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quarta-feira, agosto 28, 2024

A igreja flutuante

Holly Hunter e William Hurt em Broadcast News (1987): onde está a verdade?

Que acontece quando a luta política é uma questão de ecrãs? Afinal de contas, é nesse mundo que estamos a viver — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 agosto).

Revisito as memórias de um dos filmes mais brilhantes que já se fizeram sobre televisão: Broadcast News, uma produção de 1987 com argumento e realização de James L. Brooks (entre nós estreado como Edição Especial). Aliás, corrijo a generalização: o espaço televisivo apresenta-se de tal modo fragmentado, habitado por inconciliáveis maravilhas e horrores, que não faz sentido tratar a televisão como “um” tema — é preciso descortinar e, de algum modo, confrontar as muitas diferenças que o habitam.
Lembrei-me de Broadcast News porque nele ecoa uma questão que, por vias bem diferentes, assombra muitos dos actuais protagonistas do pequeno ecrã, dos jornalistas mais sérios aos concorrentes do Big Brother. A saber: o que é a verdade? E como dizê-la? Ou mostrá-la?
A certa altura, no filme, uma produtora de um canal de informação (Holly Hunter) interroga-se sobre a entrevista feita pelo jornalista-vedeta da sua estação (William Hurt) a uma mulher que foi vítima de violação. Observando a totalidade do material registado para a entrevista, percebe que o grande plano do rosto do jornalista a chorar perante o testemunho da mulher não pertence à entrevista — foi forjado a posteriori.
A moral da história projecta-nos num terreno incómodo: a dicotomia verdade/mentira não esgota tudo o que está em jogo. Não se trata apenas de discutir as virtudes de reprodução (ou os artifícios de encenação) que marcam o dia a dia do pequeno ecrã: o sistema de linguagens de que se faz a televisão, ainda que vendido como “reprodução” do mundo, pode funcionar, de facto, como imposição de uma determinada concepção desse mesmo mundo.
Apesar da sua fina sensibilidade crítica, o filme de James L. Brooks está ainda ligado a uma visão liberal inerente à história clássica de Hollywood, anterior à vertigem de ecrãs em que hoje vivemos. Afinal de contas, movendo-se com arrogante à vontade no interior dessa vertigem, Donald Trump dinamitou a questão da produção da verdade, todos os dias celebrando as apoteoses das mais risonhas ficções — agora, alguns jornais dos EUA (aconteceu há dias no New York Times) relatam mesmo cada comício de Trump contrapondo uma lista didáctica das mentiras por ele propagadas.
Como é que Kamala Harris aparece nesta cenografia de infinitos fragmentos narrativos e, mais do que isso, de incessantes “mensagens” para serem vistas nos ecrãs que povoam o nosso mundo? Eis a difícil conjuntura: deixámos de ter ecrãs que “reproduzam” esse mundo, passámos a viver (nem sempre muito felizes, é verdade) num mundo feito de ecrãs.
As pessoas e entidades que apoiam Kamala Harris compreenderam que Trump há muito investira no fogo fátuo desse mundo de imagens, sendo necessário (politicamente necessário, entenda-se) arriscar no interior das suas coordenadas, sinalizando algumas fundamentais diferenças. Resta saber de que modo, ou até que ponto, o que está a acontecer irá contribuir para a reposição da nobreza do debate político ou, apesar de todas as boas vontades democráticas, poderá reforçar a nossa condição de reféns dos delírios imateriais dos ecrãs que nos consomem.
Quase quatro décadas depois de Broadcast News, Philippe Sollers dava conta da perversa evolução de todo esse aparato informativo no romance La Deuxième Vie (edição póstuma: Gallimard, março 2024). Sou eu que traduzo: “No oceano dos computadores, a televisão brilha como uma igreja flutuante. Cada vez mais planetária, ela tece a rede de um governo mundial. A estupidez vive sobre-informada através da sua ignorância. Vagas de filósofos auto-proclamados lucram com isso e peroram, a horas fixas, sobre todos os assuntos.”
Não é, por isso, ficção científica reconhecer que toda a dinâmica comunicacional das próximas eleições americanas ecoará de forma muito concreta nas práticas audiovisuais e políticas de ambos os lados do Atlântico. Que vão fazer os sacerdotes da informação e os actores da cena política que, mesmo sem nada para dizer, vivem de “aparecer” nos ecrãs? Serão capazes de desistir da preguiça da rotina, escolhendo os sobressaltos da inteligência?

sábado, março 23, 2024

Memórias do paraíso de Cézanne

Paul Cézanne: Natureza Morta com Prato de Fruta (1879-80)

Eis uma bela homenagem: a revista de Bernard-Henri Lévy celebra a herança plural do seu amigo Philippe Sollers — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 março).

