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sábado, novembro 15, 2025

Cézanne entre nós

Paul Cézanne
Quatro Maçãs (1880-81)

Para onde vai a política que desistiu de falar de cultura? Alguém está a pensar em termos de política cultural? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 outubro).

Enquanto os políticos, nas televisões, continuam a argumentar em função daquilo que outros políticos disseram, também nas televisões, os seus jogos florais acontecem como se a cultura não existisse. Não a cultura dos prémios, das efemérides ou do prestígio que a todos reconforta. Apenas a cultura enquanto facto (também) político.
Discute-se o Orçamento Geral de Estado, os cidadãos vão eleger um novo Presidente da República, mas a expressão “política cultural” foi rasurada de intermináveis debates aprisionados nas suas penosas redundâncias. Os analistas políticos praticam o mesmo esquecimento, ocupados que estão a decifrar se o espirro de um político incauto é de esquerda ou de direita — sem que isso os impeça de fazer um intervalo nas suas performances para surgirem como comentadores do futebol, aparentemente, importa reconhecê-lo, com uma postura francamente mais feliz e comunicativa.
Sendo televisiva — porque a política se acomodou nas lógicas novelescas dos pequenos ecrãs —, a questão está longe de ser banalmente programática ou comunicacional. No seu limite mais trágico, de que já não estamos muito distantes, a rarefação da cultura (a começar pela palavra “cultura”) na saturação de análises políticas em que somos obrigados a viver envolve algo mais fundo, infinitamente mais perturbante. A saber: o esvaziamento cultural do espaço público corresponde a uma desvalorização implícita das singularidades dos gestos artísticos — e, por fim, ao assassinato simbólico da arte e do seu desejo.
Muitos criadores, sobretudo os mais jovens, falam mesmo do seu trabalho como se estivessem a cumprir um caderno de encargos alheio a qualquer risco artístico. Aparecem nas televisões e limitam-se a fornecer um inventário de “temas” que satisfaçam as modas mediáticas, da defesa de alguma minoria ameaçada até à celebração da liberdade. Não que uma coisa e outra não justifiquem atenção e empenho. Resta saber o que aconteceu quando já não há pensamento activo nem perturbação genuinamente artística — apenas um obsceno moralismo universal disfarçado de autoridade artística. Lembremos, por isso, aquilo que a personagem de Julia Roberts (no filme Depois da Caçada) diz a uma jovem que sente o seu conforto posto em causa pela complexidade do mundo à sua volta: “Nem tudo é suposto deixar-te confortável.”
A postura artística é, por princípio, arriscada, incerta e vulnerável. Se não o for, em boa verdade já não tem nada de artístico e, por estes dias, apenas serve para alimentar os “talk shows” televisivos em que, cinco vezes por semana, são reveladas obras-primas de coisa nenhuma. Num belíssimo ensaio publicado em 1945, “A dúvida de Cézanne”, Maurice Merleau-Ponty ensinava-nos algo bem diferente, lançando, assim, a sua reflexão sobre o trabalho do pintor: “Eram-lhe necessárias cem sessões de trabalho para uma natureza morta, cento e cinquenta sessões de pose para um retrato. Aquilo que chamamos a sua obra não era para ele mais do que o ensaio e a aproximação da sua pintura.”
O artista é aquele que nos convoca, não para partilhar uma satisfação consumista, antes desnudando a insatisfação existencial que o próprio desejo criativo transporta. O artista é político não por exprimir o que quer que seja vindo da classe política (mesmo dos seus membros mais talentosos), mas porque pensa, age, pinta, escreve ou filma fora dos parâmetros dessa classe e do seu labor. Ainda Merleau-Ponty: “Cézanne não considerou ser seu dever escolher entre a sensação e o pensamento, nem entre o caos e a ordem. Ele não quer separar as coisas fixas que surgem ao nosso olhar da sua maneira fugaz de aparecer, ele quer pintar a matéria a tomar forma, nascendo a ordem através de uma organização espontânea.”
Perdemos o gosto dessa (outra ideia de) ordem que os objectos artísticos contêm ou podem conter. Nos discursos políticos instalou-se mesmo um misto de vergonha intelectual e falso pudor que, para satisfazer as muitas formas de ignorância potenciadas pelo politicamente correcto, repele a palavra “ordem” como algo que nos faz perder o mundo. Assim se esquece que a arte, na sua desordem interrogativa, é também uma maneira de pressentir uma possível reordenação do mundo. “Mais Cézanne nos ecrãs de televisão” — eis uma sugestiva palavra de ordem.

