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domingo, abril 13, 2025

Hayao Miyazaki
— reencontro em DVD

Ilustração de Susana Sanchez [Los Angeles Times]

Apesar de tudo, continua a haver razões para não abandonarmos o DVD — O Rapaz e a Garça, por exemplo.
Eis um filme para descobrir ou redescobrir as narrativas de Hayao Miyazaki. E faz sentido usar a palavra (narrativas) no plural, uma vez que o mestre japonês da animação — autor de títulos já clássicos como A Princesa Mononoke (1997) ou A Viagem de Chihiro (2001) — trabalha em terrenos de elaborada ambivalência dramática e dramatúrgica, em que os elementos de uma determinada ordem quotidiana e familiar tendem a ser perturbados e, de algum modo, reinventados através do contacto com universos alternativos, povoados de forças, enigmas e personagens fantasmáticas. Assim acontece, uma vez mais, nesta história de um menino cuja existência se transfigura a partir da morte da mãe...
Distinguido com o Oscar de melhor filme de animação referente a 2023, O Rapaz e a Garça foi lançado nas salas, a 9 de novembro de 2023, pela Outsider Filmes. Agora, em DVD, está disponível, em exclusivo, na Estantarte.

quarta-feira, março 19, 2025

Kiarostami & Godard
— o cinema para lá da morte

Caçadores na Neve (1565), de Bruegel, o Velho:
uma pintura que Kiarostami reinventa através da manipulação digital

Deixou de ser uma presença significativa no mercado, mas o DVD não desapareceu. Agora, uma edição muito especial traz-nos os filmes póstumos de dois autores que marcaram de forma decisiva a história do cinema nas últimas décadas: o iraniano Abbas Kiarostami e o francês Jean-Luc Godard —˜este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 março).

Para muitos responsáveis pelos circuitos do mercado audiovisual, o DVD acabou — passámos a viver na idade das plataformas e afins. Se olharmos em redor, não há dúvida que alguma razão lhes assiste, mas convenhamos que as notícias da morte do DVD são um pouco exageradas... Observemos, pelo menos, as excepções que vão resistindo. Exemplo? Esse pequeno grande acontecimento que é a edição em DVD, com chancela da Midas Filmes, de dois filmes póstumos com assinatura do iraniano Abbas Kiarostami (1940-2016) e do francês Jean-Luc Godard (1930-2022).
AK + JLG
A circunstância de estarmos perante filmes que só foram divulgados depois da morte dos respectivos autores parece acrescentar (mais) uma nota fúnebre à edição, mas só mesmo por cinismo mercantil poderemos seguir tal sugestão: 24 Frames, de Kiarostami, e Filme Anúncio do Filme “Drôles de Guerres”, de Godard, são objectos de calorosa celebração do cinema e como tal foram tratados em sessões realmente especiais do Festival de Cannes: o primeiro foi exibido em Cannes, em 2017, no âmbito das comemorações da 70ª edição do festival (a par, por exemplo, dos dois primeiros episódios da sequela da série Twin Peaks, de David Lynch); o segundo, em 2023, integrou uma secção de tributo a Godard (numa das sessões foi projectado com As Filhas do Fogo, a curta-metragem de Pedro Costa).
O cinema que aqui reencontramos é uma arte que afirma as suas especificidades, ao mesmo tempo que mantém um diálogo vivo sobre os seus próprios limites materiais e espirituais. No caso do cineasta iraniano, tal postura criativa é tanto mais importante quanto 24 Frames integra, com contagiante alegria, aquilo que, por certo, muitos espectadores não associam ao seu trabalho. A saber: a manipulação digital.
Kiarostami define o seu projecto a partir de uma curiosa afirmação: “Notei muitas vezes que não somos capazes de olhar para o que temos à nossa frente, a não ser que esteja dentro de um enquadramento.” Que é, então, esse enquadramento, designado pela palavra inglesa frame? Pois bem, é aquilo que nos propõe uma “fatia” do mundo que se oferece à nossa contemplação, eventualmente à nossa interpretação crítica.
E que faz Kiarostami com tais pressupostos? Começa por nos mostrar imagens de um célebre quadro (Caçadores na Neve, pintado por Bruegel, o Velho, em 1565) e, depois, fotografias várias de cenas que podem ir de uma paisagem vista a partir do interior de um automóvel até um grupo anónimo a contemplar a Torre Eiffel. A pouco e pouco, como se fossem discretos incidentes poéticos, algo nas imagens fixas começa a mover-se: o fumo de uma chaminé, os pássaros que assomam a uma janela, a neve que não pára de cair...
Redescobrimos o olhar realista de Kiarostami seduzido por um aparato técnico que lhe permite “adivinhar” o movimento que as imagens fixas sugerem e, num certo sentido, já contêm. No caso de Filme Anúncio do Filme “Drôles de Guerres”, a proposta é bem diferente, quanto mais não seja porque é mesmo um trailer (com 20 minutos de duração) para um filme que nunca se concretizou.
Os resultados são indissociáveis do labor de Fabrice Aragno, colaborador de longa data de Godard (que apresentou uma exposição sobre a sua obra na edição de 2023 do LEFFEST, sendo também um dos responsáveis de uma outra exposição dedicada a Godard, patente na Casa do Cinema Manoel de Oliveira até 15 de junho). Trata-se de regressar à dimensão artesanal do universo do autor de Pedro, o Louco (1965) e Eu Vos Saúdo, Maria (1985), dando a ver imagens, palavras e frases que lhe serviam como verdadeiros argumentos. Como o título sugere, em foco estariam as convulsões bélicas do mundo contemporâneo, afinal transversais a toda a filmografia godardiana e à sua pulsação, tão mal reconhecida, de genuíno humanismo.

Que futuro para o DVD?

