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terça-feira, dezembro 02, 2025

O Último Suspiro
ou como falar sobre o cancro?

Denis Podalydès: onde está a psicologia do cancro?

O Último Suspiro, do francês Costa-Gavras, é um filme sobre o cancro, ou melhor, sobre a dificuldade de lidar com as incidências da doença e, nessa medida, sobre a infinita complexidade das vivências humanas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 novembro).

Estreado no Festival de San Sebastián de 2024, o mais recente filme de Costa-Gavras, O Último Suspiro envolve um desafio temático com que não é simples lidar. A saber: a sua personagem central, Fabrice Toussaint (Denis Podalydès), é um escritor e filósofo que, na sequência de uma ressonância magnética, fica a saber que tem um cancro... Não lhe é fácil, por isso, dialogar com o seu médico, Augustin Masset (Kad Merad). E tanto mais quanto, numa linguagem sincera e transparente, Augustin lhe faz ver que será preciso reflectir serenamente e tomar decisões concisas sobre os modos de lidar com a doença.
Evitemos, por isso, alimentar o mais pobre imaginário televisivo que, todos os dias, fere a nossa sensibilidade e tenta limitar a nossa capacidade de pensar. Não se trata de alimentar esse misto de paternalismo piedoso e cinismo mediático com que alguns responsáveis de “talk shows” se permitem explorar muitas formas de sofrimento humano (o mesmo se dirá da pornografia moral de certas rubricas sobre o “mundo do crime”). O filme de Costa-Gavras não é sobre o “cancro” como uma entidade abstracta, susceptível de ser reduzida a uma antologia maniqueísta de prós e contras. E também não pretende retratar “todas” as pessoas atingidas por alguma forma de cancro, como se fosse psicologicamente pertinente e filosoficamente inteligente alimentar a ilusão de que há respostas globais para um tão complexo fenómeno biológico e social.

Falar sobre o cancro

Falemos, por isso, de cinema. Como? Começando por parafrasear a forma como Gertrude Stein eternizou a transparência e o mistério de uma rosa, agora dizendo: um filme é um filme é um filme... Três vezes para estarmos seguros de não ceder a essa maldição cultural que faz com que os filmes (os livros, as canções, etc.) estejam a ser reduzidos à importância que se atribui aos seus “temas”, desse modo promovendo de forma despudorada as mais vergonhosas mediocridades artísticas.
Estamos perante uma narrativa sobre a passagem para o universo da palavra — da fascinante pluralidade das palavras. Costa-Gavras, também autor do argumento (a partir de um livro de Régis Debray e Claude Grange), escolhe como motor dramático o próprio diálogo Fabrice/Augustin. Com uma nuance a que não falta uma contagiante componente irónica: perante o medo e as dúvidas de Fabrice, Augustin sugere-lhe que ele o acompanhe nas visitas a outros pacientes com cancro.
O mínimo que se pode dizer dessa experiência é que, para lá da diversidade de manifestações cancerígenas que podem afectar um ser humano, os modos como cada paciente lida com a sua própria situação são infinitos — por vezes, é verdade, fascinantes. Assim acontece com a bem disposta Madame Léonie (Françoise Lebrun, lendária actriz de A Mãe e a Puta, o filme de 1973 realizado por Jean Eustache), ou ainda com Estrella (Ángela Molina), a paciente que dispensa um psicólogo, já que a sua crença lhe garante que o seu psicólogo “está lá em cima” — aliás, com o seu olhar, Fabrice tenta confirmar essa divina localização...
O Último Suspiro não é, por isso, um filme sobre a “boa maneira” de morrer com cancro. Não é sequer um filme em que a morte seja um ponto de fuga que mobilize todas as linhas dramáticas que o seu argumento coloca em jogo. Em boa verdade, é um filme sobre a “boa maneira” de viver, mesmo enfrentando o cancro. E tanto mais quanto Costa-Gavras nos convoca para um depurado registo realista em que a pertença de cada personagem a uma determinada matriz (profissional, institucional, etc.) não apaga, antes permite sublinhar, a sua irredutibilidade humana.

A dimensão política

Para quem conheça um pouco da filmografia de Costa-Gavras (francês, nascido na Grécia em 1933), o envolvente realismo de O Último Suspiro não será uma surpresa, mas não há dúvida que se demarca das ambiências dos seus filmes mais conhecidos. Penso, em particular, nos dramas políticos que o projectaram a nível internacional: Z – A Orgia do Poder (1969), A Confissão (1970) e Estado de Sítio (1972), todos protagonizados por Yves Montand. Ou ainda no recente Comportem-se como Adultos (2019), revisitando a experiência de Yanis Varoufakis, em 2015, na atribulada governação da Grécia.
Digamos, para simplificar, que O Último Suspiro está longe de representar uma “viragem” na caminhada cinematográfica de Costa-Gavras. Afinal, para ele, como sempre, é na vida de cada indivíduo que se enraíza a dimensão política do que somos ou queremos ser — na vida e, se for caso disso, também na morte.

sábado, novembro 15, 2025

Cézanne entre nós

Paul Cézanne
Quatro Maçãs (1880-81)

Para onde vai a política que desistiu de falar de cultura? Alguém está a pensar em termos de política cultural? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 outubro).