domingo, novembro 02, 2025

A herança de Hannah Arendt

Fotograma do filme Vida Activa: O Espírito de Hannah Arendt (2015)

O que é o espaço público da vida política? Dentro dele, que lugar existe (ou não) para os cidadãos que somos? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 outubro).

A revista francesa Philosophie Magazine acaba de lançar um número especial dedicado a Hannah Arendt (1906-1975). Nele encontramos uma antologia multifacetada, incluindo citações, textos de análise e entrevistas com estudiosos da obra de Arendt, celebrando a extrema e perturbante actualidade da sua obra. Entenda-se: não uma “aplicação” simplista do seu pensamento ao nosso século XXI, mas uma releitura crítica da sua fascinante pluralidade argumentativa, sem esquecer que tal pensamento não pode ser dissociado do contexto geo-político em que os nazis puseram em marcha o Holocausto, nessa medida envolvendo o estudo dos totalitarismos antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial.
As propostas de reflexão são tanto mais interessantes quanto, mesmo quando não o explicitam, ecoam uma fundamental disponibilidade intelectual que vai pontuando a obra de Arendt. A saber: o desejo de libertar a política — enquanto pensamento e acção — da dicotomia compulsiva “direita/esquerda”. Escusado será dizer que a resistência às facilidades de tal dicotomia não se confundem com qualquer forma de fusão, que seria pura confusão, dos ideários dos diferentes adversários políticos.
O que está em causa é a possibilidade de pensar além (porventura aquém) da sua pressão ideológica e, hoje em dia, mediática, infelizmente dominante no espaço televisivo. A esmagadora maioria das “análises” que acompanhamos no pequeno ecrã aplicam a fórmula “direita/esquerda”, não para tentar compreender a dinâmica das ideias políticas, apenas para avaliar se tais ideias satisfazem ou não a fórmula dicotómica enunciada antes do próprio conhecimento dos factos e das suas nem sempre previsíveis dialécticas.
Numa das entrevistas deste número da revista, Roger Berkowitz, filósofo e professor do Bard College (Nova Iorque), fala, em particular, do que significa “defender uma certa ideia da América” face à presidência de Donald Trump. A esse propósito, analisa os prolongados efeitos da acção da “nova elite” que, na sequência das convulsões da década de 1960 contra as elites conservadoras, se apresentou como uma entidade que sabe “tudo sobre tudo”, tentando impor “novas normas para todos”.
Berkowitz recorda que semelhante ditadura do novo (a expressão é apenas minha) “é o que Hannah Arendt critica, por exemplo, na vontade dos militantes dos direitos cívicos imporem pela força que os autocarros escolares se abram à diversidade racial, sobrecarregando as crianças com a reparação do fardo da segregação herdado do passado” — sem esquecer, repito, que tudo isto deve ser citado em função de uma conjuntura americana vivida há 60 anos.
De qualquer modo, Berkowitz reflecte também sobre o presente de uma certa cultura política “liberal” (as aspas são dele), prolongando o seu raciocínio com uma alusão muito pessoal: “Sou favorável ao aborto, mas não pretendo impor os meus pontos de vista aos que não pensam assim. Sou favorável à mudança de género, mas não pretendo impor a toda a gente a ideia segundo a qual o género não existe. Acima de tudo, não estou a afirmar que aqueles que discordam de mim são racistas sexistas e transfóbicos que deviam ser excluídos do debate público.”
A herança de Hannah Arendt não pode ser separada deste misto de agilidade e contundência — e, nessa medida, do conceito (e, sobretudo, das práticas) daquilo a que damos o nome de espaço público. Recordando Thomas Jefferson, escreveu ela em 1967, no seu Ensaio sobre a revolução: “O que, segundo ele, constituía o perigo mortal para a república era que a Constituição tivesse conferido todo o poder aos cidadãos sem lhes proporcionar a possibilidade de serem republicanos e de agirem enquanto cidadãos.”
O que nos encaminha para uma pergunta que assombra as nossas democracias: porque é que o único espaço público activo, diariamente activo, passou a ser o espaço televisivo? Para lá do afunilamento dos pensamentos, não estará o mesmo espaço a promover uma noção meramente virtual da consciência política, sustentada pelo fluxo quotidiano de imagens sem imaginação? Resta saber se há algum político com coragem para pensar sem se submeter às regras desse espaço, mas também não desistindo das suas potencialidades democráticas.