Vistos ou revistos em DVD, os trabalhos de Kiarostami e Godard são também “mensageiros” de uma verdade que importa não escamotear. Assim, podemos e devemos não minimizar os valores da nossa relação com os filmes na clássica sala escura — essa é, de facto, uma experiência insubstituível. Ao mesmo tempo, não faz sentido aceitarmos a versão preguiçosa segundo a qual nos tornámos apenas consumidores de plataformas.
Em diversos mercados, o DVD continua a ser uma fonte importante, ainda que minoritária, de conhecimento do cinema, em particular das suas memórias clássicas, com edições que desapareceram do mercado português, incluindo a variante tecnicamente mais avançada do Blu-ray. Porquê? Em grande parte, sejamos claros, porque a prática de preços exorbitantes por alguns agentes do mercado fez com que o consumidor rapidamente se apercebesse de uma realidade rudimentar: era mais barato encomendar um Blu-ray do estrangeiro do que comprá-lo numa loja portuguesa... Enfim, as heranças de Kiarostami e Godard garantem-nos que nem tudo está perdido.

terça-feira, março 18, 2025

O Rapaz e a Garça em DVD

Eis uma boa notícia, em primeira mão: O Rapaz e a Garça, de Hayao Miyazaki, vai reaparecer no mercado português (estreou-se nas salas a 9 de novembro de 2023), agora em edição em DVD, com chancela da Outsider.
Para lá do reencontro com a obra do mestre japonês da animação [estúdios Ghibli], neste caso com a longa-metragem que revogou a notícia da sua retirada profissional, eis um acontecimento que confirma que, apesar do enquistamento do mercado audiovisual (nem tudo são plataformas...), o DVD continua a ser uma boa alternativa, ainda que minoritária, para um público disponível. Será preciso relembrar que a vitalidade desse mercado passa sempre pela sua capacidade de diversificação? 

quinta-feira, novembro 10, 2022

4 filmes escolhidos por Frederick Wiseman

[ Zipporah Films ]

Regularmente, a Criterion Collection convida personalidades do cinema para, no seu escritório de Nova Iorque, visitarem a "arrecadação" dos respectivos DVD — e escolherem alguns filmes. Há dias, Frederick Wiseman passou por lá, acabando por levar consigo Ladrões de Bicicletas (De Sica, 1948), Horizontes de Glória (Kubrick, 1957), A Faca na Água (Polanski, 1962) e Vencidos pela Lei (Jarmusch, 1986) — em pouco mais de dois minutos, o cineasta de Near Death (1989) e National Gallery (2014) comenta as suas escolhas, explicando, afinal, como mesmo na ficção os elementos documentais podem ser determinantes. E também o contrário?...

domingo, outubro 30, 2022

Joseph Losey: espelhos e fantasmas

Dirk Bogarde e James Fox em O Criado (1963):
assombramento e tragédia

Apesar de todas as crises do mercado, o DVD continua a ser uma via possível para conhecermos a diversidade da história do cinema: agora podemos ver ou rever cinco títulos fundamentais, realizados na Europa, pelo americano Joseph Losey — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 outubro), com o título 'O cinema é um espelho dos nossos fantasmas'.

Podemos entregar-nos a infinitas especulações, ora pragmáticas, ora nostálgicas, sobre o facto de os mercados cinematográficos terem desinvestido na área do DVD. O certo é que, apesar disso (porventura contra isso), continuamos a ter a possibilidade de descobrir alguns clássicos em formato digital, em edições para consumo caseiro. Tem acontecido, por exemplo, com vários títulos lançados pela Academia Portuguesa de Cinema, em colaboração com a Cinemateca. E acontece agora, com chancela da Leopardo Filmes: nada mais nada menos que cinco filmes de Joseph Losey (1909-1984), reunidos numa caixa de DVD com o subtítulo “Cineasta essencial”.
Essencial, sem dúvida, Losey começa por sê-lo pela bizarra ambivalência cultural e histórica que pontua a sua trajectória criativa. Ironicamente, poderemos dizer que essa trajectória o define como uma espécie de contraponto de Alfred Hitchcock. Assim, o “mestre do suspense” surge muitas vezes citado como um dos nomes grandes da idade de ouro de Hollywood (estatuto indiscutível, claro), omitindo as suas origens inglesas e, mais do que isso, o começo da sua actividade na Grã-Bretanha, onde assinou mais de duas dezenas de filmes; Losey, por seu lado, e sobretudo graças a essa obra-prima que é O Criado (incluído nesta edição), tende a ser encarado apenas como uma referência fundamental da produção britânica, esquecendo-se que nasceu nos EUA, aí realizando, até ao começo da década de 1950, uma parte significativa da sua filmografia.

Joseph Losey
Filmes de exílio

Losey foi, afinal, nas últimas três décadas da sua vida, um cineasta exilado. As suas colaborações teatrais com Bertolt Brecht e o compositor Hanns Eisler ao longo da década de 40, e também o facto de se ter filiado no Partido Comunista dos EUA em 1946, tornaram-no um alvo do “maccartismo” e dos processos de afastamento dos “vermelhos”, nessa altura implementados por vários estúdios de Hollywood. Acabou por sair dos EUA em meados de 1951, quando o seu filme The Big Night, um “thriller” com John Drew Barrymore, estava em fase de pós-produção.
Não se poderá dizer que a sua filmografia seja um reflexo “temático” desse dramático capítulo da sua biografia. Em qualquer caso, faz sentido sublinhar que alguns dos grandes momentos do seu trabalho são indissociáveis de uma visão muito crua, e também muito desencantada, das formas de poder que as relações humanas podem envolver.
Com argumento de Harold Pinter, a partir de um romance de Robin Maugham, O Criado persiste como um exemplo maior dessa arte subtil, visceralmente trágica. E tanto mais quanto nele deparamos com uma relação em que as diferenças de classe — o criado (Dirk Bogarde) e o seu amo (James Fox) — se cruzam com enigmáticas componentes homossexuais. Digamos, para simplificar, que a abordagem que Losey faz da(s) sexualidade(s) é o rigoroso contrário da “formatação” temática, por vezes moralista, que encontramos em algumas produções politicamente correctas dos nossos dias.
Em termos cronológicos, O Criado é o terceiro dos cinco filmes desta edição (todos em cópias restauradas). Antes dele surgem Prisão Maior (1960), com Stanley Baker, retrato contundente da violência no interior de uma prisão, na altura proibido em vários países, e Eva (1962), produção franco-italiana inspirada no romance homónimo de James Hadley Chase, protagonizada por Jeanne Moreau numa reinvenção das regras clássicas do “thriller” através de uma invulgar ambiência erótica — foi uma desilusão para o realizador devido aos cortes impostos pela produção, mas surge agora disponível com a duração desejada por Losey.

