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sexta-feira, dezembro 23, 2011

Os concertos de 2011


Não vi tantos concertos quanto o que gostaria, e falhei mesmo alguns dos que moravam na minha carteira de imperdíveis (Murcof no Maria Matos ou novo encontro com James Blake no Tivoli). Mesmo assim o cartaz dos melhores momentos de palco vividos em 2011 soma dez instantes inesquecíveis (cinco na área da clássica mais cinco no pop/rock e periferias). A estes juntaria mais dois, todavia não exactamente “live” mas igualmente marcantes. Trata-se das transmissões, em HD, a partir do Met, das óperas Nixon In China de John Adams e Satyagraha, de Philip Glass, que nos deram dois dos episódios de excelência que escutámos em 2011.

Clássica

Michael Tilson Thomas / San Francisco Symphony 

Mahler “Sinfonia Nº 2” 
Coliseu dos Recreios (Lisboa)
Uma interpretação de excelência para uma das obras maiores de Mahler e da própria história da música sinfónica. Num tempo de sombras e dúvidas, o optimismo que brota desta obra de Mahler fechou em glória a temporada 2010/11 da Gulbenkian.

Peter Eötvös / Orq. + Coro Gulbenkian  
Stockhausen “Momente” 
Gr. Auditório Gulbenkian (Lisboa) 
Foi a primeira vez que Momente se ouviu (em interpretação ao vivo) no século XXI. Contando com Eötvös e Pedro Amaral, dois antigos colaboradores de Stockhausen, a garantia de que a sua visão estaria em cena era certa. Inesquecível.

Paul Hillier / Remix Ensemble + Coro da Casa da Música 
Arvo Pärt “Passio”
Gr. Auditório Gulbenkian (Lisboa) 
Uma das obras maiores do chamado minimalismo sagrado, numa interpretação dirigida por um aclamado divulgador da música vocal contemporânea. Nas periferias do silêncio, uma interpretação notável para uma obra de profunda carga emocional. A noite ficou na história de 2011.

Simon Rattle / Berliner Philharmoniker 
Mahler “Sinfonia nº 4” 
Philharmionie (Berlim)
Um grande acontecimento. Contando com a voz de Christine Schaffer no quarto andamento, uma Sinfonia Nº 4 de Mahler com os jogos de contrastes tão bem demarcados, em companhia de uma obra de Stravinsky a completar um belo programa.

Gustavo Dudamel / Los Angeles Philharmonic
Mahler “Sinfonia Nº 9” 
Adams “Slominsky’s Earbox” + Bernstein “Sinfonia Nº 1” + Beethoven “Sinfonia Nº 7” 
Gr. Auditório Gulbenkian (Lisboa) 
Um reencontro com Gustavo Dudamel, desta feita em duas noites consecutivas e com a orquestra norte-americana que agora o tem como director. Pose diferente da que conhecíamos do maestro de orquestras juvenis, mas a mesma versatilidade, tão profundo e intenso no Mahler quanto capaz de traduzir a inquietude da vida presente num Adams. Juntando um Bernstein digno de um herdeiro e um Beethoven que sublinha mais ainda essa rara capacidade de cruzar tempos e linguagens.


Pop/rock

Sufjan Stevens 
Coliseu dos Recreios (Lisboa) 
Todo um mundo de contrastes num momento apenas e num único palco. Com a música do seu mais recente (e superlativo) The Age of Adz como medula do concerto, Sufjan Stevens mostrou porque é um dos maiores visionários da música do nosso tempo.

James Blake 
Optimus Alive (Algés)
Foi a “figura” do ano no plano da música. Restava a dúvida sobre se as composições, de carácter tão íntimo e feitas de acontecimentos discretos, suportariam o desafio do palco, mais ainda num ambiente de festival. A resposta foi um claríssimo: “sim”

Patrick Wolf
Optimus Alive (Algés) 
É um dos grandes criadores de canções pop do nosso tempo. Quando, meses depois, nos visitou em concerto em nome próprio, o cansaço de uma longa digressão já se fazia notar (e o baterista que o acompanhava não ajudou muito). Mas em palco festivaleiro a noite saiu-lhe bem. Muito bem, mesmo.   

The Gift
Bowery Ballroom (Nova Iorque) 
A solidez de uma vivência de palco talhada após anos de intensa actividade fez dos Gift uma banda segura e firme em cena. Mostraram-no num concerto que se revelou decisivo num passo mais no aprofundar de uma relação com os EUA e Canadá onde tocaram várias datas este ano.

Panda Bear 
Casa da Música (Porto)
Ao lado de Sonic Boom (o seu colaborador no mais recente álbum), correram Tomboy de fio a pavio, o amplo espaço da sala principal da Casa da Música servindo para conferir àquela música uma incrível sensação de corpo. Como que se o imaterial se materializasse por alguns instantes.

sexta-feira, novembro 11, 2011

Momentos inesquecíveis


Foi uma noite de estreias. A da primeira vez que Momente foi escutado em Portugal, a da sua primeira audição pública no século XXI e do recurso a uma edição definitiva da partitura na qual Stockhausen trabalhara nos últimos tempos da sua vida. No palco estava Peter Eötvös (na foto) , um seu velho colaborador. E, na mesa, ao centro da sala, assegurando o desenho de som, o compositor português Pedro Amaral, que chagou também ele a trabalhar com o próprio Stockhausen. A Gulbenkian, que desde há muito criou uma relação entre o compositor alemão (que chegou a ter trabalhos encomendados pela fundação) e o público lisboeta, viu ontem o seu auditório consideravelmente bem recheado de gentes (de todas as roupas e todas as idades) para viver um momento da temporada de música 2011/12 que certamente ficará inscrito entre os mais memoráveis que ali registou.

