A BBC apresentou esta semana um novo documentário sobre o maestro que, entre 1956 e 1989 comandou os destinos da Berliner Philharmoniker.
Podem ler aqui, no Guardian, um texto sobre esse documentário.
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domingo, dezembro 07, 2014
domingo, setembro 14, 2014
Karajan: um homem de discos (4)
Hoje falamos sobre o que era, afinal, o "som" Karajan e recordamos o seu método de trabalho em estúdio, durante gravações. Este texto é parte de um artigo sobre uma série de reedições e antologias que revisitam a obra de Herbert von Karajan registada pela Deutsche Grammophon que foi recentemente publicado no suplemento Q. do DN com o título: 'Foram os discos que deram a Karajan a sua fama global'.
O ciclo de Beethoven cujas gravações começaram em 1962, definiu “uma estética sonora que se fez mítica”, defende Thierry Soveaux em Deutsche Grammophon: State of the Art. Gravados na Jesus Christus-Kirche em Berlim-Dahlem, estes discos representam a primeira integral sinfónica de Beethoven em estéreo. Soveaux defende contudo que “o esplendor do som Karajan/Berlim” ganhou com a chegada da nova tecnologia digital.
Para Michel Glotz, produtor executivo das gravações do maestro, o “som” de Karajan era “rico, cheio e sensual”, revelando que “contrariamente ao que muitas vezes foi escrito o som foi relativamente pouco retrabalhado tecnologicamente salvo algumas ocasiões – para fazer sobressair as cordas, por vezes os metais – de acordo com os desejos de Karajan” (13). O produtor garante que nunca manipularam o som “para enaltecer um legato ou alterar o volume”.
Tendo seguido Karajan durante mais de 30 anos, Glotz diz-se “bem colocado para comentar o facto de esta ideia do ‘som Karajan’ ser excessiva, como se se estivesse a falar de uma receita fixa”. Porque, defende, “o som evoluiu, não apenas por conta da sua própria demanda estética, mas também pelos desenvolvimentos tecnológicos na gravação sonora e meios onde, como por vezes se esquece, se determina a reprodução final do som”. O produtor sublinha ainda que não só Karajan se “adaptava perfeitamente às mudanças tecnológicas para fazer delas o melhor uso estético, como buscava constantemente novos desenvolvimentos”. Essa é a razão pela qual explica porque regravaram os principais trabalhos do seu repertório, como as sinfonias de Beethoven e Brahms. (14)
Do ponto de vista meramente estético Glotz aponta os maestros Wilhelm Furtwangler, Bruno Walter e Arturo Toscanini como os modelos de Karajan. “Era uma síntese da disciplina germânica e a criatividade mediterrânica”, acrescenta. Muitas vezes dizia que era um austríaco com raízes gregas, comenta o produtor. Karajan “admirava Giulini, e da sua geração gostava de Maazel. Tinha uma boa relação com Bernstein, que convidava para almoçar sempre que vinha à Europa”. Glotz diz que Karajan teve mais que respeito por Bernstein, que terá levado Karajan a aderir a Mahler, o que aconteceu na etapa final da sua carreira.
Ao contrário do mítico Karl Böhm, que abria os braços para o público no final das suas atuações, ou da pose quase dançante com que Bernstein muitas vezes acompanhava certas obras, Karajan optava por um registo discreto e sóbrio frente às plateias. Era um homem reservado. A historiadora Annemarie Kleinert defende que essa atitude, que alguns apontam como timidez, talvez tenha ajudado a construir a sua própria fama. “Ele ganhou uma imagem de arrogante e altivo nos media, graças a anos de cooperação (ou melhor, de não cooperação), mas tinha um bom relacionamento” com a sua equipa técnica em estúdio, recorda o produtor Ewald Markl (15)
Em estúdio “gravava takes longos, raramente interrompidos, e só tinha a partitura na mão quando fazia correções ou estava ao telefone”. As gravações decorriam “numa atmosfera de concentração calma e nunca uma palavra era proferida em alto volume. Ele só ficava visivelmente irritado se fosse interrompido durante o seu trabalho”, recorda Ewald Markl, produtor e editor na Deutsche Grammophon. (16) Seguia as gravações com auscultadores e tinha consigo um cronómetro para anotar eventuais correções. Muitas vezes passou noites frente à mesa de mistura com os técnicos. E frequentemente elogiava perante os músicos o trabalho das equipas de estúdio. A sua fácil adesão às novas tecnologias talvez seja expressão de uma paixão antiga, já que, antes de mudar para música, passou três semestres na Technische Hochschule da Universidade de Viena.
