líderes de mercado como a Marvel ou a DC Comics, que promove uma visão dos filmes enredada em escapismo sem inteligência. Mas não é menos verdade que a história do grande cinema popular (repito: popular) está disponível para compreendermos que, no mínimo, não necessitamos de ficar sujeitos a tal futilidade de pensamento.
Penso na referência emblemática de 2001: Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick, um dos muitos clássicos que, havendo um diferente sentido de risco e alguma imaginação comercial, o mercado poderia relançar e rentabilizar regularmente nos grandes ecrãs das salas IMAX. A relação dos astronautas da nave Discovery One, a caminho de Júpiter, com o seu computador, o célebre HAL 9000, condensa aquilo que, com alguma ironia, podemos chamar a tradição fundadora da informática. Dito de outro modo: a informação que HAL fornece é algo que ainda está ali, disponível, por assim dizer no corpo do computador — o conflito com a máquina nasce do facto de o próprio HAL se recusar a partilhar alguma dessa informação com os humanos que com ele viajam.
Aplicada ao computador, a palavra “corpo” poderá parecer estranha neste contexto, mas na dramaturgia concebida por Kubrick adquire toda a lógica e motivação. Assim, numa das sequências mais lendárias de 2001, David (o astronauta interpretado por Keir Dullea) entra, literalmente, no sistema de ficheiros de HAL para, um a um, os desligar. Nos incríveis grandes planos do rosto de David vemos, no seu capacete, o reflexo desses ficheiros: são mensageiros de um poder que já não se enraiza no humanismo clássico.
Aquilo que, em 2001, tende para a tragédia surgirá, uns anos mais tarde, em Jogos de Guerra (1983), uma realização de John Badham em forma de “thriller” politico-militar, não deixando de ser uma vibrante aventura à moda antiga. Aí encontramos outro David (Matthew Broderick no papel que o transformou numa estrela juvenil), estudante de liceu que, através de peripécias mais ou menos rocambolescas, acaba por aceder ao sistema de defesa dos EUA (NORAD): julgando que está a divertir-se com um “jogo de guerra”, a sua acção ameaça desencadear o apocalipse ou, como se diz no filme, a “guerra termonuclear global”…
Que aconteceu, então? Passámos da crueza física das máquinas para a sua dispersão num universo impessoal, sem centro, em que o consumidor individual já não tem nenhuma relação táctil com essa “nuvem” a que, afinal, pertence. No caso do primeiro David, o confronto dá-se nas entranhas do próprio computador. O segundo David vive a transfiguração do adágio popular segundo o qual o saber não ocupa lugar: no seu sentido original, o provérbio celebra a infinita acumulação de saber; agora, esse saber passou a “residir” numa paisagem etérea que, de facto, já não pertence a nenhum lugar palpável — literalmente, não ocupa lugar.
Pormenor simbolicamente interessante: ambas as personagens surgem com o mesmo nome próprio: David. Um e outro estão, de facto, em luta com um “Golias” que os transcende. Os respectivos apelidos são ainda mais reveladores. O astronauta de Kubrick chama-se David Bowman, à letra, “homem do arco”: é um arqueiro, alguém que ainda transporta a memória medieval de combates ancestrais. O estudante filmado por Badham é David Lightman, “homem da luz”, como se a intensidade do saber que lhe é dado contemplar o pudesse cegar.
sexta-feira, julho 08, 2022
Cinema, confinamento & etc.
| O Leopardo (1963) — Alain Delon e Claudia Cardinale filmados por Visconti |
Repensar o cinema, aqui e agora, é uma tarefa que não pode ignorar as regras dominantes do consumo dos filmes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 junho), com o título 'Da diferença à indiferença'.
Investigador e professor de cinema, José Bogalheiro acaba de publicar um livro, tão breve quanto motivador, a que chamou Se Confinado um Espectador (ed. Documenta). Trata-se de uma colectânea de textos escritos entre novembro de 2020 e julho de 2021 (para o site “À Pala de Walsh”), nascidos, tal como o título sugere, em contexto de pandemia, assombrados pelos sinais de progressiva decomposição dos circuitos clássicos do cinema.
