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sexta-feira, outubro 01, 2021

James Toback
nas margens de Hollywood

Sienna Miller

Um Crime Imperfeito confirma que James Toback continua a ser um cineasta fiel a valores visceralmente clássicos, ao mesmo tempo desafiando os nossos hábitos de consumo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 setembro).

Há uma nostalgia cinéfila em que não me reconheço: já não há filmes como antigamente… Não tenho essa visão pessimista da produção contemporânea, sou mesmo dos que vêem o momento presente do cinema marcado por fascinantes contrastes (e contradições). E considero inconsequentes as queixas nostálgicas que escamoteiam o facto de o cinema existir sempre enquadrado por formas concretas de consumo.
A minha mágoa é de outra natureza: já não há consumo como antigamente… A questão reapareceu-me ao descobrir o filme Um Crime Imperfeito (2017), de James Toback, serenamente à deriva nas profundezas da televisão por cabo (TVCine). Comecei por ceder, confesso, à mais fácil memória nostálgica: eis o tipo de filme que, por exemplo, nos tempos heróicos do cinema Quarteto, na rua Flores de Lima, em Lisboa, sob a direcção de Pedro Bandeira Freire, seria um pequeno grande acontecimento, por certo gerando entusiasmo ou desilusão (aliás, entusiasmo e desilusão) entre os seus consumidores…
Bem sei que o Quarteto pertence a uma conjuntura que, por definição, não se repete (inauguradas em 1975, as suas quatro salas encerraram em 2007). O que se perdeu é do domínio da atenção. Atenção a quê? A muitos filmes que são postos a circular. Tristemente, há todo um aparato de marketing indiferente, não apenas a qualquer forma de cinefilia, mas às próprias especificidades dos filmes, agora tratados como “produtos”. No interior desse fechado sistema ideológico, o único dado que distingue o filme de Toback da mais recente banalidade gerada pelos estúdios Marvel são os respectivos orçamentos promocionais.
Enfim, não simplifiquemos: Um Crime Imperfeito é um objecto selvagem, resistente a qualquer modelo de marketing. Aliás, Toback, realizador e argumentista (neste caso, também intérprete), continua a ser aquilo que podemos chamar um “marginal do centro”. Entenda-se: um profissional obviamente ligado ao sistema de Hollywood — obteve uma nomeação para o Oscar de melhor argumento original graças ao seu trabalho em Bugsy (1991), de Barry Levinson —, mas que sempre assinou filmes atípicos, apostando em variações mais ou menos surreais sobre matrizes clássicas, sobretudo do policial e do melodrama.
Na sua filmografia encontramos mesmo um objecto de culto da década de 70, Fingers (1978), entre nós lançado como Melodia para um Assassino. Centrado num pianista a contas com uma família disfuncional (é um dos grandes papéis de Harvey Keitel), a sua bizarra reinvenção do “thriller” daria origem a um “remake” francês, sob a direcção de Jacques Audiard, com o título De Tanto Bater o Meu Coração Parou (2005). Um Crime Imperfeito possui também essa capacidade de gerar uma insólita experiência sensorial a partir daquele que é, para todos os efeitos, um cliché do género: uma mulher — uma actriz, interpretada por Sienna Miller — vive assombrada por um crime que cometeu, começando por duvidar se realmente aconteceu ou tudo não passou de um pesadelo…
Em boa verdade, o que conta é menos o enigma policial (desfeito ao fim de poucos minutos) e mais a celebração de uma estética de assumidos excessos “barrocos”, alheia a qualquer verosimilhança naturalista. Toback faz mesmo o genérico do seu filme com a presença obsessiva do tríptico O Jardim das Delícias Terrenas (1504), de Hieronymus Bosch (pintura de que existe também uma reprodução na sala da protagonista), recorrendo a várias peças musicais — com destaque para o derradeiro andamento da Sinfonia nº 7 (“Leninegrado”), de Dmitir Shostakovich — para criar uma ambiência “operática” em que espontaneidade e artifício parecem ser duas faces da mesma moeda.
Sintomático é o invulgar trabalho de Sienna Miller, filmada por Toback quase sempre em grande plano, dir-se-ia a meio caminho entre corpo e fantasma — como se, numa espécie de espelho narrativo, a sugestão de constante improviso coincidisse com uma forma suprema de teatralidade. O que, como é fácil perceber, só acentua a marginalidade de Um Crime Imperfeito: quando prevalece a noção de que o cinema é apenas uma acumulação de “produtos” recheados de efeitos especiais, o valor dos actores e actrizes deixou de pesar nas formas dominantes de consumo.