Uma arte pedagógica

Ver ou rever Losey envolve uma fascinante sensação de realismo (mesmo no muito pouco visto Dois Vultos na Paisagem, um conto abstracto sobre a violência datado de 1970). O seu impacto não é estranho a um elaborado paradoxo formal: Losey oferece-nos espelhos das componentes mais básicas e mais perturbantes da identidade humana, ao mesmo tempo que, com a perspicácia e a paciência de um pedagogo, nos dá a ver os elementos fantasmáticos das suas personagens. Os títulos finais desta edição — Acidente (1967) e Mr. Klein - Um Homem na Sombra (1976) — são notáveis exemplos da sua visão.
Acidente resultou de mais uma colaboração com Pinter, neste caso tendo como ponto de partida um romance de Nicholas Mosley centrado num pequeno grupo de personagens do meio universitário. Aqui, todos os movimentos passionais transportam uma carga de destruição (e auto-destruição) que, de alguma maneira, esclarece o cepticismo moral das narrativas de Losey: vivemos na miragem de uma inocência para sempre perdida. Sem esquecer que, como sempre, o trabalho com os actores tem tanto de delicado como de sofisticado — Dirk Bogarde e Stanley Baker regressam, contracenando com Jacqueline Sassard, Michael York e Delphine Seyrig.
Quanto a Mr. Klein, uma produção francesa, a sua história tem tanto de fresco histórico como de parábola política. A figura central do filme, Robert Klein, é um negociante de arte de Paris que, durante a ocupação pelos nazis, se aproveita da fragilidade dos judeus em fuga para adquirir obras por preços irrisórios. A partir do momento em que a sua identidade é confundida com a de um judeu também chamado Robert Klein, ele vai viver um pesadelo tornado realidade, de alguma maneira confrontando-se com a monstruosa “banalidade do mal” que Hannah Arendt escalpelizou. A não esquecer: no papel de Klein, Alain Delon mostra como a arte de representar consiste em lidar com todos os assombramentos que habitam a nossa frágil condição de seres vivos.

quinta-feira, junho 30, 2022

Wong Kar Wai
— alguns restos românticos

Maggie Cheung e Tony Leung em In the Mood for Love:
memórias e solidões de Hong Kong

Revendo os filmes de Wong Kar Wai numa magnífica edição em DVD, em particular In the Mood for Love, reencontramos um cinema que não desistiu do romantismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 junho).

Se o leitor conhece o filme In the Mood for Love (2000), realizado por Wong Kar Wai, saberá que a inspiração para o título provém da canção I’m in the Mood for Love — mais exactamente, da versão interpretada por Bryan Ferry, incluída nesse admirável álbum de “velharias” que é As Time Goes By (1999). Com um paradoxo a ter em conta: a canção não é escutada no próprio filme (mesmo se algumas edições da respectiva banda sonora a incluem). Desenha-se, assim, uma via de cumplicidades românticas que nos remete para o original da canção, composta por Dorothy Fields/George Oppenheimer (letra) e Jimmy McHugh (música), integrando a banda sonora da comédia romântica Every Night at Eight (1935), de Raoul Walsh — a interpretação era de Frances Langford [eis Ferry + Langford].




Sempre senti que a pulsão poética de tudo isto esbarra com o determinismo do título português do filme: Disponível para Amar. É, a meu ver, um dos exemplos “clássicos” de inadequação e, mais do que isso, traição simbólica que um título pode favorecer. A sugestão de que o par interpretado por Maggie Cheung e Tony Leung — dois seres solitários cujos parceiros estão ausentes — vive o amor através de alguma forma de “disponibilidade” situa a acção num terreno de escolhas racionais que, em tudo e por tudo, contraria o espírito romântico da narrativa.
Se Wong Kar Wai filma alguma coisa de palpável é, justamente, a proximidade dos corpos e dos desejos que existe… porque sim. Em boa verdade, é essa a premissa, consciente ou inconsciente, do romantismo cinematográfico. Podemos revisitar agora esse universo através de “Mundo de Wong Kar Wai”, uma magnífica caixa de DVD (Leopardo Filmes).
In the Mood for Love/Disponível para Amar surge num conjunto de sete títulos, em cópias restauradas, com assinatura daquele que é, afinal, um dos nomes fulcrais do cinema de Hong Kong. Cinco são anteriores: As Tears Go By/Ao Sabor da Ambição (1988), Days of Being Wild/Dias Selvagens (1990), Chungking Express (1994), Fallen Angels/Anjos Caídos (1995) e Happy Together/Felizes Juntos (1997); o último, 2046 (2004), enredado em sugestões de ficção científica, é normalmente encarado como uma sequela de In the Mood for Love (também porque os dois argumentos foram escritos em simultâneo).
A tragédia de uma maternidade incerta em As Tears Go By, as duas histórias paralelas de Chungking Express ou a ambiência queer de Happy Together são apenas alguns dos elementos mais óbvios de uma problematização do romantismo que escapa ou, em rigor, transcende a “disponibilidade” dos seus protagonistas. Porquê? Porque o romantismo envolve uma relação dúplice com o tempo presente: as personagens são peões incautos desse tempo, ainda que os seus desejos as projectem num outro calendário.
A esse propósito, Wong Kar Wai nunca deixou de sublinhar a importância simbólica da situação de In the Mood for Love no começo da década de 1960, em Hong Kong, pressentindo memórias de diferentes lugares e outras vivências (o próprio realizador nasceu em Xangai, em 1958). Paradoxalmente ou não, no plano cinematográfico, a sensibilidade romântica afirma-se como expressão de uma paixão narrativa que resiste a rotular as convulsões particulares de cada vida humana. Nesta perspectiva, a redescoberta de Wong Kar Wai através do DVD é tanto mais motivadora quanto vivemos — ou somos compelidos a viver — tempos de avassaladora indiferença por qualquer centelha de romantismo e, por fim, da sua metódica destruição.
Observe-se, a esse propósito, a normalização da noção mecânica e mecanicista segundo a qual há uma continuidade obrigatória entre um qualquer acontecimento, trágico ou não — seja a guerra na Ucrânia, seja o Jubileu de Isabel II —, e a sua “análise”. Que está, então, a acontecer? A instalação de um imaginário social e mediático, logo cultural, que nos obriga a sentir qualquer facto como “coisa” que só existe em determinado momento porque, nesse mesmo momento, o vamos afogar num qualquer “significado”.
Ora, Wong Kar Wai é um daqueles cineastas que sabe que nenhum significado pode esgotar, muito menos racionalizar, a vibração de um instante, por mais efémera ou indiferente que a sua duração possa parecer. Veja-se ou reveja-se a depurada utilização das imagens em câmara lenta para filmar alguns movimentos de Maggie Cheung e Tony Leung — como se o cinema desejasse fixá-los na intensidade de cada momento, libertando-os do desgaste do tempo.

segunda-feira, novembro 15, 2021

"Escrito no Vento" na Criterion

Para a reedição de Escrito no Vento (1956) em DVD e Blu-ray, a Criterion oferece-nos uma capa que é uma brilhante variação sobre o grafismo e cromatismo dos cartazes da época. A edição da obra-prima de Douglas Sirk permite-nos reencontrar esse universo que os editores definem, não sem alguma ironia, como "expressionismo em Technicolor". Eis um dos cartazes originais e uma breve cena com Rock Hudson e Dorothy Malone.

quinta-feira, agosto 05, 2021

"E o Tempo Passa" em DVD

Sofia Aparício
E o Tempo Passa (2011)

E o Tempo Passa, uma visão pedagógica sobre o lugar social e emocional da telenovela, já está disponível em DVD — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 julho).