No primeiro texto, motivado pelo filme A Voz Humana (2020), de Pedro Almodóvar, o autor recorda mesmo que “de semana para semana, multiplicam-se as notícias cada vez mais inquietantes sobre o encerramento de salas de cinema.” Não sem concluir que importa não desistir do voto formulado pelo próprio Almodóvar no sentido de não esquecermos as emoções do fenómeno cinematográfico, recomendando aos espectadores que “vão ao cinema, pois todas essas emoções se descobrem apenas num grande ecrã, entre desconhecidos, e às escuras.” O subtítulo do livro, convém sublinhar, é esclarecedor: O cinema como metamorfose da experiência interior.
Directa ou indirectamente, o livro de José Bogalheiro impele-nos a regressar a algum tipo de reflexão sobre os poderes e perversões da conjuntura virtual — entenda-se: o poder imenso das plataformas de streaming — em que os filmes passaram a viver no imaginário dos espectadores (ou a morrer na memória colectiva).
E não apenas por causa do contraste que pode existir entre a grandeza física de um ecrã de uma sala de cinema e a insuperável “pequenez” das nossas experiências caseiras, mesmo quando marcadas por suplementos técnicos que o marketing não desiste de valorizar. O que está em jogo é a diferença radical entre os valores de uma cinefilia indissociável de uma história frondosa do cinema com mais de um século — sempre envolvida por um código tácito de comportamentos sociais — e a ligeireza, tão festiva quanto irresponsável, do consumo indiferenciado de filmes.
Nesse contexto de indiferenciação, os filmes já não são filmes; como gostam de dizer alguns executivos de empresas de cinema, são “produtos”. Não é uma banal troca de palavras: para tal discurso, o cinema como entidade específica da história da humanidade não existe. No limite, podemos encontrar na Netflix um filme como Austerlitz (1960), de Abel Gance, sem que haja uma única informação, ainda que esquemática ou banalmente enciclopédica, sobre o papel criativo e o lugar mítico do seu realizador na dinâmica histórica e artística do grande cinema popular (nota pedagógica: muitos exemplos deste tipo, primários e chocantes, podem encontrar-se em quase todas as plataformas).
Num dos seus textos, José Bogalheiro recorda outro tipo de “objectificação” dos filmes. Assim, há quase 60 anos, a difusão de O Leopardo (1963), de Luchino Visconti, adaptando o romance homónimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, foi objecto das mais variadas peripécias. Recordemos, simplificando: na estreia, numa sala de Roma, o filme tinha uma duração de 197 minutos, tendo mais tarde ganho a Palma de Ouro de Cannes com 185 minutos — esta versão, que serviu de base ao restauro de 1991, acabou por ser considerada a “definitiva”; pelo meio, a versão “anglo-americana” fez com que, em vários mercados, o filme fosse distribuído em cópias de fraca qualidade, resultantes dos chamados contratipos (cópias de cópias) com crescente degradação da qualidade das imagens.
As atribulações da obra-prima de Visconti podem ser revisitadas como um pequeno conto moral para os nossos tempos de acumulação caótica de imagens e estímulos visuais (e sonoros). Assim, a fixação de O Leopardo na sua cópia “definitiva” está, por certo, contaminada por diversas formas de mercantilismo; ainda assim, foi vivida como uma saga interior ao próprio cinema e às suas componentes específicas.
Nos dias que correm, a exaltação comercial da “diferença” — por exemplo: ter acesso caseiro a um filme “qualquer” — transforma-se, por vezes, num triunfo obsceno da indiferenciação. Seja um filme de Abel Gance, seja a mais vulgar barulheira protagonizada por um super-herói mil vezes reciclado, tudo se acumula na gratificação pueril do consumo. Como José Bogalheiro refere, lembrando George Steiner, “não estamos livres da barbárie” que começa na iliteracia face às imagens. A tragédia política que isso envolve obriga os políticos a pensar as imagens que usam — ou em que são usados.
sábado, julho 02, 2022
A civilização dos GIF
| Annie Ernaux e os filhos: memórias em película Super 8 |
Agora através do cinema, a escritora francesa Annie Ernaux não desiste de cultivar e partilhar o tempo das memórias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 junho), com o título 'A civilização das imagens repetidas'.
O que é um GIF? Mesmo que qualquer um de nós nunca tenha dado atenção a tal sigla, já todos fomos expostos à infinita variedade dos GIF que proliferam na Net. São ficheiros (Graphics Interchange Format) que permitem autonomizar um determinado movimento, de imagens de qualquer origem, repetindo-o continuamente — uma espécie de desenho animado de breves segundos que permanece, repetindo-se. Usando os termos da própria net, dir-se-ia uma mensagem instantânea da família de um “emoji” ou “smiley”, com a diferença de, no caso do GIF, haver movimento.