domingo, abril 19, 2020

Shostakovich, de olhos bem abertos

Dmitri Shostakovich
Depois do Bolero de Ravel, a Orquestra Nacional de França propõe-nos a Valsa nº 2, de Dmitri Shostakovich, em magnífica performance virtual — é a revisitação de um tema que adquiriu especial popularidade através da sua inclusão na banda sonora do filme final de Stanley Kubrick, De Olhos Bem Fechados (1999).

domingo, junho 19, 2016

Shostakovich, sob a sombra de Estaline


Uma nova integral da obra sinfónica de Shostakovich (uma das mais importantes do repertório de música orquestral do século XX) começa a ganhar forma com um segundo disco que o maestro letão Andris Nelsons grava, juntamente com a Boston Symphony Orchestra, para a Deutsche Grammophon. Nelsons já tinha antes gravado Shostakovich. E data, por exemplo, de 2012 uma edição, pela Orfeo, de uma Sinfonia Nº 7, com a City of Birmingham Symphony Orchestra. Mas em 2015, com a orquestra de Boston, encetou um ciclo de gravações ao editar uma interpretação da Sinfonia Nº 10, numa série que apresenta como título “Under Stalin’s Shadow”. Para breve está anunciado novo disco, com as sinfonias números 6 e 7. Para já, podemos ouvir, num CD duplo, as sinfonias números 5, 8 e 9, assim como a suite de Hamlet. E vale a pena notar, desde logo, como entre as três sinfonias passam ecos do jogo de convulsões e contrastes que foi o relacionamento (difícil) do compositor com o regime de Estaline que é, de resto, tema do mais recente livro de Julian Barnes (que acaba de ser lançado entre nós)..

Estreada em 1937, a Sinfonia Nº5 representou um momento de reaproximação entre Estaline e a música de Shostakovich após o atribulado “caso” que se seguiu à apresentação da ópera Lady Macbeth de Mtensk, da qual se diz que o ditador saiu após o primeiro ato. Um artigo, no Pravda, falou então de “caos” em vez de música. E nas duas semanas seguintes outros dois textos apontariam exemplos de “formalismo” na música do compositor. Ou seja, o horror indesejado por um regime que afunila a arte como nada senão um instrumento de uma ideia. Shostakovich trabalhava então na sua Sinfonia Nº 4, que acabaria por deixar na gaveta para estrear apenas em 1961, bem depois da morte de Estaline.

Com primeira apresentação em 1943, na sequência da aclamada Sinfonia nº 7 (que refletia a história da resistência de Leninegrado ao cerco alemão, representando assim uma afirmação de confiança na vitória), a Sinfonia Nº 8 respira uma pulsão trágica que lhe valeu, na estreia, um acolhimento completamente diferente da precedente. A sinfonia chegou a estar integrada numa lista de obras proibidas pelo poder russo a partir de finais dos anos 40, sendo reabilitada apenas em meados dos anos 50. O trágico e longo adágio que abre a sinfonia registava então um um eco de um sofrimento maior que não se explica apenas pelos momentos dramáticos vividos em tempos de guerra.

A Sinfonia Nº 9, originalmente apresentada como uma obra coral e majestosa, pensada para assinalar a vitória final na II Guerra Mundial, acabou por conhecer outro destino. Mais simples, mais direta, mais curta, celebrou o fim do terror, mas com uma luminosidade invulgar e outro ânimo. E assinalaria o fim de uma era já que, quando voltou a estrear uma sinfonia, o fez só depois da morte de Estaline.