Philippe Sollers
Por estes dias, reencontro palavras dos livros de Philippe Sollers (1936-2023). Por exemplo, a propósito da pintura e dos pintores que mais marcaram o seu mundo e a sua escrita: Monet, Manet, Cézanne… Em Les Folies Françaises, romance de 1988, Sollers contempla Cézanne numa deambulação em que pintura e romance se enlaçam, amorosamente: “Pinto-te, pinto-te, a pintura é um romance, terceiro mundo para lá da realidade e do seu espelho, mais presente do que alguma vez será a consciência da realidade duplicada através de um espelho. É a nossa loucura visível e legível. Música.”
A palavra final, solta, mas precisa, leva-nos a perguntar: que música é esta? Como descrevê-la? Ou ainda: se qualquer descrição padece das limitações da sua própria amostragem das “coisas”, como habitá-la? São palavras reencontradas numa belíssima edição da revista La Règle du Jeu (nº 81, janeiro 2024), dirigida por Bernard-Henri Lévy — um testemunho da longa amizade de Lévy e Sollers e, ao mesmo tempo, uma antologia de textos (assinados, entre outros, por Yann Moix, Nathan Devers e Jean-Paul Enthoven) para nos ajudar a percorrer o território imenso, multifacetado, marcado por uma gravidade radical cúmplice do riso mais livre, de um dos génios da escrita (identificá-lo como “escritor” será sempre pouco) nascidos no século XX.
Ao longo das décadas (Uma Curiosa Solidão, primeiro romance de Sollers, tem data de 1958), Lévy foi um observador atento, empenhado e apaixonado do labor de Sollers. E tanto mais quanto ambos podem ser identificados como protagonistas de um exercício tão vulnerável quanto fascinante: conhecemo-los como personagens regulares da paisagem mediática, com inevitável destaque para o espaço televisivo; ao mesmo tempo, sempre souberam expor-se nesse espaço resistindo às muitas obscenidades culturais que, em nome da “informação”, tendem a reduzir qualquer desejo de pensamento a coisa fútil e, por fim, dispensável.
Este número de La Règle du Jeu começa, aliás, com uma antologia de extractos de intervenções públicas de Lévy dedicadas a Sollers. No dia 7 de abril de 2000, no seu “Bloco notas” da revista Le Point, a propósito da edição do romance Passion Fixe, Lévy condensava num parágrafo admirável a peculiar condição de Sollers como “agente secreto” — aliás, Sollers viria mesmo a publicar um delicioso panfleto autobiográfico intitulado Agent Secret (2021). Citação:
“Philippe Sollers, a sua obra é disso testemunho, teve sempre a obsessão da clandestinidade, das conspirações, dos disfarces, dos lobos. Nunca cedeu contra o desejo, vital, de jogar a sombra contra a luz, de trancar a sua obra e a sua vida — de mobilizar, de facto, os seus livros como outras tantas máquinas da guerra de longa duração que ele quis travar, com alguns outros, contra a monstruosidade do tudo-mostrar e do tudo-dizer.”
Bernard-Henri Lévy
Que monstruosidade é esta? As infinitas variações da escrita de Sollers estão em guerra com a mediocridade de um quotidiano gerido pelo voyeurismo do “Big Brother” (não estamos a falar de Orwell, se é que o leitor faz o favor de me seguir…), antes celebram diferentes maneiras de ver, pensar, sentir e amar em tudo e por tudo alheias à desumanização do nosso mal viver mediático. Na sua alegre brevidade (100 páginas ou menos), os quinze romances finais de Sollers, de L’Étoile des Amants (2002) a Graal (2022) organizam-se mesmo como ecos de um quotidiano cada vez mais maniqueísta, a que a escrita contrapõe lições antigas de diferentes modos de viver e pensar a vida que queremos viver.
Num dos textos de La Règle du Jeu, o professor e crítico literário Olivier Rachet recorda o livro que Sollers escreveu, justamente, sobre Cézanne: Le Paradis de Cézanne (1995). Pertence a esse livro uma máxima que resume exemplarmente a crise da “moral da percepção” em que vivemos e somos obrigados a viver: “Estamos na época em que o homem se separa da sua própria percepção, ou mais exactamente separa-se contra ela.” Em boa verdade, o próprio Cézanne já nos tinha avisado para tal perigo, chamando-nos a atenção para a música que importa defender, ao citar os frutos das suas naturezas mortas: “Eles ficam ali e pedem desculpa por mudar de cor.”

terça-feira, janeiro 02, 2024

Na solidão de Philippe Sollers

PABLO PICASSO
O Acrobata (1930)

Falecido em 2023, Sollers legou-nos uma obra em que a desmontagem da regra conduz à celebração da excepção — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 dezembro).

Philippe Sollers
Numa pesquisa rápida em algumas das maiores plataformas de venda de livros, procuro obras de Philippe Sollers (1936-2023) traduzidas em português. O resultado é eloquente: zero. Sinto-o como um eco incauto de muitos obituários rotineiros e indiferentes que deram conta do seu desaparecimento em meados deste ano — faleceu em Paris, no dia 5 de maio, contava 86 anos.
Se eu disser que considero Sollers um dos escritores e pensadores fundamentais da nossa contemporaneidade — o seu primeiro romance, Une Curieuse Solitude, surgiu em 1958 —, corro o risco de atrair mais um desses jogos florais “pró & contra” que todos os dias parasitam o nosso espaço (dito) de comunicação. Escusado será dizer que não tenho gosto em alimentar qualquer infantilismo do género. Além do mais, seria contrário à matéria e ao espírito da escrita de Sollers, autor sempre empenhado em denunciar a chantagem da regra, procurando escutar as razões, mesmo as menos razoáveis, da excepção.
Não por acaso, um dos seus livros de ensaios intitula-se Théorie des Exceptions (1986). Nele encontramos uma antologia de reflexões sobre as heranças de escritores, artistas e, como ele diz, algumas “insolências mais gerais”: Cervantes, Sade ou Proust; Rafael, Picasso e Bach; ou ainda “a ficção, a teologia, Freud”. São nomes que Sollers inventaria e analisa, lembrando uma “evidência” que se demarca, ponto por ponto, do aparato de consagrações que a cultura dominante vai encenando: “É falso que as obras literárias ou artísticas sejam esperadas, justificadas, normalmente produzidas no seu tempo para posterior satisfação do historiador, dos museus ou dos professores.” Porquê? Porque, no começo, no domínio temático e narrativo, tais obras nos colocam perante “a violência, a invasão, muitas vezes o escândalo.”
Discípulo de Roland Barthes (1915-1980), com ele manteve uma relação de dupla fidelidade, já que, no começo, Sollers foi editor de Barthes. Tudo isso ecoa num livro que nos ajuda a compreender que a dinâmica dos pensamentos, mesmo quando enquadrada ou enriquecida por contextos institucionais, não é estranha ao valor primordial da amizade: em L’amitié de Roland Barthes, publicado em 2015, incluindo cerca de três dezenas de cartas de Barthes para Sollers, este recorda uma lição fulcral do autor de O Prazer do Texto (tradução portuguesa disponível com chancela das Edições 70), lembrando que a linguagem é “a mais forte das transgressões.”
O desafio inerente a tal transgressão é tanto maior quanto o linguajar do nosso presente vive alimentado por uma cultura de grosseiro narcisismo, favorecendo também a ilusão (mais do que isso: a mentira) da arte como uma espécie de balanço contabilístico de uma empresa empenhada em ilustrar as virtudes do “progresso”. Numa entrevista de 1978, incluída em Théorie des Exceptions, Sollers avança mesmo com uma máxima psicanalítica sobre as nossas ilusões comunitárias: “(…) qualquer cultura é construída para nos dar a boa consciência segundo a qual nada temos que ver com o inconsciente.”
Nos últimos anos do seu labor, depois de uma autobiografia em forma de “verdadeiro romance” (Un Vrai Roman, 2007), Sollers publicou uma série de romances breves, alguns com menos de uma centena de páginas. O cruzamento de referências históricas, ainda que sempre remetendo para personagens e situações do presente, faz com que o romanesco se dilua no confessional, gerando objectos que podem ter tanto de radical especulação filosófica como de inusitada crónica jornalística.
Os títulos desses livrinhos são tanto mais sugestivos quanto, por vezes, celebram a vibração de uma única palavra, solitária e feliz: a “iluminação” (L’Éclaircie, 2012), a “beleza” (Beauté, 2017), o “desejo” (Désir, 2020). No último deles (Graal, 2022), Sollers revisita as memórias mitológicas do reino da Atlântida, em que os segredos são “ciosamente guardados”, ao contrário da nossa “pós-modernidade de indiscrição generalizada”.
São ecos de um livro razoalmente autobiográfico, habitado por um contagiante humor (Agent Secret, 2021), como se Sollers assumisse a máscara de um James Bond acrobático, ainda mais insolente que o original. Em nome do pudor, aí encontramos já a metódica exumação do nosso mal viver: “A discrição é, na verdade, qualquer coisa de delicioso, oposto a tudo aquilo que invadiu o espaço humano, agora dedicado ao jornalismo absoluto em que tudo é, por definição, indiscreto. Com a chegada da Internet, vivemos numa sociedade de indiscrição generalizada.”

