Mostrar mensagens com a etiqueta Godard. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Godard. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, junho 30, 2025

O cinema que ninguém vê
(filmes, telenovelas & etc.)

Adeus à Linguagem (2014): o cinema já morreu?

Para pensar uma política cultural para o cinema português não basta agitar os números das bilheteiras — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 junho).

No início desta semana, a empresa NOS, distribuidora de Hotel Amor, difundia um comunicado em que dava conta da respectiva performance nas salas, sublinhando que se trata do “filme português com a melhor estreia de 2025”, visto “por cerca de 3500 espectadores em apenas cinco dias” (a estreia ocorrera no dia 19). Não vi Hotel Amor. As linhas que se seguem não são sobre o filme, antes tentam propor algumas hipóteses de reflexão sobre este ponto crítico a que chegámos — não do cinema português, mas de toda a nossa vida cultural — em que “cerca de 3500 espectadores” justificam (?) uma notícia em forma de celebração.
Sejamos um pouco mais específicos. Consultando os números oficiais do ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual), verificamos que Hotel Amor cumpriu os primeiros quatro dias de exibição em 39 ecrãs, num total de 307 sessões, tendo sido visto por 3511 espectadores. Contas feitas, isso significa que a média de espectadores por sessão foi de 11,4. Tendo em conta que a NOS estreou o filme em algumas salas com várias centenas de lugares, pergunta-se: o que há para celebrar?
Bem sei que há uma ideologia poderosa que baralha as especificidades dos filmes com os dinheiros que os acompanham... Se isso pode servir de consolação aos mais precipitados, lembrarei apenas que Adeus à Linguagem (2014), de Jean-Luc Godard, me parece ser “o” filme central das últimas décadas, tão importante para as dinâmicas criativas do cinema do século XXI como as Demoiselles d’Avignon para a pintura do século XX. O certo é que, no mercado português, teve ainda menos espectadores que Hotel Amor — paciência.
Também nas páginas do ICA, ficamos a saber que, apesar de não termos estruturas sólidas de produção cinematográfica, este ano já surgiram 27 novos títulos portugueses (dados coligidos até 18 de junho). E verificamos que mais de metade (14) desses filmes foram vistos, cada um deles, por menos de mil espectadores — os últimos dez da lista por menos de 500.
Onde estão as vozes demagógicas que, há mais de 50 anos, têm poluído a vida do cinema português com a lengalenga de que se gasta dinheiro a fazer filmes “difíceis” ou “intelectuais” que ninguém vê? Há uma agressividade nesse discurso que mascara o facto de a história económica do cinema em Portugal estar recheada de grandes projectos “comerciais” que foram, continuam a ser, aparatosos desastres de bilheteira.
Sou dos que, há quase meio século, em 1977, chamei a atenção para o facto de a ocupação do espaço mediático pela telenovela Gabriela, Cravo e Canela conter os germes de uma transfiguração da produção audiovisual e do seu consumo capaz de destruir metodicamente o mercado cinematográfico e o imaginário cinéfilo— não me gabo de ter tido razão.
Neste tempo de ubiquidade dos telemóveis e generalização das plataformas de “streaming”, a novela não explica tudo. Seja como for, o seu esmagador triunfo narrativo (e industrial!) foi, continua a ser, decisivo na consolidação de um público que, pura e simplesmente, ignora o cinema como acontecimento específico — e que, por isso mesmo, não vai ver filmes.
A questão de fundo para a qual, justamente, Godard chamou a atenção é que a “morte do cinema” (e sou o primeiro a reconhecer o excesso da expressão) é, acima de tudo, o desaparecimento do espectador de cinema. Não é possível esperar que um cidadão — criança, adolescente ou adulto — formado em conceitos mecânicos de narrativa e espectáculo se possa interessar por saber que Ingmar Bergman filmou muitos medos em que se pode reconhecer, ou que um autor de comédias como Jerry Lewis é um dos mais complexos cineastas da segunda metade do século XX.
Martin Scorsese já enfrentou esta conjuntura, dizendo que os filmes da Marvel “não são cinema”. Quase ninguém quis escutar as suas palavras, a ponto de ele se sentir compelido a esclarecer a sua visão num notável artigo publicado em The New York Times (4 nov. 2019). Lembremos: “Muitos dos elementos que definem o cinema tal como eu o conheço também estão nos filmes da Marvel. O que não está lá é a revelação, o mistério ou o genuíno abalo emocional. Não se arrisca nada. Os filmes são feitos para satisfazer um conjunto específico de exigências, sendo concebidos como variações de um número finito de temas.” Para superar tal estagnação o frenesim de ter 3500 espectadores é francamente pouco — a formação de públicos é outra coisa.

quarta-feira, março 19, 2025

Kiarostami & Godard
— o cinema para lá da morte

Caçadores na Neve (1565), de Bruegel, o Velho:
uma pintura que Kiarostami reinventa através da manipulação digital

Deixou de ser uma presença significativa no mercado, mas o DVD não desapareceu. Agora, uma edição muito especial traz-nos os filmes póstumos de dois autores que marcaram de forma decisiva a história do cinema nas últimas décadas: o iraniano Abbas Kiarostami e o francês Jean-Luc Godard —˜este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 março).

Para muitos responsáveis pelos circuitos do mercado audiovisual, o DVD acabou — passámos a viver na idade das plataformas e afins. Se olharmos em redor, não há dúvida que alguma razão lhes assiste, mas convenhamos que as notícias da morte do DVD são um pouco exageradas... Observemos, pelo menos, as excepções que vão resistindo. Exemplo? Esse pequeno grande acontecimento que é a edição em DVD, com chancela da Midas Filmes, de dois filmes póstumos com assinatura do iraniano Abbas Kiarostami (1940-2016) e do francês Jean-Luc Godard (1930-2022).
AK + JLG
A circunstância de estarmos perante filmes que só foram divulgados depois da morte dos respectivos autores parece acrescentar (mais) uma nota fúnebre à edição, mas só mesmo por cinismo mercantil poderemos seguir tal sugestão: 24 Frames, de Kiarostami, e Filme Anúncio do Filme “Drôles de Guerres”, de Godard, são objectos de calorosa celebração do cinema e como tal foram tratados em sessões realmente especiais do Festival de Cannes: o primeiro foi exibido em Cannes, em 2017, no âmbito das comemorações da 70ª edição do festival (a par, por exemplo, dos dois primeiros episódios da sequela da série Twin Peaks, de David Lynch); o segundo, em 2023, integrou uma secção de tributo a Godard (numa das sessões foi projectado com As Filhas do Fogo, a curta-metragem de Pedro Costa).
O cinema que aqui reencontramos é uma arte que afirma as suas especificidades, ao mesmo tempo que mantém um diálogo vivo sobre os seus próprios limites materiais e espirituais. No caso do cineasta iraniano, tal postura criativa é tanto mais importante quanto 24 Frames integra, com contagiante alegria, aquilo que, por certo, muitos espectadores não associam ao seu trabalho. A saber: a manipulação digital.
Kiarostami define o seu projecto a partir de uma curiosa afirmação: “Notei muitas vezes que não somos capazes de olhar para o que temos à nossa frente, a não ser que esteja dentro de um enquadramento.” Que é, então, esse enquadramento, designado pela palavra inglesa frame? Pois bem, é aquilo que nos propõe uma “fatia” do mundo que se oferece à nossa contemplação, eventualmente à nossa interpretação crítica.
E que faz Kiarostami com tais pressupostos? Começa por nos mostrar imagens de um célebre quadro (Caçadores na Neve, pintado por Bruegel, o Velho, em 1565) e, depois, fotografias várias de cenas que podem ir de uma paisagem vista a partir do interior de um automóvel até um grupo anónimo a contemplar a Torre Eiffel. A pouco e pouco, como se fossem discretos incidentes poéticos, algo nas imagens fixas começa a mover-se: o fumo de uma chaminé, os pássaros que assomam a uma janela, a neve que não pára de cair...
Redescobrimos o olhar realista de Kiarostami seduzido por um aparato técnico que lhe permite “adivinhar” o movimento que as imagens fixas sugerem e, num certo sentido, já contêm. No caso de Filme Anúncio do Filme “Drôles de Guerres”, a proposta é bem diferente, quanto mais não seja porque é mesmo um trailer (com 20 minutos de duração) para um filme que nunca se concretizou.
Os resultados são indissociáveis do labor de Fabrice Aragno, colaborador de longa data de Godard (que apresentou uma exposição sobre a sua obra na edição de 2023 do LEFFEST, sendo também um dos responsáveis de uma outra exposição dedicada a Godard, patente na Casa do Cinema Manoel de Oliveira até 15 de junho). Trata-se de regressar à dimensão artesanal do universo do autor de Pedro, o Louco (1965) e Eu Vos Saúdo, Maria (1985), dando a ver imagens, palavras e frases que lhe serviam como verdadeiros argumentos. Como o título sugere, em foco estariam as convulsões bélicas do mundo contemporâneo, afinal transversais a toda a filmografia godardiana e à sua pulsação, tão mal reconhecida, de genuíno humanismo.