segunda-feira, outubro 13, 2025

Este é o país onde a televisão nunca existiu...

"Zen for TV", Nam June Paik, versão de 1976
[ © Nam June Paik Estate ]

Em Portugal quase ninguém arrisca pensar o imenso poder cultural das televisões. Até quando? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 outubro), com o título 'A televisão nunca existiu'.

Pergunto-me muitas vezes porque é que, sendo Portugal um país que tem um território televisivo saturado de ficções totalmente formatadas (novelas e afins), contaminado por um desavergonhado anti-humanistmo (Big Brother e derivados), enfim, um território que promove jogadores, treinadores e dirigentes do futebol a filósofos quotidianos de coisa nenhuma (jogo a jogo), porque é que num país assim ocupado por tanto mediocridade comunicacional as reflexões sobre o papel social da televisão quase desapareceram do espaço mediático. Repito (para não confundir nem melindrar os que, com todo o mérito, continuam a reflectir sobre o assunto): quase desapareceram...
Há pouco mais de trinta anos, no período de afirmação dos canais privados, alguém com importantes responsabilidades editoriais explicava-me que era assim porque “os críticos de cinema não percebem nada de televisão”. Recordo com humor tal invectiva. Aliás, agora, com a proliferação exponencial de “influencers” que se apresentam como críticos de cinema, até poderíamos acrescentar, com propriedade, que há um sector imenso de críticos de cinema que não percebem nada de... cinema.
Não estou a caricaturar. Porquê? Porque tudo isto, das tendências mais esmagadoras aos detalhes mais irónicos, decorre de algo muito mais fundo, bastante mais gravoso para as nossas vidas e, para usar uma expressão voluntariamente majestosa, para a nossa consciência colectiva. A resistência a debater as muitas atribulações do espaço televisivo não pode ser dissociada de uma demissão (quase) global da discussão da cultura em geral, logo também da educação — até porque, mesmo não esquecendo as coisas inteligentes que (ainda) podemos consumir, estamos a ser deseducados por muitas formas de fazer televisão.
Observe-se, a esse propósito, a indiferença global da classe política, direitas e esquerdas confundidas. Para lá da pequena agitação anual em torno das percentagens decimais que se acrescentam (ou retiram) ao orçamento da cultura, o pensamento político não dá mostras de reconhecer que os valores culturais dominantes passaram a ser encaminhados, por vezes impostos, pelos valores que dominam a própria actividade televisiva. Essa indiferença resulta, aliás, de uma crescente dependência dos discursos políticos em relação às suas formas de representação televisiva. No limite mais obsceno de tais práticas, há muitas intervenções de políticos que, no pequeno ecrã, elaboram as suas ideias (ou a falta delas) a partir de referências a intervenções de outros políticos... noutros momentos televisivos.
Série documental da BBC
(2020-21)
Quer isto dizer que ninguém (enfim, quase ninguém) dá a devida importância ao facto de a televisão — com todas as suas diferenças internas — existir como um elemento nuclear da configuração, não apenas do confronto de ideias políticas, mas do funcionamento de todas as dinâmicas sociais. Vivemos todos os dias pela televisão e, não poucas vezes, através da televisão, ao mesmo tempo que nos comportamos como se a televisão não existisse. Nem sequer damos atenção ao facto sintomático de alguém como Donald Trump desenvolver toda a sua estratégia anti-democrática através da televisão e, cada vez mais, contra aquilo que na televisão resiste à manipulação das consciências.
Os gritos histéricos em defesa da “liberdade de expressão” são escassos (mesmo quando servem de munição para alguns clips televisivos). O que tem acontecido nos EUA, com o afastamento de figuras emblemáticas dos “talk-shows” mais críticos da administração Trump, está muito longe de ser um bailado de piadas mais ou menos provocatórias, ou um mero jogo de vaidades. Afinal de contas, Trump chegou onde chegou em grande parte através de muitos anos de uma presença insinuante no pequeno ecrã — entenda-se: em todo o tecido social americano.
Não que o protagonismo televisivo seja um método de fabricação de ditadores. Sugerir isso seria duplicar o maniqueísmo compulsivo que passou a contaminar muitos “debates” televisivos. Em todo o caso, seria tempo de perguntarmos se só nos restam políticos que concebem a sua presença televisiva como um teatro cínico para conquistar os eleitores. Ou se ainda há políticos com serenidade para pensar, e ajudar a superar, o esvaziamento cultural do país — sem esquecer que não é possível fazê-lo sem pensar também o papel fulcral da televisão.