Enquanto os políticos, nas televisões, continuam a argumentar em função daquilo que outros políticos disseram, também nas televisões, os seus jogos florais acontecem como se a cultura não existisse. Não a cultura dos prémios, das efemérides ou do prestígio que a todos reconforta. Apenas a cultura enquanto facto (também) político.
Discute-se o Orçamento Geral de Estado, os cidadãos vão eleger um novo Presidente da República, mas a expressão “política cultural” foi rasurada de intermináveis debates aprisionados nas suas penosas redundâncias. Os analistas políticos praticam o mesmo esquecimento, ocupados que estão a decifrar se o espirro de um político incauto é de esquerda ou de direita — sem que isso os impeça de fazer um intervalo nas suas performances para surgirem como comentadores do futebol, aparentemente, importa reconhecê-lo, com uma postura francamente mais feliz e comunicativa.
Sendo televisiva — porque a política se acomodou nas lógicas novelescas dos pequenos ecrãs —, a questão está longe de ser banalmente programática ou comunicacional. No seu limite mais trágico, de que já não estamos muito distantes, a rarefação da cultura (a começar pela palavra “cultura”) na saturação de análises políticas em que somos obrigados a viver envolve algo mais fundo, infinitamente mais perturbante. A saber: o esvaziamento cultural do espaço público corresponde a uma desvalorização implícita das singularidades dos gestos artísticos — e, por fim, ao assassinato simbólico da arte e do seu desejo.
Muitos criadores, sobretudo os mais jovens, falam mesmo do seu trabalho como se estivessem a cumprir um caderno de encargos alheio a qualquer risco artístico. Aparecem nas televisões e limitam-se a fornecer um inventário de “temas” que satisfaçam as modas mediáticas, da defesa de alguma minoria ameaçada até à celebração da liberdade. Não que uma coisa e outra não justifiquem atenção e empenho. Resta saber o que aconteceu quando já não há pensamento activo nem perturbação genuinamente artística — apenas um obsceno moralismo universal disfarçado de autoridade artística. Lembremos, por isso, aquilo que a personagem de Julia Roberts (no filme Depois da Caçada) diz a uma jovem que sente o seu conforto posto em causa pela complexidade do mundo à sua volta: “Nem tudo é suposto deixar-te confortável.”
A postura artística é, por princípio, arriscada, incerta e vulnerável. Se não o for, em boa verdade já não tem nada de artístico e, por estes dias, apenas serve para alimentar os “talk shows” televisivos em que, cinco vezes por semana, são reveladas obras-primas de coisa nenhuma. Num belíssimo ensaio publicado em 1945, “A dúvida de Cézanne”, Maurice Merleau-Ponty ensinava-nos algo bem diferente, lançando, assim, a sua reflexão sobre o trabalho do pintor: “Eram-lhe necessárias cem sessões de trabalho para uma natureza morta, cento e cinquenta sessões de pose para um retrato. Aquilo que chamamos a sua obra não era para ele mais do que o ensaio e a aproximação da sua pintura.”
O artista é aquele que nos convoca, não para partilhar uma satisfação consumista, antes desnudando a insatisfação existencial que o próprio desejo criativo transporta. O artista é político não por exprimir o que quer que seja vindo da classe política (mesmo dos seus membros mais talentosos), mas porque pensa, age, pinta, escreve ou filma fora dos parâmetros dessa classe e do seu labor. Ainda Merleau-Ponty: “Cézanne não considerou ser seu dever escolher entre a sensação e o pensamento, nem entre o caos e a ordem. Ele não quer separar as coisas fixas que surgem ao nosso olhar da sua maneira fugaz de aparecer, ele quer pintar a matéria a tomar forma, nascendo a ordem através de uma organização espontânea.”
Perdemos o gosto dessa (outra ideia de) ordem que os objectos artísticos contêm ou podem conter. Nos discursos políticos instalou-se mesmo um misto de vergonha intelectual e falso pudor que, para satisfazer as muitas formas de ignorância potenciadas pelo politicamente correcto, repele a palavra “ordem” como algo que nos faz perder o mundo. Assim se esquece que a arte, na sua desordem interrogativa, é também uma maneira de pressentir uma possível reordenação do mundo. “Mais Cézanne nos ecrãs de televisão” — eis uma sugestiva palavra de ordem.

domingo, novembro 02, 2025

A herança de Hannah Arendt

Fotograma do filme Vida Activa: O Espírito de Hannah Arendt (2015)

O que é o espaço público da vida política? Dentro dele, que lugar existe (ou não) para os cidadãos que somos? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 outubro).

A revista francesa Philosophie Magazine acaba de lançar um número especial dedicado a Hannah Arendt (1906-1975). Nele encontramos uma antologia multifacetada, incluindo citações, textos de análise e entrevistas com estudiosos da obra de Arendt, celebrando a extrema e perturbante actualidade da sua obra. Entenda-se: não uma “aplicação” simplista do seu pensamento ao nosso século XXI, mas uma releitura crítica da sua fascinante pluralidade argumentativa, sem esquecer que tal pensamento não pode ser dissociado do contexto geo-político em que os nazis puseram em marcha o Holocausto, nessa medida envolvendo o estudo dos totalitarismos antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial.
As propostas de reflexão são tanto mais interessantes quanto, mesmo quando não o explicitam, ecoam uma fundamental disponibilidade intelectual que vai pontuando a obra de Arendt. A saber: o desejo de libertar a política — enquanto pensamento e acção — da dicotomia compulsiva “direita/esquerda”. Escusado será dizer que a resistência às facilidades de tal dicotomia não se confundem com qualquer forma de fusão, que seria pura confusão, dos ideários dos diferentes adversários políticos.
O que está em causa é a possibilidade de pensar além (porventura aquém) da sua pressão ideológica e, hoje em dia, mediática, infelizmente dominante no espaço televisivo. A esmagadora maioria das “análises” que acompanhamos no pequeno ecrã aplicam a fórmula “direita/esquerda”, não para tentar compreender a dinâmica das ideias políticas, apenas para avaliar se tais ideias satisfazem ou não a fórmula dicotómica enunciada antes do próprio conhecimento dos factos e das suas nem sempre previsíveis dialécticas.
Numa das entrevistas deste número da revista, Roger Berkowitz, filósofo e professor do Bard College (Nova Iorque), fala, em particular, do que significa “defender uma certa ideia da América” face à presidência de Donald Trump. A esse propósito, analisa os prolongados efeitos da acção da “nova elite” que, na sequência das convulsões da década de 1960 contra as elites conservadoras, se apresentou como uma entidade que sabe “tudo sobre tudo”, tentando impor “novas normas para todos”.
Berkowitz recorda que semelhante ditadura do novo (a expressão é apenas minha) “é o que Hannah Arendt critica, por exemplo, na vontade dos militantes dos direitos cívicos imporem pela força que os autocarros escolares se abram à diversidade racial, sobrecarregando as crianças com a reparação do fardo da segregação herdado do passado” — sem esquecer, repito, que tudo isto deve ser citado em função de uma conjuntura americana vivida há 60 anos.
De qualquer modo, Berkowitz reflecte também sobre o presente de uma certa cultura política “liberal” (as aspas são dele), prolongando o seu raciocínio com uma alusão muito pessoal: “Sou favorável ao aborto, mas não pretendo impor os meus pontos de vista aos que não pensam assim. Sou favorável à mudança de género, mas não pretendo impor a toda a gente a ideia segundo a qual o género não existe. Acima de tudo, não estou a afirmar que aqueles que discordam de mim são racistas sexistas e transfóbicos que deviam ser excluídos do debate público.”
A herança de Hannah Arendt não pode ser separada deste misto de agilidade e contundência — e, nessa medida, do conceito (e, sobretudo, das práticas) daquilo a que damos o nome de espaço público. Recordando Thomas Jefferson, escreveu ela em 1967, no seu Ensaio sobre a revolução: “O que, segundo ele, constituía o perigo mortal para a república era que a Constituição tivesse conferido todo o poder aos cidadãos sem lhes proporcionar a possibilidade de serem republicanos e de agirem enquanto cidadãos.”
O que nos encaminha para uma pergunta que assombra as nossas democracias: porque é que o único espaço público activo, diariamente activo, passou a ser o espaço televisivo? Para lá do afunilamento dos pensamentos, não estará o mesmo espaço a promover uma noção meramente virtual da consciência política, sustentada pelo fluxo quotidiano de imagens sem imaginação? Resta saber se há algum político com coragem para pensar sem se submeter às regras desse espaço, mas também não desistindo das suas potencialidades democráticas.