domingo, abril 13, 2014

Um ciclo quase concluído


Eis que surge o décimo volume de uma das mais aclamadas “integrais” (ainda em construção) da obra sinfónica de Shostakovitch. Interpretadas pela Royal Liverpool Philharmonic Orchestra, sob direção do russo Vasily Petrenko, estão já gravadas e editadas em disco 14 das 15 sinfonias que o compositor assinou entre 1924 e 1971, faltando apenas lançar um registo da Sinfonia Nº 13. Esta série, que Petrenko e a orquestra de Liverpool têm vindo a editar pelo catálogo da Naxos desde 2009 acolhe agora a Sinfonia Nº 14, originalmente estreada em 1969 e dedicada a Benjamin Britten, que a dirigiria numa interpretação no Reino Unido um ano após a sua primeira apresentação (na então Leninegrado), durante a edição de 1970 do festival de Aldeburgh. Mais próxima de uma ideia de ciclo de canções que do mais “tradicional” formato de uma sinfonia, a 14ª de Shostakovich parte de 11 poemas para deles fazer nascer uma obra orquestral e vocal. As palavras são assinadas por nomes como os de Frederico Garcial Lorca. Guillaume Apolinnaire, Wilhelm Küchelbecker e Rainer Maria Rilke, entre elas surgindo retratos e reflexões sobre a morte. Em 1969 o compositor descreveu a obra como uma luta pela libertação da humanidade, assim como “um protesto contra a morte e uma chamada de atenção para que se faça uma vida honesta, decente e nobre”. Tendo em mente, originalmente, a composição de uma oratória, Shostakovich acabaria por criar a partir destes poemas uma sinfonia para vozes, cordas e percussão. Nesta nova gravação Petrenko junta a si e à orquestra as vozes de Gal James (soprano) e Alexander Vinogradov (barítono), a estes cabendo um reencontro com as tradições dos textos para russo, tal e qual se escutou na estreia da sinfonia, em 1969.

domingo, novembro 24, 2013

E assim Shostakovich venceu Estaline


Um dos mais evidentes exemplos da surdez totalitária promovida pelo regime soviético sob a liderança de Estaline pode ser representado pela história da Sinfonia Nº 4 de Dmitri Shostakovich. Hoje reconhecida como uma das suas mais importantes obras orquestrais, foi na verdade silenciada por alturas do seu nascimento natural, acabando por ser apenas estreada em 1961, anos depois da morte do ditador e já sob um diferente clima para as artes na URSS. Consideravelmente distinta das obras de mais evidente cariz celebratório que havia projetado nas duas sinfonias anteriores (ambas concluídas em finais dos anos 20), Shostakovich trabalhava numa nova sinfonia quando o Pravda (o órgão oficial do Partido) apresentava um editorial não assinado (ou seja, de peso “oficial”) que se crê ter surgido após a reação de insatisfação de Estaline ao assistir uma representação da ópera Lady Macbeth de Mtensk, da qual se diz que saiu após o primeiro ato. O artigo falava de “caos” em vez de música. E nas duas semanas outros dois textos apontariam exemplos de “formalismo” na música do compositor. Ou seja, o horror claramente indesejado num estado que afunila a arte como nada senão um instrumento de uma ideia.

Shostakovich continuou a compor. Mas já perante uma data para a estreia, em São Petesburgo (então Leninegrado) em finais de 1936, acabaria por cancelar a apresentação da obra, publicando um artigo onde prestava justificações que, mais tarde, seriam refutadas. Tinha sido vetada, não necessariamente voluntariamente retirada para uma eventual reflexão e possível revisão. Pressionando a retirar da programação a estreia da sinfonia, o diretor da orquestra terá pressionado o compositor nesse sentido, soube-se nos anos 60 pelo relato do então secretário de Shostakovich.

Durante a guerra perdeu-se o manuscrito inicial. Mas de fragmentos de esboços Shostakovich refez a partitura em 1946, chegando mesmo a apresentar então particularmente uma versão para dois pianos. Só depois da morte de Estaline (em 1953) considerou dar vida a esta obra silenciada desde 1936. E em 1961 viu finalmente a luz do dia em Moscovo, conhecendo depois primeira audição internacional na edição de 1962 do Festival de Edimburgo. Reveleva-se uma obra de um fulgor impressionante nos dois mais longos andamentos exteriores (o primeiro e o terceiro), pelo meio surgindo um outro, mais curto, claramente influenciado pela música de Mahler, que Shostakovich então estudava atentamente. A obra revela evidentes sinais de busca de uma linguagem muito pessoal e representa a afirmação de uma visão na qual reconhecemos claramente as marcas da personalidade do compositor. E assim a voz do compositor sobreviveu ao silêncio desejado pelo ditador.