Foi a derradeira longa-metragem de um dos autores maiores do nosso cinema: Alberto Seixas Santos (1936-2016). Lançado em 2011, E o Tempo Passa arrisca num domínio que, afinal, o cinema português quase sempre tem evitado: a telenovela. Entenda-se: há um número crescente de títulos que se demitiram da sua singularidade cinéfila, cedendo à formatação preguiçosa e à moral narrativa da telenovela; mas são muito poucos com a coragem de lidar com a telenovela como fenómeno de normalização da percepção das imagens e dos sons.
Esta é a história de Teresa, actriz de telenovela. Gerido por rotinas de escassa imaginação, o estúdio em que trabalha acaba por funcionar como microcosmos de uma sociedade em que as ilusões da fama contrariam as relações humanas genuínas. O resultado é um fresco social sobre um desencanto muito português, filmado com o obstinado rigor de quem sempre admirou e respeitou o trabalho dos actores: no elenco encontramos, entre outros, Sofia Aparício (no papel de Teresa), Isabel Ruth, Rita Durão, Américo Silva e Joana Metrass.

segunda-feira, julho 26, 2021

A inocência perdida de Luis Buñuel

O Charme Discreto da Burguesia (1972)

Agora com uma especialíssima edição em DVD, o cinema de Luis Buñuel cruza realidade e fantasmas, levando-nos a questionar a ordenação moral do nosso mundo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 junho).

Cena clássica do espanhol Luis Buñuel: quatro homens e três mulheres chegam a um palacete, sendo encaminhados para uma sala onde está uma mesa preparada para uma refeição. Deduzimos que serão convidados, uma vez que são recebidos por um empregado, talvez um mordomo, que lhes diz: “O senhor e a senhora não vão demorar.” Há uma estranheza no ar que se adensa quando o mesmo empregado surge com uma travessa com dois frangos assados (em plástico?); deixa-os cair no chão para, de imediato, os apanhar e colocar na mesa…
“Que brincadeira é esta?”, pergunta um dos convivas, logo começando a ouvir-se uma série de sons secos e ritmados, dir-se-ia alguém a martelar. Os sons parecem converter-se em pancadas de Molière, como se assistíssemos ao prólogo de uma representação teatral… A cena passa a ser-nos mostrada a partir de um novo ponto de vista e, de facto, agora, vemos que o espaço em que se encontra a mesa possui uma cortina vermelha que faz lembrar um palco. A cortina abre-se e assim é: as personagens estão num palco, perante uma plateia lotada [video].
É, seguramente, a cena mais célebre de O Charme Discreto da Burguesia, realização de Buñuel que, em representação da França, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro referente a 1972. Nela confluem duas componentes tradicionalmente associadas ao universo buñueliano. A saber: a visão cáustica das classes dominantes e a sensação de que a realidade está sempre em contacto com o seu “oposto” surreal.
O filme ressurgiu agora no mercado português, através de uma magnífica edição em DVD. Mais exactamente, passou a existir uma caixa de obras de Buñuel intitulada “O Período Francês”. Nela encontramos seis títulos fundamentais: Diário de uma Criada de Quarto (1963), adaptação de Octave Mirbeau, em tom de perversa austeridade, com Jeanne Moreau; Belle de Jour (1967), obra-prima absoluta sobre as ambiguidades do desejo e do território conjugal, com Catherine Deneuve; A Via Láctea (1969), revisitando os dogmas do catolicismo através de uma peregrinação a Santiago de Compostela; e ainda a trilogia final de Buñuel que, para lá de O Charme Discreto da Burguesia, inclui O Fantasma da Liberdade (1974) e Este Obscuro Objecto do Desejo (1977). Precisamente para lembrar que a dimensão surreal de Buñuel não é, historicamente, estranha ao surrealismo, a edição integra ainda, como extras, os dois filmes em que colaborou com Salvador Dalí: Um Cão Andaluz (1929) e A Idade de Ouro (1930).
Em qualquer caso, lembremos que momentos como a cena citada não se esgotam na ideia de que a nossa experiência de vida, por mais realista que possa parecer (ou por nós ser descrita), nunca é estranha às atribulações próprias dos sonhos. No limite, tudo se passa como se a própria noção de realidade fosse, não o nosso ponto de partida para habitar o mundo, mas uma ilusão de que é impossível regressar. Como se não houvesse realidade, apenas a impossibilidade de concretizarmos a sua lógica. Ou o pensamento dessa lógica. Jean-Pierre Cassel, um dos intérpretes da cena, diz mesmo estas palavras de pânico: “Que faço aqui? Não conheço o texto.”
Creio, assim, que os títulos dos filmes finais de Buñuel não são meras descrições irónicas (mesmo se é verdade que neles deparamos com as mais desconcertantes formas de humor). O “charme discreto” alude, como é óbvio, a esse misto de distância e sedução com que a “burguesia” mobiliza a nossa atenção. Por outro lado, que a “liberdade” esteja do lado do “fantasma”, eis o mais incómodo dos teoremas políticos. Enfim, o “desejo” e o seu “obscuro objecto” lembram-nos que somos seres inebriados pela nitidez daquilo que, afinal, nos escapa e ilude.
Buñuel tem a sua trajectória criativa associada a peripécias mais ou menos “escandalosas” — recordemos apenas o caso de Viridiana (1961), Palma de Ouro em Cannes, condenado por “blasfémia” pelo Vaticano, tendo sido exibido em Espanha apenas a partir de 1977, cerca de dois anos depois da morte do ditador Francisco Franco. O certo é que a passagem do tempo não anulou a perturbação mais funda do seu cinema. Chamemos-lhe inocência perdida: em filmes como O Charme Discreto da Burguesia, a ordenação moral do mundo pouco mais é do que uma utopia pueril. Ou melhor, um teatro necessário que interpretamos como actores à deriva.

terça-feira, março 31, 2020

"Western Stars" — o filme

Aos 70 anos, Bruce Springsteen apostou em recriar o seu álbum Western Stars através de um belo concerto que funciona também como uma viagem introspectiva e confessional: o resultado é um filme já disponível em DVD e Blu-ray — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Março).