sexta-feira, outubro 03, 2025

sexta-feira, setembro 05, 2025

Trump e o uso da força
— um video do senador Adam Schiff

Mais um video do senador Adam Schiff sobre o comportamento político de Donald Trump. Desta vez, a questão central decorre do facto de, provavelmente, Trump e os seus seguidores admitirem que o Presidente não reconhece limites ao (seu) uso da força — conciso e inquietante.

 

domingo, agosto 17, 2025

20 anos na companhia de Vladimir Putin

Com produção de Adam Westbrook, eis um video do New York Times sobre os jogos diplomáticos de e com Vladimir Putin. Publicado há cerca de três anos, nele se faz o balanço breve (3 min.), mas eloquente, das relações dos líderes do "mundo ocidental" com o novo czar russo — vale a pena rever, atentamente. Para contrariar, pelo menos, a ideologia televisiva que tende a resumir a complexidade do mundo através do que aconteceu nas últimas 24 horas...

sexta-feira, agosto 08, 2025

Bob Woodward
— uma análise do comportamento de Trump ("patético")

Autor da investigação do escândalo Watergate, com o seu colega Carl Bernstein (escândalo que acabaria por pôr fim à presidência de Richard Nixon, em 1974), Bob Woodward continua a ser um observador paciente e rigoroso da cena política noprte-americana e, nos últimos anos, do "reinado" de Donald Trump — The Trump Tapes (20 horas de entrevistas gravadas com Trump) é um exemplo esclarecedor da sua admirável saga jornalística.
No dia 6 de agosto, Woodward esteve na MSNBC, em diálogo com Ari Melber, para analisar as mais recentes manifestações do "patético" comportamento de Trump — eis alguns breves minutos de uma maneira exemplar de conversar em televisão.

terça-feira, agosto 05, 2025

O caso Epstein [ponto de situação]

No labirinto do caso Epstein, os ecrãs estão a desempenhar um papel vital — entenda-se: contrastado, contraditório, um verdadeiro palco das convulsões políticas que estão a acontecer. Nessa dinâmica, a acumulação de factos comprometedores para a administração Trump (incluindo a inesperada transferência de Ghislaine Maxwell, condenada por cumplicidade com Epstein, para uma prisão mais "ligeira") tem suscitado muitas tentativas do próprio Presidente dos EUA no sentido de desviar a atenção do caso. Eis um ponto de situação, na noite de segunda-feira, por Nicolle Wallace, no canal MSNBC.
 

domingo, agosto 03, 2025

Para compreender a política brasileira

Apocalipse nos Trópicos: Brasília como símbolo nuclear de todo um país

Petra Costa acompanhou o confronto entre Lula da Silva e Jair Bolsonaro, desembocando nas eleições presidenciais no Brasil, em 2022: o resultado chama-se Apocalipse nos Trópicos e é um caso exemplar de investigação cinematográfica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 julho).