Apesar de ter passado por etapas distintas na maneira de dirigir, dos pungentes movimentos de pulso que recorda quem os viu nos anos 30 aos modos mais subtis com que os vemos nas gravações em vídeo captadas na década de 80. Ao longo dos tempos o que não mudou foi o seu hábito de dirigir sem a partitura à sua frente. Tanto que, nos próprios ensaios, citava por vezes Hans von Bülow, que afirmara que “um músico não deve ter a sua cabeça na partitura, mas a partitura na cabeça”. O facto de se apresentar frente à orquestra sem partitura, muitas vezes dirigindo de olhos fechados, chegou a gerar alguns episódios, um deles tendo enervado Adolf Hitler durante uns Mestres Cantores de Nuremberga, na Berlin Staatsoper em junho de 1939 quando, depois de um dos cantores se ter sentido indisposto e saltado uma passagem, a confusão se instalou por momentos.
Para Michel Glotz, produtor executivo das gravações do maestro, o “som” de Karajan era “rico, cheio e sensual”, revelando que “contrariamente ao que muitas vezes foi escrito o som foi relativamente pouco retrabalhado tecnologicamente salvo algumas ocasiões – para fazer sobressair as cordas, por vezes os metais – de acordo com os desejos de Karajan” (13). O produtor garante que nunca manipularam o som “para enaltecer um legato ou alterar o volume”.
Tendo seguido Karajan durante mais de 30 anos, Glotz diz-se “bem colocado para comentar o facto de esta ideia do ‘som Karajan’ ser excessiva, como se se estivesse a falar de uma receita fixa”. Porque, defende, “o som evoluiu, não apenas por conta da sua própria demanda estética, mas também pelos desenvolvimentos tecnológicos na gravação sonora e meios onde, como por vezes se esquece, se determina a reprodução final do som”. O produtor sublinha ainda que não só Karajan se “adaptava perfeitamente às mudanças tecnológicas para fazer delas o melhor uso estético, como buscava constantemente novos desenvolvimentos”. Essa é a razão pela qual explica porque regravaram os principais trabalhos do seu repertório, como as sinfonias de Beethoven e Brahms. (14)
Do ponto de vista meramente estético Glotz aponta os maestros Wilhelm Furtwangler, Bruno Walter e Arturo Toscanini como os modelos de Karajan. “Era uma síntese da disciplina germânica e a criatividade mediterrânica”, acrescenta. Muitas vezes dizia que era um austríaco com raízes gregas, comenta o produtor. Karajan “admirava Giulini, e da sua geração gostava de Maazel. Tinha uma boa relação com Bernstein, que convidava para almoçar sempre que vinha à Europa”. Glotz diz que Karajan teve mais que respeito por Bernstein, que terá levado Karajan a aderir a Mahler, o que aconteceu na etapa final da sua carreira.
Ao contrário do mítico Karl Böhm, que abria os braços para o público no final das suas atuações, ou da pose quase dançante com que Bernstein muitas vezes acompanhava certas obras, Karajan optava por um registo discreto e sóbrio frente às plateias. Era um homem reservado. A historiadora Annemarie Kleinert defende que essa atitude, que alguns apontam como timidez, talvez tenha ajudado a construir a sua própria fama. “Ele ganhou uma imagem de arrogante e altivo nos media, graças a anos de cooperação (ou melhor, de não cooperação), mas tinha um bom relacionamento” com a sua equipa técnica em estúdio, recorda o produtor Ewald Markl (15)
Em estúdio “gravava takes longos, raramente interrompidos, e só tinha a partitura na mão quando fazia correções ou estava ao telefone”. As gravações decorriam “numa atmosfera de concentração calma e nunca uma palavra era proferida em alto volume. Ele só ficava visivelmente irritado se fosse interrompido durante o seu trabalho”, recorda Ewald Markl, produtor e editor na Deutsche Grammophon. (16) Seguia as gravações com auscultadores e tinha consigo um cronómetro para anotar eventuais correções. Muitas vezes passou noites frente à mesa de mistura com os técnicos. E frequentemente elogiava perante os músicos o trabalho das equipas de estúdio. A sua fácil adesão às novas tecnologias talvez seja expressão de uma paixão antiga, já que, antes de mudar para música, passou três semestres na Technische Hochschule da Universidade de Viena.