A presente gravação, assinada por Vasily Petrenko com a Royal Liverpool Philharmonic Orchestra, é mais uma contribuição (em concreto a penúltima) para uma integral sinfónica do compositor que a Naxos tem vindo a editar nos últimos anos e que é já reconhecida como uma abordagem de referencia à obra orquestral de Shostakovich.

quinta-feira, dezembro 20, 2012

Os melhores discos de 2012 (N.G.)

É uma tradição que o Sound + Vision respeita anualmente. E a partir de hoje as listas dos melhores do ano vão surgir por aqui. Começamos pelos discos que mais marcaram um ano de muitas (e boas) edições discográficas. E os melhores são...

Depois da promessa sugerida no impressionante Learning, em 2012 Mike Hardeas confirmou em Put Your Back N2 It a visão e a personalidade de um autor que se encontrou a si mesmo num espaço pleno de verdade e personalidade. Sem perder as características, temas e demandas, a voz criativa do seu projeto Perfect Genius avançou e, para lá das fronteiras lo-fi, encontrou outra nitidez, fazendo deste seu segundo álbum o “grande” acontecimento discográfico pop/rock (e cercanias) do ano. Um ano que mostrou, sobretudo, interessantes casos de cruzamentos de linguagens, em discos que, aos poucos, definem o início do século XXI como um tempo de diálogos e cruzamentos. Vejam-se os casos de Gold Dust, onde Tori Amos revisita com um a orquestra as canções de 20 anos de discos e nelas encontra novos pontos de vista. Ou Rework onde, sob curadoria de Beck, uma série de músicos (de Amon Tobin a Johann Johansson) procuram olhares pessoais sobre momentos marcantes da obra de Philip Glass. Ou ainda Dr. Dee, onde Damon Albarn (depois da experiência de Monkey: Journey To The West), regressa ao espaço da ópera contemporânea, desta vez assinando aqui o seu primeiro disco a solo. Do balanço do ano destaque-se ainda a proeminência de Frank Ocean e Miguel, novas vozes que definitivamente se afirmam no espaço do R&B, também aqui em franco diálogo com outras referências (em ambos morando aquele olhar transversal que fez a diferença para Prince nos anos 80). De 2012 ficam ainda as memórias do melhor álbum dos Pet Shop Boys desde os dias de Behaviour, a “estreia” (sim, porque já tinha editado antes sob outro nome) de Lana del Rey – que criou uma “estrela” nos moldes dos tempos dos ícones de outrora -, das melhores electrónicas que ouvimos ao longo do ano em Fin de John Talabot e o belíssimo regresso (agora a solo) do ex-Blue Nile Paul Buchanan. A história discográfica do melhor do ano podia ainda juntar nomes como os de Patti Smith, St. Etienne, Andrew Bird, David Byrne com St Vincent, Brian Eno, Ombre, Grizzly Bear, Lemonade, Jack White, Beach House, Leonard Cohen ou Matthew Dear. Mas um Top 10 é um Top 10 e, assim sendo, aqui fica...

1. Perfume Genius, ‘Put Your Back N2 It’ (Matador Records)
2. Tori Amos, ‘Gold Dust’ (Deutsche Grammophon)
3. Pet Shop Boys, ‘Elysium’ (Parlophone)
4. Philip Glass, ‘Rework’ (Orange Mountain Music)
5. Frank Ocean, ‘Channel Orange’ (Def Jam)
6. Miguel, ‘Kaleidoscope Dream’ (Epic Records)
7. Lana del Rey, ‘Born To Die’ (Universal)
8. Damon Albarn, ‘Dr Dee’ (EMI Music)
9. John Talabot, ‘Fin’ (Permanent Vacation)
10. Paul Buchanan, ‘Mid Air’ (Essential Newsroom)