A avalanche de documentários que podemos encontrar (nas plataformas e também nas salas) não significa, por si só, que o género esteja num período radioso de criatividade. Porquê? Sobretudo porque muitos dos títulos que vão surgindo são derivações esquemáticas de matrizes televisivas. Sublinhemos, por isso, uma excepção que, pelo didactismo de investigação e também pela elaborada montagem, merece destaque: Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa, há dias lançado na Netflix, é um objecto capaz de nos ajudar a compreender um pouco melhor o momento presente do Brasil e, sobretudo, a sua conjuntura política.
Na trajectória da realizadora brasileira (nascida em Belo Horizonte, em 1984), este não é um trabalho isolado, funcionando mesmo como um “prolongamento” do seu título anterior, The Edge of Democracy (2019), também com chancela Netflix e nomeado para o Oscar de melhor documentário. Nesse filme, tratava-se de analisar as convulsões políticas e sociais que marcaram o primeiro mandato de Lula da Silva (2003-2011), a sucessão e, por fim, o “impeachment” de Dilma Rouseff (2016). Agora, Apocalipse nos Trópicos desemboca no confronto eleitoral entre Lula da Silva e Jair Bolsonaro, com a eleição do primeiro para um novo mandato, iniciado a 1 de janeiro de 2023.
Foi um confronto entre duas personalidades com características muito próprias e, escusado será sublinhá-lo, com agendas políticas bem diferentes. Ora, precisamente ao contrário do maniqueísmo por vezes favorecido por algumas matrizes televisivas, Petra Costa está longe de reduzir a questão a uma "luta livre” de dois homens que tudo distingue. Assumindo o documentário como uma investigação muito pessoal, a realizadora propõe-se reconhecer e desmontar o peso do movimento evangélico nas práticas políticas de Bolsonaro e, em boa verdade, nas dinâmicas da sociedade brasileira.
O resultado tem qualquer coisa de dantesco e perturbante. Desde a primeira sequência, Apocalipse nos Trópicos é pontuado (e, em certa medida, assombrado) pela utopia de uma sociedade espelhada na construção da cidade de Brasília, símbolo de uma paz alicerçada na harmonia dos poderes, definidos e exercidos à margem das crenças religiosas.
De forma pedagógica, assistimos à transformação de um movimento religioso, liderado pelo tele-evangelista Silas Malafaia, numa força política (até à invasão do Congresso por apoiantes de Bolsonaro a 8 de janeiro de 2023). A complexidade de tudo o que está em jogo ecoa nas palavras de Lula da Silva, em diálogo com Petra Costa: “Eu tenho uma tese de que o que levou o socialismo ao fracasso foi a negação da religião”. Ou ainda: “Pode ser que algum comunista ortodoxo não aceite a minha tese, mas você não pode negar os valores em que as pessoas acreditam.”

Ditadura, aqui e agora [NYT]

Três depoimentos: Jason Stanely (professor de filosofia), Marci Shore (professora de história) e Timothy Snyder (professor de história) reflectem sobre o momento histórico dos EUA e a proliferação de elementos ditatoriais, não apenas na cena política, mas, transversalmente, em todos os circuitos sociais — testeumhos tão concisos quanto perturbantes num video da secção de Opinião do New York Times.
 

domingo, julho 27, 2025

Adam Schiff — pedagogia política

[Robert F. Kennedy Human Rights]

O congressista norte-americano Adam Schiff, senador eleito pela Califórnia, tem sido uma voz serena e incisiva, numa palavra, pedagógica na abordagem das dinâmicas da política nos EUA e, muito em particular, dos desvios e abusos de poder perpetrados pela administração de Donald Trump. De tal modo que decidiu alargar as suas intervenções ao YouTube, produzindo os seus próprios videos.
Eis um desses videos, comentando o cancelamento de Stephen Colbert e também de The Daily Show — estamos perante uma exemplar explicação/desmontagem das "razões financeiras" com que a CBS quis justificar essas medidas.