domingo, março 27, 2022

Jean-Daniel Pollet
— no país do mar e do cinema

Philippe Sollers em Dieu Sait Quoi (1993):
leituras, espelhos e ecrãs

Graças ao ciclo da Cinemateca dedicado a Jean-Daniel Pollet reencontramos as aventuras do nosso olhar e os seus ecrãs — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 março).

Comunicação. A proliferação dos chamados meios de comunicação tornou-nos indiferentes à linguagem. Às linguagens. Deixámos de pensar, ainda menos discutir, as linguagens que usamos. Ou melhor, restringimos a sua discussão ao cumprimento pueril das normas de correção (política, simbólica, sexual, etc.) com que descrevemos, ou julgamos descrever, o mundo à nossa volta.
Olhemos, precisamente, à nossa volta. Em todo o planeta televisivo, vemos e escutamos um qualquer relator — com um microfone na mão e uma paisagem ucraniana em fundo — a falar durante cinco minutos para o olho silencioso de uma câmara… e aquietamos as nossas angústias, aceitando que estamos perante um modelo mágico de conhecimento. O medo sustenta a nossa frágil razão: afinal de contas, sem esse relator sentir-nos-íamos ainda mais sós face ao absurdo do mundo. Ao mesmo tempo, uma pergunta sussurra e enreda-se no nosso medo: será que estamos a saber utilizar todas as potencialidades dos meios decorrentes da fascinante tecnologia de que hoje dispomos?
Deslocando a questão para o país cinematográfico, esta é uma pergunta que nos pode levar a reconhecer que o cinema não evolui de forma linear — o passado refaz o presente. Penso no exemplo corrente dos efeitos especiais dos filmes dos estúdios Marvel. Em boa verdade, se olharmos com um mínimo de disponibilidade mental para os filmes que Georges Méliès realizou há mais de 100 anos (A Viagem à Lua é de 1902), compreenderemos que o génio inventivo dos efeitos de Méliès reduz os departamentos técnicos da Marvel a uma colecção de burocratas sem imaginação.
Descubram-se, a esse propósito, os filmes de Jean-Daniel Pollet (1936-2004), a passarem na Cinemateca Portuguesa num ciclo que se prolonga até final de março. No seio da Nova Vaga francesa, Pollet foi uma figura das margens, mas não marginal — bem pelo contrário: central no pensamento e na acção desse movimento (Godard, Truffaut, Rohmer, etc.) que refez todo o continente cinematográfico, pensando e repensando as suas linguagens.
O célebre Méditerranée, datado de 1963 — ano em que o grande espectáculo de Hollywood era Cleópatra, de Joseph L. Mankiewicz, ou em Portugal surgia o Acto da Primavera, de Manoel de Oliveira —, pode servir de símbolo exemplar da visão cinematográfica de Pollet. A saber: uma atenção militante (entenda-se: obsessiva) aos sinais que herdámos da história, cruzando-os com os enigmas dos elementos naturais — o mar é, em Pollet, uma entidade propriamente mitológica, à beira do divino — e os sobressaltos da palavra escrita. E também da sua transfiguração em pura oralidade. Como diz a voz de Méditerranée, este é um “país múltiplo, falsamente adormecido”.
Pollet foi arauto de uma liberdade criativa que, por vezes, precipitadamente, encaramos como uma “descoberta” do século XXI. De facto, os seus filmes dispensam qualquer convenção fechada que tenda a separar a “objectividade” do documentário e o “artifício” da ficção. Creio mesmo que a sua curta-metragem de estreia, Pourvu Qu’on Ait l’Ivresse (1957), primeira de muitas colaborações com o actor Claude Melki, registando a timidez de um homem face às mulheres num baile de domingo, pode resumir a agilidade do seu olhar: tudo aquilo tende para uma alegria burlesca (Buster Keaton é uma referência recorrente quando se fala de Melki na obra de Pollet) que não exclui a dimensão de testemunho de um tempo social muito concreto, de irrepetíveis gestos e singularidades.
Pollet assinou um dos seis episódios de Paris Visto Por… (1964), deliciosa colecção de histórias que ficou como uma espécie de manifesto da Nova Vaga. O seu trabalho foi-se abrindo à pluralidade das linguagens, incluindo a “aplicação” do movimento do cinema às imagens fotográficas. Assim acontece em Contre-Courant (1991), montagem dramática de fotos da paisagem urbana parisiense, ou no belíssimo Jour Après Jour (2006), filme póstumo, concluído por Jean-Paul Fargier, tendo como base as fotografias que Pollet foi fazendo na sequência de um grave acidente que, na fase final da sua vida, o impediu de caminhar.
No limite, um pouco à maneira do Godard do século XXI, Pollet convoca memórias dos seus próprios filmes para relançar a reflexão sobre os poderes e limites do cinema. É o caso de Dieu Sait Quoi (1993), em que a poesia de Francis Ponge o leva a revisitar imagens filmadas para Mediterranée e também Contretemps (1988), revendo, por exemplo, Philippe Sollers, agora num ecrã televisivo. Fica, por isso, uma lição básica: as imagens existem e renascem através dos ecrãs em que as vemos, refazendo a nossa identidade.

domingo, novembro 21, 2021

No espelho de Édouard Manet

Um Bar no Folies-Bergère (1882): tudo é subjectivo

Um belo romance de Marc Pautrel conduz-nos a uma reencontro com a modernidade da pintura de Manet — este texto foi publicado no Diário de Notícias (07 novembro).