Nacional

Tirando o álbum da Sétima Legião, que é uma antologia de ‘memórias’, é curioso reparar que o melhor do ano editorial português ficou por conta de editoras independentes, acentuando uma tendência que se vem a acentuar nos anos mais recentes. Do panorama destaca-se claramente a estreia em álbum de Moullinex, um dos rostos centrais do catálogo da editora Discotexas, com um disco onde promove um franco (e compensador) diálogo entre a música de dança e o formato da canção, num espaço onde o presente sabe escutar ecos e grandes lições do disco sound, da soul, do funk e da pop. Sem dúvida, a grande surpresa do ano. A memória, além das canções da Sétima Legião (que viram a sua obra ser editada em formato remasterizado, mas ainda sem o tratamento arquivístico que justificava), mora ainda na abordagem de B Fachada, Minta e João Correia ao alinhamento do clássico Os Sobreviventes de Sérgio Godinho. O aprumar da visão de Norberto Lobo (cada vez mais um nome maior no panorama local), o encontro dos The Gift com o piano como voz maior na composição e os diálogos entre a raiz e a modernidade, em sede açoriana, pelo projeto O Experimentar são ainda notas maiores num ano onde convém ainda reter as propostas de DJ Ride, Gaiteiros de Lisboa e o coletivo Orelha Negra.(*)

1. Moullinex, ‘Flora’ (Discotexas)
2. Sétima Legião, ‘Memória’ (EMI Music)
3. B Fachada + Minta + João Correia ‘Os Sobreviventes’ (Mbari)
4. Norberto Lobo, ‘Mel Azul’ (Mbari)
5. The Gift, ‘Primavera’ (La Folie)
6. O Experimentar, ‘Sagrado e Profano’ (O Experimentar)
7. DJ Ride, ‘Life in Loops’ (Optimus Discos)8. Orelha Negra, ‘Orelha Negra’ (VC)
9. B Fachada, ‘Criôlo’ (Mbari)
10. Gaiteiros de Lisboa, 'Avis Rara' (D'Euridice)

Clássica

25 anos depois da sua estreia, a ópera Nixon In China regressou este ano aos palcos e, numa espantosa produção do Met, confirmou essa obra de John Adams como uma das peças maiores da história deste espaço de criação musical (dela falaremos na tabela dos melhores DVD e Blu-ray do ano). Mas de John Adams o ano recorda mais que apenas essa nova vida para a sua obra-prima. E o igualmente fundamental Harmonielehre, de quem havia uma gravação dos anos 80 dirigida por Edo de Waart, conheceu nova gravação, pela mesma San Francisco Symphony, numa direção de Michael Tison Thomas que se destacou claramente como o mais vibrante instante musical do ano discográfico nos domínios da música clássica. Do ano editorial destaca-se ainda a estreia em disco de Out Of Nowhere e Nyx, de Esa Pekka Salonen, parecendo cada vez mais certo que, se perdemos um maestro tão presente em palcos e gravações, passámos a contar com mais um valor maior no panorama da composição do século XXI. Tudo isto num mesmo ano em que Max Richer mostrou como uma editora (neste caso, a Deutsche Grammophon) pode ser também catalisadora de novas visões, ao propor um olhar diferente pelas Quatro Estações de Vivaldi no mais recente volume da série Re-Composed. Em tempo de assinalar os seus 75 anos, Philip Glass estreou duas sinfonias, tendo editado uma gravação da sua empolgante “nona” logo no início do ano. O melhor de 2012 passou ainda por obras para piano de Debussy por Alexei Lubimov e pela abordagem aos concertos para piano de Shostakovich por Menlikov. Simon Rattle gravou uma arrebatadora visão “completa” da nona de Bruckner e Gardiner completou o ciclo de gravações da obra orquestral de Brahms com um belíssimo Ein Deutsches Requiem. Notas ainda para Wagner’s Dream, editado ainda em vida de Jonathan Harvey e o inteligente programa, ao estilo de um recital, de Adès e Isserlis para, de obras de outros compositores, chegar aos Lieux Retrouvèes do primeiro.