domingo, outubro 26, 2025

A miragem de Taylor Swift

Ser ou não ser uma estrela, eis a questão: subitamente, há uma canção que nos fala de Elizabeth Taylor... — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 outubro).

[Instagram]
Na velocidade alucinante da (des)informação audiovisual em que vivemos, eis um curioso contraste de imagens que, de uma maneira ou de outra, tem pontuado o nosso quotidiano. Assim, por um lado, revemos Greta Thunberg como expressão de uma postura militante que não desiste de fundamentais valores humanistas ignorados em muitos sectores da vida económica e da acção política. Ao mesmo tempo, por outro lado, Taylor Swift lança o seu 12º álbum de estúdio, The Life of a Showgirl, apoiado por uma série de fotografias com assinatura da dupla Mert Allas/Marcus Piggott que serviram para criar cerca de uma dezena de sugestivas capas para o novo registo.
Identificar assim as duas figuras e as respectivas imagens não significa qualquer aproximação (seja ela ecuménica ou conflituosa) das respectivas formas de existência mediática, nem sequer através do factor “feminino”. Afinal de contas, Thunberg tem 22 anos e Swift está a poucas semanas de completar 36, pelo que até mesmo o eventual uso da palavra “juventude” para classificar a sua coexistência no espaço da comunicação global não passaria de mais um gesto gratuito do pobre imaginário “juvenil” com que muitas formas de televisão tentam resumir a complexidade das pessoas, dos seus contextos e também do seu papel simbólico. Trata-se apenas de reconhecer que, em última instância, tal coexistência enriquece e alimenta a pluralidade do mundo.
No território específico do espectáculo, o protagonismo de Swift é tanto mais interessante quanto a sua trajectória profissional nunca dispensou alguma reflexão sobre as formas de representação do seu trabalho — e também, necessariamente, de auto-representação (a começar pelos estereótipos juvenis do seu primeiro álbum, homónimo, lançado em 2006). Acontece que para The Life of a Showgirl as escolhas dessa teatralização, afinal inerente a qualquer linguagem do espectáculo, se faz através de um insólito recuo temporal, tão conciso quanto irónico — as sofisticadas imagens de Allas/Piggott são a bandeira ambivalente desse verdadeiro processo dramatúrgico.
Poderemos considerar que o título do álbum se refere a “A vida de uma bailarina”, destacando a dança como valor inerente às suas performances (dos palcos aos telediscos), à semelhança de várias estrelas contemporâneas da música popular. O certo é que a palavra “showgirl” arrasta uma antologia de memórias que, pelo menos no contexto do “entertainment” americano, excede os limites de um estilo ou uma técnica.
Nos primórdios do cinema sonoro, e através de muitas associações com o imaginário da Broadway, a “showgirl” pertence ao mundo das chamadas Gold Diggers que, além do guarda-roupa exuberante (que Swift recria com grande pormenor), se distinguem pelas monumentais coreografias dos seus números musicais — lembremos, a esse propósito, o génio de encenação de Busby Berkeley em filmes como Gold Diggers of 1935 (1935), Gold Diggers of 1937 (1936) e Gold Diggers in Paris (1938). Para lá do género musical, o artifício da “showgirl” é mesmo um elemento espectacular que contamina muitas personagens do espectáculo, de uma vedeta do mudo como Theda Bara (Cleópatra num filme de 1917) até aos delírios visuais de Lady Gaga na sua emblemática digressão "The Monster Ball" (2009-2011).
Com Taylor Swift, tudo isso se reencena num jogo contido de humor e nostalgia, já que a “showgirl” que ela elege como modelo é alguém cujo imaginário se rege por componentes artísticas e simbólicas bem diferentes. A saber: Elizabeth Taylor (1932-2011). Encontramos mesmo no álbum uma canção intitulada Elizabeth Taylor, espelhando as amarguras decorrentes da conjugação de euforia e solidão, celebração e abandono, que a condição de estrela pode arrastar.
Lembrando os filmes de Elizabeth Taylor, de A Coragem de Lassie (1946) a Quem Tem Medo the Virginia Woolf? (1966), passando por Um Lugar ao Sol (1951), Gata em Telhado de Zinco Quente (1958) ou Cleópatra (1963), será que todos os ouvintes do novo álbum têm imagens para associar ao nome da “showgirl” que ela evoca? Movemo-nos, assim, num deserto de símbolos: num misto de pedagogia e poesia, Swift assume-se como miragem de uma ideia de “star” que se vai apagando nas nossas memórias.

sexta-feira, outubro 24, 2025

Bugonia — nostalgia, provavelmente

E se a ficção científica à maneira da década de 1950, quase naïf, envolvente no seu simbolismo, nostálgica na procura da inocência perdida, voltar a ser possível?