Apesar de ter passado por etapas distintas na maneira de dirigir, dos pungentes movimentos de pulso que recorda quem os viu nos anos 30 aos modos mais subtis com que os vemos nas gravações em vídeo captadas na década de 80. Ao longo dos tempos o que não mudou foi o seu hábito de dirigir sem a partitura à sua frente. Tanto que, nos próprios ensaios, citava por vezes Hans von Bülow, que afirmara que “um músico não deve ter a sua cabeça na partitura, mas a partitura na cabeça”. O facto de se apresentar frente à orquestra sem partitura, muitas vezes dirigindo de olhos fechados, chegou a gerar alguns episódios, um deles tendo enervado Adolf Hitler durante uns Mestres Cantores de Nuremberga, na Berlin Staatsoper em junho de 1939 quando, depois de um dos cantores se ter sentido indisposto e saltado uma passagem, a confusão se instalou por momentos.
(13) in Deutsche Grammophon: State of the Art (Rizzoli, 2009), pág. 160.
(14) ibidem.
(15) idem, págs. 163-64.
(16) ibidem.
sábado, agosto 23, 2014
Karajan: um homem de discos (3)
Hoje recordamos a história da relação de Herbert von Karajan com os discos, sobretudo na etapa em que esteve ligado à Deutsche Grammophon. Este texto é parte de um artigo sobre uma série de reedições e antologias que revisitam a obra de Herbert von Karajan registada pela Deutsche Grammophon que foi recentemente publicado no suplemento Q. do DN com o título: 'Foram os discos que deram a Karajan a sua fama global'.
Karajan “era um homem de discos”, diz Andreas Holschneider (12), antigo presidente da Deutsche Grammophon, editora para a qual registou alguns dos seus discos mais célebres e à qual esteve ligado em dois períodos da sua vida.
O maestro já tinha gravado para a editora alemã antes da guerra, estreando-se no catálogo com abertura da Flauta Mágica, de Mozart, em 1938. O regresso fez-se em 1959 com uma gravação de Ein Heldebleben, de R. Strauss (que também surge na caixa antológica). Mas o momento que marca um entendimento maior (e vitalício) entre o maestro e a editora chegou em 1963, com a edição de uma primeira integral das sinfonias de Beethoven com discos que foram vendidos por subscrição. Esta edição tornou-se não apenas uma referência do catálogo da editora como um símbolo da conquista de um estatuto que Karajan não mais perderia. Em Deutsche Grammophon: State of the Art, livro que conta a história visual e musical da editora, recorda-se que o crítico britânico Norman Lebrecht sublinhou o “carácter dúbio” do que então emergiu como um pacto entre Elsa Schiller (de ascendência judia e uma história pessoal que tinha passado por um período de deportação durante dois anos) e Karajan e Ernst von Siemens, figuras que tinham ganho primeiros momentos de notoriedade durante o regime nazi.
Ao mesmo tempo que Karajan chega à editora pela Deutsche Grammophon surgem importantes gravações de nomes como os de Lorin Maazel, Dietrich Fischer-Dieskau, Martha Agerich e Claudio Abbado (que seria mais tarde o seu sucessor em Berlim). Compositores contemporâneos como Karlheinz Stockhausen ou Mauricio Kagel assinalam, ao mesmo tempo, uma vontade da editora em manter uma presença na vanguarda na invenção musical. A década de 60 é particularmente frutuosa em gravações marcantes de Karajan, entre as quais as sinfonias de Brahms, óperas como Pagliacci e Cavaleria Rusticana captadas no La Scala, sinfonias de Bruckner e Shostakovich e uma grande tetralogia do Anel do Nibelungo registada em Berlim, numa produção conjunta com o Festival de Salzburgo, que ele mesmo fundou.
