
É um mistério os motivos pelos quais Gonçalo Portocarrero de Almada, cabecilha doméstico do Opus Dei e sacerdote às ordens de Duarte de Bragança, é colaborador regular do
Público e do
i, chegando a publicar o mesmo artigo em ambos os jornais com um intervalo de poucos dias (v.g.,
aqui e
aqui). Os argumentos caquécticos a que recorre podem provocar mais chacota do que aversão, mas vale a pena ler o seu artigo na edição de hoje do
Público com alguma atenção, porque ele simula a leste (a oposição ao “direito ao aborto”) para atacar a oeste (a defesa da brandura do Estado Novo).
A tese de licenciatura de Álvaro Cunhal sobre o aborto é o pretexto que Portocarrero de Almada engendrou para sustentar que Salazar era tão aprazível na condução dos negócios da pátria que até permitiu ao jovem Cunhal apresentar, “numa faculdade da universidade estatal, uma tese em que não só faz a apologia do sistema soviético, como também defende abertamente a prática do que a legislação penal, então vigente, considerava um crime.”
E, ufano, Portocarrero de Almada conclui: “Graças, portanto, ao dr. Cunhal, há que reconhecer que, não obstante o inegável e censurável carácter autoritário do antigo regime, havia também, ao contrário do que pretende uma certa historiografia moderna,
alguma liberdade de opinião e de expressão nos meios universitários. Até porque, como se costuma dizer, contra factos não há argumentos.”

Apetece abanar a cachimónia do padre do Opus Dei e recordar-lhe que Cunhal estava preso quando foi fazer exame. E como “contra factos não há argumentos”, lembrar-lhe ainda
o vasto número de professores expulsos das universidades portuguesas por motivos políticos durante o Estado Novo.
O artigo que o
Público hoje acolhe retoma a questão de saber se o Estado Novo foi um regime mais ou menos adocicado, tema que animou as páginas do jornal há um ano — na sequência da publicação da
História de Portugal de Rui Ramos em fascículos (brinde de Verão do Expresso). Portocarrero de Almada escolhe um dos lados da barricada e envolve Rui Ramos na sua opção, fazendo-lhe uma dedicatória no artigo: “Para o Prof. Rui Ramos, com admiração e estima”. Rui Ramos, que reagiu tão prontamente contra os pontos de vista de Manuel Loff, tem agora a palavra. Ou não.