BUGONIA (2025)
Yorgos Lanthimos
 

domingo, outubro 19, 2025

Easy Riders, Raging Bulls — o filme

Easy Riders, Raging Bulls (Simon & Schuster, 1998), de Peter Biskind, é um livro fundamental para compreender as convulsões do cinema americano ao longo das décadas de 1960/70 e os seus efeitos, realmente revolucionários, nas estruturas de Hollywood. O respectivo subtítulo é esclarecedor: How the Sex-Drugs-and-Rock 'N Roll Generation Saved Hollywood.
O livro deu origem a um documentário, homónimo, realizado por Kenneth Bowser. Revelado, extra-competição, no Festival de Cannes de 2003, é uma peça preciosa para conhecer o que aconteceu entre Easy Rider (1969) e Raging Bull (1980) — aqui está, em ficheiro do YouTube.
 

sexta-feira, outubro 17, 2025

A herança de James Dean

[Rebel without a Cause, 1955]

Setenta anos depois da sua morte, James Dean continua a ser uma referência em que tudo se cruza, memória e simbologia, cinema e mitologia — este texto foi publicado na revista METROPOLIS (nº 122, setembro).

Há setenta anos — mais exactamente, no dia 30 de setembro de 1955 — James Dean morreu num acidente com o seu Porsche 550 Spyder, na zona de Cholame, uma pequena comunidade californiana — contava 24 anos. Na sua curta filmografia, além de uma série de papéis realmente secundários, três filmes bastaram para afirmar o seu talento invulgar e alimentar a sua aura lendária: A Leste do Paraíso, de Elia Kazan, Fúria de Viver, de Nicholas Ray, e O Gigante, de George Stevens.
No plano profissional, a brusquidão da sua morte impediu-o de conhecer a espectacular dimensão, não só do seu sucesso, mas também, e sobretudo, do seu impacto cultural e mitológico. Quando morreu, apenas A Leste do Paraíso, baseado no romance de John Steinbeck, tinha chegado às salas de cinema, a 9 de março de 1955. Fúria de Viver estreou-se menos de um mês depois do seu trágico acidente, a 27 de outubro, enquanto O Gigante surgiu quase um ano mais tarde, a 10 de outubro de 1956.
A sua herança é indissociável de uma genuína revolução formal que começou a acontecer no teatro, mais especificamente através do Actors Studio, esse verdadeiro “estúdio dos actores” fundado em 1947 por Elia Kazan, Cheryl Crawford e Robert Lewis — sem esquecer o papel fundamental que Lee Strasberg viria a desempenhar quando assumiu a respectiva direção.
Marlon Brando impôs-se, obviamente, como o primeiro e monumental símbolo do novo sistema de representação, o Método, enraizado nos ensinamentos do russo Constantin Stanislavski (1863-1938) — Um Eléctrico Chamado Desejo (1951), de Kazan, pode mesmo ser definido como o título de “entrada” do Método na organização artística de Hollywood. Entre os nomes ligados a tal começo, e para lá de James Dean, encontramos, entre muitos outros, Montgomery Clift, Julie Harris (que integrou o elenco de A Leste do Paraíso), Kim Hunter (que contracenou com Brando em Um Eléctrico Chamado Desejo), Martin Landau, Karl Malden, Paul Newman, Shelley Winters e Joanne Woodward.
Com as interpretações de James Dean, intensificavam-se os sinais de uma juventude que já não reproduzia os padrões dos adultos, de alguma maneira ilustrando a máxima do título original de Fúria de Viver. Ou seja: Rebel Without a Cause. Somos, afinal, herdeiros desses rebeldes sem causa cujos sobressaltos vividos continham, directa ou simbolicamente, um prenúncio de morte. Ficou a solidão que poucos actores exprimiram com tamanha vibração emocional e comovente vulnerabilidade.

Pensar [citação]

philomag.com

>>> O simples facto de pensar é, em si mesmo, um empreendimento muito perigoso.
[...] Mas não pensar é ainda mais perigoso.

HANNAH ARENDT
(entrevista televisiva com Roger Errera,
ORTF, outubro 1973)

segunda-feira, outubro 13, 2025

Este é o país onde a televisão nunca existiu...

"Zen for TV", Nam June Paik, versão de 1976
[ © Nam June Paik Estate ]

Em Portugal quase ninguém arrisca pensar o imenso poder cultural das televisões. Até quando? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 outubro), com o título 'A televisão nunca existiu'.