E se a civilização que construímos (e todos os dias reproduzimos) fosse uma espécie de espectáculo global de incontáveis GIF? Vivemos, de facto, um tempo em que a infinita repetição de algumas imagens seleccionadas passou a ser o regime dominante de quase todas as linguagens audiovisuais, do jornalismo à publicidade, passando pela política.
Descobrimos aquele anúncio do automóvel eléctrico que promete libertar-nos das agruras dos combustíveis fósseis e, ao longo do dia, podemos revê-lo em todos os nossos ecrãs, até mesmo a abrir um qualquer video do YouTube… Vemos novas imagens de devastação na Ucrânia e essas mesmas imagens vão-nos acompanhando, também ao longo do dia, como fantasmas de algo que, em boa verdade, já não estamos a olhar… Por vezes, entre perplexidade e sonambulismo, as incessantes repetições levam-nos até a reconhecer que determinada notícia “de última hora” surge “ilustrada” com imagens que já tínhamos visto há dois ou três dias.
Que acontece, então? Abdicamos de conhecer e querer conhecer. Trocamos o gosto primordial da curiosidade pelo efeito hipnótico da repetição. Como se já não fôssemos capazes de sentir, ainda menos desejar, a dimensão radical que o olhar e a escuta podem envolver: encaramos o mundo como uma colagem interminável de GIF, desfrutando a felicidade mórbida de não pensar, instalados que estamos na espera inconsciente das mesmas imagens.
Como sair deste torpor? Talvez que as imagens se possam revoltar e contribuir para o nosso despertar. Creio que é algo dessa esperança que está num dos filmes que, fora da competição para a Palma de Ouro, mais me impressionou no recente Festival de Cannes (17-28 maio) — refiro-me a Les Années Super 8, de Annie Ernaux e David Ernaux-Briot, apresentado na Quinzena dos Realizadores.
Annie Ernaux é a escritora de romances admiráveis como Uma Paixão Simples e O Acontecimento (o primeiro está editado pelos Livros do Brasil, tradução de Tereza Coelho), ambos adaptados ao cinema com resultados excepcionais, respectivamente em 2020 e 2021, com realização de Danielle Arbid e Audrey Diwan. Com a ajuda de um dos filhos, David Ernaux-Briot, decidiu revisitar as imagens — em formato amador Super 8, como o título refere — que pertencem ao património da sua família: “Ao rever os nossos filmes Super 8 rodados entre 1972 e 1981, compreendi que constituíam um arquivo familiar, mas também um testemunho sobre as formas de lazer, o estilo de vida e as aspirações de uma classe social ao longo da década que se seguiu a 1968.” Daí o método de revisitação: “Face àquelas imagens mudas, senti o desejo de as integrar numa narrativa cruzando o íntimo, o social e a história, expondo o gosto e a cor daqueles anos” (o comentário do filme é escrito e lido pela própria Annie Ernaux).
Que está em jogo? Pois bem, precisamente o contrário da ideologia dos GIF: não a redução do tempo a uma rotina de preguiçosos “mini-espectáculos”, prisioneiros de uma significação determinista, antes o empenho em não abdicar da riqueza histórica e do valor simbólico da memória.
De tal modo que no grão daquelas imagens, sinal de um tempo de outras tecnologias (observe-se o fotograma aqui reproduzido), podemos sentir a vibração insubstituível do tempo que passa, do amor que por ele passou. No limite, tal vibração faz-nos pressentir a fronteira compulsiva da morte. E o seu contrário: a energia vital de existir — em regime solitário, procurando alguma relação com outros.
Nesta perspectiva, a narrativa de Les Années Super 8 não é estranha ao romance autobiográfico Os Anos, distinguido com o Prémio Marguerite Duras de 2008 (Livros do Brasil, tradução de Maria Etelvina Santos). Annie Ernaux inicia-o, aliás, com uma frase que poderia servir de epígrafe ao seu filme: “Todas as imagens irão desaparecer”. Porquê? Porque através delas aprendemos o misto de urgência e vulnerabilidade de que se faz qualquer memória. Agora, na era dos GIF, ignoramos a singularidade de cada imagem, menosprezando o tempo de contemplação que ela pode exigir — queremos apenas passar à imagem seguinte.
quinta-feira, maio 26, 2022
CANNES
— os novos corpos de Cronenberg
| Viggo Mortensen e Léa Seydoux sob o olhar de David Cronenberg: um futuro na fronteira do humano |
O novo filme de David Cronenberg, Crimes of the Future, ficará como um dos títulos fundamentais de Cannes/2022: alheio às convenções do “cinema de terror”, o cineasta canadiano encena um tempo futuro em que os corpos humanos se estão a transformar a partir do seu interior — estes parágrafos pertencem a um texto publicado no Diário de Notícias (26 maio).