Que futuro para o DVD?

Vistos ou revistos em DVD, os trabalhos de Kiarostami e Godard são também “mensageiros” de uma verdade que importa não escamotear. Assim, podemos e devemos não minimizar os valores da nossa relação com os filmes na clássica sala escura — essa é, de facto, uma experiência insubstituível. Ao mesmo tempo, não faz sentido aceitarmos a versão preguiçosa segundo a qual nos tornámos apenas consumidores de plataformas.
Em diversos mercados, o DVD continua a ser uma fonte importante, ainda que minoritária, de conhecimento do cinema, em particular das suas memórias clássicas, com edições que desapareceram do mercado português, incluindo a variante tecnicamente mais avançada do Blu-ray. Porquê? Em grande parte, sejamos claros, porque a prática de preços exorbitantes por alguns agentes do mercado fez com que o consumidor rapidamente se apercebesse de uma realidade rudimentar: era mais barato encomendar um Blu-ray do estrangeiro do que comprá-lo numa loja portuguesa... Enfim, as heranças de Kiarostami e Godard garantem-nos que nem tudo está perdido.

terça-feira, janeiro 21, 2025

A arte de viver

Louis Aragon e Elsa Triolet filmados por Agnès Varda (Elsa la rose, 1966)

Como pensar a cultura sem ter em conta as suas componentes televisivas? Há quem tenha medo que isso aconteça — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 janeiro).

Recordo-me de um tempo jornalístico e, em boa verdade, social bem diferente do actual. Numa publicação em que trabalhei, participei num debate sobre a própria definição de cultura — e também, por isso mesmo, sobre o posicionamento do jornalista perante as dinâmicas culturais. Foi há 30 anos e perdi esse debate.
Em boa verdade, continuo a perder. Os valores que, melhor ou pior, tentei defender continuam a ecoar no presente. Entenda-se: não alimento a ilusão de, em cada momento, formular ideias capazes de transcender o desgaste do tempo, mas também não posso, quanto mais não seja por fidelidade a mim mesmo, abdicar de reformular pontos de vista a que continuo a reconhecer alguma pertinência.
O debate saldou-se pela ideia segundo a qual o espaço televisivo não faz parte da vida cultural — o que, bem entendido, continuo a considerar uma ideia pueril, tendencialmente populista. Quando observo os nacionalismos balofos associados ao futebol ou a impudência estética com que a Reality TV encena a intimidade afectiva e sexual, não vejo apenas a ligeireza irresponsável com que os meus oponentes encaravam, e encaram, o “entretenimento” televisivo. Vejo, sobretudo, o triunfo de uma cultura de profundo esvaziamento humano e humanista que, ao longo das últimas décadas, se foi instalando em todos os circuitos comunicacionais e publicitários da sociedade portuguesa, para mais perante a apatia da quase totalidade da nossa classe política.
A instalação quotidiana dessa cultura que privilegia a ostentação das performances contra a riqueza e o prazer das ideias continua a ser alimentada por muitos elementos da política (políticos propriamente ditos e comentadores) que, não poucas vezes, utilizam a sua obscena teatralidade para elaborar a mecânica da sua própria ascensão. Os cruzamentos do comentário futebolístico com as carreiras políticas constituem, aliás, um sintoma eloquente da nova cultura triunfante.
[Assembleia da República]
Do outro lado deste espelho de imagens perversas, está a cultura “clássica”. A saber: as obras resultantes das chamadas práticas artísticas (cinema, música, teatro, etc.) que passaram a ser tratadas em muitas zonas da paisagem mediática, não como acontecimentos específicos capazes de motivar, eventualmente desafiar, a nossa visão do mundo, antes como uma espécie de resgate do nosso medo de ideias minimamente criativas. Quando isso pode ser sancionado por alguma celebração dos mortos que nos assombram, dir-se-ia que, cobardemente, recobrimos com o nosso conformismo as belas palavras herdadas de Aragon: “Vi tanta gente viver tão mal / E tanta gente morrer tão bem.”
Não disto é cómodo, muito menos humanamente compensador, para os que tentam preservar o statu quo num misto de pânico intelectual e demissão de pensamento. Até porque os formatos mais grosseiros do “debate” político começam a expor as fissuras da sua concepção. Em tempos recentes, descubro mesmo algumas vozes que, no pequeno ecrã, com toda a pertinência, chamam a atenção para o modo como muitas formas da política passaram a existir como farsa televisiva. Exemplo recorrente: o partido Chega promove um qualquer evento mais ou menos exuberante e, por cego automatismo, os ecos desse evento acabam por dominar uma semana inteira de “notícias” (fenómeno em parte semelhante aconteceu, há poucos anos, com a proliferação de comunicados e declarações públicas do Bloco de Esquerda).
Tudo isto acontece tendo como pano de fundo um silêncio ensurdecedor. Quem foi o político que, num breve instante de lucidez, arriscou lembrar que, nas discussões sobre o Orçamento Geral do Estado, talvez valesse a pena colocar a gestão cultural como (mais) uma prioridade? E onde está o comentador que, por mera pedagogia, tenha enunciado tal prioridade? Resta-nos a consolação de continuar a haver milhões para investir num Mundial de Futebol…

>>> Citando Aragon — Je Vous Salue Sarajevo (1993), de Jean-Luc Godard.

sábado, dezembro 28, 2024

Martial Solal, jazz e cinefilia

Martial Solal em 1960 [New York Times]

Martial Solal, compositor indissociável da Nova Vaga francesa, faleceu no dia 12 de dezembro, contava 97 anos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 dezembro).