Conhecemos e reconhecemos a herança do pintor francês Édouard Manet (1832-1883), antes do mais através de dois ou três quadros emblemáticos: desde logo, Le Déjeuner sur l’Herbe e Olympia (ambos de 1863); depois, há as suas muitas cenas do quotidiano que, como diz o cânone artístico, deslocaram as leis do realismo para a revolução impressionista, porventura criando condições para as futuras festividades da abstracção — para nos ficarmos por um exemplo universal, lembremos a multidão de Música nas Tulherias (1862), ao mesmo tempo um grupo historicamente situado e uma entidade que parece existir fora das fronteiras humanas do tempo.
Como dizia Pierre Bourdieu, há um “efeito Manet” que abala toda a arte moderna, ou melhor, cria as próprias condições de eclosão de uma nova modernidade. Por alguma razão, o seu curso sobre Manet, no Collège de France (1998-2000), está publicado com o subtítulo “Uma Revolução Simbólica” (Seuil, 2013).
Agora, com o romance Le Peuple de Manet, de Marc Pautrel, descobrimos mais um admirável exercício de abordagem crítica da obra do pintor. Aliás, o essencial deste livrinho de 160 páginas poderá resumir-se na pequena e deliciosa “contradição” que tende a chocar a preguiça intelectual do senso comum: a escrita romanesca não exclui, antes potencia, o valor crítico da abordagem.
A questão é actualíssima, quanto mais não seja porque em diversas actividades criativas (a começar pelo cinema), continuam a existir os artistas que dizem apenas “esperar” que o seu trabalho seja avaliado “de forma objectiva”. Na verdade, o que querem dizer é que não têm outra ambição que não seja a confirmação, pelos “outros”, das suas próprias intenções enquanto criadores — como se apresentar uma obra não fosse, por definição, abri-la às infinitas diferenças dos olhares, pensamentos e palavras que fazem a complexidade do mundo. Em boa verdade, do ponto de vista do criador, a obra é, não pode ser outra coisa que não seja, um objecto de perdição.
Publicado na colecção “L’Infini”, dirigida por Philippe Sollers (Gallimard, 2021), Le Peuple de Manet possui uma estrutura que até poderia ser a de um tradicional estudo universitário. Assim, temos uma primeira parte que poderemos classificar como “biográfica”, ainda que muito distante do academismo sem ponto de vista de uma mera acumulação “factual” — como se, no limite, Pautrel se colocasse na posição de quem não possui qualquer informação biográfica sobre Manet, “inventando” o seu retrato apenas, justamente, através da sua pintura. Na segunda parte, surgem algumas dezenas de textos, 46 para sermos exactos, sobre outros tantos quadros de Manet.
Esta segunda parte apresenta-se com o subtítulo “O Seu Povo”, reforçando a ideia já expressa no título do romance de que há um “povo de Manet”. Que povo é esse? São os muitos cidadãos anónimos, engolidos pela história, por vezes mortos nos seus episódios mais violentos — directa ou indirectamente, por aqui passam sinais do golpe de Estado de Luís Napoleão Bonaparte em 1851, da invasão prussiana em 1870 e das convulsões que marcaram a Comuna de Paris, em 1871. E são também todos aqueles que, na pintura e através da pintura, ficam inscritos (também) na história da arte: “Há tanta coisa a apreender na pintura, uma infinidade de realidades que é preciso saber capturar.”
Escreve Pautrel a propósito da figura central de Um Bar no Folies-Bergère (1882): “Ela é criada e está vestida como uma criada, mas não deixa de ser mais graciosa que uma burguesa, com a linha de botões escuros de madrepérola descendo ao longo do vestido de veludo, e a saia cinzenta a rimar com os botões, e aquela jóia no pescoço, tão refinada, tão íntima.”
O quadro, um dos derradeiros de Manet, nasce de uma interrogação das coordenadas e vivências do espaço público que não é estranha à própria liberdade criativa deste realismo de todas as ambivalências. Sabe-se, aliás, que Suzon, a jovem modelo, trabalhava no Folies Bergère, mas que o quadro não foi executado como uma “reprodução”, tendo sido totalmente pintado no atelier de Manet. O espelho de fundo gera mesmo uma sensação de vertigem (quem está a olhar?) que se duplica, ou multiplica, através da imagem reflectida das costas de Suzon, para mais a ser interpelada por uma figura masculina (à direita) que, no irrealismo da sua colocação física, parece disputar o lugar imaginário do próprio pintor.
O propósito do gesto artístico não é o de confirmar os sinais dispersos do mundo, mas de superar com o leitor/espectador a mentira existencial de qualquer forma de objectividade — tudo é subjectivo. Porque razão pinta, então, Manet? Responde Pautrel: “Para vencer o nada.”

segunda-feira, julho 05, 2021

Philippe Sollers
ou a alegria dos agentes secretos

Num livro auto-biográfico, Philippe Sollers propõe a redescoberta de Cortina Rasgada, um filme de Alfred Hitchcock — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 maio).