Pergunto-me muitas vezes porque é que, sendo Portugal um país que tem um território televisivo saturado de ficções totalmente formatadas (novelas e afins), contaminado por um desavergonhado anti-humanistmo (Big Brother e derivados), enfim, um território que promove jogadores, treinadores e dirigentes do futebol a filósofos quotidianos de coisa nenhuma (jogo a jogo), porque é que num país assim ocupado por tanto mediocridade comunicacional as reflexões sobre o papel social da televisão quase desapareceram do espaço mediático. Repito (para não confundir nem melindrar os que, com todo o mérito, continuam a reflectir sobre o assunto): quase desapareceram...
Há pouco mais de trinta anos, no período de afirmação dos canais privados, alguém com importantes responsabilidades editoriais explicava-me que era assim porque “os críticos de cinema não percebem nada de televisão”. Recordo com humor tal invectiva. Aliás, agora, com a proliferação exponencial de “influencers” que se apresentam como críticos de cinema, até poderíamos acrescentar, com propriedade, que há um sector imenso de críticos de cinema que não percebem nada de... cinema.
Não estou a caricaturar. Porquê? Porque tudo isto, das tendências mais esmagadoras aos detalhes mais irónicos, decorre de algo muito mais fundo, bastante mais gravoso para as nossas vidas e, para usar uma expressão voluntariamente majestosa, para a nossa consciência colectiva. A resistência a debater as muitas atribulações do espaço televisivo não pode ser dissociada de uma demissão (quase) global da discussão da cultura em geral, logo também da educação — até porque, mesmo não esquecendo as coisas inteligentes que (ainda) podemos consumir, estamos a ser deseducados por muitas formas de fazer televisão.
Observe-se, a esse propósito, a indiferença global da classe política, direitas e esquerdas confundidas. Para lá da pequena agitação anual em torno das percentagens decimais que se acrescentam (ou retiram) ao orçamento da cultura, o pensamento político não dá mostras de reconhecer que os valores culturais dominantes passaram a ser encaminhados, por vezes impostos, pelos valores que dominam a própria actividade televisiva. Essa indiferença resulta, aliás, de uma crescente dependência dos discursos políticos em relação às suas formas de representação televisiva. No limite mais obsceno de tais práticas, há muitas intervenções de políticos que, no pequeno ecrã, elaboram as suas ideias (ou a falta delas) a partir de referências a intervenções de outros políticos... noutros momentos televisivos.
Série documental da BBC
(2020-21)
Quer isto dizer que ninguém (enfim, quase ninguém) dá a devida importância ao facto de a televisão — com todas as suas diferenças internas — existir como um elemento nuclear da configuração, não apenas do confronto de ideias políticas, mas do funcionamento de todas as dinâmicas sociais. Vivemos todos os dias pela televisão e, não poucas vezes, através da televisão, ao mesmo tempo que nos comportamos como se a televisão não existisse. Nem sequer damos atenção ao facto sintomático de alguém como Donald Trump desenvolver toda a sua estratégia anti-democrática através da televisão e, cada vez mais, contra aquilo que na televisão resiste à manipulação das consciências.
Os gritos histéricos em defesa da “liberdade de expressão” são escassos (mesmo quando servem de munição para alguns clips televisivos). O que tem acontecido nos EUA, com o afastamento de figuras emblemáticas dos “talk-shows” mais críticos da administração Trump, está muito longe de ser um bailado de piadas mais ou menos provocatórias, ou um mero jogo de vaidades. Afinal de contas, Trump chegou onde chegou em grande parte através de muitos anos de uma presença insinuante no pequeno ecrã — entenda-se: em todo o tecido social americano.
Não que o protagonismo televisivo seja um método de fabricação de ditadores. Sugerir isso seria duplicar o maniqueísmo compulsivo que passou a contaminar muitos “debates” televisivos. Em todo o caso, seria tempo de perguntarmos se só nos restam políticos que concebem a sua presença televisiva como um teatro cínico para conquistar os eleitores. Ou se ainda há políticos com serenidade para pensar, e ajudar a superar, o esvaziamento cultural do país — sem esquecer que não é possível fazê-lo sem pensar também o papel fulcral da televisão.

quarta-feira, setembro 24, 2025

O regresso de Jimmy Kimmel

Suspenso pela ABC, reposto pela ABC no seu lugar de trabalho e comunicação — aí está Jimmy Kimmel. A sua exclusão e o seu rápido regresso definem um capítulo exemplar da história da televisão (americana e não americana), nessa medida apelando a um pensamento activo, inteligente e tolerante sobre as responsabilidades (e a sua prática) de quem detém algum tipo de poder no chamado pequeno ecrã.
Dito de outro modo: eis alguns preciosos minutos de televisão, capazes de nos ajudar (também) a reflectir sobre o nosso aqui e agora.


>>> Jimmy Kimmel defende liberdade de expressão [Reuters].

segunda-feira, setembro 15, 2025

Uma canção de Bob Dylan
pelo coro do Pembroke College

Pembroke College

Make You Feel My Love é um dos temas emblemáticos de Time Out of Mind (1997), trigésimo álbum de estúdio de Bob Dylan, tão famoso pela sua excelência poética e musical, como pela produção de Daniel Lanois. Recentemente, a britânica Anna Lapwood (maestrina, organista oficial do Royal Albert Hall, personalidade da televisão e da rádio) fez um arranjo da canção para o coro do Pembroke College, Cambridge — apenas sublime (+ o original em baixo).
 


domingo, setembro 07, 2025

Futebol & dinheiro

O Dinheiro (1983), de Robert Bresson: um conto moral antes do euro...

Eis uma evidência de todos os dias: na sociedade portuguesa, o futebol é a matéria central da cultura dominante — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 agosto).