1. John Adams, ‘Harmonielehre’ M. Tilson Thomas / San Francisco Symphony (SFS Media)
2. Esa Pekka Salonnen, ‘Out of Nowhere’ Salonen / Finnish Radio Symphony Orchestra (Deutsche Grammophone)
3. Claude Debussy, ‘Preludes’ – Alexei Lubimov (ECM)
4. Max Richter, ‘Recomposed – Vivaldi Four Seasons’, Daniel Hope
5. Philip Glass, ‘Symphony N. 9’ – Bruckner Orchester Linz
6. Anton Bruckner, Symphony N. 9’ – Simon Rattle / Berliner Philharmoniker
7. Thomas Adès ‘Lieux Retrouvées’ – T. Adès + S. Isserlis (Hyperion)
8. Johannes Brahms, ‘Ein Deutsches Requiem’ – J Eliot Gardiner / Orch Revolutionarie et Romantique
9. Dmitri Shostakovich, ‘Piano Concertos’ A. Menlikov / Mahler Chamber Orchestra, dir. Teodor Currentzis (Harmonia Mundi)
10. Jonathan Harvey, ‘Wagner’s Dream’ dir. Martyn Brabbis (Cypress)

(*) Uma lista originalmente publicada incluía o disco a solo de Manuel Fúria, que na verdade só será publicado em 2013.

domingo, junho 17, 2012

Uma obra em construção


Mais um volume na integral da obra sinfónica de Shostakovich por Vasily Petrenko com a Liverpool Royal Philharmonic Orchestra (e o seu coro), uma vez mais pela Naxos. Desta vez, num mesmo disco, as sinfonias números 2 e 15.

Continuamos a acompanhar aquela que – talvez a par com as gravações das cantatas de Bach por John Eliot Gardiner, e uma vez concluída a viagem por Mahler de Pierre Boulez – parece ser a mais entusiasmante integral em curso no dias que correm. Contando já com vários discos lançados, a integral da obra sinfónica de Dmitri Shostakovich [que entre nós surge habitualmente sob a grafia Chostakovich, mas estou acostumado aos hábitos da cultura anglófila e o disco em causa apresenta-o do mesmo modo, pelo que não leve a mal quem assim não o faça] pela Royal Liverpool Philharmonic Orchestra, sob direção do russo Vasily Petrenko tem colhido sucessivos elogios e faz hoje da orquestra inglesa uma evidente “especialista” na obra daquele que é um dos maiores compositores do século XX.

A nova edição junta duas obras de características distintas e criadas em épocas diferentes. Apenas reconhecida como sendo a sua “segunda” sinfonia quando estava prestes a apresentar a terceira, a Sinfonia Nº 2 de Shostakovich surgiu nos seus planos de trabalho em 1926 sob uma encomenda concreta (e estatal), destinando-se a comemorar, no ano seguinte, os dez anos da revolução bolchevique. Apesar do terceiro andamento coral – baseado num texto do poeta “oficial proletário” (como o descreve o booklet) Alexander Bezïmensky, que ao que parece não morava entre a admiração do compositor – a obra espelha uma entusiasmante pulsão experimental, sobretudo visível num primeiro andamento onde um desenho de texturas quase em surdina vai ganhando forma, dali surgindo aos poucos as vozes das cordas e de algo que só emerge de modo ostensivamente visível ao cabo de alguns minutos. Estreada em Moscovo em dezembro de 1927, a sinfonia saiu de cena pouco depois e durante anos não foi interpretada, regressando apenas nos anos 60 em Leningrado (hoje São Petesburgo), quando teve (em 1965) a sua primeira gravação, conhecendo a sua primeira apresentação no ocidente em Londres, em 1969.

Por essa altura estava já relativamente próxima a estreia da Sinfonia Nº 15 (a sua última), que teve primeira apresentação mundial em Moscovo, em janeiro de 1972 sob direção de Maxim, o filho do compositor (que assegurou também a sua primeira gravação). Esta sinfonia, que completa o alinhamento deste disco, expressa o interesse de Shostakovich pela ocasional exploração de técnicas usadas por alguns modernistas, embora sem o desejo de fazer da obra uma seguidora da escola que entretanto havia dominado muita da criação musical europeia. Não seria a sua última obra, uma vez que até 1975 ainda completou seis outros trabalhos. Mas completa com inspiração e fulgor uma das mais importantes obras sinfónicas de sempre.

domingo, maio 20, 2012

Nas entrelinhas de Shostakovich


Os dois concertos para piano de Shostakovich, e uma sonata para piano e violino fazem deste disco, protagonizado pelo pianista Alexandre Menlikov, uma das gravações obrigatórias de 2012.