Vivemos em pleno niilismo mediático. Da política ao futebol, acordamos de manhã, ligamos as nossas antenas e ficamos a saber que nem sequer faz sentido temer o apocalipse — já aconteceu, é tudo pós-apocalítico, nada resta do humano a não ser a miséria das suas obscenidades. Neste tempo que elegeu a queixa e a denúncia como linguagens dominantes, alguém se escapa às obrigações niilistas, escrevendo assim: “A alegria é a minha filosofia essencial. Alegria, jóias, pensem o que quiserem, mas a alegria antes de tudo. É uma espécie de contemplação contínua.”
Importa dizer que a ligação das palavras “alegria” e “jóias” não é tão arbitrária quanto parece. Primeiro, por causa das semelhanças da sua sonoridade em francês: “joie” e “joyaux”. Depois, porque o autor nasceu Philippe Joyaux, a 28 de novembro de 1936, tendo desde o primeiro romance (Uma Curiosa Solidão, 1958) adoptado a assinatura de Philippe Sollers.
Com uma obra imensa, nos últimos anos repartida por romances breves que existem como outros tantos opúsculos filosóficos (Désir e Légende, de 2020 e 2021, são os mais recentes), Sollers escreve sobre a alegria em Agent Secret (Mercure de France, 2021), afinal um livro auto-biográfico. Não no sentido pitoresco de acumulação de lugares e datas. Antes resistindo à pornografia confessional do presente, celebrando um segredo ambíguo, partilhado com os outros, dos outros escondido. Está no título, envolve um método de viver e pensar: “Como uma criança, corro muito depressa, é normal, sou um agente secreto. Sem segredo não há nada.” Um verdadeiro programa político que a língua francesa consagra com discreta elegância: a mesma palavra, “secret”, serve para dar nome e adjectivar: “segredo” e “secreto”.
Através da colagem de evocações familiares, imagens e variações políticas e poéticas, a estrutura de Agent Secret faz lembrar o clássico Roland Barthes por Roland Barthes (Edições 70), cuja primeira edição surgiu em 1975. Não por acaso, como é óbvio: Sollers foi editor de Barthes, evocando o mestre e amigo em algumas das páginas mais comoventes de Agent Secret. Morto num acidente em 1980, contava 64 anos, Barthes foi também um modelo do paradoxo que ilumina a escrita de Sollers: contundência e discrição. Sollers resume, assim, o estado das coisas: “A discrição é, na verdade, qualquer coisa de delicioso, oposto a tudo aquilo que invadiu o espaço humano, agora dedicado ao jornalismo absoluto em que tudo é, por definição, indiscreto. Com a chegada da Internet, vivemos numa sociedade de indiscrição generalizada.”
Daí a atenção prestada por Sollers a todos os sistemas, sejam eles políticos ou de linguagem (uns confundem-se com os outros), que tentam encerrar a singularidade humana em modelos fechados e, em última instância, repressivos. Num capítulo fascinante de Agent Secret, Sollers refere o “período extremamente tenso” que estamos a viver, assombrado por um “desejo de totalitarismo”, para evocar alguém que “como ninguém, compreendeu esse totalitarismo interior”. A saber: Alfred Hitchcock (1899-1980).
Numa breve deambulação “hitchcockiana”, Sollers cita um dos seus filmes menos vistos, durante décadas amaldiçoado por um imaginário de esquerda, de sensibilidade comunista: Cortina Rasgada (1966), “thriller” com Paul Newman e Julie Andrews (de que Sollers publica o maravilho cartaz francês, Le Rideau Déchiré). Será preciso lembrar que se trata de uma espécie de anti-James Bond, tendo por pano de fundo as tensões sinalizadas pela Cortina de Ferro? É a aventura de um cientista americano (Newman) que, em pose de agente secreto, se infiltra nos meios académicos da Alemanha de Leste, país peão da URSS, para tentar roubar a fórmula científica que permitirá fabricar uma nova arma de guerra…
Sollers recorda o óbvio, isto é, o modo como esse “jesuíta britânico” que era Hitchcock se empenhou “contra o totalitarismo estalinista da época”. Destaca, em particular, a cena da fuga dos protagonistas quando, na plateia de uma sala de espectáculos já rodeada por elementos da polícia e dos serviços secretos, Newman instala uma confusão salvadora, gritando: “Fogo!” Como escreve Sollers, assistimos ao triunfo de uma regra fundamental no universo de Hitchcock: “o espectáculo dentro do espectáculo”. Ou ainda: “o teatro dentro do teatro, como em Shakespeare”. Tudo isto, claro, encenado com sereníssima alegria.

quinta-feira, dezembro 05, 2019

Lautréamont lido por Sollers

FOTO: Franck Ferville
PHILIPPE SOLLERS
Lógica do francês — assim se intitula um filme de G.K. Galabov e Sophie Zhang em que Philippe Sollers define, percorre e celebra a língua francesa como paisagem e instrumento de um desejo de lógica que se materializa através da concisão da matemática. Daí o ziguezague poético, poeticamente inquietante, que nos é proposto: Sollers lê Lautréamont (1846-1970), ao mesmo tempo que as imagens (e os sons) evocam J. Robert Oppenheimer (1904-1967) e a bomba atómica.
Para ver e escutar, porventura também em ziguezague com a leitura do mais recente romance de Sollers, Le Nouveau.

segunda-feira, julho 22, 2019

A mão direita de Philippe Sollers

O Novo, diz ele. Entenda-se: um barco chamado 'Le Nouveau', comandado por Henri (1850-1930), bisavô do autor. Mas também o novo, não apenas como contraponto dialéctico do velho, antes equivocamente consagrado como bandeira desta nova idade digital em que a relação com a escrita é cada vez mais ténue, para não dizer repelida. Ou como resume o próprio Sollers: "O novo é, assim, o desaparecimento da leitura, logo do treino desse músculo que é a memória."
Breve e fascinante, imenso como um continente à espera de ser descoberto, Le Nouveau oscila entre os labirintos da memória familiar e a formulação de uma estratégia de (sobre)vivência que redescobre em Shakespeare o seu guia, porventura a nossa derradeira utopia. Começa a ler-se como um diário confessional, vai-se impondo como bíblia de uma nova religião que não abdica do labor ancestral da escrita.

>>> Deixo os meus mortos tranquilos e dedico-me inteiramente ao deus que alegra a minha juventude. O seu altar é uma folha de papel branco, o seu óleo sagrado a tinta azul, a sua cerimónia clandestina o sopro. Confio na minha mão direita, ela conhece a sua navegação.

[pág. 108]

>>> Philippe Sollers / Le Nouveau / roman, um film de G.K. Galabov e Sophie Zhang.

quinta-feira, março 21, 2019

Elogio das singularidades [citação]

>>> A vida humana não adquire a sua significação plena a não ser através das singularidades, e as singularidades foram muito postas de parte pelas concepções colectivistas do mundo. Logo que ouço "juntos, todos juntos", desconfio. Não há todos, apenas há singularidades. Mas são sempre arrumadas em categorias: a arte moderna, a filosofia... Não, precisamos do singular, é isso que salva a vida.