O canadiano David Cronenberg está de volta à competição do Festival de Cannes com um filme tão inclassificável quanto fascinante: seja qual for o palmarés, 2022 ficará como o ano de Crimes of the Future, um daqueles objectos que nos faz sentir que o gosto e a imaginação do cinema ainda não foram devorados pelos valores mercantis que contaminam muitas formas de produção e consumo.
Tudo se passa num futuro mais ou menos próximo, encenado em cenários de gigantescas construções degradadas (a rodagem decorreu na Grécia, na zona de Atenas). Dir-se-ia um futuro resultante de ruínas de meados do século XX, o que não deixa de envolver uma desconcertante “coincidência”: a solidão granítica dos ambientes faz lembrar a segunda longa-metragem de Cronenberg, lançada em 1970 e também intitulada Crimes of the Future; nela se narra uma “peste” que atinge as mulheres que usaram determinados produtos de cosmética… A acção situa-se em 1997.
Seja como for, não estamos perante um “remake”. As personagens do novo Crimes of the Future vivem assombradas por um inusitado fenómeno, aparentemente gerado pelas componentes sintéticas das novas formas de vida. Assim, sem qualquer interferência humana, alguns corpos passaram a comportar-se como máquinas geradoras de… novos órgãos — no seu interior, entenda-se.
Por um lado, isso leva um artista como Saul Tenser (Viggo Mortensen) a montar espectáculos marginais com a sua companheira Caprice (Léa Seydoux), performances que são verdadeiras cirurgias de amostragem daquilo que está a acontecer dentro do seu corpo; por outro lado, as autoridades tentam registar e controlar o fenómeno através de burocratas como Timlin (Kristen Stewart), figura emblemática de um novo departamento oficial: o Registo Nacional de Órgãos.
Dito isto, talvez seja oportuno acrescentar que, uma vez mais, a inscrição do trabalho de Cronenberg nas rotinas do “cinema de terror” não faz qualquer sentido. Para o autor de filmes como A Mosca (1986), Irmãos Inseparáveis (1988) ou eXistenZ (1999), o que mais conta é essa noção, de uma só vez filosófica e poética, de que o corpo, sendo o instrumento visível da nossa humanidade, existe também como motor (orgânico, é caso para dizer) daquilo que abala as certezas do factor humano. Em Irmãos Inseparáveis, sobre dois gémeos ginecologistas, há uma cena em que Jeremy Irons diz que devia haver também concursos dedicados ao interior dos corpos e à beleza dos seus órgãos — pois bem, está feito!
sábado, abril 23, 2022
Informação / desinformação [citação]
| [New York Times] |
>>> Estou convencido de que, neste momento, uma das maiores razões para os crescentes ataques contra a democracia, nos EUA e globalmente, é a mudança que está a acontecer no modo como comunicamos e consumimos informação. As mesmas tecnologias que tornam possível ligarmo-nos, em tempo real, com praticamente qualquer pessoa do mundo, estão a ser cada vez mais usadas para criar realidades alternativas que espalham o fogo da violência étnica, promovem o autoritarismo e espalham teorias da conspiração. O resultado tem sido uma gradual erosão da confiança nos representantes públicos, nas organizações mediáticas e nas instituições políticas que são necessárias para que a democracia funcione.
BARACK OBAMA
Universidade de Stanford, Califórnia
21 abril 2022
terça-feira, março 22, 2022
O conceito “social” do Facebook
O que é e, sobretudo, o que significa formatar a circulação de informação consumida por 2,8 mil milhões de pessoas? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 março).
Praticamente desde a sua invenção, o Facebook tem lidado com problemas suscitados pela gestão dos respectivos “conteúdos”, em especial os que possam ser interpretados como incitamentos a formas de violência. E há que reconhecer que Mark Zuckerberg e os seus advogados conseguiram montar um dispositivo “social” que tende a paralisar o nosso pensamento de consumidores: a hiperbolização dos problemas legais enfrentados pelo Facebook vai mascarando as tragédias morais que lhe possam estar associadas.