Momente é uma obra aberta, que parte da visão do intérprete na concepção do modo de arrumar os “momentos” que a partitura implica. Vive portanto de uma soma a arrumar de fragmentos, de geografias sonoras e pedaços com sentido narrativo que a vivência em palco traduz numa experiência tridimensional que a audição em disco (mesmo interessante) nunca reproduz. Há toda uma carga física implícita na forma de viver esta música. Da migração de vozes pelo espaço do auditório no primeiro momento à impressionante transição de protagonismos do palco para a plateia e, depois, da plateia de volta ao palco, num “momento” de aplausos à hora do intervalo. Composta em inícios dos anos 60 e desenvolvida nos anos seguintes até alcançao a Versão Europa (de 1972, que vimos em Lisboa), Momente é uma obra que ensaia, além de uma demanda definitiva, de Stockhausen pelos espaços do serialismo, uma nova visão de música para cena, representando (juntamente com algumas outras peças de seus contemporâneos) importante espaço de reflexão de conceitos e formas que, eventualmente, terão reaberto caminhos que muitos poderiam julgar fechados, e que fazem da ópera (e demais expressões da música dramática) uma realidade vibrante nos dias de hoje.

Cruzando vários textos, do Cântico dos Cânticos a uma carta pessoal, Momente é uma obra que reflecte ainda uma dimensão pessoal e um sentido íntimo que garantem, entre sinais e formas que os sucessivos “momentos” vão apresentando, um espaço de ordem narrativa mais concreta (pena a opção pela projecção das legendas sobre as madeiras do fundo de cena, em alguns instantes com leitura difícil). Uma ode ao amor, podemos dizer de Momente. Correspondida em pleno pelos músicos (e destaque-se a impressionante presença de Julia Bauer). E por uma plateia que sublinhou com aplausos (estes já fora da partitura) o momento que ali vivemos.

O concerto repete hoje às 19.00 horas.


Em conversa: Pedro Amaral

O compositor Pedro Amaral foi o maestro assistente de Peter Eötvös nesta produção de Momente e assegura também o desenho de som do espectáculo. Esta, a seguir, é a transcrição integral de uma entrevista que me concedeu, e que usei para escrever o artigo “Uma carta de amor para vozes e orquestra” publicada na edição de ontem do DN. 

Porque é Momente descrito por vezes como um episódio de mudança na obra de Stockhausen? 
Há uma frase de Mary Bauermeister, a companheira de Stockhausen na época em que trabalhava no projecto de Momente, que descreve em certa medida o papel de transformação profunda desta obra: “se consegues compor um esquema tens de conseguir destruí-lo” (cito de memória). Esta era uma capacidade que Stockhausen não tinha até então, que ganhará através da composição de Momente e que irá marcar de um modo irreversível a sua música ao longo de toda uma década. Nos anos 50 Stockhausen e os seus colegas da Escola de Darmstadt, Boulez em particular, tinham elaborado cuidadosamente, etapa a etapa, o complexo sistema serial. Nessa evolução, que começa em 1951, vemos todas as categorias serem pensadas uma a uma, como um lego que se constrói e em que cada peça é escolhida de segundo os princípios cartesianos da dúvida metódica. A “unidade formal” vai, também ela, evoluindo e, em Stockhausen, cada fase dessa evolução é abordada numa obra paradigmática com um título explícito: Punkte é um paradigma da música Pontilhista, e quando a linguagem permite que a partir dos pontos, elementos de base, se elaborem “linhas”, “curvas”, etc. Stockhausen compõe Kontra-Punkte. Mais tarde essas formas simples – pontos, curvas, linhas – formam grupos mais complexos, e obra que marca esse momento culminante do sistema serial é intitulada Gruppen, “grupos” – uma das obras primas do repertório contemporâneo.

A primeira gravação de 'Momente'
A etapa seguinte é o alargamento radical da unidade formal a proporções muitíssimo mais vastas; ao grupo sucede o momento e a obra emblemática dessa nova e derradeira etapa intitula-se… Momente, “momentos”. Mas se recuarmos ainda à etapa anterior, a dos grupos – Gruppen – vemos que faltava uma última categoria para a linguagem serial estar completa: a forma. A uma linguagem baseada na ideia de centralidade, como a linguagem tonal, correspondera um sistema formal fechado; a um sistema doravante aberto, como o serialismo, teria de corresponder uma forma aberta. O problema é que o serialismo partia daquilo que Boulez definiu como um “princípio de não identidade”, ou seja, ao contrário da música tonal, onde o material musical é extremamente hierarquizado e diferenciado, a linguagem serial apoiava-se num princípio de não diferenciação. E assim são as primeiras formas abertas criadas no seio do serialismo. Mas quando Stockhausen compõe Momente, leva a forma aberta a um tal grau de riqueza e complexidade que já não é compatível com o “princípio de não identidade”; a obra propõe um conjunto de trinta momentos que podem ser encadeados de muitas maneiras diferentes, como ilhas que um viajante visite ao sabor do vento e das marés. Naturalmente Stockhausen aspirava a que cada uma destas “ilhas” fosse tão diferenciada quanto possível, que o viajante deparasse de cada vez com paisagem absolutamente diversa e única. E assim esbarra com a ideia de indiferenciação que era basilar no serialismo. E assim, com Momente, acaba verdadeiramente a época – a grande época – serial.