PHILIPPE SOLLERS
entrevista sobre o novo romance Le Nouveau
Gallimard, 2019

domingo, dezembro 30, 2018

3 livros de 2018

* JOGOS DE RAIVA, de Rodrigo Guedes de Carvalho (Dom Quixote)

>>> Não há um de nós que, por uma vez que seja, não amaldiçoe o seu destino. Só que o destino é tudo o que temos, mesmo que acreditemos que poderemos mudá-lo. Não se chama destino por acaso.
(pág. 240)

O poder do destino começa, afinal, do facto de se chamar... destino. Assim é a prosa de Rodrigo Guedes de Carvalho, continuando um admirável labor realista que não se esgota nos sinais do quotidiano, longe disso, porque existe, no essencial, como realismo da linguagem.
Encontramos em Jogos de Raiva (o título envolve uma calculada ironia cinéfila) o prolongamento exemplar de experiências que tiveram um desenvolvimento importante no anterior O Pianista de Hotel, expondo as conexões reais, imaginadas ou imaginárias entre elementos de um pequeno colectivo atravessado pelos laços, ilusões e símbolos de uma ideia primitiva de família. Certamente não por acaso há, aqui, alguém que escreve um romance que funciona, de uma só vez, como reflexo simbólico e espelho deformante do próprio romance que estamos a ler. Dito de outro modo: o trabalho literário existe como actividade sistematicamente impelida para questionar os seus poderes e limites, sobretudo num mundo em que, "socialmente" e em "rede", cedemos todos os dias à instrumentalização obscena ou mediática (muitas vezes obscena e mediática) da magia primordial da palavra — essa palavra que o cinema já expôs [Dreyer] na sua dimensão sagrada.
Tudo isto se desenvolve através de uma dramaturgia de durações e lugares cruzados, cada um deles alimentando a ambiguidade que o aproxima do seu contrário. É um método capaz de reconhecer a fragilidade em que passou a existir a tarefa prospectiva do escritor, por oposição à rotina instrumental do escrevente (para utilizarmos a oposição definida por Roland Barthes). Em última instância, é uma via para lidarmos com a complexidade do nosso tempo — português e universal.

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* CENTRE, de Philippe Sollers (Gallimard)

No interior de uma obra imensa e fascinante, os mais recentes romances de Philippe Sollers podem ler-se também como zonas mais ou menos autónomas de um bloco-notas dedicado às maravilhas e monstruosidades do nosso viver: da celebração do poder invencível da palavra até ao reconhecimento da mediocridade triunfante da sociedade "virtual" — leia-se a rede que se desenha através de L' Éclaircie, Médium, Mouvement e Beauté. De novo através de uma festiva brevidade — apenas 128 páginas, há algo da vertigem punk na escrita de Sollers —, Centre é mais um romance exemplar dessa dialéctica vivida entre o esvaziamento do social e o sagrado da relação amorosa. Com uma ambígua sugestão autobiográfica: Sollers é casado com a psicanalista Julia Kristeva, ela própria uma notável romancista (leia-se o prodigioso L'Horloge Enchantée), sendo o escritor/narrador de Centre casado com Nora, psicanalista de profissão... Nada a ver, entenda-se, com a pornografia confessional que nos rodeia — este é um objecto do mais radical pudor.

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* CAOS E RITMO, de José Gil (Relógio D'Água)

Esta é a escrita do corpo e das suas propriedades: porque um corpo possui essa capacidade de "emitir forças (partículas intensivas) que um outro corpo recebe e acolhe como suas" (pág. 26). José Gil percorre um leque de mundividências, dos estudos da criança por Françoise Dolto às propostas de Antonin Artaud em O Teatro e o seu Duplo, passando pela feitiçaria interior à tragédia de Macbeth. Na procura de quê? Trata-se de iluminar essas paisagens tão próximas, por vezes tão dificilmente pensáveis, em que o corpo se faz ideia, ou melhor, em que protagonizamos um renascimento alheio a qualquer formatação religiosa, embora realmente espiritual — porque, no dizer de Artaud, "as ideias não são senão os vazios do corpo." Eis um livro que se pode definir através da classificação tradicional de ensaio filosófico, mas que, no limite, se vai construindo como uma deambulação romanesca por um património de ideias com duas frentes: numa delas, continuamos a lutar por saber o que acontece quando aplicamos a palavra "eu"; na outra, porventura distante, mas complementar, revemo-nos no espaço de uma Europa problemática, assombrada pela sedução do seu equilíbrio instável: utopia ou distopia?

terça-feira, dezembro 04, 2018

Sollers — nas margens, quer dizer, no centro

Homem sempre interessado pelos labirintos da beleza, o francês Philippe Sollers situa-se, por isso mesmo, nas margens de qualquer sistema que trabalhe para a formatação do real.
Coisa frequente, coisa monstruosa do nosso mundo contemporâneo: desde aqueles que alimentam as deprimentes polémicas futebolísticas até aos que naturalizaram os horrores da Reality TV, passando pelos arautos de todas as purificações sexuais, os formatos impuseram-se como a única ideia de redenção de um universo que não consegue pensar para além de 20 ou 30 palavras (eventualmente 140 caracteres, o que vem a dar no mesmo).
O seu génio é tanto mais repelido pelo exército dos "formatadores" (se a palavra não existe, precisamos de a inventar) quanto a marginalidade de Sollers o impele para o centro. Centre, justamente, aí está, obra maior na produção literária de 2018 em que a personagem de um escritor fascinado por Freud e Lacan, expõe, através de palavras precisas e desejos impregnados pela escrita, a sua relação amorosa com Nora, psicanalista.
Sabemos que Sollers é casado com Julia Kristeva, ensaíasta, romancista e, avant tout, psicanalista... Evitemos, porém, os jogos florais autobiográficos, outro formato em voga: cronista medíocre ou profissional do comentário político, sem esquecer as mais bizarras encarnações de bloggers e youtubers, são muitos os que se afadigam no domínio da desvergonha autobiográfica, pueril e anedótica, alimentada pela estupidez "social" em rede.
Para Sollers, o centro é, de uma só vez, o lugar a partir do qual o amor se define, pulverizando a geometria do mundo, e o domínio do impensável humano — porque a urgência de pensar as relações humanas pode levar-nos a coabitar com uma transcendência que pertence apenas ao labor da escrita ou, como diria um mestre querido de Sollers, ao prazer do texto.
Enfim, este é um livro de um humor radical, prolongando a série de romances fragmentários com que Sollers vai inventariando a obscenidade do mundo, pressentindo, apesar de tudo, uma alegria que insiste em assumir-se como centro do pensamento. Et pour cause.