sexta-feira, julho 25, 2025

Jon Stewart
— a televisão que pensa

"Precisamos de humanos que continuem a fazer coisas que inspirem e provoquem outros humanos" — eis uma forma radical, radicalmente política, radicalmente poética, de dizer o que é, o que pode ser, viver numa sociedade que não ceda aos ditames dos que nos querem instrumentalizar.
Este é Jon Stewart, em The Daily Show, a lidar com a América de Donald Trump (aliás, com a inquietante refundação da América comandada por Trump) e também a avaliar o significado e as consequências do anúncio, por parte da CBS, do cancelamento do seu amigo Stephen Colbert, "por razões financeiras", de The Late Show (aliás, do cancelamento, em maio de 2026, do próprio programa).
Eis o que pode ser uma maneira de fazer televisão que não tenha medo de pensar — pensar ou não pensar, eis a questão universal.

segunda-feira, julho 21, 2025

Donald Trump contra a imprensa [citação]


>>> Trump has long derided what he dubs “the fake news,” and he has famously called the press “the enemy of the people.” In the 10 years since he announced his first run for president on June 16, 2015, Trump has written nearly 3,500 social media posts that attack the press, according to an analysis by the not-for-profit Freedom of the Press Foundation.

Over the course of a decade, that’s roughly one per day.

But defenders of free speech have raised alarms about Trump’s recent lawsuits against media companies — which legal analysts have called baseless — and his willingness to use the power of the federal government to punish perceived adversaries. They see the unwillingness of Paramount and Disney to defend their First Amendment rights as a dangerous precedent that will only embolden Trump and his allies to push even harder against a free press.

“‘Attacking the press’ is too weak a phrase,” says Jameel Jaffer, executive director of the Knight First Amendment Institute at Columbia University. According to Jaffer, the goal of Trump’s anti-media efforts “appears to be to make the government the only source of information and authority in our society. It sounds crazy to say it because we have never seen this in American history.”

TODD SPANGLER
'Defeat the Press: How Donald Trump’s Attacks on News Outlets
Undermine the First Amendment'
Variety (16 julho)

domingo, junho 15, 2025

Fiona Apple: como fazer uma canção política

Nas suas actividades filantrópicas e de apoio social, Fiona Apple tem servido como observadora do funcionamento dos tribunais, deparando com muitas situações em que as pessoas presentes aos juízes (sobretudo mulheres), mesmo quando não se confirma qualquer acusação, só são libertadas depois de pagarem uma fiança específica (cash bail: valor médio de 10 mil dólares) para os seus casos. Na prática, sem condições para pagar o valor imposto por lei, acabam por ser encarceradas.
A autor de Fetch the Bolt Cutters (o seu álbum mais recente, 2020) decidiu dar conta da situação numa composição de sua autoria. Pretrial (let her go home) é um exemplo modelar do que é, ou pode ser, um tema de consistente intervenção política, alheio a estereótipos "militantes" — ficará, por certo, como uma das grandes canções de 2025.
 

sábado, junho 07, 2025

Política, margarina e um toque de semiologia

A Casa Encantada (1945): desenhado por Dalí, filmado por Hitchcock

Como pensar a televisão a partir do seu interior? Em boa verdade, a tarefa tornou-se quase impossível — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 maio).