Ao mesmo tempo que Karajan chega à editora pela Deutsche Grammophon surgem importantes gravações de nomes como os de Lorin Maazel, Dietrich Fischer-Dieskau, Martha Agerich e Claudio Abbado (que seria mais tarde o seu sucessor em Berlim). Compositores contemporâneos como Karlheinz Stockhausen ou Mauricio Kagel assinalam, ao mesmo tempo, uma vontade da editora em manter uma presença na vanguarda na invenção musical. A década de 60 é particularmente frutuosa em gravações marcantes de Karajan, entre as quais as sinfonias de Brahms, óperas como Pagliacci e Cavaleria Rusticana captadas no La Scala, sinfonias de Bruckner e Shostakovich e uma grande tetralogia do Anel do Nibelungo registada em Berlim, numa produção conjunta com o Festival de Salzburgo, que ele mesmo fundou.
Dos anos 70 recordam-se abordagens aos três grandes da segunda escola vienense, uma histórica gravação das Quatro Últimas Canções de Richard Strauss (com a voz de Gundula Janowitz) e novas integrais de Beethoven (entre 1975 e 77, apontadas aos 150 anos da morte do compositor) e Brahms (1977-78). Em 1972 chega à Deutsche Grammophon um outro maestro de primeira linha, Leonard Bernstein (também compositor), com quem Karajan partilhou o espaço editorial onde então se mostravam novas gravações de Carlo Maria Giulini, Seiji Ozawa ou Carlos Kleiber. A violinista Anne Sophie Mutter, uma das principais descobertas do catálogo da editora nos anos 70, deveu-se contudo a Karajan, que a dirigiu, ao lado da Filarmónica de Berlim, em dois concertos para violino com os quais a jovem se estreou em 1978.
Nos anos 80, Karajan gravou pela terceira vez as integrais de Beethoven (em registo digital) e Brahms, não apenas em áudio mas também em vídeo. No Vaticano dirigiu uma Missa da Coroação, de Mozart, frente a João Paulo II, que conheceu edição pouco depois. A seu lado a editora mostrava agora discos de Abbado, Levine, Sinopoli e Bernstein, que se afirmaria nessa etapa como um vulto igualmente gigante no seu catálogo.
Em 1988 a editora assinalou o 80.º aniversário do maestro reeditando as suas gravações originalmente ali lançadas em discos de 78 rpm entre 1939 e 1943. Estes registos surgiram numa série de 24 CD com capas ilustradas com pinturas de Eliette, a segunda mulher do maestro. A sua derradeira gravação teve lançamento póstumo: uma Sinfonia n.º 7 de Bruckner (curiosamente Bernstein, que morreu pouco mais de um ano depois, teve também com Bruckner a sua despedida, no seu caso uma Sinfonia n.º 9).
(12) in Deutsche Grammophon: State of the Art (Rizzoli, 2009), pág. 163.
(12) in Deutsche Grammophon: State of the Art (Rizzoli, 2009), pág. 163.
domingo, agosto 17, 2014
Karajan: um homem de discos (2)
Hoje recordamos a história da relação de Herbert von Karajan com a Orquestra Filarmónica de Berlim, que comandou durante 35 anos. Este texto é parte de um artigo sobre uma série de reedições e antologias que revisitam a obra de Herbert von Karajan registada pela Deutsche Grammophon que foi recentemente publicado no suplemento Q. do DN com o título: 'Foram os discos que deram a Karajan a sua fama global'.