Edição americana em 1965
Há também uma dimensão muito pessoal nesta obra...
Por outro lado, há dimensões que Stockhausen colocou em Momente que nunca tinha abordado antes, nomeadamente uma perspectiva pessoal, biográfica, fortíssima. A base textual da obra apoia-se no Cântico dos Cânticos, essa apoteose bíblica, essa sacralização do amor. Mas além do Cântico temos passagens de uma carta de Mary a Stockhausen, e um verso de Blake, e a evocação de um ritual iniciático e sexual das ilhas da Melanésia – outra sacralização da relação amorosa. Momente é uma verdadeira carta de amor e está intimamente ligada ao encontro com Mary e à relação de amor que o compositor viveu com esta artista plástica e que o fez afastar-se da sua primeira mulher, Doris. O momentos “M” (de Melodie, melodias) são, de resto, um retrato musical de Mary, em particular a parte de soprano solo. Mas os momentos K (de Klang, som) são uma espécie de auto-retrato do compositor; e os momentos D (de Dauern, durações) são um espelho musical de Doris. As iniciais M, K e D ligam-se, assim, ao plano estrutural, mas Stockhausen nunca escondeu a simbólica onomástica: D de Doris, K de Karlheinz, M de Mary.

Gravação pela DG
Ter numa mesma sala um Peter Eötvös e um Pedro Amaral, ambos antigos colaboradores de Stockhausen (o que não omite o facto do compositor já não estar entre nós), de certa forma se assegura para o espectador uma continuação directa do seu legado? 
Peter Eötvös é o grande intérprete de Stockhausen. Conheceu-o cedo, enquanto aluno em Colónia, fez parte do grupo de Stockhausen, com quem fez centenas de concertos em todo o mundo, e a sua formação como músico ficou indelevelmente marcada pelo autor de Momente. Momente que Peter Eötvös preparou como maestro assistente de Stockhausen há quatro décadas. Como eu próprio fui agora seu maestro assistente nesta nova produção da obra, que representa a estreia da edição revista e corrigida pela própria mão do mestre... Conheci Stockhausen em 2001, aquando da produção do Hymnen mit Orchester no Royal Concertgebouw. Na qual participava como estudante de Peter Eötvös que, na época, queria transmitir a alguém da nova geração o conhecimento e a técnica específica na interpretação desta obra. Mais tarde trabalhei muito com o próprio Stockhausen, dirigi muitas das suas obras e tive a honra de ser apontado por ele como um dos seus intérpretes no documento em que o mestre preparava as comemorações do seu octogésimo aniversário, o que me surpreendeu muitíssimo e muito me honrou. Tudo o que posso dizer é que espero, com humildade, estar à altura da confiança que o mestre depositou em mim.

Ed. na Stockahsen Verlag
Quando começaram a trabalhar esta produção? 
Nesta produção da Fundação Gulbenkian os intérpretes excederam-se extraordinariamente. Comecei em Julho a preparação do Coro Gulbenkian, em conjunto com o maestro Jorge Matta. Fiz dezenas de ensaios e posso dizer com um grande orgulho que o Coro Gulbenkian está a conhecer nesta produção tão exigente, a todos os níveis, um dos seus grandes momentos. A sonoridade colectiva, a precisão, a inventividade individual que esta estética exige estão representadas por um conjunto de 48 cantores admiravelmente envolvidos neste projecto, nesta obra. Foi uma grande felicidade trabalhar com eles. E o resultado está à vista. Comecei a preparar a orquestra há três semanas – orquestra que é apenas uma pequena parte da Orquestra Gulbekian já que a obra integra um conjunto instrumental muito peculiar, quatro trompetes, quatro trombones, três percussões e dois órgãos Hammond. A integração entre orquestra e coro, complexa nesta linguagem e com estes timbres específicos, funciona admiravelmente, e eu creio poder dizer que vamos assistir a uma das melhores produções de sempre desta que é, provavelmente, a obra prima de Stockhausen.

Versão de 1998
Esta obra teve em concreto algum papel importante na sua formação pessoal? 
Como maestro a experiência de preparar esta obra traduziu-se numa aventura absolutamente extraordinária e numa imensa aprendizagem. Como compositor eu sempre fui mais bouleziano, sempre pratiquei uma linguagem musical mais depurada, uma sintaxe mais estrita – foi essa a própria base da minha formação. Momente tinha sido uma obra marcante para o meu professor de composição, Emmanuel Nunes, e eu sempre desejei estudá-la a fundo, por isso a escolhi como objecto central da minha tese de doutoramento quando terminei a minha formação no Conservatório de Paris e desejei regressar aos estudos teóricos. A arquitectura formal de Momente, assente na ideia de obra aberta dos anos 60, deixa uma marca indelével no pensamento musical contemporâneo. Mas eu creio que a influência mais profunda da obra no meu próprio trabalho é mais tardia: agora, que estou a compor a minha segunda ópera, há aspectos na escrita vocal, por exemplo, e na abrangência do vocabulário musical que certamente não teriam emergido em mim sem um conhecimento e uma vivência profunda de Momente.

PS. Este post está ilustrado com as capas das cinco edições discográficas de Momente.

quinta-feira, novembro 10, 2011

'Momente' hoje na Gulbenkian


Um dos concertos mais aguardados pelos interessados na música erudita do século XX chega hoje (21.00) e amanhã (19.00) ao palco do Grande Auditório da Gulbenkian. Trata-se de Momente, obra composta em inícios dos anos 60 pelo alemão Karlheinz Stockhausen e que assinala, cumlinando uma sucessão de acontecimentos registados em Punkte, Kontra-Punkte e Gruppen, o final da sua etapa serial. O concerto conta com a direcção de Peter Eötvös, um importante colaborador de Stockhausen, e desenho de som do compositor português Pedro Amaral (também maestro assistente nesta produção). A obra vai ser apresentada na sua versão Europa 1972. E é assim escutada pela primeira vez num palco em Portugal.

