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sexta-feira, julho 22, 2022

Duas ou Três Coisas
— Antena 1, dia 22 (23h14)

[ Duas ou Três Coisas ]

Do "renascimento" de Kate Bush aos livros que andamos a ler...
... e escutando, por exemplo, Ryan Adams e William Orbit.
Estamos na Antena 1, às sextas-feiras, como é habitual: a edição nº 20 de Duas ou Três Coisas começa às 23h14, logo após as notícias à hora certa — depois, fica disponível em RTP Play.

quarta-feira, abril 20, 2022

Na intimidade de Susan Sontag

Uma memória de 1962: Anna Karina em Viver a Sua Vida

Com Susan Sontag aprendemos que escrever ou filmar são formas de enfrentar a infinita complexidade da vida íntima, por vezes podem ser actos de renascimento — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 abril).

Como falar da intimidade? Como escrever nela e sobre ela? Como olhar e respeitar a sua infinita complexidade? Como mostrá-la? Como filmá-la?
Num texto de 1964 sobre o filme Vivre sa Vie (1962), de Jean-Luc Godard — estreado em Portugal, em 1973, como Viver a sua Vida —, Susan Sontag celebrava as aventuras narrativas de Godard como “um método de exposição genuinamente novo”. Que faz esse método? Expõe algo que aconteceu: deparamos com uma série de capítulos (“Um filme em doze quadros”, diz o subtítulo) sobre o caminho trágico de Nana, prostituta de Paris interpretada por Anna Karina, então casada com Godard. Como escreve Sontag: “Mostra que algo aconteceu, não por que aconteceu. Expõe a inexorabilidade de um acontecimento.”
O texto está incluindo na colectânea Contra a Interpretação e Outros Ensaios (Gótica, 2004, tradução de José Lima), remetendo-nos para a fronteira de um período da vida de Sontag cujos sinais podemos agora encontrar num livro fascinante intitulado Renascer (Quetzal, 2022, tradução de Nuno Guerreiro Josué). O subtítulo de Renascer esclarece essa cronologia: “Diários e apontamentos, 1947-1963”.
Valerá a pena referir que assistimos, de facto, ao processo multifacetado e convulsivo de construção de uma personalidade — aconteceu, diria ela. Afinal de contas, as primeiras notas são de 23 de novembro de 1947: Sontag nasceu em Nova Iorque a 16 de janeiro de 1933, o que quer dizer que tinha, nessa altura, 14 anos.
Corrijo. Será precipitado e, mais do que isso, simplista considerar que Sontag nos relata a “construção” da sua identidade. Decididamente, esta não é, nem poderia ser, uma narrativa cuja autora se assume como “proprietária” do seu destino, à maneira dos telefilmes que apresentam os seus heróis ou heroínas como seres que se limitam a “ilustrar” um futuro redentor que nós, espectadores, já conhecemos.
No plano simbólico, Sontag vive, morre e renasce através da própria escrita. A justificação para o título do livro surge numa nota de 31 de maio de 1949 em que fala da sua companheira: “A Irene esteve muito perto de me destruir — cristalizando o incipiente sentimento de culpa que sempre tive em relação ao meu lesbianismo, fazendo-me sentir repulsiva perante mim própria. Agora sei a verdade — sei o quanto amar é bom e legítimo — foi-me, de certa forma, dada autorização para viver. Tudo começa a partir de agora — Renasci.”
Sem esquecer que, no limite, este nem sequer pode ser descrito como “um livro de” Susan Sontag. Na verdade, as notas soltas que aqui encontramos resultam de um trabalho de selecção, organização e anotação da responsabilidade de David Rieff, filho de Sontag. Diz ele no prefácio: “No que me diz respeito, ela tinha um direito absoluto de morrer como desejasse. À medida que lutava pela vida, ela não devia nada à posteridade, e muito menos a mim. Mas, obviamente, a sua decisão teve consequências não intencionais — sendo aqui a mais importante o facto de ter passado para mim a decisão de como publicar os escritos que ela deixou para trás.”
Por vezes, sentimos mesmo que as palavras de Sontag nos colocam perante esse assombramento, terno e cruel, inerente ao labor de um grande escritor (ou um grande cineasta). Que é como quem diz: será que queremos entrar no território que para nós se abriu? Somos leitores ou intrusos daquela intimidade? Diz ela, por exemplo, em nota de 8 de agosto de 1960: “Amar é doloroso. É como se nos oferecêssemos para ser esfolados, sabendo que a outra pessoa pode ir-se embora a qualquer momento com a nossa pele.” Mais tarde, a 23 de abril de 1961, isto é relançado de forma escatológica: “O problema das emoções geralmente tem que ver com o seu escoamento. A vida emocional é um complexo sistema de esgotos.”
Tendo em conta que este é um livro de notas escritas até aos 30 anos, importará reconhecer também que não o podemos resumir como um esboço de auto-retrato (Sontag faleceu com 71 anos, a 28 de dezembro de 2004, na sua cidade natal, vítima de síndrome mielodisplásica, uma forma de cancro sanguíneo). Fica, em todo o caso, a herança de uma exigência de escrita que resiste, ponto por ponto, à futilidade, seja privada ou familiar, seja pública e mediática. Ou como está escrito num apontamento de 7 de janeiro de 1958: “A seriedade é realmente para mim uma virtude, uma das poucas que aceito existencialmente e aceitarei emocionalmente. Adoro ser alegre e descuidada, mas isso só tem significado contra um pano de fundo imperativo de seriedade.”