A longa relação, de 35 anos, com a Orquestra Filarmónica de Berlim cimentou o estatuto global daquela que ainda hoje é uma das grandes orquestras mundiais. Apesar de colaborações anteriores, a mais profunda ligação entre maestro e orquestra começou em dezembro de 1954, quando os músicos o convidam durante os preparativos para uma viagem já planeada aos EUA. Quando Karajan assinou o contrato preliminar, em 1955, estava ainda a exercer cargos importantes em três instituições austríacas: a Wiener Staatsoper, o Wiener Singverein e o Festival de Salzburgo. Atuava então frequentemente com a Filarmónica de Viena, com a qual fazia digressões, dirigia frequentemente no La Scala (Milão), apresentava-se com uma orquestra suíça em Lucerna e gravava com a London Philharmonia Orchestra.
No livro sobre a orquestra Music At Its Best: The Berlin Philharmonic a historiadora Annemarie Kleinert frisa mesmo que, durante os primeiros anos em que Karajan assumiu a direção da Orquestra Filarmónica de Berlim, Viena era a sua casa, tanto que durante muito tempo teve uma suíte no hotel Savoy em Berlim, mais tarde no Kempinski, ao mesmo tempo que mantinha residências em Salzburgo, Saint Mauritz e Saint Tropez. O seu calendário contratual obrigava-o a sete meses de obrigações anuais em Viena, aos quais somava mais dois em Salzburgo. Dava então em Berlim os seis concertos anuais agendados, aos quais juntava o de Ano Novo, assim como acompanhava a orquestra em digressão. Annemarie nota no livro que Karajan ensaiava “intensamente nas poucas semanas da sua presença” em Berlim e que fazia já gravações com a orquestra, mas “em conjunto os músicos tinham apenas esporadicamente a possibilidade de discutir assuntos importantes com ele”, ao passo que os “espectadores lamentavam a magra presença do principal maestro da sua Filarmónica” (8).
A mudança na relação com Berlim – que então começa a surgir com evidente protagonismo na vida de Karajan – surge não apenas após a sua ligação discográfica à Deutsche Grammophon, mas também na sequência do enorme sucesso que representou a sua primeira integral das sinfonias de Beethoven. A mudança chega entre 1964/65, período que profissionalmente corresponde à sua saída da Wiener Staatsoper, seguindo-se, até à alvorada da década de 80, o período mais frutuoso da obra de Karajan, datando de então algumas das suas mais significativas edições discográficas à frente da Filarmónica de Berlim.
Do contacto com alguns dos instrumentistas que trabalharam com Karajan, o livro de Annemarie Kleinert relata que “o respeito dos músicos da orquestra baseava-se na admirável autodisciplina e confiança de Karajan, no seu rigor ao seguir os vários planos, a sua empatia, a sua paixão e um conhecimento do que acontecia com qualquer instrumento”. O próprio maestro gabava-se ainda do seu preciso sentido de ritmo, afirmando que “podia dar uma volta ao edifício da Philharmonie e regressar ao ponto de origem num tempo preciso pré-determinado”. (9)
Os músicos da orquestra berlinense dividem-se contudo na avaliação pessoal do maestro. Ao passo que uns recordam a sua preocupação pessoal por hobbies ou, sobretudo, condições clínicas, outros apontam em si uma figura egocêntrica, com um temperamento e “modos ditatoriais” difíceis de lidar, sobretudo nos seus últimos anos de vida. Annemarie Kleinert conta no livro que alguns músicos lhe referiram que o maestro poderia ter usado os óculos em algumas situações. Mas Karajan “seguiu o compositor italiano que deu a Wagner o conselho de nunca usar óculos a dirigir, independentemente dos seus problemas de visão”. A relação de Karajan com a orquestra deteriorou-se nos anos 80. Aumentaram então as disputas entre músicos e maestro, em parte “devido à sua recusa em aceitar, sem ser questionado, certas decisões democráticas”. (10).