A cinefilia faz-se do gosto, do prazer e também da exigência de contemplar as imagens dos filmes, respeitando a sua complexidade, logo a sua história, e também os enigmas da beleza que as pode habitar. Em qualquer caso, semelhante descrição é insuficiente, inadvertidamente favorecendo o automatismo dos olhares em que vamos sendo viciados por algumas formas de televisão (e muitas linguagens da publicidade). Importa, por isso, acrescentar que a relação com as imagens raras vezes pode ser dissociada dos sons que, mesmo acidentalmente, as acompanham.
Penso na música de Martial Solal. Penso, sobretudo, no misto de alegria, precisão e elegância do seu piano. Ao ler a notícia da sua morte — no dia 12, em Versalhes, contava 97 anos —, surgem-me as imagens e os sons de À Bout de Souffle/O Acossado (1960), a longa-metragem de Jean-Luc Godard que, como nenhum outro título, simbolizou o arranque da Nova Vaga francesa.
A sua banda sonora reflecte a cumplicidade criativa do jazz com alguns dos momentos emblemáticos desse movimento que, de facto, transfigurou a história de todo o cinema, muito para lá das fronteiras francesas. Assim, em 1959, Solal tinha já contribuído com alguns temas para a banda sonora de Dois Homens em Manhattan, de Jean-Pierre Melville, sem esquecer que, um ano antes, a música de Fim de Semana no Ascensor, de Louis Malle, tinha assinatura de Miles Davis [video, c/ Jeanne Moreau].


Podemos, aliás, pressentir a riqueza do legado de Solal lembrando a espantosa diversidade do seu trajecto fora do cinema — escute-se, por exemplo, o seu derradeiro concerto, a 23 de janeiro de 2019 (aos 91 anos!), na Salle Gaveau, em Paris, editado no álbum Coming Yesterday (Challenge Records, 2021). Para lá de uma vasta discografia em nome próprio, lembremos também as muitas colaborações com nomes como Sidney Bechet, Stéphane Grappelli ou Dave Douglas.
Refaço, assim, mentalmente, algumas cenas de À Bout de Souffle, a começar pelo encontro de Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg, aliás Michel Poiccard e Patricia Franchini, nos Campos Elísios. Ele diz-lhe: “Sim, é uma patetice, amo-te.” Ela espanta-se de o rever ali, uma vez que ele lhe tinha dito que “detestava Paris”. Michel responde: “Não disse que detestava, disse que tenho aqui muitos inimigos.” E Patricia pergunta: “Então, está em perigo?” É preciso acrescentar que Patricia anda a vender o New York Herald Tribune (cuja publicação terminaria em 1966). A composição de Solal para este breve diálogo (intitulada, precisamente, “New York Herald Tribune”) pode servir de padrão para todo um modo de entendimento da relação da música com a “acção”. Não se trata de criar um pano de fundo, dir-se-ia uma cortina de sons, para “sustentar” a duração da cena: a música existe como elemento vivo da narrativa, com as suas notas, melodia e ritmo, incluindo os repectivos silêncios.


Tudo isto pode ser condensado numa palavra mágica, vital na história do jazz: improvisação. O obituário de Solal no jornal Le Monde definia-o através de uma bela lista de qualidades: “compositor, arranjador, chefe de orquestra e rei da improvisação” (fazendo lembrar, a meu ver, o fraseado poético de um outro pianista e compositor, o americano Erroll Garner). Ao mesmo tempo, nada disso exclui a procura de uma lógica estrutural que, em cinema, se confunde com a arte da montagem.
Naquela que julgo ser a mais completa edição da banda sonora de À Bout de Souffle (Soundtrack Factory, 2016), disponível no YouTube, encontramos algumas palavras de Solal que resumem exemplarmente tal atitude criativa: “Godard destrói deliberadamente todas as formas clássicas de construção. Na música, eu não cheguei tão longe quanto ele: tentei sempre avançar mantendo uma certa estrutura, uma certa legibilidade. Ao mesmo tempo, é verdade que partilhamos a mesma atitude anti-académica.”
À Bout de Souffle: Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg nos Campos Elíseos
>>> Obituário na revista DownBeat.

segunda-feira, dezembro 23, 2024

Jean-Luc Godard
— o cinema que nasceu da pintura

Retrato de Jean-Luc Godard, c. 1950; auto-retrato de 2022

O cinema de Jean-Luc Godard pode ser visto e revisto, pensado e reavaliado, também através do seu trabalho de imaginação e preparação dos filmes. De facto, ele é autor de uma fascinante “obra plástica” que, agora, pode ser descoberta na Casa do Cinema Manoel de Oliveira, em Serralves, até 18 maio 2025 — para celebrarmos os valores da cinefilia (este texto foi publicado no Diário de Notícias, 15 novembro).

Casa do Cinema Manoel de Oliveira
Num tempo de enfraquecimento do cinema no espaço televisivo tradicional, com as plataformas de streaming raras vezes organizadas de forma motivadora, é caso para perguntar: que é feito da cinefilia? Entre as respostas que podemos encontrar, algumas no próprio circuito comercial, a Casa do Cinema Manoel de Oliveira, na Fundação de Serralves, no Porto, merece um destaque muito especial. De facto, a equipa dirigida por António Preto continua a desenvolver um exemplar trabalho de divulgação e programação que, agora, apresenta uma notável exposição dedicada à obra plástica de Jean-Luc Godard (1930-2022).
Não será surpresa dizer que a filmografia daquele que, na década de 1960, foi um dos nomes carismáticos da Nova Vaga francesa — não apenas através dos filmes, mas começando pela intervenção crítica — envolve uma dimensão “plástica”. Em qualquer caso, tal reconhecimento não deixa de suscitar uma dúvida metódica: como é que essa dimensão gerou uma “obra”?
Pois bem, tal obra começa por existir como actividade paralela à gestação dos filmes. Bem sabemos que Godard, enquanto criador de um movimento de autores tão talentosos quanto díspares, todos eles empenhados em discutir as regras narrativas clássicas, nunca se dedicou a construir argumentos que satisfizessem essas regras — num desabafo lendário, terá dito que até se podia considerar que os seus filmes, à maneira clássica, tinham “princípio, meio e fim”, ainda que “não necessariamente por essa ordem”. Ao mesmo tempo, a sua nova ordem (que está longe de ser uma desordem banalmente “vanguardista”) pode começar nas imagens organizadas em cadernos de apontamentos cujas matérias vão desde o desenho e a pintura até à reprodução de obras fotográficas e pictóricas.