>>> Na era do Espectáculo mundializado, a "pós-verdade" impõe-se. Aliás, tudo se tornou "pós". Pós-moderno, pós-sexual, pós-religioso, pós-político, pós-climático. Um "pós" e uma "pós" já não têm muito a dizer um ao outro, permanecem dobrados sobre os seus smartphones, em contacto constante com outros "pós". Os "pós-ovócitos" estão no mercado, do mesmo modo que os "pós-espermatozóides" tornados cada vez mais raros. O "pós-útero" está em marcha. Assim vai o "pós",  já ultrapassado, na ciber-guerra, pelo "hiper-pós". Já não há posteridade, já não há póstumo, nada a não ser posturas postiças sem futuro.

PHILIPPE SOLLERS
in Centre, pág. 98

domingo, março 18, 2018

A música de Sollers

O romance de Philippe Sollers, Beauté, publicado em 2017 (entretanto, o autor já lançou Centre) é, de uma só vez, uma música íntima e uma deambulação pela musicalidade utópica do mundo. A partir da relação com Lisa, "jovem pianista grega excepcional", o autor organiza uma deambulação romanesca e filosófica, com algo de perverso método jornalístico, sobre a beleza perdida do mundo. Ou melhor, sobre o enfraquecimento da ideia de beleza na histeria deste mundo de espectáculo, reality-TV e hiperligações.
Sollers acrescenta assim mais uma peça fascinante ao mapa de romances com que vai redesenhando um desejo de escrita que não vacila perante a formatação quotidiana dos seres, gestos e relações — recorde-se o anterior, igulamente magnífico, Mouvement. Como intransigente moralista — entenda-se: pensador empenhado em discutir as condições de formulação de alguma moral —, não abdica de continuar a descrever a apropriação da nossa existência pelos sistemas de encenação social que já marcaram a ferro e fogo o século XX. A começar pelo nazismo — para ler, celebrando o poder não alinhado da palavra.

>>> Aquele que compreendeu melhor o devir-cinema universal foi Hitler. Basta abrir uma televisão, e deslizar de um canal para outro, para constatar que ele está lá, sem interrupção, com a emergência de arquivos inéditos por longo tempo interditos, que contemplamos agora colorizados. De tal modo estamos habituados a ver as mesmas imagens dos campos de exterminação, a preto e branco, com os seus amontoados de cadáveres esqueléticos e deportados meio mortos, que somos surpreendidos por esta súbita passagem para a cor. É o mesmo estúpido que vocifera, braço estendido, perante as massas em êxtase (muitas mulheres em transe), mas, em vez de aparecer como anjo das trevas com a sua braçadeira de cruz gamada, ei-lo arranjado, descontraído, quase espontâneo, e a sua fiel companheira, Eva Braun, loura e arredondada, desportiva, querida, amando o seu monstro empertigado como se ele fosse a sua boneca. 
[pág. 99]

sexta-feira, março 16, 2018

Má literatura [citação]

>>> A má literatura é profundamente surda, daí o entusiasmo que suscita na surdez geral do marketing.

PHILIPPE SOLLERS
Entrevista a Emmanuelle de Boysson
Putsch, 5 Março 2018

quarta-feira, dezembro 21, 2016

Nome próprio [citação]


>>> É muito bom ser-se um nome próprio que tem mais confiança numa nota escrita do que no seu corpo. Não é fácil explicar isso às pessoas que estão persuadidas que o seu corpo, quer dizer antropomorficamente a imagem do seu corpo no espelho, é o lugar de onde viria aquilo que dizem, logo aquilo que escrevem. É aliás por essa razão que aquilo que escrevem tem tão pouco interesse.

PHILIPPE SOLLERS
Le Cherche Midi, 2008

sexta-feira, julho 22, 2016

O movimento segundo Sollers

Tempos difíceis. Tempos de angustiado humor. Philippe Sollers continua a escrever livros magníficos sobre a sua/nossa sociedade submetida ao "império dos simulacros" (é assim que ele designa a televisão), feita de muitas relações de indivíduos que já não vêem o movimento — e que, desse modo, perderam a singularidade que, justamente, os individualizava.

>>> Pascal, matemático místico, escreveu coisas deste género:
"Quero mostrar-vos uma coisa infinita e indivisível: é um ponto que se move por todo o lado a uma velocidade infinita, porque está em todos os lugares e está, por inteiro, em cada lugar."
Será que o leitor vê este movimento? Não? tanto pior.
[pág. 41]

Mouvement (ed. Gallimard, 2016) é esse romance construído sob o signo de Hegel (La vérité est le mouvement d'elle-même en elle-même — eis a citação de abertura) em que a observação mais íntima convive com aqueles que arriscaram pensar os limites, todos os limites. Tudo assombrado (o assombramento é, aqui, uma coisa feliz) pela presença imensa, incansável e sem cansaço, silenciosa e convulsiva, desses objectos de todos os futuros que são os livros.

>>> (...) os verdadeiros livros, radicalmente acordados, dormem de punhos cerrados, é a sua força. Estes blocos de sono são de uma lucidez incrível. Sei onde encontrá-los e como lhes falar.
[pág. 59]

Os livros de Sollers dos últimos anos (no limite, talvez toda a sua obra) podem ser percorridos como capítulos abertos, mas formalmente delimitados, de uma intransigência de viver e escrever que envolve sempre a defesa da irredutibilidade da própria escrita. Ele vive, afinal, essa memória magoada de um tempo em que escrever era uma arte de viver, não uma mensagem cifrada de telemóvel — vale a pena referir que, na gíria adoptada na língua francesa, um SMS é um texto [têxtô]. Em causa está a administração literária da solidão, esse admirável mecanismo de reconhecimento do outro.