No livro sobre a orquestra Music At Its Best: The Berlin Philharmonic a historiadora Annemarie Kleinert frisa mesmo que, durante os primeiros anos em que Karajan assumiu a direção da Orquestra Filarmónica de Berlim, Viena era a sua casa, tanto que durante muito tempo teve uma suíte no hotel Savoy em Berlim, mais tarde no Kempinski, ao mesmo tempo que mantinha residências em Salzburgo, Saint Mauritz e Saint Tropez. O seu calendário contratual obrigava-o a sete meses de obrigações anuais em Viena, aos quais somava mais dois em Salzburgo. Dava então em Berlim os seis concertos anuais agendados, aos quais juntava o de Ano Novo, assim como acompanhava a orquestra em digressão. Annemarie nota no livro que Karajan ensaiava “intensamente nas poucas semanas da sua presença” em Berlim e que fazia já gravações com a orquestra, mas “em conjunto os músicos tinham apenas esporadicamente a possibilidade de discutir assuntos importantes com ele”, ao passo que os “espectadores lamentavam a magra presença do principal maestro da sua Filarmónica” (8).
A mudança na relação com Berlim – que então começa a surgir com evidente protagonismo na vida de Karajan – surge não apenas após a sua ligação discográfica à Deutsche Grammophon, mas também na sequência do enorme sucesso que representou a sua primeira integral das sinfonias de Beethoven. A mudança chega entre 1964/65, período que profissionalmente corresponde à sua saída da Wiener Staatsoper, seguindo-se, até à alvorada da década de 80, o período mais frutuoso da obra de Karajan, datando de então algumas das suas mais significativas edições discográficas à frente da Filarmónica de Berlim.
Do contacto com alguns dos instrumentistas que trabalharam com Karajan, o livro de Annemarie Kleinert relata que “o respeito dos músicos da orquestra baseava-se na admirável autodisciplina e confiança de Karajan, no seu rigor ao seguir os vários planos, a sua empatia, a sua paixão e um conhecimento do que acontecia com qualquer instrumento”. O próprio maestro gabava-se ainda do seu preciso sentido de ritmo, afirmando que “podia dar uma volta ao edifício da Philharmonie e regressar ao ponto de origem num tempo preciso pré-determinado”. (9)
Os músicos da orquestra berlinense dividem-se contudo na avaliação pessoal do maestro. Ao passo que uns recordam a sua preocupação pessoal por hobbies ou, sobretudo, condições clínicas, outros apontam em si uma figura egocêntrica, com um temperamento e “modos ditatoriais” difíceis de lidar, sobretudo nos seus últimos anos de vida. Annemarie Kleinert conta no livro que alguns músicos lhe referiram que o maestro poderia ter usado os óculos em algumas situações. Mas Karajan “seguiu o compositor italiano que deu a Wagner o conselho de nunca usar óculos a dirigir, independentemente dos seus problemas de visão”. A relação de Karajan com a orquestra deteriorou-se nos anos 80. Aumentaram então as disputas entre músicos e maestro, em parte “devido à sua recusa em aceitar, sem ser questionado, certas decisões democráticas”. (10).
O afastamento da orquestra, pedido pelo próprio por carta em abril de 1989, terá não apenas decorrido do facto do agravamento da sua saúde, mas de uma sensação de “humilhação”, como defende Annemarie Kleinert, na sequência de um questionar, pela coligação então no poder, do facto de o maestro ter envelhecido em funções e de estar ausente, não apenas de audições de novos músicos ou das digressões da orquestra, mas até mesmo de Berlim. Karajan terá pedido que especificassem as suas obrigações, da ausência de uma devida resposta surgindo o desencantamento que o conduziu ao pedido de demissão. Morreira poucos meses depois, em julho do mesmo ano. A sua derradeira atuação com a orquestra seria um Requiem de Verdi, em março, em Salzburgo. Desde os 65 Karajan tinha direito a pedir uma rescisão unilateral a qualquer momento. Tinha então 81 anos. O maestro italiano Claudio Abbado, de personalidade (e orientação de repertório) bem distinta suceder-lhe-ia à frente da orquestra. (11)
(8) in Music at Its Best: The Berlin Philharmonic, de Annemarie Kleinert (ed. autor, 2009), págs. 26 e 27.
(9) idem, pág 28.
(10) idem, pág 36.