Robert Bresson
Quando vejo e ouço a maioria dos analistas televisivos do futebol a comentarem, muitas horas por dia, vários dias por semana, os valores astronómicos das transferências de jogadores, vem-me sempre à memória o filme final do mestre francês Robert Bresson (1901-1999) — chama-se O Dinheiro e foi lançado em 1983.
Reconheço que há algum mal-estar, próximo de uma culpa insidiosa, na minha memória. Na verdade, devo reconhecê-lo, Bresson é um cineasta que levei tempo a compreender em todo o seu esplendor narrativo. Sem dúvida por isso, além de me exigir o máximo de concisão na abordagem da sua obra, atrevo-me a supor que a inteligência moral do seu trabalho pode interessar qualquer analista — incluindo um comentador televisivo de futebol. Daí a minha pergunta: como é que cada um desses comentadores vê, descreve e interpreta um filme como O Dinheiro?
Vale a pena lembrar que, tendo como ponto de partida um conto de Tolstoi, Bresson conta uma história de um tempo (o da própria produção do filme) em que já há máquinas multibanco. Dito de outro modo: estamos perante um verdadeiro conto moral que não se dilui numa qualquer nostalgia “literária”, antes remetendo para o presente em que o espectador descobre o filme.
Ludwig Wittgenstein
A personagem central de O Dinheiro, Yvon (Christian Patey), é alguém que descobrimos numa solidão radical, desde logo em ruptura com o espaço familiar. Digamos, para simplificar, que toda a sua existência está assombrada pela presença (ou ausência) do dinheiro. Agravando a sua dependência, Yvon vai funcionar como transportador incauto de uma nota falsa de 500 francos (já se fazia grande cinema antes do euro...), transformando-o em alvo das autoridades policiais e, por fim, em protagonista de eventos visceralmente trágicos.
A moral é linear e, de facto, trágica — tragicamente actual. A saber: o dinheiro, ou melhor, a sua circulação arrasta uma avalanche de ambiguidades em que, no limite, a dimensão humana tende para o vazio, transformando-se em “coisa” descartável. Ora, no pequeno ecrã, o espaço de reflexão sobre o futebol consegue a proeza bizarra (pueril, a meu ver) de tratar o dinheiro como matéria natural, quer dizer, produto de uma natureza que existe como entidade que não suscita qualquer dúvida ou perturbação — discutem-se os milhões que custa o passe de um jogador como se o valor monetário do futebol fosse o produto de uma sociedade em que a distribuição de recursos (financeiros, precisamente) fosse a coisa mais pacífica do mundo.
Já nem espero que algum dos comentadores páre para perguntar se faz sentido um país como Portugal envolver-se (financeiramente) na organização de um Mundial de Futebol — aliás, o seu silêncio ecoa a indiferença da classe política em relação ao assunto. Acontece que as palavras com que se descrevem (?) os circuitos dos dinheiros do futebol reforçam a noção de que o próprio futebol pertence a uma cultura autónoma em que o dinheiro existe como bênção transcendental e, nessa medida, inquestionável.
Gustave Flaubert
Julgarão os mais precipitados que estou a convocar, implicitamente, os casos de corrupção financeira que, em décadas recentes, têm pontuado a história do futebol (não português, mas global). Nada a ver, de facto — além do mais, não me vejo como juiz imaculado de todos os males que afectam o nosso mundo. Falo apenas da responsabilidade mediática que pode, e deve, ser atribuída a qualquer analista, seja qual for o domínio da sua intervenção. Porquê? Por uma razão antiga e primordial que, em 1945, Ludwig Wittgenstein condensou numa frase que gosto de citar: “As palavras são acções”.
Há outra maneira de lidar com tudo isto. Consiste em ter a serenidade de reconhecer que a cultura dominante na sociedade portuguesa tem o futebol como matéria central. Há uma tradição cínica que continua a tentar atribuir aos que lidam com as artes (exemplo: os críticos de cinema) todas as responsabilidades pela definição e propagação dos valores culturais da sociedade. De facto, da percepção do dinheiro às componentes específicas das relações humanas, poucos possuem o poder — e a omnipresença — dos analistas do futebol. Vivem, por isso, condenados pela maldição que Flaubert identificava nas vidas de Bouvard e Pécuchet: “E ao ter mais ideias tiveram mais sofrimentos”.

sábado, agosto 16, 2025

"Se os humanos são tão espertos,
porque somos tão estúpidos?"
— Yuval Noah Harari

Como defender o nosso espírito na idade do lixo informativo — mais do que uma interrogação, eis um método de resistência proposto por Yuval Noah Harari, autor de livros como Nexus em que se pensa e problematiza este nosso mundo de redes e avalanches de (des)informação — ei-lo, partilhando alguns contagiantes minutos de reflexão.
 

domingo, agosto 10, 2025

Facebook: do virtual aos dramas muito reais

Para Sarah Wynn-Williams, o trabalho no Facebook começou como uma utopia, para desembocar numa cruel frustração. No seu livro Careless People, a rede social de Mark Zuckerberg surge como uma empresa em que os mecanismos de procura de lucro estão longe de ser saudáveis — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 julho).

Como evoluiu a Internet nas últimas duas décadas? Entre as respostas possíveis, das mais radiosas às mais inquietantes, nenhuma pode ignorar a história do Facebook. Tendo chegado recentemente aos 3 mil milhões de utilizadores, talvez possamos resumir o seu peso virtual (mas muito concreto) através de um contraste esquemático. Assim, logo após a sua fundação, em 2004, a rede social de Mark Zuckerberg foi celebrada por vozes de muitos quadrantes (incluindo o espaço político) como o paraíso de todas as comunicações — de repente, era possível praticar uma partilha global de mensagens que garantia a pureza virginal e ecuménica de uma humanidade milagrosamente pacificada.
Depois, o Facebook passou a ser associado a dramas muito reais, como tal questionado e investigado, dramas envolvendo conteúdos que vão desde formas de difamação de pessoas LGBT até à repressão da minoria muçulmana em Myanmar, passando pelo processo (social, justamente) que transformou Donald Trump em presidente dos EUA.
Lembremos um dos ecos artísticos de tudo isso: em 2010, David Fincher realizou o filme A Rede Social, uma das obras-primas que Hollywood gerou neste século XXI, abordando o nascimento do Facebook como uma pueril religião da comunicação “sem contradições”, afinal enraizada numa clássica estratégia de negócio e multiplicação de lucros. Construído a partir de um argumento assinado por Aaron Sorkin (que lhe valeu um Oscar), o filme tinha como base o livro The Accidental Billionaires (ed. Doubleday, 2009), de Ben Mezrich (a edição portuguesa, Milionários Acidentais – A Fundação do Facebook, surgiu em 2010, com chancela da editora Lua de Papel).
Em 2021, Sheera Frenkel e Cecilia Kang, jornalistas do New York Times, publicaram An Ugly Truth (ed. The Bridge Street Press), notável investigação sobre a “batalha pelo domínio” comunicacional do Facebook (a tradução portuguesa, com o título Manipulados, foi lançada em 2022 pela editora Objectiva). Agora, podemos descobrir uma genuína crónica intimista, contada por Sarah Wynn-Williams que viveu sete anos da sua vida profissional no interior do Facebook — chama-se Careless People (ed. Macmillan) e, ao longo dos meses de maio/junho, passou seis semanas na lista de “best-sellers” do New York Times.
Nascida na Nova Zelândia, a autora trabalhou na embaixada do seu país em Washington, tendo entrado para o Facebook em 2011, em pouco tempo ascendendo ao cargo de coordenadora da estratégia global da empresa (“global public policy”). A sua experiência diplomática ajudou-a a abrir vias de diálogo com os poderosos deste mundo. O certo é que aquilo que começou por ser a realização de um sonho, rapidamente se transformou em pesadelo, primeiro por causa da desorganização quase burlesca que encontrou, depois descobrindo-se como peça incauta de um xadrez cujo “ponto de fuga” era sempre a figura intocável de Mark Zuckerberg. Muito cedo deparou com uma centralização que, mais do que empresarial, decorria de uma “psicologia” bizarra: “Foi-me gentilmente sugerido que, sendo Mark um ingénuo político, não é do interesse da companhia colocá-lo em encontros com chefes de estado”.