Coro Gulbenkian
Orquestra Gulbenkian
Peter Eötvös Maestro
Julia Bauer Soprano  
Pedro Amaral Maestro assistente e Desenho de som  

Solistas do Coro Gulbenkian
Patrycja Gabrel Soprano
Joana Nascimento Contralto
Frederico Projecto Tenor
Rui Borras Baixo
Manuel Rebelo Baixo

sábado, maio 14, 2011

Stockhausen na era digital

Não são frequentes, mas a cada ano vão chegando novas gravações de obras de Karlheinz Stockhausen, a mais recente das quais uma leitura de Mantra, pela dupla de pianistas Xenia Pestova / Pascal Meyer, com electrónicas a cargo de Jan Panis. Mantra nasceu em 1969, numa anotação que o compositor rabiscou num envelope... Era, como ele mesmo explicou, a projecção da expansão de uma mesma figura musical ou fórmula por um grande período de tempo. A ideia acabou por ser central no encontrar de uma técnica que tomaria papel central na obra do compositor daí em diante. Esta nova gravação representa a primeira vez que Mantra surge numa gravação feita com recurso a tecnologia digital, usando equipamento criado por Jan Panis, antigo assistente de Stockhausen e que foi aprovado pelo próprio compositor.

terça-feira, agosto 31, 2010

Stockhausen em nova gravação

O “clássico” Mantra, de Karlheinz Stockhausen, acaba de conhecer nova edição em disco, numa nova gravação. Contando com os pianistas Jana Pestova e Pascal Meyer e com as electrónicas de Jan Pannis, esta nova gravação de Mantra tem edição pela Naxos.

quarta-feira, outubro 14, 2009

Stockhausen: sons, técnicas, visões

Stockhausen deixou uma herança que, sendo visceralmente musical, se cruza com o mundo das imagens e, em particular, com a expressão cinematográfica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 de Outubro), com o título 'A música visual de Karlheinz Stockhausen'.

O recente Ciclo Stockhausen, na Fundação Gulbenkian, teve também uma importante componente cinematográfica. Ou melhor: uma fascinante dimensão visual. Bastará recordarmos a derradeira composição apresentada: Cosmic Pulses (13ª hora do ciclo Klang) desenvolve-se como um labirinto de sons que, literalmente, circulam pelo auditório perante um palco vazio e rigorosamente negro; a única “coisa” visível nasce de um projector que se cristaliza num pequeno círculo luminoso, ao centro sobre as cortinas, desenhando algo que tanto pode ser a nitidez do “zero” como a janela de um vitral de um templo sem arquitectura definida (a não ser aquela que construímos no interior da nossa própria cabeça).
O sentido de pesquisa e o gosto de experimentação de Karlheinz Stockhausen (1928-2007) não podem ser dissociados da vontade de “visualizar” as suas músicas. Num dos filmes apresentados na Gulbenkian, Interview with Stockhausen (2007), de Olivier Assayas, descobrimo-lo mesmo a sugerir modos de encenação de um bailado construído a partir da sua composição Sonntags Abschied: em diálogo com o coreógrafo Angelin Preljocal, Stockhausen avalia questões muito concretas de encenação, visando sempre uma obstinada dimensão espiritual e uma ideia radical e libertadora a que, nessa conversa, dá o nome fora de moda de “paraíso”.
Escusado será sublinhar que a peculiar energia criativa de Stockhausen procurava também novos modos de relação com o espectador (desencadeando novas atitudes de escuta) e, no limite, conceitos alternativos de palco e interpretação. No filme Stockausen in den Höhlen von Jeita (1969), de Anne-Marie Deshayes, podemos acompanhar a extraordinária experiência de fazer música nas lendárias grutas de Jeita, no Líbano, transfigurando o surrealismo (?) de um espaço natural numa inusitada sala de concertos. A experiência mais extrema e, por assim dizer, mais extremista surge na célebre composição de Stockhausen para... helicópteros! A sua preparação e execução está registada num filme que é, para todos os efeitos, um pequeno prodígio de cinema documental: Helicopter String Quartet (1996), de Frank Scheffer, acompanha o incrível trabalho de montagem de uma performance [foto] que coloca cada um dos elementos do Quarteto Arditti num helicóptero, voando pelos céus de Amsterdão. Dir-se-ia que assistimos à concretização de um projecto de engenharia mecânica (e sonora) que se vai transfigurando num envolvente acontecimento poético.


A certa altura, no filme de Scheffer, Stockhausen refere o facto de o ruído dos helicópteros integrar o registo da peça musical. E não o faz, como é óbvio, lamentando a sua “intromissão”: o conceito da peça pressupõe a integração de tal ruído. Mais do que isso: Stockhausen proclama o desejo de apropriar os ruídos do mundo na sua música, em última instância encarando (ou habitando) o mundo como uma gigantesca composição musical. Tal atitude atribui ao artista um estatuto que, em tudo e por tudo, contraria a imagem “tradicional” do eremita mais ou menos fechado no seu território criativo. Stockhausen encara o mundo, não como o receptáculo da sua arte, mas sim como o território que importa ocupar, devolvendo-o à singularidade dos gestos artísticos. Músico, arquitecto, visionário.

segunda-feira, outubro 12, 2009

Stockhausen em cinco discos (5)