(11) Apesar das ocasionais incursões de Karajan pela música do século XX, tendo interpretado obras de Berg, Schönberg, Penderecki, Ligeti ou Orff, Claudio Abbado alargou substancialmente a relação da Filarmónica de Berlim para com a música do século XX, através de obras de nomes como Luigi Nono, Hans Werner Henze, Karlheinz Stockhausen ou Wolfgang Rihm, algo que Simon Rattle, o atual diretor artístico da orquestra, levaria ainda mais adiante.
A foto que abre o post mostra Karajan a dirigir a Berliner Philharmoniker numa Sinfonia Nº 9 de Beerhoven na magnífica sala da Philharmonie, em Berlim
(8) in Music at Its Best: The Berlin Philharmonic, de Annemarie Kleinert (ed. autor, 2009), págs. 26 e 27.
(9) idem, pág 28.
(10) idem, pág 36.
(11) Apesar das ocasionais incursões de Karajan pela música do século XX, tendo interpretado obras de Berg, Schönberg, Penderecki, Ligeti ou Orff, Claudio Abbado alargou substancialmente a relação da Filarmónica de Berlim para com a música do século XX, através de obras de nomes como Luigi Nono, Hans Werner Henze, Karlheinz Stockhausen ou Wolfgang Rihm, algo que Simon Rattle, o atual diretor artístico da orquestra, levaria ainda mais adiante.
A foto que abre o post mostra Karajan a dirigir a Berliner Philharmoniker numa Sinfonia Nº 9 de Beerhoven na magnífica sala da Philharmonie, em Berlim
sábado, agosto 16, 2014
Karajan: um homem de discos (1)
Este texto é parte de um artigo sobre uma série de reedições e antologias que revisitam a obra de Herbert von Karajan registada pela Deutsche Grammophon que foi recentemente publicado no suplemento Q. do DN com o título: 'Foram os discos que deram a Karajan a sua fama global'.
O momento ficou célebre e a fotografia correu mundo. Entre Aiko Morita e Joop Sinjou – ou seja, os presidentes da Sony e Phillips na época –, o maestro Herbert von Karajan (1908-1989) (1) tomava lugar ao centro da imagem como o rosto que dava a caução ao lançamento de um novo suporte musical. Era apresentado como “compact disc” – revelava uma duração que comportava uma “nona” de Beethoven – diz-se que por sugestão do maestro (2) - e abria o mercado da música à era digital. O novo suporte preparava-se para em poucos anos destronar o LP em vinil do protagonismo que conhecia desde os anos 50 no mercado da música.
O maestro tinha já experimentado a gravação digital em 1979 e ordenado depois que o estúdio onde gravava fosse tecnologicamente reconvertido. Em 1981 era com convicção que se aliava assim ao lançamento do novo suporte, nessa histórica conferência de imprensa em Salzburgo. O primeiro compact disc a ser produzido em grande escala seria protagonizado pelo pianista Claudio Arrau interpretando Chopin (na pop a honra caberia ao álbum The Visitors dos Abba, sendo que foi um disco de Billy Joel o primeiro CD a ser comercializado). Mas o primeiro test pressing (3) do novo formato a ser apresentado continha uma gravação da Sinfonia Alpina, de Richard Strauss, pela Orquestra Filarmónica de Berlim, dirigida por Karajan, uma entre as várias gravações que agora regressam numa caixa antológica que une o compositor alemão ao maestro austríaco. Esta gravação representa não apenas um episódio marcante na história da música gravada como traduz um entre os vários momentos de grande entendimento estratégico entre Karajan e a Deutsche Grammophon, a editora pela qual gravou a maior parte da sua obra (4). Assim, tendo-o “como principal defensor do CD como suporte a Deutsche Grammophon foi vista como estando na linha da frente da nova tecnologia”, defende Bill Holland, antigo diretor da Universal Classics & Jazz no Reino Unido. (5)
A discografia de Herbert von Karajan é, salvo a etapa entre 1946 e 58 na qual esteve associado à EMI, feita quase toda a bordo da Deutsche Grammophon e cruza-se em vários momentos com episódios importantes na história da música gravada e dos suportes físicos em que chegou ao público. E a editora tem-no ainda hoje como uma das grandes forças do seu catálogo. A companhia nasceu em 1898 em Hannover (Alemanha), juntamente com a primeira fábrica de discos e gramofones e sob a liderança de Emile Berliner, o inventor do disco. Tendo vencido a batalha das formatos (depois do disco de Berliner suplantar o cilindro de Edison), a companhia prosperou, sendo depois afetada pelas duas guerras mundiais e a Grande Depressão. Em 1945, quando a Alemanha nazi capitula, os estúdios e fábrica em Hannover estavam destruídos. “A situação era desastrosa porque os grandes artistas ou tinham emigrado ou assinado contratos com outras companhias ou não estavam autorizados a tocar e a gravar”, recorda Andreas Holschneider, antigo diretor da Archiv e presidente da Deutsche Grammophon (6).