"Pessoas descuidadas”

O livro é tanto mais interessante, até mesmo emocionalmente envolvente, quanto Sarah Wynn-Williams não está a defender uma “tese”, mas sim a percorrer memórias de uma experiência pessoal iniciada em tom utópico para desembocar numa cruel frustração. Daí os elementos pessoais da narrativa, desde logo a experiência da gravidez vivida durante os primeiros tempos no Facebook, a par de diversos dados perturbantes, incluindo a descoberta da partilha de informações sobre novos recursos de inteligência artificial com o Partido Comunista da China, “apenas” para garantir uma maior abertura do mercado chinês ao Facebook. Seja como for, a história de Careless People também não acaba aqui, já que a Meta (proprietária do Facebook), além de denunciar aquilo que considera as “mentiras” da autora, interpôs uma acção legal que a impediu de cumprir a habitual digressão promocional do livro.
Resta recordar a origem do título — à letra “pessoas descuidadas”, embora arrastando também as sugestões de superioridade, indiferença e manipulação. A expressão provém de O Grande Gatsby (1925), de F. Scott Fitzgerald, e surge no parágrafo que serve de epígrafe ao livro: “Tom e Daisy eram pessoas descuidadas — esmagavam as coisas e as criaturas, e depois retiravam-se para o seu dinheiro ou a sua imensa indiferença, ou o que quer que fosse que os mantinha unidos, deixando os outros a limpar a confusão que tinham gerado...”

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>>> They were careless people, Tom and Daisy—they smashed up things and creatures and then retreated back into their money or their vast carelessness, or whatever it was that kept them together, and let other people clean up the mess they had made…

F. SCOTT FITZGERALD

sexta-feira, agosto 08, 2025

Miranda July
— uma comédia sexual em forma de romance

Escritora e cineasta: Miranda July no seu filme Eu, Tu e Todos os que Conhecemos (2005)

Realizadora de cinema, criadora de instalações e performances, a americana Miranda July é também uma escritora original e sedutora. Com o romance De Quatro, ela arrisca percorrer um universo feminino em que se pergunta o que significa “ter um corpo para mim” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 julho).

O primeiro filme realizado pela americana Miranda July, lançado em 2005, centrava-se na personagem de uma jovem adulta que ela própria interpretava. A sua odisseia paradoxal, dramática e burlesca, envolvia os prazeres, sobressaltos e agruras da maturidade — chamava-se Eu, Tu e Todos os que Conhecemos. Vinte anos depois, July assina o romance De Quatro, recentemente lançado entre nós (ed. Quetzal, tradução de Telma Costa). Por uma ironia suscitada pela própria escrita, talvez lhe pudéssemos colar um subtítulo que seria qualquer coisa como “Eu, tu e todos os que conhecemos tão mal”.
Quem sou eu? Quem são os outros para mim? Para a narradora de De Quatro, as atribulações que tudo isso envolve são indissociáveis da cruel passagem do tempo: “Há vinte anos estava eu nos meus 20 e tais, daqui a vinte anos estaria na casa dos 60. Não estava mais perto dos 65 do que dos 25, uma vez que o tempo anda para a frente e não para trás, 65 é já amanhã e os 25 algo discutível”.
Tendo em conta que July já passou a barreira dos 50 — nasceu em Barre, Vermont, a 15 de fevereiro de 1974 —, seremos tentados a ler o romance como uma deambulação existencial da própria autora (por interposta personagem). A tentação será tanto maior quanto a protagonista é uma artista californiana de múltiplas linguagens, rimando com o facto de July, além de escritora e cineasta, ser também uma criadora de instalações e performances (a sua mais recente exposição teve lugar na Fundação Prada, em Milão, de março a outubro de 2024).
Seja como for, não estamos perante uma dessas confissões anedóticas sustentadas pela “ideia” segundo a qual quem souber colocar umas quantas vírgulas no meio de algumas frases pretensiosas está a elaborar um sermão capaz de redimir as vidas dos pobres leitores. Nada a ver, ainda menos, com as prosas de “auto-ajuda” que por aí circulam. De Quatro parte de um pressuposto primitivo, tão desesperado quanto poético: “Ninguém sabe o que se passa. Somos atirados para as nossas vidas por um vento que começou a soprar há milhões de anos”.
Significa isto que, instante a instante, a vida se faz de coisas espontâneas e misteriosas, num ziguezague que, mesmo nas situações mais dramáticas, atrai os sobressaltos da comédia. Assim, a heroína de July despede-se do marido e do filho, em Los Angeles, para uma viagem, de carro, rumo a Nova Iorque: serão duas semanas para alguns eventos relacionados com a sua arte e, sobretudo, para revigorar corpo e alma... Só que, percorridas umas poucas dezenas de quilómetros, sai da auto-estrada, instala-se num motel e encomenda à respectiva gestora, Claire, uma nova decoração do seu quarto (que passa a merecer a designação de suite), ao mesmo tempo envolvendo-se com Davey, o jovem marido se Claire, numa bizarra comédia sexual.
Sexual? Ainda que evitando revelar mais do que é devido, convém dizer que as tardes partilhadas pela nossa narradora e o talentoso Davey (que, afinal, possui dotes invulgares de bailarino) estão longe de satisfazer a banal noção “telenovelesca” da relação sexual como uma ginástica mecânica de mútua satisfação. Mas será que o par tem, em algum momento, alguma relação sexual?
A aparente ligeireza da comédia contém, afinal, um verdadeiro tratado de introspeção: “Sem o saber, sem compreender verdadeiramente, tinha sido um corpo para as outras pessoas, mas sem conseguir ter um corpo para mim.” Ou seja, com Davey, ela sente-se “inteiramente presente, se é que isso ainda importa”.