Página dupla do caderno de preparação
de O Livro de Imagem (2018)

O amor do cinema

O mínimo que se pode dizer da exposição patente em Serralves (ao longo dos próximos seis meses, até 18 de maio) é que se trata de um verdadeiro trabalho de amor — será preciso recordar que a palavra cinefilia designa o amor do cinema?Mais ainda: foi feito a partir do interior do universo do próprio Godard, envolvendo o seu espaço mais íntimo e, literalmente, a sua família genealógica e artística.
A exposição apresenta-se com um título em que as componentes narrativas surgem enredadas com a actualidade, nomeadamente através de um jogo de palavras (“conta” dá lugar a “conto”), revelador da alegria criativa de muitas formas “godardianas”. Ou seja: “Tendo em linha de conto os tempos atuais”. A sua curadoria pertence a Fabrice Aragno, Jean-Paul Battaggia, Nicole Brenez e Paul Grivas (sobrinho de Godard), todos ligados às últimas duas décadas da actividade do cineasta, incluindo a produção de filmes e a escrita teórica. Aplicando um trocadilho cúmplice da obra de Godard, esse colectivo adoptou a designação “Ô Contraire!”
O impacto dos materiais expostos é tanto mais impressionante, por vezes tocado por uma comoção muito íntima, quanto podemos descobrir alguns “segredos”, não apenas da trajectória de um cineasta, mas também das suas vivências familiares e sociais. Assim, por exemplo, a par de fotografias da juventude, deparamos com um caderno “panfletário” (Le Cercle de Famille), ainda da década de 1940, em que o adolescente Godard expõe as suas muitas reticências e revoltas perante os valores da burguesia a que pertence a sua própria família.
As fotografias de família, tiradas por sua mãe, Odile Monod, nunca mostradas antes, aparecem lado a lado com outras raridades, muitas delas também desconhecidas do público. A exposição em Serralves surge, por isso, como um evento fundador de um novo capítulo no conhecimento de um universo que sempre se distinguiu por uma agilidade tecida de curiosidade e inteligência. Isto sem esquecer que, para lá dos cadernos de trabalho, ligados à preparação de determinados filmes, há objectos com uma singular componente afectiva. É o caso do caderno dedicado a La Chinoise (1967), feito depois da rodagem do filme e oferecido à actriz principal, Anne Wiazemsky (com quem Godard foi casado entre 1967 e 1979).
Entenda-se, por isso: os materiais expostos, não por acaso acompanhados por diversos objectos do dia a dia (das tesouras aos charutos...), estão longe de se esgotar na função de “preparação” dos filmes. No limite, são derivações antecipadas ou posteriores desses filmes, como se Godard quisesse sublinhar — antes do mais para si próprio — que o cinema não existe como um fim em si mesmo, sendo antes uma entidade de uma constelação de fenómenos criativos em que a pintura ocupa um lugar nuclear. Assim se prolonga um axioma do pintor francês Maurice Denis (1870-1943), citado no programa como definição da modernidade: “recordar que um quadro, antes de ser um cavalo de guerra (...), é essencialmente uma superfície plana coberta de cores numa ordem determinada”.

Alguns objectos pessoais,
incluindo tesouras e um charuto

Livros & imagens

À sua maneira, a exposição pode ser encarada também como uma antologia de história(s) de várias décadas da vida (francesa, e não só), uma vez que os seus objectos e imagens arrastam memórias muito diferenciadas — desde o clássico O Círculo Vermelho (1970), realizado por Jean-Pierre Melville (que interpretava o escritor entrevistado em 1960, em O Acossado, primeira longa-metragem de Godard), até aos testemunhos mais ou menos caóticos, divertidos e sedutores, das experiências de Godard com os smartphones.
Nesta perspectiva, importa recordar os laços com uma outra exposição “godardiana” — “Éloge de l’image - Le Livre d’Image” —, integrada na programação do LEFFEST de 2023, concebida por Fabrice Aragno. Tratava-se de um conjunto de variações cénicas e audiovisuais sobre O Livro de Imagem (2018), derradeira longa-metragem de Godard, também amplamente evocada em Serralves.
Agora, podemos identificar melhor — e, de algum modo, percorrer — um método de trabalho que, realmente, trata as imagens como livros. Dito de outro modo: tudo é escrita, tudo é linguagem, tudo envolve a responsabilidade de um criador e, assim se deseja, de um espectador.
Tudo isto, é bem verdade, está desde muito cedo inscrito no labor de Godard como uma espécie de canône de introspecção e criação. Lembremos o exemplo cristalino de Duas ou Três Coisas sobre Ela (1967), tendo como ponto de partida a decomposição das relações humanas, do espaço público até à intimidade sexual (“ela”, recorde-se, é a “região parisiense”). Assumindo a voz off do seu filme, Godard diz a certa altura: “No mundo humano, o nascimento das coisas mais simples, a sua apropriação pelo espírito do homem, um mundo novo em que os homens, ao mesmo tempo que as coisas, viverão relações harmoniosas — eis o meu objectivo. É, afinal, tão político como poético. Explica, em qualquer caso, a raiva da expressão. De quem? De mim, escritor e pintor”.
Para ilustrar essa visão multifacetada, dialéctica, pontuada por muitas formas de um desconcertante humor, a exposição “Tendo em linha de conto os tempos atuais” prolonga-se através de um ciclo de filmes marcados pela relação do criador com a criação, por vezes tendendo para as regras do auto-retrato — lembremos o exemplo modelar de JLG por JLG (1994), a par de vários documentos filmados sobre Godard com assinatura de alguns dos responsáveis pela exposição.
Sublinhando o valor simbólico de tudo isto, logo à entrada, a Casa do Cinema Manoel de Oliveira recorda um célebre diálogo entre Godard e Oliveira, tema de capa da edição de 4/5 de setembro de 1993 do jornal Libération. Nessa publicação, encontramos uma apreciação do trabalho de Godard por Oliveira que envolve um elogio radical da liberdade artística, podendo funcionar como lema desta fascinante exposição: “É disto que gosto em geral no cinema: uma saturação de signos magníficos banhados na luz da sua ausência de explicação”.

Marina Vlady em Duas ou Três Coisas sobre Ela (1967):
um cineasta que é escritor e pintor

>>> Trailer de La Chinoise (1967).

sábado, fevereiro 10, 2024

* Memórias do cinema francês
— SOUND + VISION Magazine, FNAC [HOJE, 10 março]

Tomando como pretexto a próxima reposição de um conjunto de filmes de Jean-Luc Godard, estamos de volta à FNAC para revisitar os seus filmes, o seu tempo, as suas músicas — enfim, para reencontrar uma preciosa herança cultural.

* FNAC Chiado — 10 março, 17h00.

quinta-feira, fevereiro 01, 2024

Resistir ao nada

Nathalie Baye no filme Salve-se Quem Puder (1980): "Eu não sou uma máquina"

Com as palavras de José Gil ou Jean-Luc Godard podemos, talvez, imaginar outras formas de fazer política — esxte texto foi publicado no Diário de Notícias (14 janeiro).