Tempos houve em que, para algumas pessoas, era de bom tom tratar os críticos de cinema como uns rapazes esforçados e arrogantes que se distinguiam por uma ridícula obsessão: tinham a mania de analisar os filmes... Podia até sugerir-se que a complexidade narrativa de um filme de Hitchcock se aproximava da densidade de uma pintura de Dalí (trabalharam juntos, já agora), mas isso era irrelevante — “analisar” os filmes, que disparate...
Confesso que tenho saudades dessas atribulações das décadas fundadoras da nossa democracia, ainda que o fenómeno já existisse antes de 1974, tendo passado, incólume, de um tempo para outro. Era, pelo menos, possível compreender e, de algum modo, valorizar as diferenças com que vivíamos. Agora, entre política e futebol, a “análise” passou a ser um vírus televisivo, para mais ancorado num tique de linguagem que se tornou epidémico: o “analista” comum começa quase sempre com as palavras “eu acho que...” — tal expressão é aplicada como prova de uma verdade inequivocamente estabelecida apenas porque ele ou ela “acha que...”
Vem isto a propósito de um fenómeno paralelo cuja perversidade de linguagem me interessa e, perversamente também, me seduz. Assim, em alguns canais de televisão, têm surgido participantes em debates políticos que vão dando conta da sua indignação face ao automatismo com que qualquer evento em torno do partido Chega é rapidamente transformado em sobressalto “informativo”, mesmo quando (por mim, diria mesmo: sobretudo quando) não há nada de novo ou relevante para ser noticiado.
Roland Barthes
Abre-se, deste modo, uma saudável via de reflexão que, infelizmente, ninguém arrisca prosseguir. A saber: até que ponto a ascensão social de algumas forças políticas (não apenas em Portugal, como é óbvio) tem sido favorecida pela ligeireza com que determinadas linguagens televisivas excluem qualquer hipótese de pensamento, apenas celebrando o que possa conter alguma promessa de agitação ou conflito? Não há muitos anos, numa gritaria à porta de um estádio de futebol, e na expectativa de alguma confusão, um jovem repórter, aparentemente desiludido por não ter à sua frente uma altercação mais extremada, formulou mesmo a frase chave desta ideologia mediática: “Ainda não há violência...” A pergunta que ficou é esta: quem ensinou os jovens como ele a reportar aquilo que “ainda” não aconteceu?
Agora, pelo menos, há quem comente política no interior da televisão chamando a atenção para a grosseria cognitiva que a televisão, precisamente, pode assumir e propalar. Sinto-me próximo das suas preocupações, embora perguntando se têm consciência da ambiguidade do seu gesto. Entenda-se: não se trata de duvidar da sua sinceridade e isenção, do mesmo modo que ninguém está a sugerir que as televisões são cavalos de Tróia deste ou daquele partido. As questões em jogo são menos lineares e francamente mais incómodas. Acontece que esta denúncia televisiva da mediocridade (também) televisiva pode favorecer o perturbante fenómeno semiológico que Roland Barthes, nas suas Mitologias, chamou “vacina da verdade” (foi em 1957!!!).
“Um pouco de um mal reconhecido dispensa o conhecimento de muito mal escondido”, escrevia Barthes (a tradução é minha) a propósito da publicidade da margarina Astra. Eis a vacina da verdade. Primeiro, a margarina é apontada como um verdadeiro escândalo gastronómico: “Uma mousse feita com margarina? Impensável!”. Depois, emerge uma espécie de compaixão religiosa: afinal, “a margarina é um alimento delicioso, agradável, digestivo, económico, útil em qualquer circunstância.” Resume Barthes: ao aceitar a banalidade da margarina, normalizando o seu consumo, “a consciência suaviza-se".
A questão de fundo, creio, decorre de um facto que todos, analistas ou políticos (por vezes, analistas e políticos), continuam a recalcar. A dinâmica social da política — e, em boa verdade, toda a dinâmica social — passou a ser determinada, filtrada, organizada, decomposta e recomposta por linguagens de raiz televisiva. Eis um bom tema para analisar.

sexta-feira, maio 30, 2025

Um texto de Thom Yorke

Em vários circuitos "sociais", Thom Yorke tem sido condenado por ter dado concertos em Israel e também, em paralelo, por causa do seu silêncio sobre a situação em Gaza. Resistindo a uma mentalidade que ele próprio define como promotora de um maniqueísmo grosseiro entre "nós e os outros", recusando reacções epidérmicas apenas susceptíveis de criar mais e maior tensão mediática, nessa medida demarcando-se dos "caçadores de bruxas" do mundo virtual, exprimiu-se agora através de um texto publicado no seu Instagram — eis as suas palavras.