Concluímos a apresentação de um olhar panorâmico pela obra de Karlheinz Stockhausen através dos seus discos com Mantra. Trata-se de uma obra para dois pianos e electrónica que representou, em 1971 (quando composta), a primeira composição do autor com partitura totalmente escrita, após uma etapa de trabalhos com um outro grau de liberdade e espaço à improvisação. Mantra explora a expansão e contracção de duas melodias, segundo uma “fórmula” que o próprio trabalhou e desenvolveu em diversos outros trabalhos. O som de cada piano é captado por microfones e depois modulado por uma série de aparelhos colocados ao lado dos pianistas, permitindo-lhes trabalhar depois a modulação dos sons finais. Há várias gravações de Mantra. Uma primeira, acompanhada pelo próprio Srockhausen, foi gravada em 1971 por Alfons e Aloys Kontarsky, para a Deutsche Grammophon. Entre outros títulos contam-se ainda uma gravação por Yvar Mikashaft, Rosland Bevan e Ole Orsted, para a New Albion (na imagem) e outra, por Andreas Gnau, para a Wergo.

sexta-feira, outubro 09, 2009

Stockhausen em cinco discos (4)

Uma das obras de referência de Karlheinz Stockhausen é na verdade um ciclo de peças para piano (ou sintetizador), em que o compositor começou a trabalhar em inícios dos anos 50. De pequenas peças (a parte III dura 30 segundos) a composições mais longas (perto da meia hora de música nas partes VI, X, XIII e XIX), este ciclo era definido pelo próprio Stockhausen como sendo os seus “desenhos”… Klavierstrücke nasceu originalmente como um conjunto de quatro peças (em 1952), mais tarde, e em várias fases, projectou ampliar o ciclo para um total de 21 peças. As adendas ao ciclo foram surgindo no decurso de etapas distintas, as oito últimas peças iniciadas depois de 1979, datando o Klavierstrücke XVIII de 2004 (o número XIX terminado um ano antes). Na verdade, o ciclo final apresenta apenas 19 das 21 partes que Stockhausen chegou a pensar compor. A discografia é vastíssima, muitos tendo sido já os pianistas a gravar partes do ciclo em discos nos quais juntam ao alinhamento outras obras. Entre os títulos de referência para esta obra conta-se a gravação, com Herbert Henck (piano), que junta as partes I a XI, editado pela Wergo nos anos 90 em álbum e CD duplo (na imagem).

quarta-feira, outubro 07, 2009

Stockhausen em cinco discos (3)

Continuando a propor um retrato de momentos fundamentais da obra de Stockhausen em cinco discos, passamos hoje por Stimmung, obra de 1968 que talvez represente a mais importante (mais vezes tocada e mais gravada) das composições para voz do compositor. Stimmung nasceu de uma encomenda para um grupo vocal alemão numa etapa em que o compositor viveu nos EUA. Trabalhando a peça de noite, procurando não fazer barulho para não acordar os filhos, descobriu nos murmúrios e zumbidos que então começara a experimentar um vasto campo de potencialidades que então decidiu explorar a fundo. A obra não é mais que uma sucessão de sequências cantadas a seis vozes, usando os cantores diversas técnicas, traduzindo um mergulho do compositor no mundo interior dos sons e das palavras. O sentido da palavra 'stimmung' (que também traduz afinação) promove ainda em cada voz um processo de procura rumo ao encontro de uma alma interior. E, ao mesmo tempo, sugere ainda uma noção de empatia entre o colectivo (o que canta e o que escuta). A obra permite um relativo grau de liberdade na sua interpretação, daí as variantes que encontramos nas várias gravações disponíveis. E são várias. A original, conduzida pelo próprio Stockhausen, foi originalmente lançada pela Deutsche Grammophon (na imagem) e está hoje disponível em CD no catálogo de venda postal da sua própria editora. No mercado, em CD, é relativamente fácil encontrar uma gravação recente (de 2007) dirigida por Paul Hillier (para a Harmonia Mundi) e uma outra, já de 2000, por Gregory Rose (para a Hypérion).

terça-feira, outubro 06, 2009

Stockhausen em cinco discos (2)

Continuando a visitar discos-chave na obra de Karlheinz Stockhausen hoje evocamos Hymnen, uma das suas obras de música electrónica de maior fôlego na qual o compositor concretizou um projecto de construção musical usando diversos hinos nacionais. Composto entre 1966 e 1967, Hymnen reflectia, numa idade em que a globalização das tranmsissões televisivas (sobretudo as desportivas) começaram a fazer dos hinos uma assinatura reconhecível de vários povos e geografias, representando o reconhecer dessas notas uma identidade colectiva de tempo e lugar. A música, que usou na sua construção ferramentas e tecnologias comuns aos mesmos sistemas que criaram a idade da comunicação, começou a ganhar forma em 1966 nos estúdios da WDR, sendo concluída já em Novembro de 1967. Na sua forma original, Hymnen apresenta-se internamente dividida em quatro “regiões”, cada qual centrada num hino específico, a ele juntando contudo elementos de outros. Mais que um retrato de uma geografia, a obra promove desenhos que acabam por traduzir também um plano de identidade política, social e, assim sendo, histórica.
Hymnen teve primeira edição em disco duplo em 1970 pela Deutsche Grammophon (na imagem), um título hoje disputado a preços nada meios entre coleccionadores. A mesma gravação, juntamente com uma segunda versão da mesma obra, que acrescenta às electrónicas músicos solistas e uma orquestra surgiu num CD quádruplo editado pela própria editora de Stockhausen, e está apenas disponível por venda postal.