Meio século depois do ano de 1974, qual é a nossa cultura política? A pergunta envolve um pressuposto que muitos protagonistas da cena política não reconhecem — talvez nem sequer o conheçam. A saber: a cultura não é uma “secção” da sociedade que, para o melhor ou para o pior, está entregue à gestão dos políticos. Porquê? Porque esses políticos existem também como entidades eminentemente culturais: valorizar (ou resistir a) determinadas formas de relação humana, estabelecer laços (ou rupturas) de comunicação constitui, afinal, a mais elementar definição de cultura e das suas dinâmicas.
Não se trata, entenda-se, de menosprezar a importância das decisões que os políticos tomam, ou podem tomar, no sentido de enriquecer as nossas relações com os livros e os filmes, os concertos em sala ou a música que escutamos em casa, o teatro que vemos ou não podemos ver… Seja como for, tal importância parece decorrer de uma ingénua (ou apenas cínica) noção voluntarista segundo a qual “a” cultura se esgota numa qualquer rede de “equipamentos” mais ou menos frondosos.
Veja-se (e ouça-se) como a maior parte dos políticos abdicou da especificidade da sua função, dirimindo as suas diferenças apenas através da troca imaterial de mensagens televisivas. As suas diferenças de pensamento, se é que existem, unificam-se num imperativo fulanizado. Como? Invectivando o outro a aparecer como imagem: “Ele deve ir à televisão explicar-se”, eis uma frase corrente que se tornou mesmo o desafio mais radical que cada político arrisca (ou sabe) dirigir a qualquer outro. Esse outro, tal como o próprio, parece existir apenas através dessa presença imponderável, mil vezes repetida, mil vezes banalizada, na forma e na formatação do pequeno ecrã.
Que fazer quando a política agoniza todos os dias na tele-política? Será que as escolhas eleitorais se esgotam, agora, democraticamente, na avaliação da performance mediática de cada político? A questão é tanto mais pertinente quanto não são poucos os exemplos dos que surgiram com responsabilidades políticas depois de assumirem diversas formas de comentário televisivo.
Infelizmente, há jornalistas que se comportam como se ignorassem as singularidades deste sistema de comunicação — e não há nada de mais cultural do que o modo como organizamos a nossa comunicação, ou aquilo a que atribuímos essa designação. Recusam-se, assim, por princípio (eventualmente de modo inconsciente), a reflectir sobre o próprio aparato em que laboram.
Nos triliões de “debates” que ocupam o nosso quotidiano, há recorrentes exemplos deste estado das coisas. Basta alguém dizer que é preciso não esquecer que a televisão (e, certamente, os jornais, as rádios e todos os órgãos de comunicação) é parte integrante da nossa vida cultural para haver um moderador vigilante que, com o automatismo de um robot, recorda que “não é isso que estamos a discutir”… O que, entenda-se, não impede que um sobressalto registado em 5 segundos de imagens suscite infindáveis horas de “análise”: antes mesmo de o “acontecimento” esgotar as suas peripécias, já estamos “em análise”. A mensagem não podia ser mais explícita: não parem para pensar. Não me atrevo a resumir a exuberante riqueza e complexidade do livro de José Gil recentemente publicado, Morte e Democracia (ed. Relógio D’Água, outubro de 2023). Correndo o risco de uma abusiva simplificação, direi que nele encontramos a afirmação radical da vida humana como “coisa” que só pode ser pensada (e, enfim, vivida) através do reconhecimento da morte e do seu indizível.
Sem que isso, entenda-se, nos afaste das componentes muito concretas do nosso viver e, não poucas vezes, do mal viver que nele se instila. Cito algumas linhas do capítulo intitulado “Justiça, imortalidade e finitude”: “Para cada época histórica, em cada sociedade, existe um grau de conivência inconsciente das classes inferiores para com as superiores na aceitação de normas e regras que constrangem e oprimem as primeiras em benefício das segundas, conivência que cimenta decisivamente a coesão e a vida pacífica da comunidade.”
Qual o preço dessa coesão? Alargo um pouco mais a citação: “Trata-se, mais uma vez, da “servidão voluntária” de La Boétie, para a qual contribuem o “ópio do povo” de Marx e, actualmente, tantos outros narcóticos sofisticados (média, redes sociais, publicidade, etc.). Toda a sociedade admite um grau de injustiça, como se se tratasse de uma situação justa e “normal”.”
Num filme de Jean-Luc Godard lançado em 1980 (entre nós chamado Salve-se Quem Puder), a personagem interpretada por Nathalie Baye lia uma frase sobre a tristeza dessa normalidade — “Há algo no corpo e na cabeça que resiste ao nada” —, enaltecendo o valor vital de “um sopro de irregularidade” ou de “um movimento em falso”. E fazia um pequeno inventário de detalhes microscópicos do nosso viver: “Tudo aquilo que, dentro do insignificante quadrado de resistência contra a eternidade vazia que é o posto de trabalho, faz com que ainda haja acontecimentos, mesmo minúsculos.”
Descrevia depois alguns sinais de tudo aquilo que deixámos de contemplar: “Esta falta de jeito, esta deslocação supérflua, esta súbita aceleração, esta mão que persiste duas vezes, esta careta, esta coisa que se desliga, é a vida que volta a agarrar-se. Tudo aquilo que em cada homem desta cadeia de acontecimentos grita em silêncio: eu não sou uma máquina.” Vale a pena lembrar que a personagem de Nathalie Baye se chama Denise Rimbaud — eis um nome a merecer análise.

sexta-feira, janeiro 19, 2024

"For Ever Godard" (a partir de 22 de fevereiro)

E se mais não acontecer, eis porque 2024 vai ser um grande ano para a cinefilia: 11-filmes-11 de Jean-Luc Godard, apresentados pela Leopardo Filmes e pela Medeia Filmes, a partir de 22 de fevereiro, em cópias digitais restauradas — da fundação do cinema moderno, com O Acossado (1960), até à convivência com a divindade, em Valha-me Deus (1993). Sem esquecer a presença desse noir luminoso que é Détéctive (1985), com Johnny Hallyday, preciosidade rock'n'roll que nunca teve estreia comercial em Portugal.
Além do mais, se alguém quiser eleger o trailer do ano, não será necessário esperar pelas obrigações que o calendário impõe — está aqui.
 

domingo, dezembro 10, 2023

"A televisão fabrica esquecimento" [citação]

>>> A televisão fabrica esquecimento.
O cinema sempre fabricou memórias.

JEAN-LUC GODARD
in Le mépris de la télé
[montagem: INA]

sexta-feira, novembro 24, 2023

Godard
— todos os ecrãs do mundo

La Chinoise (1967):
“É preciso confrontar as ideias vagas com imagens claras”

Apresentada no âmbito do recente LEFFEST, a exposição de Fabrice Aragno sobre o universo cinematográfico de Jean-Luc Godard — “Éloge de l’Image - Le Livre d’Image”, até 2 de dezembro, na Trienal de Arquitectura (Palácio Sinel de Cordes, Campo de Santa Clara, próximo da zona da Feira da Ladra) — leva-nos a revisitar os momentos mais emblemáticos da sua filmografia, perguntando: o que é isso de ver o mundo através de um ecrã? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 novembro).