>>> Ela não dorme se não recebeu o seu texto. Bruscamente, inventa um encontro profissional importante: texto. Dir-se-ia que é o seu ADN que a convoca, está pronta a sacrificar tudo por um virtuoso do texto. Já não lê mais nada a não ser as suas mensagens, os livros são demasiado longos e demasiado difíceis, baralham-se perante os seus olhos. A televisão, a rádio, o telefone vocal são desertos de aborrecimento. Tão convincente como a cocaína: o texto flash.
[pág. 138]  

segunda-feira, novembro 09, 2015

Mistério [citação]

>>> "Cogito, ergo sum", eis um outro mistério. De onde vem o pensamento? Porque é tão rápido? Deus contém a Natureza, ou será que é o contrário? Não há dúvida: respiro, sou, penso, sinto, durmo, sonho. Todos os fenómenos participam numa grande Missa cifrada, e transformo-me subitamente em memória. Um dia, leio esta fórmula de Mallarmé: "Ele consegue avançar porque vai em direcção ao mistério." Será que eu avanço? Parece.

PHILIPPE SOLLERS
Éd. Gallimard, Paris, 2015

terça-feira, junho 03, 2014

Phillipe Sollers no meio do tempo

Médium ou, como o próprio autor esclarece, "pessoa susceptível de, em determinadas circunstâncias, entrar em contacto com os espíritos (do latim medius, no meio)". No novo livro de Philippe Sollers, tudo é ou pode ser mediação — e a sua resistência.
Prolongando a lógica fragmentária de exercícios anteriores, como L'Éclaircie ou Portraits de Femmes, o autor fala de uma mulher como medium de outra, de um desejo de escrita como marca de uma obstinada intransigência cultural, de Veneza como duplo de Paris, ou o contrário — enfim, de Veneza, sempre Veneza, como medium de Veneza, a ponto de "o narrador ser um medium que descobre a sua própria capacidade de mediação em função das respostas que recebe".
Philippe Sollers
Tudo isso leva-o a ocupar o meio do próprio tempo, não a nostalgia do passado, não a ilusão profética do futuro, aí onde a consciência das memórias funciona também como arte de desmascarar as imposturas da ideologia mediática que, através das vivências "em tempo real", nos enreda numa inércia feita de euforias programadas e, pior um pouco, obrigatórias.
Daí também as personalidades que Sollers convoca para ocuparem a posição de medium literário, funcionando como inspiração e observadores transcendentais da sua própria escrita: Saint Simon (1675-1755), que viveu em Versalhes, "então o centro do mundo" (por assim dizer, medium de todas as formas de poder e saber); e o Conde de Lautréamont, aliás, Isidore Ducasse (1846-1870), autor dos lendários Cantos de Maldoror. Em particular através de Ducasse, Sollers revê, sob a serena concordância das águas de Veneza [video de G. K. Galabov e Sophie Zhang], a tragédia contemporânea do Diabo dominante e de um Deus humanamente iludido, condenado a assumir-se como Diabo para lidar com os horrores do mundo que deserdou.
Livro simples e sublime, conciliando a leveza da crónica e a contundência da epopeia, Médium procura, no limite do vazio contemporâneo, a possibilidade de renovação do voto de Pascal: "Quem tiver encontrado o segredo de se alegrar com o bem sem recusar o mal contrário, terá encontrado o equilíbrio. É o movimento perpétuo".

quinta-feira, outubro 17, 2013

Sollers, entre as mulheres

No incontornável O Segundo Sexo (1949), Simone de Beauvoir escreveu um dos axiomas nucleares de todas as filosofias feministas: "Ninguém nasce mulher: torna-se mulher" (On ne naît pas femme: on le devient.). Digamos que, tal como Beauvoir, Philippe Sollers é um animal com elaborados instintos de marcação de território. Daí que no seu novo livro, Portraits de Femmes, ele comece por propor um genial roubo conceptual: "Ninguém nasce homem, torna-se homem" (On ne naît pas homme, on le devient).
Em boa verdade, tal como em Beauvoir, com a sua recusa de qualquer determinismo biológico, físico ou económico, a citação de Sollers carece de um pouco mais de fôlego. Pelo menos tendo em conta o seguinte: "Ninguém nasce homem, torna-se homem, a maior parte do tempo à sua própria custa. É um longo caminho perigoso que, a maior parte das vezes, não conduz a lado nenhum."
Génio múltiplo de Sollers, fazendo destes retratos de mulheres (obviamente evocando o momento simbólico, ironicamente "escandaloso", de Femmes, publicado há trinta anos) um misto elegante de afirmação de identidade e irrisão de tudo que a palavra não possa recobrir — sem esquecer que recobrir, intensificando o acto de cobrir, envolve os riscos muito humanos da linguagem, quer dizer, do labor paciente e exigente de colocar palavras sobre as coisas.
Tudo isto, enfim, apenas faz sentido, quer dizer, só entra na guerra dos sentidos e da significação pelo lado da mãe, primeira mulher do livro. E da língua mãe. Citação:

>>> O francês tornou-se uma língua morta? Toda a gente diz mais ou menos que sim, o que pode querer dizer que não haveria outra autoridade que não fosse a autoridade muda dos mercados financeiros. Mas não, eu estou vivo e todos estes retratos de mulher respiram.

sexta-feira, junho 15, 2012

Sollers, Manet, Picasso

L' Éclaircie. Que é como quem diz: uma aberta (no tempo). Talvez uma iluminação (nos pensamentos). Porventura um fogacho (nas rotinas do quotidiano). Em todo o caso, é de amor que se trata. Amor da irmã do narrador que reaparece ciclicamente, dir-se-ia para satisfazer uma compulsão narrativa incestuosa. Amor da mulher que com ele partilha, secretamente, a nitidez de uma entrega que os outros ignoram. Anne e Lucie.
Philippe Sollers continua a escrever livros maravilhosos e desarmantes, desafiando as zonas obscuras de todos os desejos e, ao mesmo tempo, confundindo a aventura das suas personagens com uma dissertação elaboradíssima sobre aqueles que renegaram as fronteiras aprendidas da arte. Manet e Picasso, neste caso, senhores de um tempo em que adorar um cedro, como o narrador/Sollers (C'est immédiat : je ne peux pas voir un cèdre, dans un jardin ou débordant d'un mur sur la rue, sans penser qu'une grande bénédiction émane de lui et s'étend sur le monde.) era já uma filosofia de vida.
Em conjuntura de generalizada degenerescência pornográfica da palavra ("em tempo real", como diriam os ingénuos pivots de televisão), L'Éclaircie confunde-se com a afirmação irredutível da escrita e das suas obstinadas singularidades. Há um humor refinado em tudo isso. Ou, se preferirem, um prudente cepticismo face à grandeza utópica do ser humano.