Ciclo Stockhausen: Dia 3


N.G.: O Ciclo Stockhausen, que decorreu entre sábado e segunda-feira na Gulbenkian, guardou para o último dia a muito esperada estreia mundial de Schönheit (Beleza), sexta parte do Ciclo Klang, encomendada pela Fundação Gulbenkian ao compositor em 2006. Trata-se de um trio para clarinete baixo (Suzanne Stephens), flauta (Kathinka Pasveer) e trompete (Marco Blaauw, na foto). Schönheit nasceu de uma reorganização da estrutura interna de todo o ciclo Klang em finais de 2006 (ou início de 2007), quando Stockhausen decidiu agrupar partes de todo o ciclo em sub-ciclos. A sexta hora tornou-se assim o primeiro de um conjunto de trios que se prolongam até à 12ª hora, baseados todos eles na 5ª hora (Harmonien) e usando o mesmo material. O número 5 é um elemento central em Schönheit: a peça tem cinco secções, cada qual com uma sequência de 25 notas (que é como quem diz cinco vezes cinco), que se organizam em arranjos diferentes a cada ciclo. Ao contrário de outras partes de Klang, não parece haver aqui uma mesma busca pelos limites do silêncio, procurando-se antes a descoberta de novos sentidos a cada nova arrumação nos ciclos que se sucedem, ciclicamente os três instrumentos encontrando um patamar comum, largados logo depois a nova demanda.
A segunda parte do concerto apresentou a que foi talvez a mais surpreendente (e marcante) de todas as obras do ciclo. Quase na obscuridade (salvo um foco de luz num palco negro, entretanto aberto em toda a sua profundidade), com uma rede de altifalantes arrumados em locais específicos na grelha da sala, uma erupção de sons tomou o espaço total do Grande Auditório. Com uma intenção geométrica na sua ordenação, os sons apresentam-se em 24 camadas, sucessivamente materializados nos pontos dos oito altifalantes. É uma música sem identidade corporal (apesar da fisicalidade das fontes de emissão que são os altifalantes e, também, a mesa de mistura que a projecta). Na escuridão, as pulsações de sons, ressonâncias, acontecimentos graves e estridentes formas agudas caminham à nossa volta como se dançando no ar, caminhando a ritmos diversos, sacudindo com as mais variadas intensidades o que, minutos antes, era apenas um pacato auditório.
Num aparente caos há contudo uma ordem clara entre as notas, tempos e registos. Contam-se 241 trajectórias que varrem o ar e ocupam, com nada mais que o som, todo o espaço da sala. A busca de uma expressão invisível para o som que Stockhausen se propôs abordar no ciclo Klang talvez tenha conhecido nestes Cosmic Pulses (Pulsações Cósmicas) - a 13ª hora do ciclo - a sua expressão mais evidente (não espanta que, reagrupadas em séries de três, as 24 camadas de som aqui sobrepostas tenham depois servido de base às partes 14 a 21 do ciclo).
As reacções na plateia mostravam como é diferente em cada um o contacto com o inesperado, uns optando por viver as sugestões de olhos fechados (aceitando a imaterialidade sugerida pelos sons), outros olhando em redor como que em busca de âncoras (físicas) de segurança perante o desconhecido. Esta é uma música que intriga, desperta, assombra e mesmo assusta. No final, a indiferença não morava ali.

Corpo, espírito, luz

J.L.: Na interessantíssima apresentação que precedeu o derradeiro concerto do Ciclo Stockhausen, Pedro Amaral sublinhou o facto de o compositor (nascido em 1928) ter pertencido à geração dos que viveram a adolescência durante a Segunda Guerra Mundial. Dito de outro modo: como Pierre Boulez (n. 1925) ou Luigi Nono (n. 1924), Stockhausen começou a partir de uma música também ela em escombros, experimentando todos os possíveis — ou ainda, como sugeriu Pedro Amaral, trabalhando a partir de uma crítica cartesiana das suas heranças, sobretudo as de Stravinsky e Schöenberg.
Daí, sem dúvida, esse gosto por uma interrogação radical de todos os géneros, modelos ou dispositivos, a ponto de criar uma peça como Cosmic Pulses, 13ª Hora do ciclo Klang (a última a ser apresentada). Tendendo para o puro espírito, isto é, literalmente dispensando os corpos, Cosmic Pulses consegue a proeza de reunir o aparato da música com a teatralidade do palco, a estranheza do happening e o sagrado do ritual, numa performance em que o único “suporte” visual é... a luz. Provavelmente, Stockhausen nunca quis criar um público, mas dar a ver (isto é, a ouvir) como o colectivo de espectadores se faz de uma acumulação de visões impossíveis de congregar numa leitura unívoca, ainda menos numa simbologia universal. Afinal de contas, com a sua música, reconhecemos que estamos sós — e essa solidão é libertadora.

Karlheinz Stockhausen
1991
FOTO Harald Fronzeck

segunda-feira, outubro 05, 2009

Stockhausen em cinco discos (1)

Na sequência do Ciclo dedicado à música de Karlheinz Stockhausen (1928-2007) que a Gulbenkian promoveu ao longo deste fim de semana prolongado, o Sound + Vision vai esta semana passar por cinco títulos-chave para completar um olhar transversal sobre a importante obra deste compositor alemão.