Um dos aspectos mais fascinantes da exposição “Éloge de l’Image - le Livre d’Image” decorre do facto de os seus ecos, directos ou simbólicos, ultrapassarem (e muito!) a referência ao filme que a inspira: O Livro de Imagem (2018), essa obra terminal de alguém que sempre questionou o modo como, do cinema à publicidade, passando pela televisão, nos relacionamos com as imagens. Num resumo esquemático, eventualmente sugestivo, podemos mesmo dizer que Jean-Luc Godard nos deixou um legado através do qual não nos limitamos a identificar o que está numa imagem. Porquê? Sabemos que, face a essa imagem, tudo em nós se transfigura — pensamentos, emoções, relações com os outros.
Numa parede da casa em que se passa o essencial do filme La Chinoise (1967), Godard escreveu esta frase que, muito mais do que um preceito cinematográfico, pode ser entendida como um princípio de vida: “É preciso confrontar as ideias vagas com imagens claras.” Tendo em conta que esse é um filme tradicionalmente apontado como exemplar do seu “período político”, vale a pena acrescentar que tal classificação só peca por defeito. Isto porque não há nada mais político do que olhar o mundo e transfigurá-lo em imagens — a noção de que, todos os dias, as televisões se limitam a “reproduzir” o mundo é mesmo um caso extremo de distração ou ingenuidade.
Lembremos, por isso, as cenas de O Desprezo (1963) em que as personagens interpretadas por Brigitte Bardot, Michel Piccoli e Fritz Lang assistem à projecção de extractos do filme que estão a rodar. Ou o pioneirismo de Número Dois (1975), expondo o modo como as mensagens televisivas passaram a integrar de forma visceral a nossa percepção do mundo, nessa medida afectando também a nossa identidade. Ou a rodagem de um filme dentro do filme, em Paixão (1982), tendo como inspiração várias obras-primas da história da pintura, incluindo A Ronda da Noite, de Rembrandt. Ou ainda o poético jogo de espelhos de que se faz o autobiográfico J.L.G. por J.L.G. (1994), celebrando a vida, pressentindo a irrisão da morte.
Que liga todos esses momentos? Pois bem, a certeza de que o mundo é palco de um jogo infinito de ecrãs em que algumas vezes podemos descobrir o que somos, noutras assumimos máscaras que podem ter tanto de revelação como de impostura. Por alguma razão, Godard sempre se interessou pelas linguagens televisivas e pelo modo como a sua espectacular proliferação mudou as sociedades. Não por qualquer processo de demonização — afinal de contas, desde a sua fase “política”, ele trabalhou frequentemente para televisão. Antes porque algumas componentes do espaço televisivo podem banalizar e esquematizar as próprias relações humanas, incluindo a dimensão política dessas relações. Ou como ele disse uma vez: quando um filme se estreia numa sala, apesar de tudo temos a certeza que os respectivos espectadores tomaram a decisão de o ver — quando passa na televisão, “não sei para onde vai”.

terça-feira, fevereiro 07, 2023

A vida depois da morte do cinema

A Árvore da Vida (2011), ou a condição humana do cinema

O cinema está a morrer, ferido por muitas formas de mercantilismo? Talvez, mas os filmes sobrevivem — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 janeiro).

Que aconteceu no cinema ao longo da segunda década do século XXI? Continuando a sua tradição de organizar as memórias cinéfilas por décadas, a editora Taschen lançou recentemente o volume 100 Movies of the 2010s. A série de livros, sempre com coordenação de Jürgen Müller, chega, assim, ao décimo título, completando o balanço de cem anos de filmes a partir dos anos 20 do século passado (a publicação não seguiu a ordem cronológica, tendo começado, em 2001, com o volume dedicado aos anos 90).
Como acontece face a qualquer lista, é sempre possível fazer um inventário dos títulos que faltam — entenda-se: dos títulos que “alguém” entende que faltam, na certeza de que esse “alguém” não possui a razão de uma lei inquestionável. Por mim, então, atrevo-me a perguntar como é possível compreender as dinâmicas dos anos evocados (2011-2020) sem citar, pelo menos, um filme de Jean-Luc Godard, a começar pela prodigiosa experiência com o 3D que é Adeus à Linguagem. Ou que sentido faz evocar “modernices” pretensiosas como A Lagosta, de Yorgos Lantimos, ao mesmo tempo que verificamos que entre os ausentes estão autores da dimensão de Pedro Costa, Pablo Larraín ou Steven Spielberg?
Enfim, não deitemos fora a cinefilia com a água das listas e sublinhemos o essencial: 100 Movies of the 2010s é um guia estimulante para reavaliarmos a pluralidade de um tempo de produção em que, dos criadores aos espectadores, conscientemente ou não, todos fomos (e continuamos a ser) protagonistas de uma avalanche de mudanças.
A conjuntura pode resumir-se através da dicotomia, tão dramática quanto sugestiva, que todos passámos a conhecer. A saber: a coexistência, nem sempre pacífica, entre o circuito tradicional das salas e as alternativas de consumo caseiro — a década ficou marcada, precisamente, pelas convulsões dessa coexistência.
Assim se escreve numa breve, mas muito concisa, apresentação: “Mesmo antes de os habituais intervalos entre o lançamento nas salas e posteriores formas de distribuição se terem tornado ainda mais pequenos, os filmes viram-se muitas vezes reduzidos à condição de mero “conteúdo”, para serem vistos através de um click em ecrãs coloridos.” Daí a angustiada interrogação: “Será que tudo o que resta do cinema é o culto da celebridade, os blockbusters e os efeitos visuais fabricados por computador?”
Apesar de tudo isso (ou através disso tudo), a resposta é negativa. Entenda-se: o que resta do cinema possui a energia positiva inerente a qualquer crise artística, mesmo quando, como é o caso, contaminada por muitos valores predominantemente industriais e comerciais. Se quisermos adoptar a ironia de uma célebre frase de Godard, cada um de nós pode mesmo dizer: “Aguardo a morte do cinema com optimismo.” Sem esquecer que, também no cinema e nas suas histórias, não há axiomas mágicos nem definitivos — a frase, convém lembrar, pertence a uma resposta dada a um inquérito sobre o futuro do cinema francês, organizado pelos Cahiers du Cinéma em… 1965.
Os filmes resistem. Eis a certeza que não podemos nem devemos banalizar, mesmo quando reconhecemos que, face à nossa fraqueza educacional, as gerações mais novas foram (e continuam a ser) massacradas pela ideologia de um marketing transnacional que reduz a percepção do cinema a uma acumulação pueril de proezas técnicas. Mais do que isso: o cinema é frequentemente apresentado — e, por consequência, vivido — como uma coleção mais ou menos espectacular de “eventos” sustentados por gigantescas promoções, não uma paisagem de narrativas. O que, bem entendido, define uma concepção mercantil das artes que afecta muito mais do que o cinema — grande questão política (e para os protagonistas da cena política).
Aquilo que resiste nos filmes começa (ou acaba) por ser um insubstituível princípio ético: o valor humano das narrativas, ou seja, o valor narrativo das personagens. O exemplo está na capa de 100 Movies of the 2010s: aí encontramos a imagem manipulada, mas belíssima, de Joaquin Phoenix no filme Joker (2019), de Todd Phillips — demasiado humanos, actor e personagem transcendem as fronteiras do próprio factor humano, afirmando-se como entidades que só existem no cinema, pelo cinema, através do cinema.
Afinal de contas, por aqui passam títulos tão especiais como A Árvore da Vida (2011), de Terrence Malick, Amor (2012), de Michael Haneke, Chama-me pelo Teu Nome (2017), de Luca Guadagnino, Linha Fantasma (2017), de Paul Thomas Anderson, ou Mank (2020), de David Fincher. Através do génio de tais filmes, diluem-se as fronteiras geográficas e as diferenças entre os respectivos modos de difusão.
Sem esquecer Era uma vez em Hollywood (2019), de Quentin Tarantino, filme que, no prefácio, Jürgen Müller e Philipp Bühler elegem como símbolo das certezas e ambiguidades de uma década em que o cinema, mais do que nunca, se viu compelido a reavaliar os seus modos de ser e viver, talvez morrer. Vale a pena citá-los: “A verdade do cinema é artificial. Tem que ser criada. E ainda assim, se aceitarmos a motivação paradoxal que determina o filme, então o cinema acaba por estabelecer uma conexão íntima com as nossas vidas porque as nossas vidas já são um filme.”

terça-feira, outubro 04, 2022

O cinema, Godard,
a sua morte e a nossa vida

PABLO PICASSO
Les Demoiselles d'Avignon
1907

Eis uma pergunta que herdámos de Jean-Luc Godard: “Ainda te lembras como costumávamos treinar o nosso pensamento?” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 setembro).