Anti-romantismo

Claro que a relação com Davey vai arrastar um preço nada romântico. Claro que o regresso ao marido e ao filho não será uma mera repetição do que acontecia antes. Claro que a proximidade da menopausa circula por todos os capítulos como uma barreira, mas também um fantasma, porventura uma paradoxal libertação...
Miranda July trata tudo isso como uma verdadeira aventura literária de descoberta e auto-descoberta, não se coibindo, alegremente, de recorrer a um elaborado calão sexual aplicado ao corpo feminino (e também ao masculino). Convenhamos, aliás, que se fosse um homem a utilizar os mesmos palavrões haveria uma certa “pureza” dos costumes que não deixaria de o acusar de desrespeitar as mulheres... Indiferente a tudo isso, e um pouco à maneira dos seus filmes (lembremos também O Futuro, 2011), a autora transforma De Quatro num genuíno labor de medo e maravilha face aos enigmas que o mundo gosta de preservar.

terça-feira, agosto 05, 2025

O caso Epstein [ponto de situação]

No labirinto do caso Epstein, os ecrãs estão a desempenhar um papel vital — entenda-se: contrastado, contraditório, um verdadeiro palco das convulsões políticas que estão a acontecer. Nessa dinâmica, a acumulação de factos comprometedores para a administração Trump (incluindo a inesperada transferência de Ghislaine Maxwell, condenada por cumplicidade com Epstein, para uma prisão mais "ligeira") tem suscitado muitas tentativas do próprio Presidente dos EUA no sentido de desviar a atenção do caso. Eis um ponto de situação, na noite de segunda-feira, por Nicolle Wallace, no canal MSNBC.
 

segunda-feira, agosto 04, 2025

Pânico cultural

George Sanders e Ingrid Bergman em Viagem em Itália (1954): como vemos uma imagem?

Em termos culturais, que significa dizer “tudo é possível”? Eis uma pergunta que se perdeu pelo caminho — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 julho).

Há uma sensação de pânico que passou a contaminar a minha relação com o cinema: um dia destes, alguém vai referir-se a Viagem em Itália (1954), de Roberto Rossellini, proclamando com um sorriso de inocência beata que a personagem de Ingrid Bergman é uma precursora do movimento #MeToo, desse modo expondo o cinismo do marido interpretado por George Sanders, ele que talvez seja mesmo responsável por alguns episódios de violência doméstica.
Quem vai dizer tais disparates? Não sei, a minha presciência não chega tão longe. Ainda assim, atrevo-me a apostar que poderá ser um ou uma “influencer” que sabe tanto de cinema como eu sei do comportamento das ervas daninhas nas encostas do Everest. Ou talvez um ou uma repórter, de microfone na mão, imbuído da certeza de que as suas palavras são lei compulsiva para qualquer mortal que ainda não tenha carregado no botão para desligar o pequeno ecrã.
Tudo é possível — e, agora, a expressão “tudo é possível” não significa o mesmo que significou para a geração que viveu a adolescência nas décadas de 1960/70, mesmo se o preço a pagar pelas ilusões desse tempo feliz continua a assombrar a nossa modesta existência. Tudo é possível, de facto, até mesmo o tratamento de Taxi Driver (1976) como uma muito suspeita exaltação de uma personagem com impulsos violentos. Afinal de contas, vivemos no tempo em que, quase 80 anos depois de Simone de Beauvoir ter publicado O Segundo Sexo, o filme Barbie é consagrado em muitos recantos do planeta como a suprema encarnação da libertação feminina (e esta, lamento informar, não é invenção minha).
Há outra maneira de dizer isto: a crescente violência interpretativa do pensamento “politicamente correcto” instaurou a noção historicamente cega e culturalmente miserável (de miséria cultural, entenda-se) segundo a qual as obras de arte — cinema, literatura, teatro, música, pintura, etc. — não têm nada de específico. Segundo a estupidez de tal mantra ideológico, o que define cada obra é apenas a importância mediática que pode ser atribuída aos seus “temas”.
Observe-se, por isso, o outro lado da questão. Vemos, ouvimos e lemos alguns criadores, muitos deles ainda mal saídos da adolescência, a dar conta de um determinado trabalho que fizeram (filme, livro, etc.) e não têm mais nada para dizer a não ser apresentar um rol de “temas” — a exploração das mulheres, a liberdade para as minorias, a denúncia de alguma forma de repressão, etc. — que, supostamente, caucionam tudo e mais alguma coisa, mesmo que o trabalho seja “apenas” artisticamente medíocre. Shakespeare? A peça, senhoras e senhores, é uma denúncia do “bullying”... não há nada a dizer sobre a respectiva encenação, nem sequer, já agora, sobre o valor do texto escrito há mais de 400 anos.
Penso que uma parte significativa da responsabilidade de tudo isto é da minha geração. Sem qualquer ponta de ironia — penso mesmo. Educados na ideia, e para a ideia, de que a arte é capaz de deslocar e transfigurar a nossa percepção do mundo, enriquecendo o nosso lugar na dinâmica desse mesmo mundo, deixámos, ainda que de modo incauto, que tal ideia fosse sendo parasitada por uma outra ideia (mas já não é uma ideia, apenas uma vibração consumista) segundo a qual os objectos artísticos são instrumentos legislativos para repor uma ordem temática e simbólica que, por alguma razão, é tratada como única e inevitável.
No domínio do pensamento sobre a arte (logo, também do pensamento artístico), isso traduz-se numa desvalorização sistemática, sobretudo televisiva, do pensamento crítico — se o mundo se organiza e esgota nos “temas” impostos pelas regras do mediatismo dominante, pensar a arte tornou-se irrelevante. Em termos sociais, isto significa que estamos a fabricar multidões insensíveis às singularidades dos objectos artísticos.

domingo, agosto 03, 2025

Ditadura, aqui e agora [NYT]

Três depoimentos: Jason Stanely (professor de filosofia), Marci Shore (professora de história) e Timothy Snyder (professor de história) reflectem sobre o momento histórico dos EUA e a proliferação de elementos ditatoriais, não apenas na cena política, mas, transversalmente, em todos os circuitos sociais — testeumhos tão concisos quanto perturbantes num video da secção de Opinião do New York Times.