Começamos por Gruppen, obra para três orquestras composta entre 1955 e 1957 que desde logo foi reconhecida como uma das primeiras peças de referência da música europeia no pós-guerra. A Gruppen são chamados 109 músicos (entre os quais 12 percussionistas e uma guitarra eléctrica), divididos por três orquestras, cada qual com o seu maestro. Cada qual toca em simultâneo, todavia em tempi distintos. Gruppen foi imediatamente tomada como referência entre os músicos do seu tempo, elogiada inclusivamente por Stravinsky ou Kurtág.
São várias as gravações disponíveis de Gruppen no mercado. Por venda postal pode ser adquirida a versão gravada pelo próprio Stockhausen (através do seu site oficial). Há ainda duas outras gravações disponíveis. Uma no catálogo da Deutsche Grammophon, por Claudio Abbado, partilhando o alinhamento com obras de Kurtág. A outra, editada pela BMC, gravada em finais dos anos 90 com Peter Eötövos a dirigir uma das três orquestras (constituídas por músicos da orquestra as WDR de Colónia). Neste disco junta-se a Gruppen uma outra obra para orquestra de Stockhausen: Punkte. Fora de catálogo, presente apenas hoje no circuito do coleccionismo está a edição pela Deutsche Grammophon (na imagem), em vinil, com gravação pelo próprio Stockhausen.

Ciclo Stockahusen: Dia 2


N.G.: O segundo dia do Ciclo Stockhausen, na Fundação Gulbenkian, abriu (literalmente) portas a outros espaços visitados pelo compositor no percurso por 24 horas que representa o ciclo ‘Klang’.
A primeira hora e meia de concerto permitiu-nos um contacto com as primeiras 15 de um conjunto de 24 peças para piano que constituem a terceira hora do ciclo Klang. Stockhausen chamou-lhe Natürliche Dauern (Durações Naturais)… Durações que, como o próprio explicou, “estão relacionadas com o registo, a intensidade e com o pedal de sustentação” do piano. Dois pianistas (Frank Gutschmidt e Benjamin Kobler) dividiram entre si as 15 peças, o primeiro abordando uma sequência de composições que pareciam desafiar os limites do silêncio, o segundo juntando elementos adicionais (a fala, guizos, intervenções directas sobre as cordas do piano), alargando os ângulos de abordagem à medida que o ciclo avança. Apesar das diferentes formas procuradas em cada uma das peças, por quase todas passou a busca de tempos de espera, deixando o som das notas quase desaparecer, a ressonância dissipando-se gradualmente na sala, ao quase silêncio seguindo-se novo acontecimento. No fim, uma hora e meia de música e contemplação, que fluiu sem esforço.
O mesmo não se poderá dizer da segunda parte do programa de domingo. Himmels Tür (Porta do Céu), a quarta hora do ciclo Klang, é uma obra interpretada por um percussionista (Stuart Gerber, na foto) e projecção de som, contando ainda com a breve passagem pelo espaço cénico de uma menina. A peça retoma o sentido metafísico das duas partes do ciclo escutadas no sábado. Porém, opta por uma atitude essencialmente performativa, desafiando o percussionista a abordar a porta de madeira (a Porta do Céu) sob vários estados de alma até conseguir abri-la, atravessando-a logo depois, seguindo-se uma erupção de novos sons e, no fim, a entrada em cena da menina que, saindo da plateia, entra no palco e atravessa a porta. E aos poucos os sons desaparecem… Himmels Tür é uma peça mais interessante enquanto proposta conceptual que como ideia musical. É indiscutível o brio com que o percussionista expressou cautela, súplica ou agitação perante a porta (ainda) fechada… Mas anos volvidos sobre as grandes surpresas que habitaram em tempos os espaços de vanguarda nas artes performativas, uma peça com estas características deu-nos não muito mais que 20 minutos de acção em palco. E, das quatro partes do ciclo já apresentadas, revelou-se, até aqui, a menos consequente.

Técnica e espírito


J.L.: Com a passagem do filme Helicopter String Quartet (1996), de Frank Scheffer, pudemos ter uma percepção muito directa e, por assim dizer, intimista, de Stockausen em trabalho [foto]. O filme é um brilhante exercício documental que nos coloca no interior de um processo criativo em que a obsessiva precisão da música se confronta com o desafio de uma performance em voo, com cada um dos elementos do quarteto de cordas no respectivo helicópetro.
O segundo filme do dia, Interview with Stockhausen (2007), de Olivier Assayas, que deverá ser o derradeiro registo filmado do compositor (Stockausen faleceu a 5 de Dezembro de 2007, contava 79 anos), funcionou como uma excelente adenda. Em diálogo com o coreógrafo francês Angelin Preljocal, Stockhausen discute a encenação em palco de Sonntags Abschied, de algum modo explicitando o discurso criativo que a experiência de Helikopter tão eloquentemente traduz: o de uma integração festiva das novidades da técnica, sempre visando uma nova espiritualidade, ligada a linguagens ainda por descobrir.

>>> Fragmento de uma encenação de Helikopter, em 2001, por Angelin Preljocal.