Nestes tempos tão singulares e dramáticos, o filme Western Stars, de e com Bruce Springsteen, não chegou às salas portuguesas. Mas não por causa da conjuntura pandémica que estamos a viver: a sua edição directa em DVD (e também Blu-ray, aliás numa transcrição de imaculada qualidade) já estava prevista, não se repetindo, assim, o que aconteceu no mercado dos EUA, onde o filme cumpriu uma breve passagem pelo circuito tradicional de exibição (em outubro/novembro de 2019).
Estamos perante um objecto cujo propósito esquemático — registar as canções de um novo álbum — não deixa de ser formalmente sedutor, além de comercialmente atípico. Springsteen apostou em revisitar os temas de Western Stars (o seu 19º álbum de estúdio, lançado em junho do ano passado), num registo que não corresponde à convencional abordagem de um “making of”: por um lado, descobrimo-lo num concerto de características muito especiais, recriando as 13 canções do álbum (desembocando na evocação final de Like a Rhinestone Cowboy, tema clássico de Glen Campbell); por outro lado, há nesta cândida deambulação a vontade explícita de desenhar um esboço auto-biográfico, em particular percorrendo algumas memórias do seu prolongado período de depressão. O facto de Springsteen assinar a realização do filme (partilhada com Thom Zimny, velho amigo e colaborador) é, afinal, um sintoma claro da sua postura confessional.


“Passei 35 anos a tentar aprender como me libertar das componentes destrutivas da minha pessoa”, confessa o autor de Born in the USA, acrescentando: “E ainda tenho dias em que luto com isso.” Pontuando as imagens do filme, tais palavras são, afinal, um eco da singela dimensão confessional que, porventura com alguma surpresa, tínhamos descoberto no livro auto-biográfico Born to Run (edição portuguesa: Elsinore, 2016). Através das histórias que as suas canções têm contado, muitas vezes encenando personagens à procura da sua própria identidade, Springsteen encenava também as angústias e o desejo de redenção do seu destino.
Western Stars é um reflexo vivo de tudo isso, uma verdadeira reinvenção identitária, sustentada por uma magnífica performance ao vivo. Nesta perspectiva, parece existir um efeito de continuidade entre esta experiência cinematográfica e o espectáculo “Springsteen on Broadway”, também ele de características auto-biográficas, que esteve em cena no Walker Kerr Theatre, Nova Iorque, em 2017/18, vindo a ser distinguido com um prémio Tony (o respectivo registo está disponível num álbum homónimo, lançado em finais de 2018).
Tudo se passa no celeiro da quinta de Springsteen, no estado de New Jersey, próximo da cidadezinha de Long Branch, onde ele nasceu há pouco mais de 70 anos (a 23 de setembro de 1949). Em boa verdade, trata-se de um celeiro, também ele atípico, transfigurado em requintada sala de concertos, com uma particularidade que o proprietário destaca com orgulho: a muito bem conservada estrutura de madeira favorece uma sonoridade de rara pureza e envolvimento.
Com o acompanhamento de uma orquestra de 30 elementos (predominam os violinos, tão essenciais ao belo som “sinfónico” do álbum Western Stars), Springsteen lidera um brilhante conjunto de músicos — incluindo a sua mulher, Patti Scialfa, ela própria uma talentosa intérprete de country-rock —, capazes de proporcionar um evento de sofisticada competência profissional sem alienar a sua vibração intimista. O ziguezague entre canções e extractos de filmes de família (incluindo um delicioso momento burlesco na companhia de Scialfa, por certo da época do seu casamento, em 1991) transforma Western Stars num pessoalíssimo bloco-notas, partilhado com o espectador. Fica uma sensação amarga e doce: o filme merecia ser visto no grande ecrã de uma sala escura (até pelas qualidades da direcção fotográfica, assinada por Joe DeSalvo), mas não se pode ter tudo.

quinta-feira, março 05, 2020

Godard no Criterion Channel

Anna Karina e Jean-Luc Godard
— rodagem de Viver a sua Vida (1962)
A obra de Jean-Luc Godard tem uma presença importante nas edições em DVD da Criterion. Agora, o respectivo serviço de streaming, Criterion Channel, programou um ciclo de títulos Directed by Jean-Luc Godard — o video promocional é um admirável minuto de sensações godardianas.

quarta-feira, janeiro 22, 2020

Criterion edita "Le Petit Soldat"

É o filme em que Michel Subor diz a Anna Karina que, sendo a fotografia a "verdade", o cinema é a "verdade 24 vezes por segundo"... Produzido em 1963, foi o primeiro trabalho em que Karina foi dirigida por Jean-Luc Godard: uma crónica francesa assombrada pelo uso da tortura durante a Guerra da Argélia. Agora editado em DVD e Blu-ray pela Criterion Collection, Le Petit Soldat (entre nós lançado como O Soldado das Sombras) surge com uma capa belíssima, da autoria de F. Ron Miller, sensível ao espírito de colagem da sua narrativa. Aqui fica um fragmento.

terça-feira, agosto 13, 2019

DVD: Renoir, Ophüls & etc.

Mel Ferrer e Ingrid Bergman
HELENA E OS HOMENS (1956)
De Renoir a Ophüls, os clássicos do cinema francês voltam a ser um acontecimento no mercado do DVD: onze filmes para redescobrirmos os mestres que inspiraram os cineastas da Nova Vaga — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Agosto).
  