quarta-feira, maio 19, 2021

José Mourinho
e o nosso mundo mediático

Ver e ser visto: os repórteres face a Mourinho,
ou a reportagem da reportagem

Os repórteres em torno de Mourinho constroem um ponto de vista. E se Mourinho usar um telemóvel para os filmar? Eis uma sugestiva, incontornável e muito pertinente questão deontológica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 abril).

Na sequência do despedimento do cargo de treinador do Tottenham, José Mourinho tinha um batalhão de repórteres à porta de sua casa, em Londres. O canal Sky Sports divulgou um breve registo da sua chegada, com o repórter Gary Cotterill a perguntar-lhe se tinha algo para comentar; Mourinho agradece, dizendo que não. O treinador vai tirando alguns objectos da bagageira do carro, Cotterrill segue-o, não obtém qualquer resposta, acabando por expressar um voto: “Regresse ao futebol assim que for possível.” O video termina com a frase: “Estou sempre no futebol.”
Eis um belo momento de reportagem que, como todos os momentos televisivos, os mais nobres e também os mais horríveis, pode ser confrontado com aquilo que quase nunca é mostrado: o ponto de vista daquele (ou daqueles) que é (ou são) objecto eleito pelos microfones e câmaras. Ou, em termos cinematográficos: as imagens em contracampo, isto é, o olhar do outro.
O certo é que, desta vez, temos mesmo um contracampo: Mourinho colocou no Instagram um video, ainda mais breve, em que a câmara do seu telemóvel oscila duas vezes entre Cotterill e alguns dos repórteres de imagem. Em off, podemos ouvir a voz do próprio Mourinho: “Não me dão privacidade. Até mesmo o meu amigo Gary me está a perturbar. É a minha vida.”
Não se trata, entenda-se, de tomar o video como pretexto para discutir a performance profissional de Mourinho, até porque, neste contexto, corremos o risco de nos perdermos num miserável desporto “social”: assim como há dias predominavam as vozes que censuravam o trabalho de Mourinho, não poucas vezes com insultos e difamações que as “redes” naturalizaram, agora quase todos parecem querer canonizá-lo… “The best”, escrevem os mais entusiasmados.
Acontece que Mourinho, “bom” ou “mau” treinador, humilde ou arrogante, continua a possuir esse talento pedagógico, hoje em dia raro (em particular na classe política), que consiste em confrontar o trabalho jornalístico com os efeitos descritivos, argumentativos e simbólicos das suas linguagens. A saber: com a percepção do mundo que, através dessas linguagens, somos levados a elaborar.
Infelizmente, não é fácil pensar tal questão como inerente à ética jornalística. Mais do que isso: vital. A sua formulação tende a atrair uma resistência automática: estaríamos a demonizar “todo” o jornalismo, a começar pelo jornalismo televisivo… Na verdade, o que está em jogo não é qualquer generalização do género, antes a necessidade (a meu ver, a urgência) de reconhecermos que a nossa visão do mundo passou a ser maioritariamente construída sobre e sob informações — imagens e sons — que recebemos através da chamada comunicação social. Daí uma primeira pergunta: o que é que se comunica? Logo seguida de outra: que noção de sociedade se está a comunicar?
No seu livro Olhando o Sofrimento dos Outros (ed. Quetzal, 2015), Susan Sontag refere esse campo/contracampo de olhares, analisando o funcionamento das exposições de fotografias que mostram “atrocidades infligidas aos de pele mais escura em países exóticos”. Não porque ela minimize a importância moral e política de denunciar as formas de violência que as imagens dão a ver. Antes para chamar a atenção para a ausência de qualquer dialéctica de conhecimento, “pois o outro, ainda que não inimigo, é olhado apenas como alguém para ser visto, não alguém (como nós) que também vê.”
Ora, Mourinho resiste a ser tratado como alguém que existe apenas “para ser visto”, isto é, como marioneta da agitação informativa. Claro que tudo aquilo que ele possa protagonizar não passa de um percalço benigno face aos horrores que motivam a análise de Sontag. Não é isso que está em causa. Nem é, obviamente, a legitimidade do olhar jornalístico: o que está em causa é o facto de aquele que é olhado também ter direito ao seu olhar.
Ou ainda: se o video de Mourinho tivesse sido difundido pelo menos um décimo das vezes que foi mostrado o grupo de microfones e câmaras a correr atrás dele, a nossa percepção do acontecimento seria outra. “Melhor”? “Pior”? Apenas outra.