sábado, outubro 03, 2009

Ciclo Stockhausen: Dia 1


N.G.: Num dos filmes projectados durante a tarde, Karlheinz Stockhausen explicava como via a sua música como um espaço projectado para o futuro. Nada disso o impedindo de, no seu âmago, essa mesma música aceitar, nem que pontualmente (mesmo sob novas formas e demandas), marcas que reflectem outros tempos. O tal tom “primitivo” que, como descrevia no mesmo filme, lhe surgira como descrição de um embaixador de um país africano depois de ouvir o magistral ‘Stimmung’. No primeiro dos três dias de um ciclo dedicado a Stockhausen (e em concreto à apresentação de seis horas do ciclo Klang, que o compositor deixou incompleto) sugestões de passado e futuro passaram pelo palco do Grande Auditório da Gulbenkian.
O ciclo de concertos (propriamente ditos) começou com a hora que abre o ciclo. Himmelfahrt (Ascensão) foi apresentada numa versão para sintetizador (António Perez Abellan, na foto), soprano (Barbara Zarichelli) e tenor (Hubert Mayer), com projecção de som por Kathinka Pasveer. Entre a evolução do que quase poderia ser uma reflexão modernista sobre a forma da ‘fuga’, com um programa distinto para cada uma das mãos do teclista, o sintetizador desenha um espaço onde o tempo e os timbres sugerem, como o próprio Stockhausen descreveu, o “inimaginável, inaudito, invisível” da ascensão. As palavras cantadas reforçam depois a carga de uma meditação sobre a transcendência, central a esta primeira hora do ciclo. “Uma oração musical de olhos fechados”, como o compositor a imaginou, esta primeira hora afirma uma identidade mística que, mesmo diferente da que conduziu a obra de um Messiaen, não deixa de revelar uma relação profunda (culturalmente enraizada e, portanto, antiga) entre o criador da música e o Criador da Humanidade.
Um “agradecimento” falado verbalizou, na segunda parte do concerto - na qual se escutou Hoffnung (Esperança) - uma relação semelhante com o divino à que havia sido lançada na primeira hora. Para violino (Juditha Haberlin), viola (Axel Porath) e violoncelo (Dirk Wietheger), a nona hora do ciclo Klang traduz um dos raros instantes em que Stockhausen compôs para pequenos ensembles de cordas. Ao virtuosismo exigido aos músicos a obra junta desafios performativos que acabam por dar corpo a uma música afinal nem sempre invisível. De comum às duas primeiras obras apresentadas uma curiosa relação com o silêncio que, no final de cada uma, só se rompe pela entrada em cena do outro lado da sala (ler, os espectadores).

Arte e artesanato

J.L.: O reencontro com Stockhausen também através dos filmes — Mikrophonie (1966), de Sylvain Dhomme, e Stockhausen in den Höhlen von Jeita (1969), de Anne-Marie Deshayes — permitiu-nos um contacto muito directo com as peculiaridades das suas interpretações e conceitos interpretativos.
O primeiro é um registo "convencional" de uma performance, num espaço de estúdio, dando-nos a ver um Stockhausen [foto] que desempenha as funções de maestro como um verdadeiro director de régie. O segundo documenta os trabalhos de preparação de um espectáculo nas grutas de Jeita, no Líbano, espaço fascinante que seduz o compositor pelo seu eco e por toda uma ambiência caracterizada por uma elevada taxa de humidade.
São ilustrações eloquentes de um princípio que, a certa altura, o próprio Stockhausen enuncia: o de que o aparato da interpretação, mesmo decorrendo de uma intransigente fidelidade à pauta, implica também variáveis que não podem ser separadas dos intérpretes e do contexto em que tudo acontece. São, enfim, exemplos de uma relação do cinema com a música hoje em dia perdida através da formatação de muitos "making of". No fundo, descobrimos a música como uma prática artística que não pode ser desligada dos valores mais primitivos de um certo artesanato: rigor dos trabalhos do corpo (as mãos, as vozes, etc.), adaptação às circunstâncias concretas, enfim, criação de eventos únicos e radicais.

sexta-feira, outubro 02, 2009

Ciclo Stockhausen na Gulbenkian

Começa já amanhã, na Fundação Gulbenkian, aquele que promete ser um dos acontecimentos musicais da rentrée. Durante três dias, em, concertos sempre pelas 19.00 horas, no Grande Auditório, a música de Karlheinz Stockhausen toma o centro das atenções, num ciclo que toma como matéria-prima primordial seis partes do Ciclo Klang, que o compositor trabalhou depois de 2004, mas que deixou inacabado, à data da sua morte, em 2007, faltando ainda concluír três das 24 partes de todo este ciclo. Consideravelmente distinto do ciclo Licht, no qual Stockhausen trabalhou entre 1977 e 2004, o ciclo Klang representa uma mudança de ângulo de interesse de uma demanda que se afasta assim dos domínios da visão para procurar os terrenos invisíveis da audição. Das 21 partes (ou “horas”) do ciclo que Stockhausen deixou terminadas, algumas ainda há por estrear. A ‘6ª hora’, de resto, terá esta segunda-feira, dia 5, a sua estreia mundial em Lisboa.
Os concertos têm lugar amanhã, domingo e segunda-feira, sempre pelas 19.00 no Grande Auditório da Gulbenkian.
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Amanhã
Himmelfahrt (‘Ascenção‘), 1ª Hora do ciclo Klang («Som»)
Hoffnung (‘Esperança‘), 9ª Hora do ciclo Klang
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Domingo
Natürliche Dauern (‘Durações Naturais’ - peças 1 a 15), 3ª Hora do ciclo Klang
Himmels-Tür (‘Porta do Céu‘), 4ª Hora do ciclo Klang
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Segunda-feira
Schönheit ('Beleza'), 6ª Hora do ciclo Klang (estreia mundial)
Cosmic Pulses, 13ª Hora do ciclo Klang
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Em paralelo, nas tardes de amanhã e domingo, o auditório 3 da Gulbenkian apresenta quatro filmes que, de certa forma, completam o ciclo. Sábado são projectados, às 17.00 horas, os filmes Mikrophonie de Sylvain Dhomme (1966, 30’) e Stockhausen nas grutas de Jeita, Líbano, de Anne-Marie Deshayes (1969, 45’). Domingo, às 16.00, é a vez de Helicopter String Quartet de Frank Scheffer (1996, 77’) e Interview with Stockhausen de Olivier Assayas (2007, 52’).