Observando o modo como o makerting cinematográfico investe o essencial dos seus recursos nas produções de “super-heróis” e afins, somos forçados a reconhecer que os clássicos, mais do que marginalizados, passaram a ocupar um pequeno território de resistência. Nas salas e também no DVD, como agora se prova pela edição (em alguns casos, reedição) de títulos de grandes autores do cinema francês, produzidos, em particular, durante a década de 50.
Trata-se de uma “Colecção Cinema Francês – Os Grandes Mestres” com chancela da Leopardo Filmes. Dos três volumes já editados, só o primeiro é dedicado apenas a um realizador, Jean Renoir (1894-1979), com três títulos: O Crime do Sr. Lange (1936), French Cancan (1954) e Helena e os Homens (1956). Os dois outros volumes apresentam, cada um deles, quatro filmes de dois cineastas: Marcel Pagnol (1895-1974) e Sacha Guitry (1885-1957), no segundo; Jacques Becker (1906-1960) e Max Ophüls (1902-1957), no terceiro.
Tendo em conta que predominam produções da década de 50, vale a pena recordar que a revolução estética — de temas, sensibilidades e linguagens — protagonizada ao longo da década seguinte pela geração da “Nouvelle Vague” não pode ser compreendida como se os respectivos autores tivessem partido do zero. Bem pelo contrário, foi em criadores como Renoir, Ophüls ou o muito esquecido Guitry que eles reconheceram as marcas de uma singularidade (francesa, antes do mais) cuja herança importava estudar, assumir e transfigurar. De alguma maneira, Jean-Luc Godard, François Truffaut ou Eric Rohmer foram modernos através da sua relação com o património legado por esses clássicos.
Aqui encontramos, por isso, toda uma pluralidade artística que vai do “impressionismo” de Renoir ao gosto teatral de Guitry, sem esquecer o “romantismo” de Becker, em particular no mítico Casque d’Or/Aquela Loira (1952), com Simone Signoret no seu papel mais emblemático [trailer original].


Enfim, são onze filmes capazes de nos ajudar a relativizar e, mais do que isso, superar qualquer visão pitoresca do passado cinematográfico. Como bons cinéfilos, podemos e devemos reconhecer a espantosa actualidade destes mestres. Entre os títulos editados, eis três exemplos modelares:

* HELENA E OS HOMENS (1956), de Jean Renoir — É o filme que conclui a “trilogia da felicidade” de Renoir, depois de A Comédia e a Vida (1952), celebrando as ambivalências existenciais do teatro, e French Cancan (1955), evocando a fundação do Moulin Rouge, em Paris, em finais do século XIX. Também situado no apoteótico e colorido “fin de siècle”, Helena e os Homens possui a dimensão de uma fábula romântica sobre os enigmas do masculino/feminino, com Ingrid Bergman, numa das suas composições mais delicadas e etéreas, contracenando com Jean Marais e Mel Ferrer.

* VENENO (1951), de Sacha Guitry — Quando vemos agora o genérico de abertura deste filme, com o próprio Guitry a apresentar, com carinho e pompa, os elementos da sua equipa (actores e técnicos), sentimos que estamos perante um espírito realmente livre. Ou seja: Guitry é alguém que assume uma descomplexada teatralidade para, a partir daí, construir um discurso cinematográfico que envolve sempre uma visão sarcástica dos limites da moral humana. Com o brilhante Michel Simon no papel central, esta é uma desconcertante parábola sobre a “lógica” de um acto criminoso e, nessa medida, a infinita ambivalência das relações sociais.

* MADAME DE... (1953), de Max Ophüls — Antes do seu lendário e derradeiro filme, Lola Montès (1955), Ophüls realizou O Prazer (1952) e Madame De... (1953), ambos incluidos nesta edição. Com Danielle Darrieux num dos mais requintados papéis da sua carreira, Madame De... encena as atribulações de uma dama da Belle Époque cuja reputação se enreda no circuito insólito de uns brincos que podem revelar mais do que as conveniências exigem... Através dos encontros e desencontros amorosos, num misto de cepticismo e ironia, Ophüls filma sempre a insensatez dos desejos humanos [trailer espanhol].

sábado, junho 01, 2019

Rolling Stones — Alemanha, 1998

Tradicionalmente apontado com um momento menor (?) na discografia de The Rolling Stones, o álbum Bridges of Babylon (1997) — que inclui, por exemplo, Anybody Seen My Baby?, Out of Control e Saint of Me — permanece um objecto disponível para algum tipo de (re)descoberta. Isso mesmo poderá acontecer através de Bridges to Bremen, em múltiplas edições (CD + DVD + Blu-ray), anunciado para 21 de Junho.
Bremen adquire aqui protagonismo, uma vez que na base das edições está um concerto no Weserstadion dessa cidade do noroeste da Alemanha, a 2 de Setembro de 1998. Decorria a 'Bridges to Babylon Tour' e, para além do alinhamento principal, naturalmente dominado pelos temas do álbum em promoção, alguns "desvios" invulgares foram pontuando a digressão. É o caso de Like a Rolling Stone, que os Stones tinham integrado nesse notável álbum acústico que é Stripped (1995). Sem esquecer o magnífico teledisco, assinado por Michel Gondry, eis o clássico de Bob Dylan recriado em terras germânicas por Mick Jagger & Cª.

sábado, julho 14, 2018

Ingmar Bergman — 100 anos

De que falamos quando falamos de Ingmar Bergman? Um século depois do seu nascimento — a 14 de Julho de 1918, em Uppsala, na Suécia — os filmes que nos legou continuam a acompanhar os nossos silêncios mais radicais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Julho), com o título 'O inferno pode esperar'.