* * * * *

NOTA: Um video publicado pelo jornal The Daily Mail dá-nos uma outra perspectiva sobre a situação em que foi registado o video que José Mourinho publicou no Instagram — uma preciosa multiplicação (logo, relativização) de pontos de vista.

sexta-feira, abril 02, 2021

A função da crítica [citação]

>>> O objectivo de qualquer comentário sobre a arte deveria ser nos nossos dias tornar as obras de arte — e, por analogia, a nossa própria experiência — mais, e não menos, reais para nós. A função da crítica devia ser mostrar como é o que é, ou mesmo que é o que é, em vez de mostrar o que significa.

in Contra a interpretação e outros ensaios
(tradução de José Lima)
ed. Gótica, Lisboa, 2004

sexta-feira, março 13, 2020

Liberdade [citação]

[ The Paris Review ]

>>> E se a minha noção de contenção e liberdade é medíocre, isso cria mais um problema real, problema pelo menos vagamente sentido por milhões de pessoas: a invenção da liberdade.

SUSAN SONTAG
Penguin, 2018

quinta-feira, julho 30, 2015

Sontag (sob o signo de Woolf)

SUSAN SONTAG
Olhando o Sofrimento dos Outros, de Susan Sontag, é um livro fascinante sobre as imagens e os seus contextos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Julho), com o título 'Ser espectador segundo Susan Sontag'.

Susan Sontag (1933-2004) impôs-se na dinâmica do pensamento moderno através de um ensaio de 1966 intitulado Contra a Interpretação (existe uma tradução portuguesa, de 2004, com chancela da editora Gótica). O título envolve todo um programa cultural, mediático e político: há uma dimensão da linguagem que excede a “intelectualização” dos significados, abrindo para uma experiência que, na sua sensualidade, não pode ser formatada de uma vez por todas. Dito de outro modo: dizer o que as coisas significam é também respeitar o que nelas permanece como indizível.
Muita coisa mudou de 1966 para cá, mas a inteligência argumentativa de Sontag continua a ser um instrumento precioso que nos ajuda a pensar, a não ter medo de sentir. O derradeiro livro que publicou, Olhando o Sofrimento dos Outros (agora editado pela Quetzal, numa rigorosa tradução de José Lima), constitui um momento fascinante do seu trabalho, em especial pelo modo como discute a vida das imagens no mundo contemporâneo.
Sontag recua aos tempos primitivos das imagens fotográficas e, muito em particular, ao modo como a fotografia representou as guerras ocorridas há um século ou mais (incluindo, claro, o primeiro conflito mundial, essa “guerra para acabar com todas as guerras”). Daí a incontornável ambivalência: é verdade que a história das imagens (fotográficas, antes do mais) envolve um importante valor de testemunho; ao mesmo tempo, é preciso não alimentar demasiadas ilusões sobre as respectivas potencialidades pedagógicas. Evocando o livro Os Três Guinéus (1938), de Virginia Woolf, empenhado, justamente, em reflectir sobre uma conjuntura pejada de augúrios de guerra, Sontag formula um desencantado reconhecimento: “Durante muito tempo, houve pessoas que pensavam que se fosse possível dar uma imagem suficientemente vívida do horror, a maior parte das pessoas acabaria por tomar consciência da barbaridade, da insanidade da guerra”.
VIRGINIA WOOLF
O livro de Sontag não caminha no sentido de enunciar normas que, de uma vez por todas, nos garantam uma “boa” gestão da pluralidade de significações em que uma imagem pode estar envolvida — até porque há nela a consciência muito aguda de que vivemos sobre o efeito quotidiano, não poucas vezes pesadamente “moralizante”, do fluxo televisivo. Se há lição simples, mas essencial, que podemos condensar a partir das suas palavras é a da absoluta necessidade de pensar o contexto em que as imagens são conhecidas (ela evoca mesmo o modo como, no início das recentes guerras dos Balcãs, a “mesma fotografia de crianças mortas” serviu de arma de propaganda a diferentes facções).
Daí o continuado desafio de ser espectador, trabalhando a memória na sua dimensão eminentemente individual, resistindo à utilização das imagens reduzidas a ícones, funcionando como sound bites (por exemplo, um cartaz com o cogumelo de uma bomba atómica) e desencadeando “pensamentos e sentimentos previsíveis”. Diz ela: “Felizmente, não há nenhuma imagem ícone dos campos de morte nazis”.

sexta-feira, maio 08, 2015

A negação da falsidade [citação]

>>> Pode ser uma limitação minha — e provavelmente é — mas não consigo entender a verdade a não ser como a negação da falsidade. Descubro sempre o que me parece verdadeiro vendo que alguma outra coisa é falsa: o mundo está, afinal, cheio de falsidade, e a verdade é algo que emana da rejeição da falsidade. Num certo sentido, a verdade é completamente vazia, mas não depender da falsidade não deixa de ser uma fantástica libertação.

SUSAN SONTAG
in The Complete Rolling Stone Interview, Jonathan Cott