Dmitri Shostakovich deverá ser um dos melhores exemplos de um compositor em cuja obra se cruzam os ecos de toda uma marcante tradição com o clima da modernidade quando o mundo descobria uma nova forma de pensar e ouvir a música. Juntamente com Mahler e Sibelius partilha o estatuto de maior sinfonista do século XX (Vaughan Williams e Prokofiev sendo também nomes a não descuidar nesse panorama) e foi autor de uma obra absolutamente “maior” entre os seus pares, mesmo sob o peso esmagador da repressão estalinista numa URSS que via a música (como a restante criação artística) como coisa que não morava necessariamente no espaço da liberdade criativa de cada um, mas antes peça numa agenda concreta devidamente discutida em comités. Shostakovich viveu episódios de confronto com o poder, a relação da sua música com a história política do seu país e do seu tempo sendo talvez das mais documentadas (e interessantes) do século passado.

As obras que encontramos neste novo disco (não só um dos melhores de 2012 até ao momento mas também uma das melhores entre as mais recentes gravações de peças do compositor) não representam contudo momentos de choque ou cedência na relação com o poder, mas uma delas (o Concerto para Piano Nº 2) traduz o sentido de ironia que, por vezes, habitava nas entrelinhas, levantando hipóteses de segundas leituras, como tantos outros criadores fizeram sob jugo repressivo. O pianista Alexandre Menlikov (que para a Harmonia Mundi tinha já gravado prelúdios e fugas de Shostakovich) escolhe aqui juntar os dois concertos para piano, completando o alinhamento com a Sonata para violino e piano op. 134 (com a violinista Isabelle Faust), traduzindo desde logo as escolhas as características de uma personalidade criativa de horizontes largos, atenta tanto às heranças da memória como ao experimentar de novos idiomas.

Os dois concertos são expressões de épocas distintas. O primeiro, estreado em 1933, reflete ainda os ecos de um tempo de excelência musical na vida moscovita. O booklet recorda um tempo em que compositores como Bartók ou Mihaud apresentavam ali as suas obras, um Wozzek era encenado em Leninegrado (hoje São Petesburgo) e os maestros Otto Klemperer ou Bruno Walter ali dirigiram concertos. Shostakovich criou o Concerto para Piano, Trompete e Orquestra tendo em conta esta plateia, revelando a música uma multidão de referencias (destinadas aos conhecedores) que passam por Beethoven, Bach ou Weber, os mais recentes Mahler, Rachmaninov e Prokofiev e ainda os espaços das heranças da música folk. Composto em 1957 para o 19º aniversário do seu filho Maxim – e estreado por ele mesmo na sua atuação de fim de curso no conservatório de Moscovo, o Concerto Para Piano Nº 2 foi tido pelo próprio Shostakovich como uma obra menor, visão que a interpretação absolutamente exemplar de Menlikov, acompanhado pela Mahler Chamber Orchestra aqui demonstra. O pianista fez mesmo questão de colocar esta obra na abertura do alinhamento do disco, dando justificada visibilidade a uma obra que, como explica o texto assinado pelo próprio, provocou a imaginação daqueles que viveram naquele lugar e naquele tempo. Simplesmente assombroso.

quarta-feira, dezembro 07, 2011

'A Arca Russa' hoje na Gulbenkian



Hoje, pelas 19.00 horas, no Grande Auditório da Gulbenkian, Lisboa tem mais uma oportunidade para ver em sala um filme que não conheceu estreia comercial entre nós. A Arca Russa, filme de 2001 de Alexander Sokurov, abre assim um pequeno ciclo de cinema que se integra no programa ‘Outono Russo’ da presente temporada de música. Rodado nas salas do Museu Hermitage, em São Petesburgo, A Arca Russa ganhou reconhecimento imediato pelo feito de viver de um único plano-sequência de cerca de hora e meia, a caminhada através dos tempos e das salas do palácio, acompanhada por uma narrative que a dada altura parte do encontro de duas figuras, encontrando uma multidão de figurantes, entre os quais três orquestras, uma companhia de opera (interpretando Shostakovich) e o maestro valery Gergiev. O filme é acima de tudo um olhar não apenas pelos espaços, mas por perto de 300 anos da história (e cultura) da Rússia, que acompanhamos entre diálogos e os vários quadros encenados entre as salas por onde o olhar da câmara passa.