Some guy shouting at me from the dark last year when I was picking up a guitar to sing the final song alone in front of 9000 people in Melbourne didn’t really seem like the best moment to discuss the unfolding humanitarian catastrophe in Gaza.

Afterwards I remained in shock that my supposed silence was somehow being taken as complicity, and I struggled to find an adequate way to respond to this and to carry on with the rest of the shows on the tour.

That silence, my attempt to show respect for all those who are suffering and those who have died, and to not trivialize it in a few words, has allowed other opportunistic groups to use intimidation and defamation to fill in the blanks, and I regret giving them this chance. This has had a heavy toll on my mental health.

I would hope that for anyone who has ever listened to a note of the music of my band or any of the music i have created over the years, or looked at the artwork or read any of the lyrics, it would be self-evident that I could not possibly support any form of extremism or dehumanization of others. All i see in a lifetime’s worth of work with my fellow musicians and artists is pushing against such things, trying to create work that goes beyond what it means to be controlled, coerced, threatened, to suffer, to be intimidated .. and instead to encourage critical thinking beyond borders, the commonality of love and experience and free creative expression.

Sounds naff … but true.

For others let me fill in the blanks now, so we’re nice and clear.

I think Netanyahu and his crew of extremists are totally out of control and need to be stopped, and that the international community should put all the pressure it can on them to cease. Their excuse of self-defence has long since worn thin and has been replaced by a transparent desire to take control of Gaza and the West Bank permanently.

I believe this ultra-nationalist administration has hidden itself behind a terrified & grieving people and used them to deflect any criticism, using that fear and grief to further their ultra-nationalist agenda with terrible consequences, as we see now with the horrific blockade of aid to Gaza.

While our lives tick along as normal these endless thousands of innocent human souls are still being expelled from the earth… for what?

At the same time the unquestioning Free Palestine refrain that surrounds us all does not answer the simple question of why the hostages have still not all been returned? For what possible reason?

Why did Hamas choose the truly horrific acts of October 7th? The answer seems obvious, and I believe Hamas chooses too to hide behind the suffering of its people, in an equally cynical fashion for their own purposes.

I also think there is a further and extremely important point to make.

Social media witch-hunts (nothing new) on either side pressurizing artists and whoever they feel like that week to make statements etc do very little except heighten tension, fear and over-simplification of what are complex problems that merit proper face to face debate by people who genuinely wish the killing to stop and an understanding to be found.

This kind of deliberate polarization does not serve our fellow human beings and perpetuates a constant ‘us and them’ mentality. It destroys hope and maintains a sense of isolation, the very things that extremists use to maintain their position. We facilitate their hiding in plain sight if we assume that the extremists and the people they claim to represent are one and the same, indivisible.

If our world is ever able to move on from these dark times and find peace it will only be when we rediscover what we share in common, and the extremists are sent back to sit in the darkness from whence they came.

I sympathize completely with the desire to ‘do something’ when we are witnessing such horrific suffering on our devices every day. It completely makes sense. But I now think it is a dangerous illusion to believe reposting, or one or two line messages are meaningful, especially if it is to condemn your fellow human beings. There are unintended consequences.

It is shouting from the darkness. It is not looking people in the eye when you speak. It is making dangerous assumptions. It is not debate and it is not critical thinking.

Importantly, it is open to online manipulation of all kinds, both mechanistic and political.

What is the alternative? I can’t answer that easily. I do know in communities around the globe this subject is now dangerously toxic and we are in uncharted waters. We need to turn back.

I am sure that, to this point, what I have written here will in no way satisfy those who choose to target myself or those i work with, they will spend time picking holes and looking for reasons to continue, we are an opportunity not to be missed, no doubt, and by either side.

I have written this in the simple hope that i can join with the many millions of others praying for this suffering, isolation and death to stop, praying that we can collectively regain our humanity and dignity and our ability to reach understanding .. that one day soon this darkness will have passed.

Thom Yorke