Por estes dias, surgiu uma nova questão indissociável dessa conjuntura de pensamento que, escusado será sublinhá-lo, é também um sistema mediático de representação do mundo. Segundo as notícias (tomo como referência um artigo da BBC publicado no respectivo site, no dia 11 de março), a empresa Meta, proprietária do Facebook, fez saber que “Facebook e Instagram permitirão em alguns países que os utilizadores apelem à violência contra Vladimir Putin e os soldados russos.”
A tomada de posição da Meta é particularmente explícita: “Tendo em conta a actual invasão da Ucrânia, estabelecemos uma excepção temporária para que os que estão a ser afectados pela guerra possam expressar sentimentos violentos contra as forças armadas invasoras”. A BBC acrescenta que tal determinação permitirá que “os utilizadores de países como a Rússia, a Ucrânia e Polónia possam apelar à morte de Putin, Presidente da Rússa, e Lukashenko, Presidente da Bielorrússia”.
Semelhantes directrizes estão a gerar uma enorme agitação “social” (como, aliás, o Facebook tanto preza). E até mesmo o actual poder político russo, responsável pela terrível orgia de violência a que vamos assistindo dia após dia, achou por bem vir a público comentar o assunto. Num tweet da Embaixada da Rússia nos EUA, surgiu esta “reivindicação”: “Pedimos às autoridades dos EUA que ponham fim às actividades extremistas da Meta e tomem medidas para levar os perpetradores à justiça”. Mais ainda: “Os utilizadores do Facebook e Instagram não deram aos donos dessas plataformas o direito de determinar o critério de verdade, colocando as nações umas contra as outras.”
Seria saudável, creio, que o cinismo diplomático das autoridades russas não nos bloqueasse ainda mais, impedindo-nos de pensar e discutir a ideologia do Facebook. Uma coisa é a profunda revolta que sentimos face à agressão militar do governo russo contra a Ucrânia. Outra coisa, apesar de tudo bem diferente (até porque muito anterior à tragédia que o povo ucraniano está a viver), é o sistema de “vigilância” de que o Facebook se arroga detentor, a ponto de se apresentar como entidade legisladora da circulação de informação no planeta Terra — afinal de contas, estamos a falar de uma plataforma que, em 2020, anunciava possuir 2,8 mil milhões de utilizadores.
Desde o início de tudo isto, há qualquer coisa de obsceno na palavra “social” associada ao Facebook — é mesmo uma palavra reivindicada, formatada e normalizada pelo Facebook. A tal ponto que deixámos de identificar todas as nossas redes (familiares, profissionais, afectivas, etc.) como sociais, aceitando que uma entidade comercial assumisse a exclusividade do seu uso.
Na raiz da concepção do Facebook está a instalação de uma lógica multiplicadora potencialmente infinita. Em 2010, fomos alertados para isso por esse filme prodigioso que é A Rede Social (2010), escrito por Aaron Sorkin e realizado por David Fincher. A avalanche “social” do Facebook, na altura com cerca de 500 milhões de assinantes, era mesmo sustentada por diversos discursos “libertários” (alguns de natureza jornalística) que proclamavam um novo ecumenismo: estamos todos “ligados”, logo isso só pode favorecer a comunhão, a transparência e a paz…
A certa altura, em A Rede Social, numa cena dos tempos da universidade, a personagem de Zuckerberg (Jesse Eisenberg) diz mesmo a Eduardo Saverin, co-fundador do Facebook: “As pessoas querem estar online e saber dos amigos, porque não construir um site que ofereça isso? Amigos, imagens, perfis, tudo o que se possa visitar, navegar, talvez alguém que acabámos de conhecer numa festa… Eduardo, não estou a falar de um site de encontros, estou a falar de recolher toda a experiência social da universidade e colocá-la online.”
Compreendemos agora: “toda a experiência social” significava, afinal, assumir as funções de tribunal da verdade e da mentira, da paz e da violência, no limite em nome da satisfação de 2,8 mil milhões de pessoas. Numa sessão pública realizada a 7 de novembro de 2014 nas instalações do Facebook, Zuckerberg, em pose de bom moralista, não deixou de classificar A Rede Social como um filme “algo ofensivo”. Ainda assim, nessa mesma sessão ficámos a saber que Fincher foi especialmente rigoroso na representação do guarda-roupa de Zuckerberg — a sua “t-shirt” cinzenta era mesmo a indumentária preferida para o dia a dia de trabalho.
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