Ainda hoje, e pelas 21.00, o mesmo ciclo de cinema propõe: Shostakovich against Stalin: The War Symphonies, um documentário de 1997 de Larry Weinstein sobre as sinfonias que Shostakovich compôs durante a II Guerra Mundial e o clima nada pacífico que caracterizou o seu relacionamento com Estaline, que então dirigia os destinos da URSS.

Ambos os filmes são de entrada livre.

domingo, novembro 13, 2011

Música e poder


Mais um episódio numa história que está a valer a pena acompanhar. Vasily Petrenko dirige a Royal Liverpool Philharmonic Orchestra as sinfonias números 6 e 12 de Shostakovich. A edição é da Naxos.

A história da música gravada elege, de tempos a tempos, os resultados que o sugiram, ciclos e integrais que se transformam em verdadeiras obras de refêrencia. É o que se começa a sentir já, tamanha que é a aclamação crítica e inclusivamente expressão mediática (quer em espaço dedicado em páginas de revistas da especialidade quer mesmo na criação de anúncios a promover cada novo título) que tem já a integral sinfónica de Shostakovich (ainda em curso), em novas gravações pela Royal Liverpool Philharmonic Orchestra (RLPO), sob direcção do jovem maestro russo Vaisily Petrenko. O novo título (de uma integral que tem já editadas gravações das sinfonias números 1, 3, 5, 8, 9, 10 e 11) junta as sinfonias nº 6 e 12, ambas tendo nascido de celebrações da figura de Lenine e da revolução de 1917.

Composta e estreada em 1939 a Sinfonia Nº 6 surgiu, na origem, de uma relação com o poema Vladimir Ilich Lenine, de Vladimir Mayakovsky (1883-1930), um jovem poeta cuja obra traduz uma das expressões maiores do futurismo russo. Quando, meses depois de a anunciar, Shostakovich finalmente a apresentou, aludiu ao poema apenas de uma forma abstracta, a música tomando os seus sentidos próprios sem a necessidade estrita de seguir um programa. A estreia, em Outubro de 1939 resultou num evidente sucesso junto da plateia (e das demais que a viram interpretada logo depois por outros lugares), mas recebeu pouco entusiasmo oficial (talvez pela forma menos clara com que o objecto central da obra – a figura de Lenine – tenha acabado longe de ser retrato de coisa definida numa obra com uma dimensão melancólica que parece sobretudo traduzir tempos de incerteza (a estreia ocorre semanas após a invasão da Polónia pelos alemães e pelo consequente eclodir da II Guerra Mundial).

Mais entusiasmada foi a resposta oficial à Sinfonia Nº 12, de 1961. Surgida após dois anos de trabalhos de menor envergadura (entre os quais música para cinema e ciclos de canções), a obra parte de uma evocação concreta de episódios a revolução bolchevique., daí o seu sub-título O Ano de 1917. O compositor, que tinha recentemente aderido ao “partido”, vivia um momento de relacionamento diferente com as estruturas do regime, uma calma depois e antes de nova tempestade. A expressão de uma ideia de programa oficial no quadro de uma obra sinfónica foi talvez uma das razões pelas quais, apesar dos aplausos locais, acabou reconhecida como um trabalho menor. Não faltam aqui marcas de uma identidade “patriota” que o compositor explorava igualmente em bandas sonoras de um cinema que era frequentemente veículo de propaganda, a expressiva interpretação de Petrenko deixando bem sublinhadas estas marcas de “época” que hoje fazem desta obra um exemplo de cruzamento entre ordem política e criação artística.

Podem ler sobre outras edições de discos deste ciclo Shostakovich protagonizado por Vasily Petrenki em textos já publicados no Sound + Vision aqui:

Sinfonias Nº 1 e 3 (Abril de 2011)
Sinfonia Nº 10 (Fevereiro de 2011)
Sinfonia Nº 8 (Dezembro de 2010)