Há um curioso cliché defensivo nos debates televisivos com personalidades do mundo da política. Sempre (enfim, quase sempre) que uma dessas personalidades apresenta alguma argumentação sobre um determinado facto político, considerando que aquilo que aconteceu não pode ser separado da sua representação jornalística, há sempre (muitas vezes, enfim) um moderador que rapidamente bloqueia tal via de reflexão, lembrando que se está a falar de “política”, não de “comunicação social”.
Eis uma mitologia pueril: dir-se-ia que há quem acredite que a “comunicação” é algo de tão puro e, sobretudo, tão unívoco que a sua simples existência a dispensa de qualquer reflexão sobre as respectivas coordenadas e narrativas ou, no limite, a sua responsabilidade “social”.
A questão é tanto mais complexa — e, por isso, tanto mais fascinante — quanto até mesmo a noção primordial segundo a qual essa comunicação deve respeitar a verdade e demarcar-se da mentira não esgota a sua complexidade. Exemplo? É verdade que Cristiano Ronaldo andou a tentar mudar de clube, mas há uma diferença (social, justamente) entre essa notícia difundida uma vez, quando se soube do caso, ou a mesma notícia transformada em folhetim, repetida várias vezes por dia, sem qualquer complemento à informação inicial, ao longo de uma semana… Ou mais.
Outro exemplo: a morte do cineasta Jean-Luc Godard (no dia 13 de setembro, em Rolle, na Suíça, contava 91 anos). Escusado será dizer que, neste caso, como na possibilidade de uma reflexão mais abrangente como atrás referi, não me estou a colocar numa posição exterior ao problema — sou jornalista, sendo este texto, mal ou bem, também um sublinhado muito subjectivo dessa condição. Mais ainda: considero Godard um criador da dimensão de um Leonardo da Vinci ou um Mozart, sem o qual não é possível compreender o essencial das convulsões (técnicas, temáticas, estéticas) que marcam o cinema ao longo das últimas seis décadas.
Como uma espécie de virose sem origem nem pensamento, comecei a ler e a ouvir (e não me estou a referir apenas ao espaço português) que a pluralidade da filmografia de Godard, mesmo rejeitada por muitos espectadores, teria sido redimida por uma singular forma de consagração: ele foi, afinal, “aclamado pela crítica”.
Como? Importa-se de repetir? Aclamado? Pela crítica? Qual crítica?
O “fundamento” desta afirmação, mais do que paternalista, é insultuoso: o trabalho dos críticos de cinema volta a surgir como o resultado uniforme e universal do sonambulismo de um rebanho a que se dá o nome de “crítica”, omitindo todas as diferenças, quase sempre inconciliáveis, que se manifestam nesse mesmo trabalho.
Se havia algo de objectivo (entenda-se: eminentemente jornalístico) a referir sobre as relações entre a obra de Godard, as suas leituras e valorações, seria, precisamente, o seu profundo e perene efeito de divisão no território dos discursos críticos. Aliás, teria sido pertinente lembrar também que tal efeito começou com a geração de críticos, futuros cineastas da Nova Vaga francesa (Godard, Truffaut, Rohmer, etc.), que introduziram enormes clivagens na análise dos filmes, no seu enquadramento histórico e, em termos gerais, no pensamento do cinema — e para o cinema.
Permito-me, por isso, saudar a frontalidade intelectual de António-Pedro Vasconcelos que, numa intervenção televisiva (RTP3) a propósito da morte de Godard, se manteve fiel ao seu pensamento, considerando que, depois da Nova Vaga e dos acontecimentos de Maio de 68, Godard se tornou “maoísta”, destruindo tudo aquilo que seria o legado (a palavra é minha) do seu trabalho anterior. Pela minha parte, não poderia estar mais em desacordo com tal ponto de vista, mas é bom saber que há quem, serenamente, não se deixe envolver pela ditadura narrativa daquilo que “fica bem” dizer-se quando alguém morre.
Porque, em última instância, é isso que está em jogo — jogo de vida, jogo de morte. Que está a acontecer no nosso mundo mediático (ao qual, insisto, pertenço) para que a morte de qualquer personalidade com alguma dimensão pública, ainda que minimalista, seja maioritariamente tratada como uma espécie de missa sem sacerdote que reduz essa mesma personalidade a uma figura angelical que viveu num universo sem contrastes nem contradições?
O filme O Livro de Imagem, derradeira longa-metragem de Godard — a meu ver tão significativo para a modernidade cinematográfica como Les Demoiselles d’Avignon (1907), de Pablo Picasso, para a pintura do século XX — estreou-se nas salas portuguesas, com distribuição da Midas Filmes, no dia 6 de dezembro de 2018. Segundo os dados oficiais do ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual), O Livro de Imagem esteve em exibição seis semanas, até 16 de janeiro, tendo sido visto por um total de 1343 espectadores.
A pequenez de tal número é apenas uma variante de um fenómeno das últimas décadas: são muito poucos os que, realmente, viram os filmes de Godard. O certo é que, perante o clamor de exaltação e reverência suscitado pela notícia da sua morte, dir-se-ia que, depois do lançamento de Gabriela (16 de maio de 1977), os nossos horários nobres têm sido preenchidos apenas e só com filmes de Godard...
Num curtíssimo filme (2 minutos) que aborda uma fotografia da guerra da Bósnia — Je Vous Salue, Sarajevo (1993) —, Godard fala da cultura como a “regra” e da arte como a “excepção”. E refere alguns “objectos” que estipulam a regra que “todos dizem”. São eles: “cigarro, computador, t-shirt, televisão, turismo, guerra”. Acrescenta que “ninguém diz a excepção”. Porquê? Porque “isso não se diz, escreve-se: Flaubert, Dostoievski; compõe-se: Gershwin, Mozart; pinta-se: Cézanne, Vermeer; filma-se: Antonioni, Vigo. Ou isso vive-se e, então, é a arte de viver: Srebrenica, Mostar, Sarajevo.” E termina citando Louis Aragon (peço desculpa pela tradução literal): “Quando for necessário fechar o livro, será sem lamentar nada. Vi tanta gente viver tão mal e tanta gente morrer tão bem.”