Quando fez aquela que viria a ser a sua derradeira longa-metragem, Saraband, Ingmar Bergman (1918-2007) mostrou-se fascinado pela possibilidade de utilizar câmaras digitais verdadeiramente revolucionárias. Estava-se em 2003 e tais câmaras eram uma excepção, não sendo fácil antecipar, da produção à difusão, a globalização do digital que viria a consumar-se em poucos anos. Bergman usou um conjunto de quatro câmaras HDTV - Thomson 6000, três para rodagem, uma de reserva (na altura, em todo o mundo apenas existiam cinco).
A produção resultava da associação de entidades televisivas de Alemanha, Áustria, Dinamarca, Finlândia, Itália, Noruega e Suécia (com a Sveriges Television, de Estocolmo, a coordenar o projecto). Em boa verdade, Bergman tomou tais câmaras “à letra”, quer dizer, como objectos específicos de televisão. De tal modo que recusou liminarmente a possibilidade de o filme ser convertido em cópias de película, de modo a garantir a sua difusão nas salas escuras.
Liv Ullmann, protagonista do filme ao lado de Erland Josephson, deu a conhecer tal exigência quando apresentou Saraband, em Outubro de 2004, no Festival de Nova Iorque: sim, era verdade que Bergman autorizara a projecção em sala, mas apenas a partir de cópias digitais — de tal modo que Saraband acabou por ser um título pioneiro na reconversão tecnológica do mercado, sendo exibido em alguns países (incluindo Portugal) através de projecção digital.
Na biografia de um autor como Bergman, na altura um veterano de 86 anos, tal episódio pode parecer um preciosismo técnico. Mas talvez não seja bem assim. Agora que comemoramos o centenário do seu nascimento (a 14 de Julho de 1918, em Uppsala, cerca de 70 quilómetros a norte de Estocolmo), vale a pena lembrar que o seu envolvimento com a televisão foi muito mais importante do que algum fundamentalismo cinéfilo nos pode levar a supor.
A par de Roberto Rossellini, em Itália, ou Jean-Luc Godard, em França, Bergman foi um dos primeiros a encarar a televisão como espaço de produção que importava explorar, por certo em permanente articulação com as linguagens cinematográficas, mas sem recusar as suas especificidades. Afinal, Da Vida das Marionetas, habitualmente encarado como o seu derradeiro trabalho de cinema e para cinema, era uma produção de raiz televisiva e foi rodado em 1980 (durante o seu exílio alemão, motivado por problemas com o fisco sueco). A partir daí, a obra de Bergman é toda ela televisiva, incluindo títulos tão famosos como Fanny e Alexandre (1982) ou Depois do Ensaio (1984), a par de outros menos conhecidos como Na Presença de um Palhaço (1997), prodigioso retrato de um criminoso que utiliza os cenários do hospital psiquiátrico em que está internado para encenar um... filme.
Este simples inventário de títulos envolve uma verdade programática, de uma só vez cultural e política, que o ruído social das efemérides tende a escamotear. A saber: Bergman foi um dos que acreditou na televisão como instrumento de trabalho, logo veículo de expressão, em que a noção de popular poderia não ser cúmplice dos horrores do populismo.
O reencontro das personagens de Saraband — Marianne (Ullmann) e Johan (Josephson) —, três décadas depois do seu divórcio corresponde, afinal, a uma reescrita simbólica da obra de Bergman: Marianne e Johan, interpretados pelos mesmos actores, eram as figuras centrais de Cenas da Vida Conjugal, um filme de 1973 que começou por ser uma... mini-série televisiva.
Dir-se-ia que Bergman organizou a sua visão do mundo através de uma demanda em ziguezague, de uma só vez técnico e artístico. De tal modo que podemos reler a sua obra como uma reescrita obsessiva de algumas inquietações primordiais: de O Sétimo Selo (1957) a Paixão (1969), é a nitidez indizível da morte que se consolida nos gestos humanos; de O Silêncio (1963) a Lágrimas e Suspiros (1972), compreendemos que o corpo que habitamos é também uma prisão de que a divindade não nos quis libertar; enfim, de Luz de Inverno (1963) a O Ovo da Serpente (1977), descobrimos que a divindade se ausentou perante a possibilidade do inferno. Ainda assim, filmar suspende essa possibilidade.

>>> Cena de abertura de Persona/A Máscara (1966).


>>> Cena de abertura de Lágrimas e Suspiros (1972).


>>> Curta-metragem sobre Ingmar Bergman, produção de The Criterion Collection.


>>> Ingmar Bergman em Senses of Cinema.
>>> 17 clássicos de Ingmar Bergman no Sound + Vision.

quinta-feira, julho 05, 2018

Revendo "Linha Fantasma"

Vicky Krieps
Linha Fantasma já está disponível em DVD e não é, definitivamente, um filme sobre a "moda" — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Junho), com o título 'Além do corpo e do sexo'.

Revejo Linha Fantasma, de Paul Thomas Anderson, na recente edição em DVD. O retrato de Reynolds Woodcock, personagem (fictícia) da moda londrina em meados da década de 1950, parece-me ser, não apenas um dos grandes títulos da produção de 2017, mas um dos filmes maiores de todo o século XXI. Com esse detalhe, amargo e doce, que decorre do facto de a composição de Woodcock pelo genial Daniel Day-Lewis ter sido, em princípio, o derradeiro trabalho cinematográfico do actor inglês.
Não posso deixar de recordar o seu relativo apagamento no mercado cinematográfico. Não por qualquer expectativa em relação às condições de recepção do filme (a noção segundo a qual o crítico é aquele que espera que os outros pensem o “mesmo” que ele é um disparate pueril que, confesso, com o passar dos anos, deixei de tentar sequer esclarecer). Em qualquer caso, em boa verdade, não estou só no reconhecimento dos méritos de Linha Fantasma.
O que não posso deixar de referir é o facto de, através de uma série de factores mediáticos (com destaque para as campanhas promocionais), o filme de Paul Thomas Anderson ter sido “encaixado” numa espécie de sinopse compulsiva: uma história sobre os bastidores da moda... e com vestidos muito bonitos!
Não me interpretem mal. O guarda-roupa de Linha Fantasma é belíssimo, tendo valido ao seu criador, Mark Bridges, o único Oscar que o filme ganhou (sem esquecer que a Academia de Hollywood considerou que a marioneta de Churchill criada por Gary Oldman em A Hora Mais Negra possuía mais mérito que a composição de Daniel Day-Lewis). O que discuto é de outra natureza. A saber: o facto de se confundir a realidade específica do cinema com a exibição de elementos mais ou menos decorativos e superficiais.
Se o guarda-roupa de Mark Bridges é tão admirável não é porque “reproduza” o visual que, na época, era possível descobrir na Vogue ou na Harper’s Bazaar. Entenda-se: são publicações de excelência. Mas os vestidos de Linha Fantasma valem, em última instância, pelo modo como, através deles, Woodcock descobre a sua mulher e musa, interpretada pela igualmente genial Vicky Krieps.
Dir-se-ia que, ao vesti-la, Woodcock não está a embelezá-la mas, num certo sentido, a inventá-la, expondo-a à crueldade suprema do amor. A saber: procurando, conscientemente ou não, que o seu corpo, pose e aura coincidam por inteiro com o seu desejo. Sexo? Sim, ma non troppo. Aliás, não digam a ninguém que vos estou a dar uma “chave” de leitura, mas a personagem de Vicky Krieps chama-se Alma.

quarta-feira, abril 18, 2018

Hollywood, os afro-americanos & etc.

KATHRYN BIGELOW
— dois Oscars por Estado de Guerra (filme e realização)
Debater a figuração dos afro-americanos por Hollywood? Sim, mas não escamoteando a pluralidade das memórias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Abril), com o título 'Memória cinéfila, precisa-se'.