Depois de autorizado a retomar o seu trabalho (7), Karajan encontra nova casa editorial em Londres, onde se manteve até mesmo depois de ser eleito para suceder a Willhelm Furtwangler na direção da Orquestra Filarmónica de Berlim (lugar que ocupará até pouco antes da sua morte, em 1989, naquele que é o mais extenso “mandato” na história da orquestra).
Em 1956 a Deutsche Grammophon muda a sua sede para Hamburgo, mantendo a fábrica em Hannover. E na véspera do seu 60.º aniversário apresentou uma nova imagem para o seu logótipo, uma cartela com letras a negro sobre um fundo amarelo, com o nome da editora em três linhas, sobre si mantendo a coroa de tulipas. O surgimento da gravação estereofónica levantou um mundo de novas possibilidades, tornando-se norma na editora a partir de 1958 (uma primeira série em estéreo é então encetada por um Also Spracht Zarathustra, de Richard Strauss, gravado em Berlim por Karl Bohm). Seria com o mesmo compositor que, pouco depois, Karajan regressaria à editora alemã, para não mais a abandonar até ao fim dos seus dias.
(1) Herbert Von Karajan (1908-1989). De berço austríaco, foi um dos maestros mais famosos de todos os tempos, devendo muita da sua popularidade global ao intenso trabalho discográfico que realizou entre a EMI e, sobretudo, a Deutsche Grammophon (as suas vendas globais devem rondar os 200 milhões de discos). As suas ligações ao partido nazi nos anos 30 valeram-lhe desde cedo algumas críticas. Foi eleito para comandar os destinos da Filarmónica de Berlim em 1954, lugar que ocupou até à sua morte. Durante algum tempo liderou também a Viena Staatsoper, foi diretor artístico do Festival de Salzburgo e teve uma ligação grande com a Orquestra Filarmónica de Viena. Adepto das novas tecnologias, foi um importante defensor do CD e da gravação digital e um dos primeiros maestros a aderir à era do vídeo.
(2) Conta-se que a duração standard de um CD (na altura em que surgiu) terá sido determinada pela gravação da Sinfonia n.º 9 de Beethoven dirigida em 1951 em Bayreuth por Furtwangler, “aparentemente” segundo uma sugestão de Karajan.
(3) Um test pressing é uma “prensagem” (ou melhor, gravação, já que o termo original decorre dos tempos do vinil) em quantidades não industriais para efeitos de demonstração ou crítica.
(4) O seu catálogo inclui cerca de 800 gravações em áudio e 90 em vídeo, segundo a historiadora Annemarie Kleinert. A obra registada divide-se entre discos, filmes e programas de televisão e tem edição em vários suportes, sobretudo na Deutsche Grammophon e EMI, com alguns casos pontuais no catálogo da Decca.
(5) in Deutsche Grammophon: State of the Art (Rizzoli, 2009), pág. 144.
(6) idem, pág. 97.
(7) Como sucedeu com muitos outros artistas alemães ou a trabalhar na Alemanha, após o final da II Guerra Mundial Karajan viu o seu passado ser estudado pelos vencedores para verificar que tipo de ligação havia tido com o poder nazi. Em 1946 deu um concerto à frente da Filarmónica de Viena mas foi depois impedido de se apresentar publicamente pelas autoridades soviéticas. A proibição só foi levantada em 1947.
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