Sempre me pareceu que muitas pessoas que rejeitam Godard (não me estou a referir a António-Pedro Vasconcelos, nem sequer a uma questão especificamente portuguesa), não o fazem por qualquer “gosto”, mas cedendo à lenda de um Godard “experimentalista”, alheio às convulsões do mundo. Em boa verdade, o que nele é mais radical, porventura mais incómodo, é o facto de, mal ou bem, nunca ter deixado de lidar com a vida e a morte, o indizível da morte e essa “arte de viver” que Bertolt Brecht (um dos seus mestres) considerava “a maior de todas as artes”.
O que é intolerável para a formatação mediática do nosso presente é que a arte não seja (nunca foi, nunca será) um consenso sancionado por serviços fúnebres, mas uma guerra de ideias. Na publicidade ao filme O Livro de Imagem, há um texto que começa com uma pergunta romântica: “Ainda te lembras como costumávamos treinar o nosso pensamento?” E termina com uma informação jornalística: “A guerra está aqui.”

sábado, setembro 17, 2022

Para Godard a guerra acabou

Godard filmado por Godard em Atenção à Direita (1987)

Dos tempos heróicos da Nova Vaga francesa até à sábia integração de técnicas e linguagens da televisão, Jean-Luc Godard é um dos nomes maiores da história moderna do cinema: faleceu em Rolle, na Suíça, aos 91 anos de idade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 setembro).

O cineasta que em 2014 deu ao seu filme em 3D o título Adeus à Linguagem disse adeus à vida aos 91 anos: Jean-Luc Godard faleceu no dia 13 de setembro em sua casa, na vila suíça de Rolle, nas margens do Lago Léman.
Nascido em Paris, a 30 de dezembro de 1930, o autor de títulos lendários da Nova Vaga francesa como O Acossado (1959), O Desprezo (1963) ou Pedro, o Louco (1965) optou por um processo de morte assistida, prática cuja possibilidade está enquadrada pelo sistema de leis da Suíça. Segundo o jornal Libération, a notícia foi divulgada pela cineasta Anne-Marie Miéville, sua mulher, e outros familiares de Godard, acrescentando que “faleceu pacificamente em sua casa, rodeado pelos seus próximos.” Um amigo da família declarou que esta “era a sua decisão e era importante para ele que se soubesse.”
Em 2014, numa emissão da RTS (Rádio Televisão Suíça), a propósito da passagem de Adeus à Linguagem na competição do Festival de Cannes, Godard fora questionado sobre o legado que seria o seu “para além da morte”, considerando que a questão não se poderia colocar apenas em função da vontade de “morrer o mais tarde possível”. O moderador da conversa contrapôs que, por certo, ele “não tinha pressa de morrer”, tendo obtido esta resposta: “Não me sinto ansioso por continuar a qualquer preço. Se estiver demasiado doente, não tenho qualquer desejo de andar empurrado num carrinho… De maneira nenhuma.”

Nova Vaga & etc.

Talvez se possa dizer que, não apenas Godard, mas os autores da geração que com ele definiram os caminhos e valores da Nova Vaga — François Truffaut, Eric Rohmer, Jacques Rivette, etc. — nasceram para o cinema num labirinto paradoxal, pontuado pelas sombras históricas da morte e pelo desejo radical de novos modos de viver o cinema, com o cinema e para o cinema.
A morte significava, neste caso, antes de tudo o mais, a trágica herança da Segunda Guerra Mundial e dos crimes do Holocausto. Não por acaso, a questão da representação desses crimes vai pontuando, de forma directa ou implícita, a obra de Godard, acabando por adquirir uma importância decisiva na última parte desse monumental filme/video que é História(s) do Cinema (1989-1999). Numa emissão radiofónica da France Culture, em 2016, em diálogo com o escritor e cineasta Noël Simsolo, Godard sublinhava mesmo aquilo que considerava como uma escassez de filmes capazes de lidar com tal herança, citando as excepções de Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini, e Noite e Nevoeiro (1956), de Alain Resnais.
Para os protagonistas da Nova Vaga, a energia vital provinha da tenacidade com que defendiam, nomeadamente na revista Cahiers du Cinéma, os grandes criadores do cinema clássico, por vezes os mais menosprezados (Howard Hawks, Alfred Hitchcock, etc.), apostando na possibilidade de uma genuína revolução de linguagens. No caso de Godard, esse foi um processo vivido de modo cada vez mais dramático — porque mais severo em relação aos valores da “sociedade de consumo” —, desembocando num violento cepticismo social. Veja-se e reveja-se o apocalipse conjugal e familiar de Fim de Semana, ou o retrato, entre didactismo e burlesco, dos estudantes maoístas em La Chinoise.
O desencanto visceral destes títulos, ambos de 1967, valeram-lhes o rótulo de objectos “premonitórios” de Maio de 68. Será um exagero simbólico — Godard sempre escolheu o presente contra qualquer pretensão “profética” —, mas é um facto que se seguiu uma “fase militante” em que as convulsões políticas do mundo (das heranças marxistas à Guerra do Vietname) encontraram ecos vários em títulos como One + One (1968), tendo como ponto de partida os Rolling Stones e as gravações do álbum Beggars Banquet, ou Le Gai Savoir (1969), inspirado no Émile, de Rousseau.
Essa digressão “militante” gerou títulos pedagógicos como Lotte in Italia (1969) ou Vladimir et Rosa (1971), mas foi vivida com crescente desilusão, já que várias estações de televisão que financiaram os filmes não os quiseram difundir. Efeito prático: um regresso crítico à grande indústria com Tudo Vai Bem (1972). Dominado pela presença de duas estrelas — Yves Montand e Jane Fonda —, o filme tem um lugar decisivo nas transformações temáticas e estéticas de Godard, até porque seria a partir daí que, por novo e fascinante paradoxo, ele começa a usar as novíssimas câmaras de video: Número Dois (1975), sobre a desagregação do espaço familiar e o poder crescente da televisão, foi a “bandeira” desse processo.

Televisão, meu amor

Salve-se quem Puder (1980) emerge, assim, como um momento decisivo, não apenas na evolução do seu realizador, mas para toda a história do cinema nas décadas finais do século XX. Aí encontramos o gosto de integrar formas de manipulação técnica das imagens que, ironicamente ou não, provêm do espaço televisivo, ao mesmo tempo que uma metódica contemplação da decomposição das relações humanas, porventura ansiando por algum resgate de natureza metafísica.
Paixão (1982), Nome: Carmen (1983), Eu Vos Saúdo, Maria (1985) ou Atenção à Direita (1987) são alguns dos capítulos emblemáticos dessa fase, com Godard, em alguns deles, em tom de calculada ironia, a assumir também funções de actor secundário. O desenlace de tudo isso tem o título, naturalmente ambíguo, de Nouvelle Vague (1990), numa espécie de espelho de um romantismo para sempre perdido, ainda que dolorosamente “reinventado” através do par formado por Alain Delon e Domiziana Giordano (a actriz italiana que Andrei Tarkovski revelara, em 1983, no seu Nostalgia).
Os trabalhos finais de Godard — Filme Socialismo (2010), o já citado Adeus à Linguagem e O Livro de Imagem (2018) — exprimem o fulgor de um artista liberto de todas as barreiras de “estilo” ou “género”, continuando a aplicar com alegria algumas alternativas técnicas ligadas ao espaço televisivo. Godard protagonizou, assim, uma verdadeira guerra de linguagens que faz dele um dos poucos a revolucionar a história da própria televisão. Resta saber o que podemos, ou sabemos, fazer com a sua herança.