Não será necessário voltar a sublinhar a importância política e simbólica da revalorização das personagens afro-americanas nos filmes de Hollywood. Mais do que isso: a sua inscrição num movimento transversal a toda a sociedade americana. Como muitos fenómenos que adquirem expressão panfletária, também este tem gerado o seu recalcado, por vezes reforçando uma tendência pueril de todo o espaço mediático. A saber: o irresponsável apagamento da memória.
Memória cinéfila, antes do mais. Repare-se nas múltiplas celebrações do filme de aventuras Black Panther, motivadas pelo seu elenco de intérpretes afro-americanos. Não quero esconder que Black Panther me parece (mais) uma banal variação dos formatos de espectáculo promovidos pelos estúdios Marvel. Mas como fazer passar a ideia pedagógica de que aquilo que está em jogo não é um concurso mais ou menos gritado entre “bons” e “maus” filmes? Ou seja: como é possível exaltar a dimensão afro-americana do elenco como se fosse um acontecimento sem precedentes? Onde está o didactismo jornalístico para recordar que o revolucionário Otto Preminger (1905-1986) dirigiu um elenco totalmente afro-americano em Carmen Jones? Lembrando, já agora, que isso não teve chancela da Marvel, mas sim da 20th Century Fox, tendo acontecido, não no mês passado, mas em... 1954!
Na compreensão da complexidade da figuração dos afro-americanos no cinema dos EUA, onde estão também os artigos que recordem o papel decisivo de um actor como Sidney Poitier ao longo das décadas de 1950/60? Isto sem esquecer que Spike Lee, dos mais brilhantes no tratamento das temáticas afro-americanas, possui uma filmografia admirável cuja primeira longa-metragem, Os Bons Amantes, data de 1986.
Entre os filmes sacrificados em toda esta dinâmica está o prodigioso Detroit, lançado no Verão de 2017. Realizado por Kathryn Bigelow, nele se evocam os motins de 1967 naquela cidade americana, em particular os acontecimentos trágicos no Motel Algiers — é uma abordagem tanto mais incisiva e perturbante quanto desvenda o racismo de brancos contra negros como entidade que contamina os mais esquecidos interstícios do quotidiano.
Talentosa retratista das convulsões históricas do seu país, Bigelow, convém lembrar, é a única mulher que já ganhou um Oscar de realização (em 2010, com Estado de Guerra, também eleito melhor filme do ano), mas o seu Detroit foi rasurado de todos os actuais debates — e até dos Oscars, onde não obteve uma única nomeação. O filme, entretanto, saíu em DVD.

sexta-feira, dezembro 15, 2017

O desaparecimento de "Star Wars"

Que está a acontecer com os primeiros filmes da saga "Star Wars", em particular o título fundador, lançado em 1977? Pois bem, num certo sentido, estão a desaparecer: as sucessivas intervenções digitais, apagando ou acrescentando elementos das imagens (e da banda sonora), modificaram muitas cenas das primeiras três longas-metragens (episódios IV, V e VI):
De tal modo que há fãs da saga que, em nome da preservação das características dos originais, se empenham em reconstituir as versões com que os filmes foram lançados nas salas (antes das modificações "impostas" pelas edições em DVD e Blu-ray). O assunto é tanto mais interessante quanto reflecte as perplexidades inerentes a qualquer processo de preservação e restauro do património cinematográfico — neste caso, aliás, com a contribuição contraditória do próprio George Lucas que autorizou tais intervenções depois de, nos anos 80, ter condenado com veemência a "colorização" de clássicos de Hollywood.
O jornal Le Monde fez um esclarecedor ponto da situação — eis o respectivo video, sob o mote: "Porque já não é possível ver a primeira trilogia na sua versão original".

sábado, outubro 28, 2017

Quem se lembra de Elia Kazan?

O título final da filmografia de Elia Kazan chegou, finalmente, ao DVD — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Outubro).

Um aspecto desconcertante das “sociedades de informação” em que vivemos é a paradoxal cumplicidade entre informação, precisamente, e ausência de conhecimento — como se a acumulação de dados gerasse uma perversa desvalorização da memória e da interpretação do passado. Observe-se o modelo publicitário do jovem sempre ocupado com telemóvel e uma infinidade de “gadgets”, mas ignorando a história da humanidade. Nos concursos televisivos, tornou-se mesmo normal reagir a um tema do passado com uma frase patética: “Nessa altura ainda não tinha nascido”. Mozart? Rembrandt? Eça de Queiroz? Que pena, ainda não tinha nascido...
Elia Kazan
(1909-2003)
Questão vasta, sem dúvida, de uma só vez cultural e política — e para a qual não temos tido política cultural, de direita ou esquerda, que arrisque enfrentá-la. No caso do mercado cinematográfico, há um nicho que funciona como esclarecedor sintoma. Assim, a oferta de filmes em DVD (incluindo o Blu-ray) passou a integrar muitos títulos clássicos, mais ou menos “antigos”. Magnífico! Em todo o caso, a indiferença mediática pelo cinema como património faz com que, socialmente, o mundo dos filmes pareça existir apenas em função do “blockbuster” que anda a ser promovido há três meses...
Questão de nicho, repito. Mas o detalhe reflecte os movimentos do todo. Exemplo actual: o lançamento em DVD de O Grande Magnate (1976), de Elia Kazan. Escusado será dizer que, mesmo sendo um inédito em DVD, assinado por um nome incontornável na história de Hollywood, não foi assunto de manchetes. Fica, em qualquer caso, a pergunta: na saturação de imagens que habitamos, quem conserva alguma memória da obra imensa e convulsiva de Kazan?
Estamos, convém lembrar, perante um filme cujo elenco integra nomes como Robert De Niro, Jack Nicholson, Jeanne Moreau, Tony Curtis e Robert Mitchum. Mais do que isso, O Grande Magnate é a adaptação de The Last Tycoon, o romance inacabado de F. Scott Fitzgerald tendo por cenário os bastidores da idade de ouro de Hollywood.
Leio na capa do DVD que a personagem central do produtor Monroe Stahr (De Niro) é uma “caricatura disfarçada de Irving Thalberg, um dos produtores da MGM”. Curiosa visão, não apenas do filme, mas do próprio mundo do cinema. Não há nada de caricatural em Kazan (muito menos em Fitzgerald): esta é uma visão eminentemente trágica da “fábrica de sonhos”, pontuada pelo mais gélido desencanto romântico. Seria a derradeira realização de Kazan (faleceu em 2003, contava 94 anos), simbolicamente encerrando o classicismo de Hollywood.

quarta-feira, agosto 23, 2017

"Material Girl" em novo DVD

É um dos emblemas do universo de Madonna: Material Girl foi também, durante algum tempo, uma canção que ela excluiu dos seus concertos, porventura com receio das leituras "moralmente correctas". Vencido esse complexo, Material Girl integrou a 'Rebel Heart Tour' e, agora, emerge como primeiro cartão de apresentação do DVD da digressão — lançamento a 15 de Setembro.